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Adopção: A lei e as práticas

 

 

 

por Dulce Rocha - Procuradora da República

 

 

Já vos tenho falado nestas páginas das crianças que nascem sem uma família que lhes dê amor.
Está, de novo, chegado o Dia da Criança e vejo que há um conjunto de normas legais que podiam ter sido já melhoradas e que lamentavelmente se mantêm inalteráveis com graves prejuízos para as crianças, destinatárias daquelas normas, feitas supostamente no seu superior interesse, fim último de toda a legislação de menores.
O crime de abuso sexual de crianças, cuja natureza não é ainda pública, é um dos assuntos que demora a ser bem resolvido por razões que o entendimento comunitário não consegue vislumbrar. Tenho esperança que o Parlamento decida bem, pelo crime público, obviamente . É uma exigência dos nossos tempos responsabilizar penalmente os agressores das crianças, particularmente, se esses agressores tiverem o especial dever de assumir responsabilidades de protecção relativamente às suas vítimas, como é o caso dos pais.
Ao longo destes últimos dez anos, tenho tido inúmeros casos de crianças maltratadas, abandonadas, que os Tribunais entregam à guarda de instituições para garantir a sua protecção, e vou constatando que são , de facto, enormes as dificuldades que a própria lei coloca no sentido de permitir a plena felicidade destas crianças e que se consubstanciaria na sua integração numa outra família, que lhes desse condições para um desenvolvimento equilibrado e saudável e sobretudo muito afecto.
Na passada semana, fui convidada por duas vezes para falar das crianças e dos seus direitos. Estive, mais uma vez em Braga, no Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho e fui pela primeira vez ao Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
Contei uma história linda, que logo pensei poder partilhar com os leitores e leitoras do Justiça e Cidadania.

É assim:
Foi numa 6ª Feira , a Primavera tinha chegado há uma semana.
Eram dez horas da manhã e no meu gabinete entrou um casal lindíssimo, irradiando felicidade. Ela, a Ana, estava grávida de fim de tempo. Tínhamos combinado na véspera o encontro, porque me disseram que era tão urgente que não podiam esperar até ao meu dia de atendimento, que é à quarta-feira. Tinham telefonado para o directo, e apesar de lhes dizer que já não estava com capacidade para ouvir (eram 8 da noite e o dia tinha sido muito cansativo), não desistiam e foram falando de um menino e de um hospital até que me convenceram que devia ser urgente. Sentaram-se à minha frente e começaram a contar. Falava ele, o João, e ela sorria com uns olhos expressivos. Quando namoravam, projectavam ter filhos biológicos e adoptados. Já tinham dois filhos: um menino de 5 anos, o Pedro, e uma menina de três, a Mariana, e estavam à espera da Marta, que ia nascer na semana seguinte. Há dois anos que estavam inscritos na Santa Casa da Misericórdia para adoptarem uma criança. Como a Sta Casa se mantivesse silenciosa, antes do Natal decidiram ir lá perguntar as razões da demora e do silêncio. Explicaram-lhes então que tinham gostado muito das suas motivações, que haviam sido seleccionados, mas que para a faixa etária deles -30 anos-achavam adequado um bébé, e não havia bébés para entrega. Responderam-lhes que já tinham pensado nisso e que admitiriam uma criança mais velha- 3, 4 anos. Disseram-lhes que não tinham nenhum menino com essa idade, só mais velhos, ao que responderam admitir até aos cinco. Não gostariam que fosse mais velho, porque o Pedro gostava muito de ser o mais velho. As senhoras técnicas da equipa de adopções fizeram então uma revelação: efectivamente tinham um menino, o Francisco, com 5 anos, um menino lindo, meiguinho, muito inteligente, mas que tinha paralisia cerebral, e que, por isso, tinha necessidades educativas especiais. E o maravilhoso casal que eu tinha à minha frente contou que, na verdade, lhes confessaram que nunca antes tinham colocado essa hipótese, que apenas haviam planeado adoptar crianças abandonadas, maltratadas, mas não crianças com deficiência.
Naquele momento, porém, começaram a querer abrir ainda mais os seus imensos corações e quiseram saber tudo sobre o Francisco e sobre a paralisia cerebral. Souberam nessa altura que o Francisco foi abandonado pela mãe na Maternidade e que permanecia há cinco anos no Centro de Acolhimento sem visitas de qualquer familiar. Souberam ainda que tinha sido feita uma pesquisa a nível nacional e internacional e que invariavelmente a resposta fora negativa - "Cumpre-me informar V Exª que neste CRSS não se encontra inscrito nenhum casal que pretenda adoptar criança com as características do Francisco".
Pediram tempo para pensar e para se informarem sobre a paralisia cerebral. Contactaram muitos médicos amigos, falaram com a família e com os amigos mais chegados e decidiram ir conhecer o Francisco. O encontro foi muito gratificante e ficaram logo com uma enorme vontade de o acolher e de dar-lhe carinho. Foi no dia 19 de Março e o Francisco, num apelo sedutor, quando se viu ao colo do João, perguntou-lhe se ele sabia que era o "Dia do Pai". Decidiram nesse momento que queriam que o Francisco fosse filho deles. E iniciaram então o processo burocrático (foi assim que lhe chamaram). Dias depois, o Francisco foi chamado para uma operação que aguardava há cerca de um ano. Quiseram saber onde, e de que forma poderiam apoiá-lo. Souberam que o cirurgião era um amigo de infância do João e foram contar-lhe os seus projectos. O médico disse-lhes que o maior apoio que o Francisco poderia ter, era ter lá o João à noite, a fazer-lhe companhia, pois com os seus cinco anos sentir-se-ia decerto muito sozinho sem um adulto amigo que lhe atenuasse os medos e lhe desse segurança. Nas três noites que passou no Hospital, o Francisco teve a presença daquele amigo especial, que lhe segurava na mãozinha quando acordava sobressaltado e quase lhe fazia esquecer as dores na perna operada. O menino regressara ao Centro de Acolhimento, mas eram necessários cuidados redobrados no pós-operatório e a Sta Casa não tinha pessoal suficiente para isso e o Francisco corria o risco de ser transferido para o Hospital Ortopédico da Parede. Aqui estava a urgência do caso. Não se podiam conformar com mais este internamento. Mais mudanças, mais sofrimento... Pretendiam levá-lo para casa quanto antes. E levaram. O MºPº fez um requerimento. A Mma Juíza despachou: Declarações de imediato. E no próprio acto foi proferida decisão a confiar a criança ao casal.
E agora ? Pensam os nossos leitores, na sua maioria juristas, que se seguirá o Processo de Adopção. Mas não. A Lei, a tal que costumam dizer-nos que é boa, que más são só as práticas, não permite que este casal proponha, decorrido um período razoável , de seis meses por exemplo, uma acção de adopção. Antes, este casal, seleccionado para adoptar uma criança pelos serviços competentes, e que pretende que seja o Francisco o menino a adoptar, pese embora aquela decisão judicial, ainda tem de propor uma outra acção denominada de "confiança judicial com vista à adopção". Pois é. Se esta complicada teia de acções, prévias ao processo de adopção propriamente dito são procedimentos facilitadores, então as palavras deixaram de ter significados inteligíveis. Alguém vislumbra fundamentos para que, num caso destes, seja imprescindível aquela acção prévia, destinada a provar a ruptura dos laços afectivos próprios da filiação? Então este não é um caso em que no processo de adopção, o juiz poderia apreciar toda a factualidade, tanto mais que esta criança já foi confiada a este casal por decisão judicial?
E será adequado lembrar que só em Maio de 1998 a lei veio dar a estes particulares legitimidade para proporem estas acções, pois a lei só reconhecia ao MºPº, à Segurança Social e aos directores dos estabelecimentos o direito de pedir a confiança de uma criança com vista à adopção, ainda que essa criança já lhes tivesse sido confiada por decisão judicial. Absurdo, não é? E depois ainda dizem que a lei é boa, faria se fosse má. Só vejo uma explicação para estas normas, que geram a maior perplexidade nos colegas advogados, quando têm de patrocinar estas causas. É que de uma maneira geral, em Portugal ainda estamos a aprender a adopção.

Costumo recordar que no nosso País, durante um século não houve adopção como fonte de relações jurídicas familiares, e mesmo assim, quando finalmente o Código de Seabra foi substituído, em 1966, a adopção só era possível em casos limitadíssimos, O nosso Francisco não podia beneficiar de uma nova família, pois só os filhos de pais incógnitos ou falecidos podiam ser adoptados. Os meninos abandonados , os meninos vítimas de maus tratos teriam de ficar institucionalizados sem direito a uma nova família , que os amasse e lhes desse uma vida feliz.
Mas não é tudo. Apesar desta alteração legislativa ter já três anos, há magistrados, quer no Ministério Público, quer na Judicatura que a desconhecem, e soube há dias de um despacho, precedido de parecer que citando a redacção de 1993, negavam a legitimidade de um casal a quem tinha sido confiado um menino pelo Tribunal de menores de Lisboa.
Sei que posso contar com esta página do Justiça para fazer apelos, e não resisto a insistir na necessidade urgente de consciencializar os poderes públicos para a inevitável decisão relativa à especialização dos saberes.
Não é razoável que no Século XXI os Magistrados possam ter acesso aos Tribunais de Família e Menores sem formação específica.
Não é admissível que as crianças sejam privadas de uma apreciação devidamente ponderada, baseada em conhecimentos científicos rigorosos, e se aos magistrados que vão decidir sobre a vida de uma criança não for exigida uma formação com matérias hoje consideradas essenciais, como a psicologia do desenvolvimento e as ciências sociais, as crianças correm ainda outro risco, além daqueles que motivaram a intervenção judiciária: o risco de serem vítimas de decisões injustas.
Na era das especializações, dos mestrados, das pós-graduações, como poderemos conformar-nos com a mediocridade?
A cidadania exige-nos o aperfeiçoamento, mas a verdadeira justiça exige mérito e excelência, sobretudo se os destinatários forem as crianças. Conto convosco para que no próximo dia 1 de Junho, nas intervenções, comunicações, artigos que fizerem, falem deste tema. Talvez no dia em que se decida que nos Tribunais de Família e Menores têm de estar especialistas, em Braga volte a haver adopções, decretadas na primeira instância. Ao que sei, ultimamente, as adopções das crianças em Braga têm sido decididas pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Foi com muita emoção que, no passado dia 14, no Forum organizado pela Assembleia da República e pelo Instituto de Estudos da Criança anunciei que o STJ tinha decretado a adopção de mais dois meninos de Braga. A Senhora Deputada Maria do Rosário Carneiro, que estava presente, está muito empenhada na apresentação de uma proposta de alteração às leis da adopção, mas precisa do apoio de todos nós para conseguir impor o agendamento deste debate como prioritário.
Será que vamos conseguir?
Ou vai passar mais um Dia da Criança com as televisões a falarem do Big Brother, do Bar da TV, do Euro 2004 e do novo estádio do Benfica?
Em breve saberemos.


Justiça e Cidadania, Suplemento do Primeiro de Janeiro, 28-Mai-2001

 

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