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DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Gabriela Neves Delgado
Sumário: 1. Personalidade e sua relação com o bem comum 2. Vida e Saúde: direitos de personalidade 3. Do Direito à Vida 4. Do Direito à Saúde 5. Do Direito à Vida e à Saúde no Estatuto da Criança e do Adolescente 6. Da Doutrina da Proteção Integral no Estatuto da Criança e do Adolescente: presença marcante 7. Conclusão 8. Referências bibliográficas
 
 

1. Personalidade e sua relação com o bem comum

O Ordenamento Jurídico de um povo é o sistema estrutural, soberano, de cunho organizacional e normativo, o qual possui a finalidade de erigir condições para que todos os indivíduos vivam em sociedade. Assim, garantirá oportunidades ao ser humano de atingir seus anseios, recrudescendo seus bens de apreciação pecuniária ou psíquica, o que culminará no bem comum de todos aqueles que o integram, gerando a efetivação da igualdade material, da paz social e da liberdade.

Para alcançar tal objetivo, esse sistema criou o instituto da personalidade, o qual consiste na aptidão conferida aos indivíduos para que se tornem pessoas, ou seja, sujeitos de direitos e deveres. De modo que, no exercício dessa prerrogativa, possam os mesmos concretizarem, em seus cotidianos, o bem individual e, consequentemente, como somatório destes, o bem comum.

O Estado, então, através do Direito, é erigido para que haja a realização desse objetivo. Todavia, deve haver a cooperação do povo para que ele possa atingir os seus fins.

Outrossim, há no meio humano um conjunto de situações que merecem a tutela do Direito, pois lhes são atribuídas imensa carga de valoração. E quanto mais se mostram vitais para que as relações sociais ocorram de maneira harmônica, maior será a atenção que o Ordenamento Jurídico lhes dará. Pode-se dizer que a proteção à vida e à saúde incluem-se neste rol, constituindo objeto deste estudo, especificamente no que tange às crianças e aos adolescentes.
 
 

2. Vida e Saúde: direitos de personalidade

No que diz respeito à personalidade, observa o professor Caio Mário da Silva Pereira (1), parafraseando Ruggiero e Maroi: "Não constitui esta 'um direito', de sorte que seria um erro dizer que o homem tem direito à personalidade. Dela, porém, irradiam-se direitos sendo certa a afirmativa de que a personalidade é o ponto de apoio de todos os direitos e obrigações".

Como já foi exposto, o Estado, no intuito de tutelar interesses individuais, institui a personalidade, da qual irradiam direitos-garantias: direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, entre outros. No caso brasileiro, consagrados na Constituição Federal, especialmente, em seu art. 5º.

É de clara dedução, portanto, que uma lesão à vida ou à saúde, por exemplo, compromete não só o desempenho de uma pessoa em suas relações, como também sua personalidade.

O Direito, no papel de "tutor" das relações humanas juridicamente relevantes, reconhece que é mister proteger o ser humano, desde sua concepção. Pois, se deseja resguardar o adulto, ser atuante em busca de seu bem estar, não é de difícil percepção como é importante guardar de infortúnios aquele que ainda está em formação física e intelectual.

Aquele que aprende e passa por transformações que visam a criar e fortalecer sua estrutura psíquica interna, capacitando-se para tomar as rédeas de seu destino, merece atenção especial. Destarte, pela notória fragilidade, quando comparado com o adulto, o Ordenamento Jurídico outorga às crianças e aos adolescentes cuidados peculiares. Exemplo disso é a Convenção sobre os Direitos da Criança adotada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, de 20 de novembro 1989 e assinada pelo governo brasileiro em 20 de janeiro de 1999.

Além disso, os direitos relativos às crianças e aos adolescentes estão previstos, dentre outros, no art. 227 da nossa Carta Magna, a saber:

"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".

Figura, ainda, no Ordenamento Jurídico Brasileiro, a Lei n.º 8069, de 13 de Julho de 1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA – a qual, conforme estatui o seu art. 1º, dispõe sobre a Doutrina da Proteção Integral. É relevante acrescentar que o já mencionado art. 227, da Lei Maior, está em boa parte ratificado no art. 4o do Estatuto.

São seus destinatários, consoante expõe o art. 2o desta Lei, aqueles que ainda não completaram 12 anos de idade, assim considerados crianças, e os cuja idade está compreendida entre 12 e 18 anos, ditos adolescentes. Quanto aos indivíduos entre os 18 e 21 anos, embora sejam, via de regra, relativamente incapazes de acordo com o Código Civil, uma vez que não atingiram a maioridade prevista nesta Lei, são considerados adultos pelo ECA. Portanto, são tutelados, por este Estatuto, somente em situações excepcionalmente previstas por ele.

Ressalva-se, não obstante, que maiores considerações acerca da Doutrina da Proteção Integral e dos direitos à saúde e à vida de criança e adolescentes serão feitas posteriormente.
 
 

3. Do Direito à Vida

A tutela da vida é condição "sine qua non" para que a personalidade, que é aptidão conferida pelo Direito, seja outorgada, ao homem, pelo Ordenamento Jurídico, através do Estado. Sendo assim, o indivíduo será investido na qualidade de pessoa, que como já explicado, significa ser sujeito de direitos e deveres.

É instintivo para qualquer animal que, dando fim à vida de outro ser, este ficará privado de qualquer ação direta que reflita seu caráter individual no meio em que vive. E, embora dotado de faculdades racionais, o homem ainda reserva, dentro de si, em estado ativo, grande dose deste instinto animal, o qual provoca grande apelo em suas decisões, como pode-se inferir a partir da análise de alguns dos efeitos do egoísmo no mundo: miséria, elevada taxa diária de homicídios e de acidentes advindos da produção industrial em larga escala.

A sociedade encontra-se extremamente competitiva, influenciada por imposições do desejo exacerbado de poder. Este anseio, na maioria das vezes, mascara-se no modo de vida imposto pelos sistemas políticos e econômicos, passando desapercebido. Concretiza-se, ainda, na busca desenfreada em acumular propriedades, inclusive a do corpo de outro indivíduo.

Dessa forma, as pessoas vivem em uma eterna sensação psicológica de vazio, que é a solidão, sentimento bastante presente em um mundo de seis bilhões de pessoas. Desviam-se, desse modo, do objetivo que, talvez, possa-lhes diminuir aquele sentimento, ou seja, a busca de integração ao meio social onde vive, despojando-se do egoísmo tão peculiar ao mundo moderno e desenvolvendo-se em sua humanidade. Perante esse mundo globalizado, onde impera o individualismo, os seres humanos encontram-se, quase sempre, desprovidos do gozo dos direitos fundamentais básicos, dentre os quais, o Direito à Vida e à Saúde.

O professor José Afonso da Silva (2), em alusão ao doutrinador Recasén Siches ressalta que: "todo ser dotado de vida é um indivíduo, isto é: algo que não se pode dividir, sob pena de deixar de ser. O homem é um indivíduo, mas é mais que isso, é uma pessoa. Além dos caracteres de indivíduo biológico tem os de unidade, identidade e continuidade substanciais".

Importa observar que, para o ser humano desfrutar sua personalidade, mais importante que possuir a vida, é o direito de mantê-la, resguardando-a de qualquer atentado.

Metaforicamente, a vida sem a tutela do Poder Público seria um guerreiro na frente de batalha, mas sem sua espada, escudo e armadura. Constituir-se-ia, apenas, em um corpo frágil, à mercê do egoísmo humano.

É essa necessidade e a possibilidade de tutela que explicam o porquê de emanar da personalidade os direitos fundamentais.

A partir do instante em que o ser humano possui vida, o Estado lhe concede aptidões, direitos e deveres. Surge, concomitantemente, o poder-dever do Poder Público de resguardá-los.

Nesses moldes, consoante o professor José Afonso da Silva: "A vida humana, que é objeto do direito assegurado no art. 5o, caput, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais(espirituais). A ‘vida é intimidade conosco mesmo, saber-se e dar-se conta de si mesmo, um assistir a si mesmo e um tomar posição de si mesmo".

Diante do exposto, tem-se que a vida constitui a fonte primária de todos os direitos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos.

O conteúdo de seu conceito envolve, assim, o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à privacidade, o direito à integridade físico-moral, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência.

"Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital,), que se instaura com a concepção (ou germinação) vegetal, transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser viva para ser morte. Tudo que interfere em prejuízo deste fruir espontâneo e incessante contraria a vida" (3).

Quanto aos desdobramentos do direito à vida, tem-se, primeiramente, o direito à existência, que consiste no direito de estar vivo, de lutar pela vida, preservando-a. Daí advém as normas de direito penal que prescrevem a possibilidade de legítima defesa e estado de necessidade.

Por sua vez, o direito à integridade moral é o direito de se ver respeitado o caráter do indivíduo, ou seja, o direito à integridade de sua estrutura psicológica e seus reflexos na sociedade. Tal estrutura consiste no alicerce formado por princípios e programações de agir consigo mesmo e com os outros indivíduos, de sentir e refletir sobre si e os demais.

Já a integridade física, é o direito subjetivo a partir do qual os componentes orgânicos do corpo humano permanecem livres de ações externas que interfiram negativamente em seu bom funcionamento em conjunto.

Além disso, por constituir a vida não apenas um bem individual, mas pertencente à toda a humanidade, o Ordenamento Jurídico erige normas determinando que o ser humano não pode dispor da própria vida e integridade física em favor de outrem. Dessa forma, seus órgãos só poderão ser doados para fins de transplantes, quando dúplice for sua ocorrência no corpo, ou quando não houver mais vida. Ressalte-se, ainda, que o transplante não poderá ser realizado para fins mercantis.

Por último, tem-se o direito à dignidade da pessoa humana, que é o direito à presença de condições econômicas e morais, as quais venham a proporcionar o desenvolvimento da estrutura psíquica básica dos indivíduos, para que o processo vital se desenvolva de modo favorável.

Finalmente, vale relembrar os dizeres do Papa João XXIII (4), sobre o que seria aquele objetivo tão desejado por toda a sociedade: "O bem comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consistam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana". Afinal, imprescindível é a vida, e vital é a sua tutela.
 
 

4. Do Direito à Saúde

O direito à saúde consiste no direito do indivíduo em manter o estado normal de funcionamento de seu corpo e órgãos. Embora, o mesmo tenha por objeto um bem extremamente relevante à vida humana, só agora, conforme observa José Afonso da Silva (5), tão somente com a promulgação da Constituição Federal de 88, "foi elevado à categoria de direito fundamental do homem". E há de informar-se, segundo esse autor (6), "pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais".

É nesse sentido, aliás, que a Carta Magna, em seu art. 196, consagra o direito à saúde, ao prescrever que:

"A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

Trata-se, a bem da verdade, de um direito social, e como tal, possui, como acentuam Canotilho e Vital Moreira (7), "além da sua característica componente positiva, também uma componente negativa, que se traduz num direito à abstenção do Estado (ou de terceiros)". Assim, por exemplo, "o direito à saúde não impõe ao Estado apenas o dever de atuar para constituir o Serviço Nacional de Saúde e realizar as prestações de saúde (cfr. art. 64º), antes impõe igualmente que se abstenha de atuar de modo a prejudicar a saúde dos cidadãos".

Muito embora esteja previsto no Texto Constitucional de 1988, não é difícil verificar que tal direito está muito longe de se constituir realidade para a grande maioria da população brasileira. Consoante leciona Pinto Ferreira (8), "O Brasil é ainda hoje um vasto hospital, ocupando uma posição lamentável no quadro estatístico do mundo, não somente quanto às doenças epidêmicas de massa, a mortalidade infantil, a precáriaexpectativa de vida, o estado geral da sanidade pública. Proliferam doenças, como a tuberculose, a lepra, a esquistossomose, o mal de Chagas, a Aids e recentemente a epidemia de Cólera. A malária e a febre amarela ainda sobrevivem com intensidade, tudo a evidenciar que o Brasil, em relação à saúde, se apresenta pobre e terrivelmente enfermo".

Onde estão, portanto, as políticas sociais e econômicas que deveriam, nos termos da Constituição, reduzir o risco de doenças e de outros agravos? Talvez a única faceta dessas políticas conhecida pela população se traduz no aumento da já insuportável carga tributária brasileira, como ocorreu, por exemplo, com a instituição da COFINS cumulativa e da CPMF, que apesar de visarem à melhoria do sistema hospitalar, vem sofrendo flagrante desvio das verbas.

A esse respeito, cumpre transcrever a lição de Hugo de Brito Machado, citado por Ives Gandra Martins (9): "A campanha publicitária e os apelos do Ministro Adib Jatene neutralizaram a opinião pública, que certamente seria contrária à instituição de mais um tributo, quando já temos uma carga tributária exagerada, mas a ruína dos hospitais públicos não resulta de insuficiência de contribuições para a seguridade social. A aceitação do argumento segundo o qual o orçamento da seguridade social é deficitário está a depender de cabal demonstração de que o Tesouro Nacional está repassando para a Seguridade, o que arrecada a título de Cofins e de Contribuição Social sobre os Lucros.

O grande batalhador pela instituição da CPMF, Ministro Jatene, parece ter tido a demonstração de que não alcançaria os seus objetivos, pois a recusa de verbas para a saúde pode ter sido um indicativo de que os recursos dessa contribuição terão destino diverso".

Diante da realidade acima exposta, urge indagar a respeito dos instrumentos necessários para se buscar uma maior efetividade do direito em questão, pois não basta apenas criticar. Os operadores do Direito devem buscar formas de garantir a implementação do direito à saúde.

A questão, porém, é bastante polêmica. Pinto Ferreira afirma que "tal direito de saúde na realidade é bastante inócuo, pois não cabe a determinada pessoa uma ação para exigir do Estado o cumprimento de tal direito" Ives Gandra Martins (10), do mesmo modo, entende que "se há princípios programáticos na Constituição brasileira, nenhum deles bate aqueles expostos no art. 196". Afirma o autor (11), ainda, que "tanto a promoção quanto a proteção nessa área dependem de que sejam recuperados os instrumentos de atuação do Estado, degradados nos últimos tempos, assim como da elaboração de estratégia para a recuperação dos doentes".

Entende-se, todavia, não obstante o peso da opinião dos renomados autores, que além da pressão política a ser efetivada por toda a população brasileira em prol da melhoria nas condições de saúde, deve-se incentivar a utilização de instrumentos jurídicos. Nesse sentido, cumpre ressaltar que as normas consagradoras do direito à saúde não são meras normas programáticas, que dirigem-se diretamente ao Estado e, por isso, não conferem direitos, concretamente, aos cidadãos. Pelo contrário, pois, como leciona Canotilho e Vital Moreira (12) "os direitos sociais têm como titular directo os cidadãos (ou organizações sociais), pelo que as actividades ou prestações reclamadas do Estado surgem como verdadeiras obrigações deste, como componente passiva daqueles direitos".

Desse modo, entende-se que os direitos sociais, entre eles o direito à saúde, assim como os direitos individuais, são direitos subjetivos públicos do indivíduo. Portanto, os cidadãos encontram-se legitimados a buscar, através da prestação jurisdicional do Estado, uma forma de implementá-los.

Nesta linha de raciocínio encontra-se a lição de José Afonso da Silva (13): "Como se viu do enunciado do art. 196 e se confirmará com a leitura dos arts. 198 a 200, trata-se de um direito positivo ‘que exige prestações de Estado e que impõe aos entes públicos a realização de determinadas tarefas (...), de cujo cumprimento depende a própria realização do direito".

Faz-se necessário observar que o não cumprimento das tarefas estatais para a satisfação do direito à saúde, poderá ensejar o cabimento da ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 102, I, a, e 103, § 2º, CF/88) e, por outro lado, o seu não atendimento, in concreto, por falta de regulamentação, pode abrir pressupostos para a impetração da ação constitucional do Mandado de Injunção (art. 5º, LXXI, CF/88).

Sendo assim, o indivíduo que se sentir prejudicado por não poder exercer um direito constitucional, como o direito à saúde, em virtude da falta de norma regulamentadora exigida ou suposta pela Constituição, poderá impetrar Mandado de Injunção. Este remédio constitucional tem por finalidade "conferir imediata aplicabilidade à norma constitucional portadora daqueles direitos e prerrogativas, inerte em virtude de ausência de regulamentação (14)" (art. 5º, LXXI, CF/88).

Como bem lembra José Afonso da Silva (15): "a Constituição reconhece que a saúde e a educação são direitos de todos e dever do Estado" (arts. 201 e 210, CF/88), mas, se não se produzirem os atos legislativos e administrativos indispensáveis para que se efetivem tais direitos em favor dos interessados, surgirá uma possível omissão inconstitucional do Poder Público, a qual possibilitará a interposição da ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, CF/88).

Por fim, não se deve esquecer do que dispõe o art. 198 da CF, ou seja, "As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade".

Surge, desse modo, o Sistema Único de Saúde, o popular SUS, tema de grandes debates entre os constituintes de 88, ocasião em que saíram vitoriosos os partidos de esquerda, conseguindo êxito na sua implementação.

Ocorre que, passados onze anos de sua criação, é flagrante o seu fracasso. Aliás, como observa Ives Gandra Martins (16), "o fracasso de sua implementação só não foi maior do que os quatro planos de estabilização que antecederam o Real (Cruzado, Bresser, Verão e Collor). É que os constituintes acreditaram na organização burocrática e que os servidores públicos estariam mais interessados em servir ao público do que no seu próprio bem-estar, visto que escolheram como carreira aquela de servir à sociedade".

O resultado dessa verdadeira balbúrdia é facilmente verificado na falta de verbas para se combater as constantes epidemias, na falta de médicos para se atender à população mais carente, na falta de medicamentos nos postos de saúde, enfim, na falta de estrutura do sistema hospitalar brasileiro.

Diante do que fora anteriormente exposto, pode-se concluir que, embora a saúde tenha sido consagrada como um direito universal, ou seja, como um direito de todo e qualquer indivíduo, o certo é que o acesso à assistência médica e hospitalar, no Brasil, é um direito de poucos, estando alijada grande parte da população do exercício do mesmo.

O Estado, por sua vez, quer através da União, quer dos Estados e da grande maioria dos Municípios, se mostra, como já afirmado, completamente inerte diante desse que parece ser o mais grave problema a ser enfrentado pelo país no novo milênio que se aproxima.
 
 

5. Do Direito à Vida e à Saúde no ECA

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu art. 3º, reconhece que devem ser assegurados, amplamente, às crianças e aos adolescentes, os direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico.

A preocupação maior do ECA é a de preservar e consolidar o "desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de igualdade e dignidade," dos menores.

Dentre os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, ressalte-se, no presente estudo, os direitos à vida e à saúde, que devem ser efetivados pela família, sociedade em geral e Poder Público (art. 4º do ECA), possibilitando a consolidação da tão almejada Democracia participativa.

Passa-se, a seguir, à análise dos principais dispositivos do ECA, no que se refere aos direitos à vida e à saúde.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 8º, estabelece que à gestante, através do Sistema Único de Saúde (que dá seguimento ao disposto no art. 198 da Lei Maior) é assegurada assistência no período de gestação e nos adjuntos ao parto, incluindo o direito à alimentação, o direito de identidade de médico no período pré-natal e durante o parto, condições para amamentação, inclusive de presidiárias.

Tal artigo visa à proteção da vida da criança, mesmo antes de seu nascimento, ou seja, o Estado, programaticamente, declara que as condições para que surja o indivíduo-pessoa, munido de personalidade, são obrigadas a serem garantidas em conformidade com o espírito do Ordenamento jurídico, Estado de Direito que é.

Além dessa assistência, o Estatuto obriga que o hospital mantenha, pelo prazo de dezoito anos, registro das atividades executadas que identifique o bebê através de impressão plantar e digital e a mãe pela digital, em conformidade com o art. 10, I, do ECA. Ainda, que preste diagnóstico e orientação aos pais sobre o recém-nascido e mantenha alojamento em conjunto para que os filhos permaneçam em companhia de suas mães (art. 10, V, ECA).

Quanto a vida posterior ao parto, no período da infância e adolescência, a Lei n.º 8069, de 1990, diz que o Sistema Único de Saúde (SUS), obrigatoriamente, em prestações gratuitas, deve assegurar à criança e ao adolescente assistência médica, e, se as circunstâncias do caso exigirem, atendimento especializado, incluindo medicamentos e aparelhos necessários para isso (art.11 e §§). É, outrossim, declarado o direito a partir do qual os pais podem usufruir de condições de estadia integral junto ao filho, em caso de internação.

Sobre a saúde dos menores, no que se refere à integridade física, resta observar que "É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente" (art. 70 do ECA). "Nos casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais"(art. 13 do mesmo diploma legal).

Prudentemente, a lei é expressa ao prescrever acerca da necessidade de assistência médica e odontológica às crianças e adolescentes, tornando obrigatória a vacinação nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias (art. 14, "caput", e § único do ECA).

Em vista do exposto, é clara a inferência de que o legislador, no Estatuto da Criança e do Adolescente, esforçou-se em estatuir a necessidade de intervenção do Poder Público no âmbito da consecução de políticas sociais públicas e da preservação da vida e saúde infanto-juvenis.
 
 

6. Da Doutrina da Proteção Integral no Estatuto da Criança e do Adolescente: presença marcante

Na busca de soluções para efetivar os direitos das crianças e adolescentes, a Carta Magna e o Estatuto da Criança e do Adolescente lhes conferiu tratamento especial, inclusive no que tange aos direitos à saúde e à vida, adotando a Doutrina daProteção Integral; "concepção sustentadora da convenção sobre os direitos da criança, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 20 de Novembro de 1989" (17).

A Doutrina da Proteção Integral, de acordo com Wilson Donizeti Liberati (18), "é baseada nos direitos próprios e especiais das crianças e adolescentes que, na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, necessitam de proteção diferenciada, especializada e integral".

"É diferenciada porque impõe uma distinção entre o tratamento que se deve dar à maioridade e à menoridade. Por serem pessoas em desenvolvimento, as crianças (até os doze anos de idade) e os adolescentes (até os dezesseis anos de idade) são considerados absolutamente incapazes no campo civil. Já os adolescentes, maiores de dezesseis anos de idade, até completarem seus vinte e um anos de idade, são considerados relativamente incapazes, no campo civil. Ressalte-se que o Direito Penal, através de seu art. 27, CP, estabelece que "os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial".

É especializada porque há uma particularização, ou seja, tal proteção destina-se, tão somente, às crianças e aos adolescentes, sem exceção alguma" (19). Finalmente, é integral, já que se estende a todas as situações jurídicas das quais possam ser parte, sendo vedado qualquer tipo de discriminação. Em outras palavras, tem como prioridade o interesse superior de crianças e adolescentes, que deverão ser considerados em todas as circunstâncias.

Percebe-se a presença marcante da Doutrina da Proteção Integral na essência do ECA. Isto porque sua criação representou o reconhecimento da necessidade de uma proteção especial, integral e diferenciada a partir da constatação da situação de pessoas em desenvolvimento, quais sejam, crianças e adolescentes.

A criação desse Estatuto destinado, especificamente, às crianças e aos adolescentes, revela a preocupação do legislador e, acima de tudo da sociedade, de tutelar de maneira integral e prioritária os interesses dos menores, de forma a permitir o pleno desenvolvimento de suas capacidades físicas e intelectuais, necessárias para a realização de suas aspirações.

Tutela integral não só porque tem como prioridade o interesse superior, que é o interesse de crianças e adolescentes, fornecendo todos os meios, oportunidades e facilidades para o seu desenvolvimento pleno, mas também pelo motivo do Estatuto se aplicar a todos os menores de dezoito anos em qualquer situação. Isso, "sem levar em conta sua situação irregular, conforme previa o art. 2º do Código de Menores, ou mesmo situação de risco pessoal, como previa o Projeto de Lei do Senado n.193, de 1989, do Senador Ronan Tito, no seu art. 98" (20).

Desse modo, o Estatuto põe fim à discriminação existente à época do Código de Menores, para igualar todos aqueles considerados crianças ou adolescentes, sejam negros, brancos, ricos, pobres, clinicamente saldáveis ou portadores de deficiência.

A Doutrina da Proteção Integral, no ECA, se manifesta tanto de forma expressa quanto tacitamente.

Pode-se citar, como dispositivos expressos, os artigos 1º e 3º:

"Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente".

"Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata essa Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual, e social, em condições de liberdade e de dignidade".

Pode-se observar, ainda, a presença tácita da Doutrina da Proteção Integral nos vários artigos do ECA, sendo importante destacar o artigo 18, que dispõe sobre os deveres da sociedade em relação às crianças e aos adolescentes, a qual deve colocá-los a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Assim, dar-lhes-á tratamento especial e diferenciado, objetivando sua proteção integral.
 
 

7. Conclusão

Hoje, pode-se perceber o crescimento de um movimento, em nível mundial, objetivando a defesa dos interesses difusos de crianças e adolescentes. Tal movimento, iniciado com a Declaração dos Direitos da Criança, em 1924, difundiu-se pelo mundo inteiro, ocasionando uma mudança do tratamento que até então lhes era outorgado. Atualmente, vê-se um maior destaque dado às questões infanto-juvenis, pelos governos dos Estados, através de políticas sociais, principalmente no âmbito da educação, saúde, esporte e lazer. Pode-se notar também, essa influência no campo do Direito, especialmente nos ramos do Direito do Trabalho e de Família, com a proibição do trabalho infantil, além da proteção expressa aos interesses das crianças e dos adolescentes, inserindo-os, quando necessário, no seio de famílias substitutas.

No Brasil, a partir da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, percebe-se uma maior preocupação por parte dos órgãos estatais, como o Ministério Público, em suas esferas estaduais e no campo trabalhista, buscando tutelar os interesses e os direitos dos menores de dezoito anos, fiscalizando o cumprimento da lei.

Observa-se também, uma maior preocupação por parte do Poder Judiciário com a criação de Juizados da Infância e da Juventude, onde trabalham, em conjunto, juizes, promotores de justiça e defensores públicos, permitindo o desenvolvimento de uma justiça ágil e eficaz.

Em vista do exposto, entende-se que é imprescindível o contínuo desenvolvimento do ramo do Direito especializado em crianças e adolescentes, para acompanhar a evolução de suas necessidades e de seus interesses, constatados diante de suas condições de pessoas em desenvolvimento. Isto, aliado a uma política estatal séria que invista em educação e que possibilite o pleno desenvolvimento e realização das aspirações dos menores.

Não obstante a presença de boas leis, o maior problema, comum em exacerbação nos países em desenvolvimento, é a impunidade. Sem embargo dos honestos e cumpridores de seus deveres, reina sobre o espírito de muitas autoridades e outros economicamente abastados, que se pode deixar de fazer o necessário ou pode-se executar determinadas medidas sem o esforço que o caso demanda, pois estas autoridades têm a certeza de que nada de mal acontecerá .

É o que ocorre quando em instituições próprias para menores a "bandidagem" se alastra devido aos maus tratos muitas vezes das próprias autoridades cuja a tutela dos menores está confiada; ou quando policiais espancam crianças e adolescentes desnecessariamente, ultrapassando o estrito cumprimento do dever legal. Além disso, quando empregadores contratam menores de 14 anos de idade, explorando-os, e quando aqueles que têm o dever-poder de agir em defesa desses mais fracos fraquejam em omissão.

São exemplos genéricos que se transformam em poucas menções dentro do largo âmbito de iniquidades que, concretamente, pode-se averiguar em casos particulares.

Uma das providência para se evitar a violência exacerbada, inclusive em relação às crianças e aos adolescentes, seria a criação de mecanismos de estreita ligação de ato ou omissão de autoridade pública à responsabilidade por falta de sintonia com o princípio da legalidade, supremacia do interesse público e moralidade. Em fim, que além dos procedimentos penais e administrativos já existentes, houvesse uma lei de responsabilidade administrativa a qual tipificasse detalhadamente casos de improbidade, resultando em direta aplicação de sanção, responsabilizando o infrator.

Quanto à questão da saúde de crianças e adolescentes, faz-se necessário que o Poder Público crie mecanismos de incentivo aos hospitais públicos, através da compra de equipamentos e da implementação de programas de saúde específicos, assim como a manutenção dos novos e dos já existentes.

Além disso, importa saber que crianças e adolescentes têm o direito a uma vida digna, na qual estejam garantidos todos os direitos fundamentais dos seres humanos. Dessa forma, será possível inseri-los no ordenamento jurídico como cidadãos, fator essencial de legitimação do Estado Democrático de Direito.

Soluções, existem várias. Deve-se, entretanto, despojar-se do egoísmo que acompanha a humanidade desde o começo dos tempos e que rege a história, para que a vontade política seja festejada como fato transmutador da triste realidade moderna brasileira e de muitos outros povos. Se essa vontade continuar sonolenta, moleque, chegará um momento em que os tumores sociais levarão o organismo estatal ao colapso irreversível. Fala-se da doença que tolhe o exercício da cidadania e da dignidade da pessoa humana, o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, e outras formas de discriminação, ressaltando-se, mais uma vez, a idade.

A cidadania e a dignidade são, respectivamente, fundamentos da República Federativa do Brasil. Ora, se os fundamentos que sustentam o Estado estão frágeis e este não consegue cumprir sua finalidade, torna-se pessoa inerte na cadeira de rodas do tempo, vegetando. Se assim é, não há mais boca que, em voz firme, gesticule e declare o Direito, garantindo-o, como se a própria Deusa da Justiça utilizasse daquela mandíbula, língua e dentes para expressar sua vontade.

O que será, então, das pessoas e, em especial das crianças e dos adolescentes, quando a espada da Deusa da Justiça estiver cega, a balança estraçalhada ao chão e sua cabeça decepada? O homem voltará a agir como nos primórdios, se não houver quem coloque ordem onde falta? Será que o ser humano já não está agindo assim, legitimado pelo poder?

A vigência de um Estado Democrático de Direito urge necessária. O autoritarismo velado que assola a sociedade brasileira deve ser aniquilado. Quem sabe assim, os direitos fundamentais básicos, amplamente tutelados pela Constituição Federal, tornar-se-ão realidade, possibilitando a todos, inclusive às crianças e aos adolescentes, uma vida mais digna, condizente com os princípios norteadores de uma República Democrática. Nesses moldes, ter-se-ia um quadro social em que o homem seria dotado de um pouco mais de humanidade, demonstrando uma nova conquista na busca de sua evolução.
 
 

Retirado de: http://homes.arealcity.com/nap-direito/artigos/artigo4.htm