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O caráter instrumental dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência
Mario Luiz Elia Junior*
Sumário: I. Introdução. II. Contextualização da "livre iniciativa" na Constituição de 1988. III. A "livre concorrência" e sua relação com a "livre iniciativa". IV. Regulação da concorrência no Brasil. V. Conclusões. VI. Bibliografia Consultada
I – INTRODUÇÃO
O interesse pelo desenvolvimento do presente tema – a
proteção constitucional da livre iniciativa e da concorrência – decorre,
sobretudo, da sua compreensão como instrumento, e não como um fim em si mesmo.
Os princípios constitucionais que serão brevemente
abordados nesta oportunidade devem ser vistos como instrumento para o alcance
de algo ainda maior que a livre iniciativa e a concorrência – devem ser vistos
como instrumento para se assegurar a "dignidade da pessoa humana",
que é prevista pela Constituição de 1988 tanto como fundamento da República
Federativa do Brasil, nos termos de seu art. 1º, inc. III, quanto como
finalidade da ordem econômica, conforme seu artigo 170, caput.
Preleciona o Professor da Faculdade de Direito do Largo de
São Francisco e Ministro do E. Supremo Tribunal Federal Eros Grau "que
o Brasil – República Federativa do Brasil – define-se como entidade política
constitucionalmente organizada, tal como a constitui o texto de 1988, enquanto
assegurada, ao lado da soberania, da cidadania, dos valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa e do pluralismo político, a dignidade da pessoa humana.
Por outro, significa que a ordem econômica mencionada pelo art. 170, caput
do texto constitucional – isto é, mundo do ser, relações econômicas ou
atividade econômica (em sentido amplo) – deve ser dinamizada tendo em
vista a promoção da existência digna de que todos devem gozar"
[01].
A Professora Paula Andréa Forgioni, também da Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco, por sua vez, tratando mais especificamente
da disciplina da concorrência, assevera que essa surge, no Brasil, "em
um contexto de proteção da economia popular (cf. Decreto-lei 869, de 1938, e
Decreto-lei 7.666, de 1945), o que, sem sombra de dúvidas, já lhe atribui um
caráter instrumental ainda que vinculado à economia popular e ao consumidor. O
caráter instrumental da proteção da concorrência permanece na atual
Constituição, que manda reprimir o abuso do poder econômico que vise a
dominação dos mercados e à eliminação da concorrência (art. 173, §4º), em
atenção ao princípio da livre concorrência (art. 170, IV). Manda, também,
reprimir o aumento arbitrário de lucros (art. 173, §4º), conforme o princípio
da defesa do consumidor (art. 170, inc. V). Essa proteção, entretanto, vai
inserta no fim geral e maior, qual seja, "assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social" [02].
Tal "fim geral e maior", nos termos do
art. 170, caput, da Constituição da República, pressupõe uma ordem
econômica fundada na "valorização do trabalho humano" –
frise-se que "o valor social do trabalho" não apenas deve ser
o fundamento da ordem econômica, como também deve ser a base de sustentação da
República Federativa do Brasil, como entidade política constitucionalmente
organizada, nos termos do artigo 1º, inc. IV, da Constituição de 1988.
Nessa linha, a "valorização do trabalho humano",
acompanhada da "livre iniciativa", que, em verdade, "é
um modo de expressão do trabalho e, por isso mesmo, corolária da valorização do
trabalho" [03], ambas previstas no caput do art. 170
da Constituição como fundamentos da ordem econômica, são condições para que se
assegure a "dignidade da pessoa humana".
A "livre concorrência", princípio que
complementa o da "livre iniciativa", dessa mesma forma, sendo
princípio voltado à preservação do modo de produção capitalista, através da
tutela do consumidor – na medida em que a competitividade leva a uma
distribuição de recursos por um preço menor – e da garantia de oportunidades
iguais a todos os agentes do mercado, deve também ser encarada, em última
análise, como adiante se verá, como asseguradora da "dignidade da
pessoa humana".
Essa é a perspectiva que se pretende dar nessa breve
abordagem sobre o tema.
II – CONTEXTUALIZAÇÃO DA
"LIVRE INICIATIVA" NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
Os esclarecimentos introdutórios são necessários para que
se tome o princípio da "livre iniciativa" como expressão de
algo inserto dentro de um contexto socialmente valioso. Afinal de contas, é
conhecida a lição de Eros Grau de que "jamais se aplica uma norma
jurídica, mas sim o direito, não se interpretam normas
constitucionais, isoladamente, mas sim a Constituição, no seu todo. Não se
interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços" [04].
O ilustre José Afonso da Silva, nesse sentido, ensina que
a livre iniciativa, "num contexto de uma Constituição preocupada com a
realização da justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar
mais do que ‘liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo
poder público, e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e
necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo’. É legítima,
enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando
exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário."
[05].
Na concepção de Celso Ribeiro Bastos, a livre iniciativa
"é uma manifestação dos direitos fundamentais e no rol daqueles devia
estar incluída. De fato o homem não pode realizar-se plenamente enquanto não
lhe for dado o direito de projetar-se através de uma realização transpessoal.
Vale dizer, por meio da organização de outros homens com vistas à realização de
um objetivo. Aqui a liberdade de iniciativa tem conotação econômica. Equivale
ao direito de todos têm de lançarem-se ao mercado da produção de bens e
serviços por sua conta e risco. Aliás, os autores reconhecem que a liberdade de
iniciar a atividade econômica implica a de gestão e a de empresa."
[06].
É importante que se diga, entretanto, que a "livre
iniciativa", prevista pela Constituição da República tanto no artigo
1º, inc. IV, como fundamento da República Federativa do Brasil, quanto no
artigo 170, caput, como fundamento da ordem econômica, não se resume
apenas à liberdade de desenvolvimento da empresa, sob pena de se vislumbrar a
"livre iniciativa" apenas e tão-somente como uma afirmação do
capitalismo.
A "livre iniciativa" é não só expressão
de liberdade da empresa como também do trabalho, abrangendo todas as formas de
produção, individuais ou coletivas, como por exemplo as iniciativas
cooperativa, autogestionária e pública – no que diz respeito à iniciativa
pública, esclareça-se que a "livre iniciativa" não consistirá
na livre atuação da empresa privada no serviço público, mas sim que o Estado não
deverá opor empecilhos à liberdade humana [07].
O renomado mestre Tércio Sampaio Ferraz Jr. proferiu
parecer [08], do qual se fará, abaixo, parcial transcrição, no qual
realizou detida análise sobre o tema, tratando a liberdade de iniciativa como
atributo inalienável do ser humano:
"Nestes termos, o art. 170, ao proclamar a
livre iniciativa e a valorização do trabalho humano como fundamentos da ordem
econômica está nelas reconhecendo a sua base, aquilo sobre o que ela se
constrói, ao mesmo tempo sua conditio per quam e conditio sine qua
non, os fatores sem os quais a ordem reconhecida deixa de sê-lo, passa a ser
outra, diferente, constitucionalmente inaceitável. Particularmente a afirmação
da livre iniciativa, que mais de perto nos interessa neste passo, ao ser
estabelecida como fundamento, aponta para uma ordem econômica reconhecida então
como contingente. Afirmar a livre iniciativa como base é reconhecer na
liberdade um dos fatores estruturais da ordem, é afirmar a autonomia
empreendedora do homem na conformação da atividade econômica, aceitando a sua
intrínseca contingência e fragilidade; é preferir, assim, uma ordem aberta ao
fracasso a uma ‘estabilidade’ supostamente certa e eficiente. Afirma-se, pois,
que a estrutura da ordem está centrada na atividade das pessoas e dos grupos e
não na atividade do Estado. Isto não significa, porém, uma ordem do ‘laissez
faire’, posto que a livre iniciativa se conjuga com a valorização do trabalho
humano, mas a liberdade, como fundamento, pertence a ambos. Na iniciativa, em
termos de liberdade negativa, da ausência de impedimentos e da expansão da
própria criatividade. Na valorização do trabalho humano, em termos de liberdade
positiva, de participação sem alienações na construção da riqueza econômica.
Não há, pois, propriamente, um sentido absoluto e ilimitado na livre
iniciativa, que por isso não exclui a atividade normativa e reguladora do
Estado. Mas há ilimitação no sentido de principiar a atividade econômica, de
espontaneidade humana na produção de algo novo, de começar algo que não estava
antes. Esta espontaneidade, base da produção da riqueza, é o fator estrutural
que não pode ser negado pelo Estado. Se, ao fazê-lo, o Estado a bloqueia e
impede, não está intervindo, no sentido de normar e regular, mas está dirigindo
e, com isso, substituindo-se a ela na estrutura fundamental do mercado".
Compreendida dessa forma a "livre iniciativa",
não há que se cogitar dela como afirmação constitucional do capitalismo, como
pretendem muitos estudiosos do tema. A consagração do sistema capitalista na
Constituição de 1988 é decorrência não exclusivamente do princípio da "livre
iniciativa", mas sim desse princípio complementado pelo princípio da
"livre concorrência", que é corolário do capitalismo.
Cumpre-nos analisar, dessa feita, a "livre concorrência" e sua
relação com a "livre iniciativa", sem perder de vista a função
instrumental de tais princípios.
III- A "LIVRE
CONCORRÊNCIA" E SUA RELAÇÃO COM A "LIVRE INICIATIVA"
Acerca da relação entre a "livre concorrência"
e a "livre iniciativa", preleciona José Afonso da Silva
[09] que "os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo.
Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre
concorrência, contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista. A
Constituição reconhece a existência do poder econômico. Este não é, pois,
condenado pelo regime constitucional. Não raro esse poder econômico é exercido
de maneira anti-social. Cabe, então, ao Estado intervir para coibir o abuso".
Carlo Barbieri Filho [10], a respeito
especificamente do princípio da "livre concorrência", previsto
no artigo 170, inciso IV, da Constituição da República, conceitua-o e demonstra
sua importância numa economia de mercado, considerando a concorrência como
"elemento fundamental para o democrático desenvolvimento da estrutura
econômica. É ela a pedra de toque das liberdades públicas no setor econômico.
Concorrência é disputa, em condições de igualdade, de cada espaço com objetivos
lícitos e compatíveis com as aspirações nacionais. Consiste, no setor
econômico, na disputa entre todas as empresas para conseguir maior e melhor
espaço no mercado. O objetivo da legislação antitruste é proteger e amparar
aqueles que participam desse jogo".
Celso Ribeiro Bastos [11], por sua vez, também
a esse respeito, afirma que "a livre concorrência é indispensável para
o funcionamento do sistema capitalista. Ela consiste essencialmente na
existência de diversos produtores ou prestadores de serviços. É pela livre
concorrência que se melhoram as condições de competitividade das empresas,
forçando-as a um constante aprimoramento dos seus métodos tecnológicos, dos
seus custos, enfim, da procura constante de criação de condições mais
favoráveis ao consumidor. Traduz-se portanto numa das vigas mestras do êxito da
economia de mercado. O contrário da livre concorrência significa o monopólio e
o oligopólio, ambos situações privilegiadora do produtor, incompatíveis com o
regime de livre concorrência".
Eros Roberto Grau [12], em suas lições, parte
para uma análise mais acurada do princípio da "livre concorrência":
"A afirmação, principiológica, da livre
concorrência no texto constitucional é instigante. De uma banda porque a
concorrência livre – não liberdade de concorrência, note-se – somente poderia
ter lugar em condições de mercado nas quais não se manifestasse o fenômeno do
poder econômico. Este, no entanto – o poder econômico – é não apenas um
elemento da realidade, porém um dado constitucionalmente institucionalizado, no
mesmo texto que consagra o princípio. (...) De outra banda, é ainda instigante
a afirmação do princípio porque o próprio texto constitucional fartamente o
confronta. A livre concorrência, no sentido que lhe é atribuído – ‘livre jogo
das forças de mercado, na disputa de clientela’ -, supõe desigualdade ao final
da competição, a partir, porém, de um quadro de igualdade jurídico-formal. Essa
igualdade, contudo, é reiteradamente recusada (...). O que se passa, em
verdade, é que é outro, que não aquele lido no preceito por quantos se dispõem
a fazer praça do liberalismo econômico, o sentido do princípio da livre
concorrência. Deveras, não há oposição entre o princípio da livre concorrência
e aquele que se oculta sob a norma do § 4º do art. 173 do texto constitucional,
princípio latente, que se expressa como princípio da repressão aos abusos do
poder econômico e, em verdade – porque dele é fragmento –compõe-se no primeiro.
É que o poder econômico é a regra e não a exceção. Frustra-se, assim, a
suposição de que o mercado esteja organizado, naturalmente, em função do
consumidor. A ordem privada, que o conforma, é determinada por manifestações
que se imaginava fossem patológicas, convertidas porém, na dinâmica de sua
realidade, em um elemento próprio a sua constituição natural. (...) Livre
concorrência, então – e daí porque não soa estranho nem é instigante a sua
consagração como princípio constitucional, embora desnecessária (bastava, nesse
sentido, o princípio da livre iniciativa) –, significa liberdade de
concorrência, desdobrada em liberdades privadas e liberdade pública".
Do que até aqui foi exposto, pode-se concluir que o
princípio constitucional da livre concorrência deve ser entendido como
liberdade de concorrência enquanto direito subjetivo a competir no mercado, sempre
sob o manto da proteção da legislação antitruste pátria, que garante a
igualdade de oportunidade entre os players.
Por outras palavras, no princípio da livre concorrência se
contém a crença de que a competição entre os players e, paralelamente, a
liberdade de escolha dos consumidores, produzirão os melhores resultados
sociais, promovendo a elevação da qualidade dos bens e serviços ofertados, bem
como a prática de preços justos. Os players, entretanto, não têm apenas
o direito subjetivo a competir no mercado, mas também o dever jurídico de não
adotarem práticas entendidas pela legislação antitruste como
anticoncorrenciais, sob pena de sobre eles recair a ação disciplinadora e
punitiva do Estado.
O princípio da "livre concorrência",
entendido nesse sentido de liberdade de concorrência, pode ser considerado como
desdobramento do princípio da "livre iniciativa". A "livre
iniciativa", como visto, é atributo inalienável do ser humano, é a
liberdade "da expansão da própria criatividade", da "participação
sem alienações na construção da riqueza econômica"; é a liberdade,
outrossim, da empresa, "da organização de outros homens com vistas à
realização de um objetivo".
A "livre concorrência", nesse contexto,
nada mais é que uma extensão do conceito de "livre iniciativa",
desdobrando a liberdade de empresa na liberdade de competição entre as
empresas.
Por outro lado, o que se protege pela "livre
iniciativa" e, em última análise, pela "livre concorrência",
é a liberdade de trabalho, de todas as formas de produção, individuais ou
coletivas, e por conseguinte, a "dignidade da pessoa humana".
Do exposto, pode-se concluir que a "livre
iniciativa" é complementada pela "livre concorrência"
e ambas têm a finalidade de assegurar a "dignidade da pessoa humana".
A respeito dessa perspectiva da "livre concorrência",
confira-se as lições do mestre Tércio Sampaio [13]:
"A livre concorrência de que fala a atual
Constituição como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, IV) não é a
do mercado concorrencial oitocentista de estrutura atomística e fluida, isto é,
exigência estrita de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora
de um ou uns sobre outros. Trata-se, modernamente, de um processo
comportamental competitivo que admite gradações tanto de pluralidade quanto de
fluidez. É este elemento comportamental – a competitividade – que define a
livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de
coordenação como base da formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e
apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre concorrência é
forma de tutela do consumidor, na medida em que competitividade induz a uma
distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, a
livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou
seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a
competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos
agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada".
Nesse mesmo sentido, Eros Grau [14] proferiu
parecer:
"É que a liberdade de concorrência deve ser
visualizada como elemento moderador do princípio da liberdade de comércio e
indústria, e não como ratificador deste último. Não deve ser tomado, pois, como
princípio negativo. Este sentido já é coberto pelo princípio da
liberdade de comércio e indústria (não ingerência do Estado no domínio
econômico). A liberdade de concorrência é, fundamentalmente, uma liberdade
privada e se apresenta dotada de caráter positivo, expressando-se como direito
a que o abuso (deslealdade) da liberdade de comércio e indústria não comprometa
o funcionamento regular dos mercados. Esse o sentido sob o qual o princípio é
consagrado no plano constitucional, no inc. IV do art. 170 da vigente
Constituição".
Para que a "livre concorrência", nessa
ordem de idéias, possa operar, na expressão utilizada por Paula A. Forgioni
[15], como "concorrência-instrumento" para se "assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social",
mostra-se indispensável a existência de legislação apta a evitar "a
ocorrência de práticas desvirtuadoras da livre concorrência" que ferem
"o direito subjetivo daqueles que, ao lançarem-se no mercado, o fazem
sob o manto certo da proteção dos princípios da Constituição referente ao livre
mercado" [16]. E é nesse sentido que atua a vigente lei
antitruste nacional, a Lei n.º 8.884, de 11de junho de 1994, que está voltada à
prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, da qual adiante se
fará breve análise.
IV- REGULAÇÃO DA
CONCORRÊNCIA NO BRASIL
O histórico da legislação antitruste brasileira consiste
nas seguintes leis, que antecederam à atual lei em vigor: Lei n.º 4.137/62, Lei
n.º 8.137/90 Lei n.º 8.158/91. Para o momento, entretanto, interessa-nos apenas
abordar, brevemente, a Lei n.º 8.884, de 11.06.1994.
Em seu artigo 1º, a Lei n.º 8.884/1994 define a amplitude
de seu conteúdo, nestes termos: "esta lei dispõe sobre a prevenção e a
repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames
constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social
da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico";
e completa o seu parágrafo único: "a coletividade é a titular dos bens
jurídicos protegidos por esta lei".
Ressalte-se que, orientada por tais princípios
constitucionais, dentre eles os da "livre iniciativa" e da
"livre concorrência", e não exclusivamente no §4º do art. 173
da Constituição da República, a Lei n.º 8.884/1994 não consiste simplesmente em
um diploma antitruste, mas se encontra voltada à preservação do modo de
produção capitalista.
Com efeito, uma vez que as regras da mencionada Lei "conferem
concreção aos princípios da liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da
função social da propriedade, da defesa dos consumidores e da repressão ao
abuso do poder econômico, tudo em coerência com a ideologia constitucional
adotada pela Constituição de 1988" [17] e tendo em vista
que tais princípios, em especial os da "livre iniciativa" e da
"livre concorrência", complementam-se e voltam-se à
preservação do modo de produção capitalista, através da tutela do consumidor e
da garantia de oportunidades iguais a todos os players do mercado, outra
não poderia ser a conclusão.
A "livre iniciativa" e a "livre
concorrência", princípios preservadores do modo de produção
capitalista, são protegidos pela Lei n.º 8.884/1994, que estabelece, em seu
artigo 20, "que os atos de qualquer natureza que tenham o efeito,
potencial ou real, de limitar, falsear ou prejudicar a livre concorrência ou a
livre iniciativa são definidos como infração da ordem econômica" [18].
Três são, dessa feita, as condutas definidas como infração
da ordem econômica: limitar, falsear ou prejudicar a livre concorrência ou a
livre iniciativa. Esclareça-se que, "se a limitação, falseamento ou
prejuízo atingiu a liberdade de concorrer" – livre concorrência –
"ou a liberdade de empreender" – livre iniciativa –, "as
repercussões jurídicas são rigorosamente idênticas" [19].
Fábio Ulhoa Coelho, em seu "Curso de Direito
Comercial", define brevemente no que consistem as condutas acima
apontadas [20]:
I-"limitar a livre concorrência ou a livre
iniciativa é barrar total ou parcialmente, mediante determinadas práticas
empresariais, a possibilidade de acesso de outros empreendedores à atividade
produtiva em questão. Em geral, a obstaculização do acesso decorre do aumento
dos custos para novos estabelecimentos, provocado com vistas a desencorajar eventuais
interessados";
II-"falsear a livre concorrência ou
iniciativa significa ocultar a prática restritiva, através de atos e contratos
aparentemente compatíveis com as regras de estruturação do livre mercado".
Frise-se, entretanto, que "pode haver falseamento da concorrência,
sem que o negócio jurídico que o viabiliza se caracterize como simulado";
e
III-"prejudicar a livre concorrência ou
iniciativa, por fim, significa incorrer em qualquer prática empresarial lesiva
às estruturas do mercado, ainda que não limitativas ou falseadoras dessas
estruturas. Trata-se de conduta difícil de se exemplificar em nível conceitual.
A previsão normativa se explica como cautela do legislador, tendo em conta as
imprevisíveis e variadíssimas possibilidades abertas pelas múltiplas formas de
relacionamento entre empresas, de que podem derivar restrições horizontais ou
verticais".
O que se verifica é que a Lei n.º 8.884/1994 sistematiza a
matéria antitruste, de forma a aperfeiçoar o tratamento legislativo que lhe era
dado anteriormente. Como visto, mais do que sistematizar a matéria antitruste,
o referido texto legal pretende a manutenção do modo de produção capitalista,
concretizando, dessa forma, os princípios constitucionais analisados nesse
estudo.
Mas o mais importante de tudo isso, conforme obtempera
Paula A. Forgioni [21], é que, de forma diversa da ocorrida com as
leis que antecederam a que ora se analisa, a Lei n.º 8.884/1994 não é mais
aplicada apenas em "surtos":
"Não obstante a utilização da Lei Antitruste,
pelo governo, com fins populistas, a atuação do CADE, nos últimos quatro anos,
vem-se consolidando de forma a já não se vislumbrar ‘surtos’ de aplicação da
Lei Antitruste, mas sim uma linha contínua de atuação. Identifica-se um novo
interesse acadêmico pela matéria e o aumento do número de monografias jurídicas
publicadas. Os conselheiros do CADE, por sua vez, têm proferido várias
palestras, com o escopo de chamar a atenção do empresariado para alguns
dispositivos da Lei Antitruste, desempenhando as funções educativas que estão
previstas no inc. XVIII do art. 7º da Lei Antitruste. (...) Espera-se que com o
fortalecimento do CADE perante o sistema político e a própria opinião pública
uma maior atenção seja dada, por parte das autoridades antitruste, às chamadas
condutas anticoncorrenciais dos agentes econômicos".
A aplicação da legislação antitruste, dessa feita, deve
continuar, sem que por "surtos". Ademais, tendo em vista que a
legislação antitruste tem por escopo a preservação do modo de produção
capitalista através da proteção aos princípios constitucionais da "livre
iniciativa" e da "livre concorrência" – por outras
palavras, tendo em vista que tal legislação é instrumento para se "assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" –
"aparece clara", na lição de Paula A. Forgioni [22],
"conjuntamente com o aspecto instrumental desse tipo de norma, sua
aptidão para servir à implementação de políticas públicas, especialmente de
políticas econômicas entendidas como ‘meios de que dispõe o Estado para influir
de maneira sistemática sobre a economia’".
Ou seja, ainda conforme os ensinamentos da professora,
"o antitruste já não é visto apenas em sua função de eliminação dos
efeitos autodestrutíveis do mercado, mas passa a ser encarado como um dos instrumentos
(...) de que dispõe o Estado para conduzir o sistema".
Assim se dá, dessa feita, nos dias de hoje, a regulação da
concorrência no Brasil enquanto forma de proteção da "livre iniciativa"
e da "livre concorrência" e, por conseguinte, como forma de
"assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social".
V - CONCLUSÕES
Por esse breve ensaio, restou esclarecido que a "valorização
do trabalho humano", acompanhada da "livre iniciativa",
são condições para que se assegure a "dignidade da pessoa humana".
A "livre concorrência", princípio que complementa o da "livre
iniciativa", dessa mesma forma, deve ser vislumbrada como condição
para que se atinja o fim maior da dignidade humana.
Isso porque o princípio constitucional da "livre
iniciativa" deve ser entendido como atributo inalienável do ser
humano, como a liberdade "da expansão da própria criatividade",
da "participação sem alienações na construção da riqueza econômica"
e "da organização de outros homens com vistas à realização de um
objetivo", vale dizer, da empresa. O princípio da "livre
concorrência", por sua vez, deve ser entendido como liberdade de
concorrência, no sentido de direito subjetivo a competir no mercado, observada
a garantia de igualdade de oportunidade entre os players. Ou seja,
"livre concorrência" nada mais é que uma extensão do conceito
de "livre iniciativa", desdobrando a liberdade de empresa na
liberdade de competição entre as empresas.
Assim sendo, para que, pela "livre iniciativa"
e pela "livre concorrência", princípios que se complementam e
se voltam à preservação do modo de produção capitalista, se possa "assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social",
indispensável a existência de legislação que estabeleça aos players o
dever jurídico de não adotarem práticas entendidas pela legislação antitruste
como anticoncorrenciais, sob pena de sobre eles recair a ação disciplinadora e
punitiva do Estado.
A atual lei antitruste nacional (Lei n.º 8.884, de 11 de
junho de 1994), na medida em que protege os princípios da "livre
iniciativa" e da "livre concorrência", protege, em
verdade, o próprio modo de produção capitalista.
Mas o mais importante é que a Lei n.º 8.884/1994 vem sendo
aplicada com regularidade, não mais em "surtos", como eram as
legislações antitruste anteriores, possibilitando, dessa forma, a efetiva
concretização dos princípios em comento. Dessa feita, importante que se
preserve constante a aplicação da Lei nesse sentido e, sobretudo, que se passe à
"implementação de políticas públicas, especialmente de políticas
econômicas entendidas como ‘meios de que dispõe o Estado para influir de
maneira sistemática sobre a economia’", tudo com o objetivo de se
atingir o fim último e maior de se assegurar a dignidade humana.
VI – BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
. Calixto Salomão Filho, "Direito Concorrencial:
as estruturas", São Paulo, Malheiros, 1998.
.Celso Ribeiro Bastos, "O Princípio da Livre
Concorrência na Constituição Federal", Revista dos Tribunais –
Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, n.10, São Paulo, Revista
dos Tribunais, 1995.
.Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins, "Comentários
à Constituição do Brasil", vol. 7, São Paulo, Saraiva, 1990.
. Eros Roberto Grau, "A Ordem Econômica na
Constituição de 1988", 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000.
.Eros Roberto Grau, "Contrato de Obrigações –
Falsa ‘reserva de mercado’; livre iniciativa, livre concorrência e soberania
nacional; o princípio da igualdade", Revista Trimestral de Direito
Público, 6/1994, São Paulo, Malheiros.
.Eros Roberto Grau, "Princípio da Livre
Concorrência – Função Regulamentar e Função Normativa", Revista
Trimestral de Direito Público, 4/1993, São Paulo, Malheiros.
.Fábio Ulhoa Coelho, "Curso de Direito Comercial",
3ª ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva, 2000.
.J. Cretella Jr., "Comentários à Constituição de
1998", 2ª ed., vol. 8, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993.
.José Afonso da Silva, "Curso de Direito
Constitucional Positivo", 15ª ed., São Paulo, Malheiros, 1998.
.Paula A. Forgioni, "Os Fundamentos do Antitruste",
São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998.
NOTAS
01 "A Ordem Econômica na Constituição
de 1988", 5.ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 222.
02 "Os Fundamentos do Antitruste",
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 170.
03 Eros Roberto Grau, ob. cit., p. 231.
04 Ob. cit., p. 179.
05 "Curso de Direito Constitucional
Positivo", 15.ed.., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 760.
06 "Comentários à Constituição do
Brasil", vol. 7, São Paulo: Saraiva, 1990, p. 16.
07 cf. Eros Roberto Grau, ob. cit., p. 233.
08 "A economia e o controle do Estado",
parecer publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", p. 50, em
04.06.1989, apud Eros Roberto Grau, "A Ordem Econômica na
Constituição de 1988", 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000, p. 232.
09 Ob. cit.,, p. 761.
10 "Disciplina jurídica da concorrência
– Abuso do poder econômico", Resenha Tributária, 1984, p. 119/120 apud
Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins, "Comentários à
Constituição do Brasil", vol. 7, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 25.
11 Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins,
"Comentários à Constituição do Brasil", vol. 7, São Paulo,
Saraiva: 1990, p. 25.
12 Eros Roberto Grau, Ob. cit., p. 234/236.
13 "A economia e o controle do Estado",
parecer publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", p. 50, em
04.06.1989, apud Eros Roberto Grau, "A Ordem Econômica na
Constituição de 1988", 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000, p. 236.
14 Eros Roberto Grau, "Princípio da
Livre Concorrência – Função Regulamentar e Função Normativa", Revista
Trimestral de Direito Público, 4/1993, São Paulo, Malheiros, p. 126.
15 "Os Fundamentos do Antitruste",
São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998, p. 170.
16 Celso Ribeiro Bastos, "O Princípio
da Livre Concorrência na Constituição Federal", Revista dos Tribunais
– Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, n.10, São Paulo, Revista
dos Tribunais, 1995.
17 Eros Roberto Grau, ob. cit., p. 238.
18 Fábio Ulhoa Coelho, "Curso de
Direito Comercial", 3ª ed., vol. 1, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 205.
19 Fábio Ulhoa Coelho, ob. cit., p. 206.
20 Fábio Ulhoa Coelho, ob. cit., p. 206/207.
21 "Os Fundamentos do Antitruste",
ob. cit., p. 134/135.
22 "Os Fundamentos do Antitruste",
ob. cit., p. 170/171.
*advogado em São Paulo (SP), especialista em
Direito de Empresa pela USP, especializando em Direito Processual Civil pela
Escola Paulista da Magistratura
ELIA JUNIOR, Mario Luiz. O caráter instrumental dos princípios da livre
iniciativa e da livre concorrência . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n.
1183, 27 set. 2006. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8679>. Acesso em: 27 set.
2006.