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O Menor Delinqüente

Cármine Antônio Savino Filho*

"Nessa discussão, desenvolve-se um maniqueísmo simplista, não disfarçado, gerado certamente pela defesa de interesses de um ou outro grupo social."

Volta à cena a questão da delinqüência do menor. E com ela, toda a desesperança que nos assola: quanto mais complexo se torna o problema, mais superficiais são as soluções propostas.

Em primeiro lugar, sua compreensão ainda é precária, as abordagens se fragmentam por contemplar apenas um aspecto do problema, como se ele fosse o problema. Nessa discussão, desenvolve-se um maniqueísmo simplista, não disfarçado, gerado certamente pela defesa de interesses de um ou outro grupo social. Ou se está intransigentemente do lado do menor, ignorando uma realidade de violência, ou se está do lado da repressão pura e simples, minimizando as causas profundas deste quadro assustador. Não existe, de parte a parte, boa vontade de integrar as duas meias verdades, compor um quadro lúcido, de reflexão confiável. Daí não existir um claro empenho em resolver, ou pelo menos discutir, soluções ao mesmo tempo globais e particulares, genéricas e específicas, de longo e de curto prazo.

Ouvem-se a todo instante, opiniões definitivas: "É por isto que as coisas estão desta maneira", como se a atual situação de violência e delinqüência fosse um fruto exclusivo, para o qual bastasse uma única solução isolada. Há, sim, um conjunto de causas que se retroalimentam e fortalecem suas raízes.

Em segundo lugar, todas as causas diretas – exclusão social, marginalização, aumento da pobreza, favelização, desemprego, violência generalizada, prostituição, etc. – já se apresentam como uma condição de normalidade nestes tempos atuais. Ou seja, as causas foram banalizadas e com elas banalizou-se também o seu discurso e, pior ainda, banalizaram-se as soluções. E por quê? Pela falta de legítima vontade política de resolver o problema. As partes envolvidas neste processo – autoridades, profissionais especializados, igrejas, organizações, entidades, escolares, segmentos sociais diversificados – não têm como alvo prioritário erradicar a violência, seja ela adulta ou infantil. É preciso um fato trágico como o recente duplo assassinato de uma mãe e um pai de família, por um grupo onde havia crianças de 13 anos empunhando armas pesadas, para que a sociedade volte a discutir – e só discutir – o tema, de forma explicavelmente candente. Daqui a pouco se esquece de tudo, cada um se volta aos seus interesses, até a próxima tragédia, que certamente será ainda mais chocante.

Assim, a discussão se faz em redor de pontos localizados. A questão da idade de punibilidade, por exemplo. Deve-se reduzi-la? Talvez... Para quanto? Hoje diminuímos para 14, amanhã para 10, depois para 5... De toda a forma, cabe a discussão. Quem sabe seria o caso de regionalizar a maioridade, como nos Estados Unidos. Certamente um adolescente do Rio ou de São Paulo está mais exposto à violência, como agente ou paciente, do que outro do interior do Piauí. Mas o que queremos evidenciar é que nenhuma solução isolada resolverá coisa alguma. Não adianta apenas tornar o menor legalmente maior, fazê-lo adulto por decreto, se também não conseguimos resolver a violência do adulto. Seria apenas transferir o problema para a construção de mais presídios (o que também, diga-se de passagem, é necessário, mesmo sem o aporte de levas de menores delinqüentes tornados maiores). Teremos, sim, que administrar todas essas soluções ineficazes, se isoladas, mas que juntas podem criar uma sinergia efetiva.

A verdadeira discussão – capaz de gerar compreensão e conseqüente vontade política – deve incluir, antes de tudo, as causas de exclusão social: populações de indigentes, dificuldade de acesso à moradia, condições precárias de estrutura urbana e de saúde, desemprego e subemprego, descrença em qualquer instituição, principalmente naquelas que representam mais de perto a autoridade, como a polícia, a falta de oportunidade, as portas abertas da prostituição (que no Norte/Nordeste começa aos 6 anos). Um caudaloso conjunto que nega todos os direitos elementares da cidadania.

É paradoxal como o crescimento econômico aumentou a já pesada dívida social. Na primeira metade da atual década, houve mais de dois milhões de empregos cortados e o mercado informal de trabalho recebeu o acréscimo de quase doze milhões de pessoas, segundo o IBGE. Estes, apesar de tudo, ainda são afortunados, frente às dezenas de milhões de brasileiros que estão abaixo da linha da miséria, se isto é possível. Um menor delinqüente preso, recentemente declarou sua ambição: tornar-se agente do ponto de venda de drogas, como um contínuo que aspira a gerenciar um dia a agência do banco em que trabalha. Nada mais natural para quem o caminho de status, poder e dinheiro é o da realidade em que vive capaz de realizar os sonhos de consumo que se lhe impõem a todo momento. E a banalização do absurdo.

Para esse enorme contingente, não existe reconhecimento de direitos e os torna inexistentes na cidadania. Daí o sentimento de desigualdade que reciprocamente desagrega as relações sociais, destrói o sentimento de semelhança, impede o conceito de igualdade e faz eclodir a discriminação e a intolerância. E, em conseqüência, o abuso do poder, praticado por diferentes esferas de mando.

Estes fatores se agravam perante a tolerância com que o sistema trata esta enorme malta de corruptos que assaltam com freqüência os cofres públicos. Ou os gangsters do sistema financeiro, cujos problemas são prontamente acertados à custa do patrimônio da Nação. Realmente, fica muito difícil defender rigor na punição de delitos de menor monta, que são a maioria dos praticados por crianças.

Em terceiro lugar, não basta apontar (e até mesmo combater) as causas sociais que se cristalizam na exclusão social. Esta situação, resultado de décadas de injúrias, não se conserta de uma hora para a outra. Há aspectos que têm de ser resolvidos imediatamente, que não podem esperar. Entretanto, mesmo as medidas emergenciais – como a repressão – esbarram em fantásticas dificuldades.

A repressão à violência (infantil ou não) é uma urgência urgentíssima pela qual toda sociedade anseia. Só que ela tem de contar com um estamento institucional que estamos longe de possuir: legislação apropriada, organização policial capaz de conduzir a repressão com legitimidade, institutos de internação (em maior número, para abrigar grupos menores), que tenham respeito pela natureza humana.

Mas como mudar a mentalidade, os costumes e comportamentos da máquina estatal ou da instituição policial? E o que dizer dos agentes carcerários? São o que são e não têm porque mudar. Nunca se ouviu uma criança dizer: "Quando eu crescer, quero ser agente penitenciário..."

Em quarto lugar, é preciso estar atento também à delinqüência juvenil praticada por adolescentes da classe média e média alta. Não há um bairro da zona sul ou do Rio que não tenha suas gangues noturnas, cuja ação delinqüente vai desde a destruição do patrimônio público e privado, por mera curtição, até o roubo de equipamentos de automóveis. Como não reprimir estes precoces marginais – que têm o agravante de não precisarem do produto de suas infrações – se pretende-se punir os delinqüentes excluídos? E, ainda mais, como deixar de punir os que se beneficiam da delinqüência? Não há produto à venda – drogas, produto de furtos, roubos ou oferta de prostituição – sem que haja mercado consumidor.

É preciso compreender que esta dívida de exclusão social está ficando cada vez mais cara para todos. E não se sabe qual será a crescente taxa de juros no futuro próximo.

Em quinto lugar, é preciso definir responsabilidades. Só existem propostas genéricas e definições pouco claras. Resultado: ninguém se sente responsável por coisa alguma. Parece aquela velha história: cada um pensa que alguém fará alguma coisa, todos se omitem e ninguém faz nada. O País já teve seus momentos de vontade política: a Abolição, a República, a opção pelos Aliados na 2ª Guerra Mundial, as Diretas-já. Somente um desejo cristalizado e empenho político podem criar condições para cobrar energia e determinação, de todos os poderes da República, e deles exigir uma clara tomada de posição coerente com o sentimento nacional, e daí propor, estabelecer e implantar tudo que tiver de ser feito por mais difícil e amargo que seja.

As recentemente inauguradas vilas olímpicas na Baixada Fluminense são uma bela contribuição. Cerca de 40 mil crianças terão quadras esportivas polivalentes, bibliotecas, etc., uma opção viável além das ruas. Contudo, as vilas olímpicas de nada valerão, se à sua porta, houver o traficante que reguiará ou mesmo permitirá seu funcionamento, como acontece nas portas de escolas.

A cidade de Nova Iorque volta a implantar o programa "Tolerância Zero". A idéia é reprimir toda infração, por menor que seja. Consta que isto faz com que não só as pequenas infrações caiam, como também as grandes fiquem desestimuladas, seja através de mudança de mentalidade, seja pelo receio da punição pronta e rápida. Certamente, e não é preciso explicitar as razões, não temos como fazer algo semelhante.

Há cerca de 20 anos, Paul Samuelson, Prêmio Nobel de Economia, declarou não ter nenhuma ilusão a respeito das desigualdades, que seriam cada vez maiores: cresceria incessantemente as multidões de despossuídos e, em contrapartida, seria cada vez maior a concentração de riqueza. Muitos o julgaram excessivamente pessimista e, apesar das evidências, muito resistimos em acreditar.

Mas, não basta uma atitude de obstinada esperança. Temos de integrar essa multiplicidade de soluções parciais, às vezes até contraditórias, para encontrar nessa corrente de causas, o elo mais fraco. E tentar, através de seu rompimento, quebrar esta cadeia perversa de iniqüidades, que nos faz distanciar cada vez mais da sentença de Juvenal: Maxima debetur puero reverentia – "Deve-se à criança o máximo respeito".

*Juiz de Direito no Estado do Rio de Janeiro e 1º Vice-Presidente do Instituto dos Magistrados do Brasil.