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A Convenção sobre os Direitos da Criança: Estrutura e Conteúdo.





                                                             Daniel O'Donnell
 
 

          Resumo:
          O autor apresenta de forma detalhada o conteúdo da Convenção sobre os direitos da Criança (1989),
          descrevendo de forma elucidativa o processo de elaboração da mesma, e a influência  das  diversas
          correntes de pensamento  ali  presentes. Sem dúvida, a referida convenção representou um avanço
          significativo para a consolidação dos direitos da criança, não só por consagrá-los, estabelecendo
          mecanismos de controle para  sua implementação (Comitê sobre os direitos da criança), mas também
          por divulgá-los, promovendo assim a conscientização no tocante à esta questão.. O incentivo à maior
          cooperação entre os países é um dos méritos do referido documento, bem como a maior dinâmica
          conferida aos diversos organismos internacionais no tocante à  luta  pela  proteção integral aos direitos
          da criança.
 
 

                    Introdução
 

   Em 20 de novembro de 1989, trigésimo aniversário da Declaração dos Direitos da Criança, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou por unanimidade a Convenção sobre os Direitos da Criança. A iniciativa de elaborar uma Convenção sobre os Direitos da Criança foi apresentada à Assembléia Geral em 1978 pela Polônia, que pretendia fazer a aprovação da Convenção coincidir com a comemoração do Ano Internacional da Criança, em 1979. A intenção da Polônia subestimou seriamente a magnitude e a complexidade da tarefa, que, com dificuldades, recém pode ser terminada a tempo para o décimo aniversário do Ano Internacional da Criança, em 1989.

   Mesmo com o processo de elaboração da Convenção parecendo, às vezes, interminável, no final das contas, os dez anos de reflexão, consultas, debates e negociações não foram em vão. O anteprojeto original apresentado pela Polônia, como observaram muitos governos na consulta inicial, ocorrida em 1978, consistia essencialmente em uma mera reformulação dos direitos já reconhecidos na Declaração de 1959. A Convenção transforma a criança, de um objeto que tem direito a receber uma proteção especial, em um sujeito com uma ampla gama de direitos e liberdades; esclarece o significado de praticamente toda a gama de direitos humanos para as crianças os adolescentes; estabelece um Comitê Internacional de Experts, especializados em direitos da Criança, com novas possibilidades para concretizar tais direitos. A Convenção e seu processo de elaboração contribuíram para ampliar e tornar mais dinâmicas as atividades das principais organizações internacionais, cujas obrigações abarcam a proteção da infância, entre elas a UNICEF.

            Estrutura da Convenção
 

    Preâmbulo

   Os preâmbulos dos instrumentos internacionais têm vários propósitos. Nos instrumentos sobre direitos humanos adotados no âmbito da ONU, geralmente se incluem algumas disposições que estabelecem um vínculo entre a matéria tratada pelo instrumento e os objetivos básicos da organização mundial. O preâmbulo também assinala os antecedentes mais relevantes e, em muitos casos, contém algumas disposições que se referem, em termos gerais, à existência de práticas ou de situações que fazem necessário o instrumento.

   Os dois primeiros parágrafos do Preâmbulo à Convenção dos Direitos da Criança, que vinculam a Convenção com a Carta da ONU, são tradicionais nos instrumentos sobre direitos humanos. O parágrafo 7 também vincula a Convenção com a Carta Magna da Organização, assinalando a importância de educar as crianças nos moldes dos ideais ali proclamados, em particular "no espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade". Igualmente tradicional em instrumentos internacionais desse tipo é o terceiro parágrafo do Preâmbulo, relativo à igualdade entre as pessoas.

   Quatro parágrafos reúnem os antecedentes mais relevantes da Convenção. Os parágrafos quarto e quinto mencionam o direito da criança à proteção, atenção e cuidados especiais, direito consagrado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, pelas Declarações de 1923 e 1959 sobre os Direitos da Criança e pelos Pactos Internacionais sobre os Direitos Civis e Políticos e sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Políticos, de 1966. A ênfase dada a tal direito da Criança salienta sua relevância na interpretação do conteúdo da Convenção.

   O sexto parágrafo do preâmbulo cita, de forma sintética, o mais belo e significativo dos Princípios consagrados pela Declaração de 1959, reconhecendo que "a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão". O quinto, fazendo eco à Declaração Universal dos Direitos Humanos e ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, sublinha a importância da família "como elemento básico da sociedade e meio natural para o crescimento e o bem-estar de todos os seus membros e, em particular, das crianças", e a conseqüente necessidade de oferecer à família "a proteção e assistência necessárias para que ela possa assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade". O tema da relação triangular Estado-criança-família ocupa um lugar importante na Convenção, como veremos oportunamente, e as considerações apresentadas nos parágrafos quinto e sexto do Preâmbulo certamente terão grande valor na interpretação de várias questões relativas a essa problemática.

   Outros antecedentes citados no parágrafo nono são três Declarações mais recentes sobre aspectos específicos dos direitos da criança: a saber, a Declaração sobre a Proteção da Mulher e da Criança em Estados de Emergência ou de conflito armado, de 1974; as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração de Justiça de Menores (mais conhecidas como "Regras de Beijing"), de 1985; e a Declaração sobre os Princípios Sociais e Jurídicos relativos à Proteção e ao Bem-Estar das Crianças, com uma referência especial à Adoção e à colocação em Locais de Guarda nos Planos Nacional e Internacional, de 1986.

   Como veremos mais adiante, alguns artigos da Convenção sobre os Direitos da Criança incorporam ou sintetizam os elementos centrais de tais Declarações, especialmente das duas últimas, de maneira que a menção das mesmas no Preâmbulo realça seu valor jurídico. E sobretudo aos efeitos da interpretação das disposições pertinentes da Convenção.

   O outro parágrafo que se refere aos antecedentes, o nono, traz uma explicação diferente. Nele, é textualmente citado o parágrafo terceiro do Preâmbulo da Declaração de 1959, segundo o qual a criança, "por sua falta de maturidade física e mental, necessita proteção e cuidados especiais, inclusive a devida proteção legal, tanto antes como depois do nascimento". A inclusão dessa citação da Declaração de 1959 foi uma solução de compromisso entre partidários de posturas opostas, relativas ao alcance do direito à vida; um grupo, composto essencialmente por países católicos e islâmicos, apoiava o reconhecimento do direito à vida a partir da concepção, e outro grupo, composto por países que reconhecem a legalidade do aborto, entre eles os socialistas, os nórdicos e os asiáticos. Os primeiros opuseram-se a uma cláusula inicial do texto, que definia a criança como toda pessoa humana, desde seu nascimento até os dezoito anos, e propuseram uma redação substitutiva, que reconhecia a efetividade do direito à vida desde antes do nascimento. Tal proposta não se manteve, mas conseguiu eliminar a referência ao nascimento como elemento da definição que agora figura no artigo primeiro da Convenção. Além disso, argumentando que a Convenção não deveria derrogar a proteção reconhecida pela norma internacional existente, este grupo de países conseguiu a reiteração da cláusula mencionada no Preâmbulo da Convenção.

   O valor jurídico deste parágrafo do Preâmbulo é limitado, pois, mesmo que as disposições do preâmbulo possam ser empregadas na interpretação de um tratado, carecem de valor dispositivo. No momento de interpretar o primeiro artigo da Convenção, a não aceitação, pelo Grupo de Trabalho, da proposta que reconhecia os direitos da criança desde a concepção, é mais determinante que qualquer disposição do Preâmbulo que pudesse sustentar uma interpretação diferente.
   Ademais, as implicações sobre o direito à vida, da disposição preambular citada, não são muito claras. Diversamente do Artigo 6 do Pacto de San José, que dispõe que "em geral" o direito à vida deve ser protegido a partir da concepção, a disposição em questão não especifica o momento a partir do qual tal direito deve ser protegido. A maior parte dos países que permitem o aborto o regulamentam a fim de proteger o direito da criança à vida a partir de uma determinada etapa da vida fetal, reconhecendo, assim, a existência de determinados direitos anteriores ao nascimento. Também cabe assinalar que o significado da introdução desse parágrafo, "Tendo presente", é mais ambíguo que as frases empregadas em outros parágrafos do Preâmbulo, como por exemplo, "Considerando", "Convencidos", ou "Reconhecendo".

   Os conceitos expressados nos três últimos parágrafos do Preâmbulo, ainda que, no fundo, não sejam tão originais, adquirem certa importância por sua inclusão em um instrumento desse tipo. O décimo primeiro, fazendo uso de um conceito amplamente difundido pelo UNICEF nos últimos anos, reconhece que há crianças que vivem em "circunstâncias excepcionalmente difíceis" em todos os países do mundo. O significativo não é tanto a referência ao conceito como tal, senão que o reconhecimento de que as violações graves dos direitos da criança não são monopólio de nenhum grupo de países, mas um fenômeno, infelizmente, universal.

   O décimo segundo assinala "a importância das tradições e dos valores de cada povo na proteção e no desenvolvimento harmonioso da criança". Em matéria de direitos humanos, os instrumentos internacionais às vezes parecem considerar os valores e tradições culturais "não-universais" apenas como possíveis limitações ou obstáculos à realização dos direitos fundamentais da pessoa. Ainda que esses efeitos negativos não possam ser desconhecidos, a manifestação de crença nessas tradições, e sua invocação implícita do resgate daquilo que favorece à criança em cada cultura e sociedade, representa uma nova ótica, mais pluralista e, portanto, mais universalista, no verdadeiro sentido da palavra.

   Finalmente, o décimo terceiro parágrafo reforça a importância da cooperação internacional "para a melhora das condições de vida das crianças em todos os países, em particular nos países em desenvolvimento". Com efeito, a necessidade de uma maior cooperação internacional esteve presente no espírito dos que participaram da elaboração da Convenção, cujas disposições sobre temas tão diversos como a cultura, a educação, a saúde, a adoção, a pensão alimentícia, os refugiados e o tráfico e seqüestro de crianças, contêm múltiplas referências à cooperação bilateral ou multilateral, de caráter legal, técnica, econômica, etc.

             A Definição de Criança
 

   O artigo primeiro define a criança, para efeito de aplicação da Convenção, como "todo ser humano menor de 18 anos de idade, salvo que, em virtude da lei que seja a ele aplicada, tenha alcançado antes a maioridade".

   A definição contida na versão inicial proposta pela Polônia, em 1978, do projeto da Convenção daquela ocasião, definia a criança como toda pessoa humana desde seu nascimento até os 18 anos de idade. Como vimos, alguns países propuseram uma redação substitutiva ao artigo primeiro, definindo a criança como pessoa desde a concepção. A impossibilidade de chegar a um consenso sobre uma ou outra alternativa   ou seja, a que propunha a concepção como elemento de definição e a que empregava o nascimento para essa demarcação   levou o Grupo de Trabalho a adotar um texto de compromisso, eliminando a referência ao nascimento contida no texto original. Em conseqüência, a Convenção não se pronuncia sobre o particular, e os trabalhos preparatórios deixam claro que o texto final do artigo primeiro tem o propósito expresso de evitar a incompatibilidade entre a Convenção e a legislação nacional, quanto aos eventuais direitos da criança antes do nascimento.

   Também figurava no projeto inicial a exceção genética, que permite subtrair da aplicação da Convenção as pessoas menores de 18 anos quando, por determinação da legislação do país, a maioridade é alcançada antes. Os trabalhos preparatórios demonstram a necessidade desta cláusula, sem a qual teria sido difícil conseguir um consenso sobre a idade de 18 anos como critério principal da definição contida no artigo primeiro. Alguns países consideraram que a aplicação da Convenção a toda pessoa menor de 18 anos era inconveniente, e propuseram a idade de 14 ou 15 anos como limite. Sem a cláusula escapatória, possivelmente estes países teriam insistido em diminuir a idade mencionada na definição.

   Tal cláusula não limita a margem de apreciação dos países quanto à definição de maioridade, dando espaço, assim, para a possibilidade de sérias restrições na aplicabilidade na Convenção. Apenas dois artigos da Convenção fixam uma idade precisa que deve ser respeitada em relação aos direitos neles consagrados: o artigo 37, que proíbe a aplicação da pena de morte e de penas de prisão perpétua a pessoas menores de 18 anos de idade, e o artigo 38, relativo aos conflitos armados.
   Este último, como veremos em seguida, proíbe a participação direta de pessoas menores de 15 anos em conflitos armados, assim como seu recrutamento pelas forças armadas.

    Seria possível, então, limitar a aplicação dos direitos reconhecidos pela Convenção, mediante uma legislação que defina a maioridade em 16, em 15 ou ainda em menos ? Os trabalhos preparatórios da Convenção não proporcionam uma resposta categórica, mas podemos adiantar alguns critérios.

   Em primeiro lugar, o artigo primeiro parece pressupor que, na legislação nacional do país em questão, existe uma definição única de maioridade. Essa pressuposição não coincide com o direito comparado, no qual a maioridade varia em relação a situações distintas. Embora algumas discrepâncias encontradas no direito comparado, relacionadas a esse problema, sejam difíceis de justificar, em geral, não parece irracional a pressuposição de que algumas pessoas estão preparadas para assumir certas responsabilidades da vida adulta antes que outras.

   Não obstante, o uso de critérios diferentes quanto à maioridade para efeito de legislação interna, a qual regulamenta todos os pormenores da vida privada e pública, não deve se confundir com o uso de critérios diferentes para efeito de reconhecimento e de proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana. Tratando-se dos direitos fundamentais reconhecidos na Convenção, toda disposição do direito interno que restrinja sua aplicação teria que ser justificada, levando-se em conta tanto as realidades sociais do país em questão como os princípios fundamentais que inspiram a Convenção e os princípios gerais do direito internacional sobre os direitos humanos. Quanto maior for a discrepância entre os 18 anos e a norma nacional, mais difícil será fundamentá-la. Em princípio, será particularmente difícil justificar a inaplicabilidade de alguns critérios da Convenção, e não de outros, sob o pretexto de que a legislação nacional estabelece
   critérios de maioridade diferentes para cada efeito.

   Cabe recordar que o artigo 41 da Convenção contém a cláusula comum aos pactos sobre direitos humanos, segundo a qual nada na Convenção afetará as responsabilidades dos Estados Membros que se encontrem sob outros instrumentos internacionais ou sob o direito consuetudinário vigente. Quanto à idade do indivíduo, vários instrumentos definem especificamente a aplicabilidade de determinados direitos da criança, entre eles os diversos Convênios Internacionais do Trabalho, relativos ao trabalho de menores, ou os instrumentos internacionais sobre a idade mínima para o casamento, por exemplo.

   O artigo 38, que fixa a idade de 15 anos como limite para o recrutamento pelas forças armadas e para a participação em conflitos armados, é, para muitos, o artigo mais decepcionante da Convenção. Como requisito mínimo para esses efeitos, o limite de idade em 15 anos provém dos Protocolos Adicionais aos Convênios de Genebra. O artigo 4.3 c do Protocolo II, relativo à Proteção das vítimas dos Conflitos Armados sem caráter internacional, dispõe que "as crianças menores de 15 anos não serão recrutadas nas forças ou grupos armados, e não se permitirá que participem dos enfrentamentos". O artigo 77.2 do Protocolo I relativo à Proteção das vítimas dos Conflitos Armados Internacionais também proíbe o recrutamento e a participação em enfrentamentos de pessoas menores de 15 anos, acrescentando que, em caso de recrutamento de pessoas entre 15 e 18 anos de idade, deve-se "procurar alistar em primeiro lugar os mais velhos".

   A primeira versão do atual artigo 38 da Convenção, submetido ao Grupo de Trabalho em 1985, pela Bélgica, Finlândia, Países Baixos, Peru, Senegal e Suécia, referia-se a crianças em geral. Outras propostas, submetidas, no mesmo ano, pela Polônia e, surpreendentemente, pela República Islâmica do Irã, também se referem a crianças em um sentido geral.

   A proposta de limitar a aplicação deste artigo, ou, pelo menos, dos parágrafos sobre o recrutamento e a participação em enfrentamentos, foi apresentada pelo Reino Unido quando o Grupo de Trabalho passou a analisá-lo, em 1986. Apesar das justificações posteriores, sobretudo dos Estados Unidos, que pretendia evitar tais proibições, mediante a definição de maioridade abaixo dos 15 anos, a proposta tinha por finalidade, efetivamente, eliminar da aplicação dessas proibições as pessoas entre os 15 e os 18 anos de idade.

   Recém terminada a Guerra das Malvinas, o Reino Unido, cuja legislação permite o recrutamento de pessoas maiores de 15 anos de idade, temia que a presença de jovens marinheiros em navios de guerra pudesse tornar-se incompatível com a Convenção se esse artigo ampliasse a proteção reconhecida pelo Direito Humanitário vigente, ou seja, pelos Protocolos Adicionais aos Convênios de Genebra.

   A proposta do Reino Unido, apoiada por Bangladesh, Canadá, Finlândia e Noruega, foi aprovada, sendo a Venezuela a única delegação que manifestou claramente sua preferência pela idade mínima de 18 anos. Entre 1986 e 1988, houve uma forte campanha contra a decisão de diminuir a idade mínima para 15 anos, liderada pela Suécia e pelas organizações não-governamentais Rädda Barnen e os Cuakeros, com o apoio do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Na reunião denominada de "revisão técnica" ocorrida em dezembro de 1988, manifestou-se uma modificação significativa nas posições dos participantes. Nada menos que 25 Estados, incluindo o Reino Unido, expressaram seu apoio aos 18 anos como idade mínima para participar de enfrentamentos (Argélia, Angola, Argentina, Austrália, Áustria, Canadá, China, Colômbia,
   Espanha, Finlândia, França, República Democrática da Alemanha, Índia, Itália, México, Moçambique, Países Baixos, Nova Zelândia, Noruega, Suécia, Suíça, Reino Unido, União Soviética, Vaticano e Venezuela). No entanto, a oposição dos Estados Unidos impediu um consenso sobre a idade de 18 anos como idade mínima para a participação em enfrentamentos.

               Disposições Gerais
 

   A parte III da Convenção contém as disposições gerais sobre a entrada em vigor da Convenção, as emendas, a denúncia da Convenção e questões afins, usuais em qualquer tratado. Duas destas disposições merecem um breve comentário.

   O Artigo 49 dispõe que a Convenção "entrará em vigor trinta dias após a data em que tenha sido entregue o vigésimo instrumento de ratificação ou de adesão..." Evidentemente, a entrada em vigor de um tratado é afetada pelo número de Estados Membros requerido para isso. A tendência, no âmbito da ONU, é reduzir o número ao mínimo exigido de ratificações, a fim de acelerar esse processo. Os Pactos Internacionais sobre os Direitos Civis e Políticos e sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais adotados em 1966, requeriam 35 ratificações, número alcançado 9 anos depois da adoção desses instrumentos. O número de Estados Membros necessários para a entrada em vigor da Convenção Contra Toda Forma de Discriminação da Mulher, de 1979, e a Convenção contra a Tortura, de 1984, foi reduzido a 20, mesmo número necessário à Convenção sobre os Direitos da Criança. A primeira entrou em vigor menos de dois anos depois, em 1981, e a segunda dois anos e meio depois de sua adoção. Tudo indica que a Convenção sobre os Direitos da Criança entrará em vigor provavelmente em 1991.

   Outra disposição que cabe mencionar é a que se refere ao financiamento do Comitê sobre os Direitos da Criança, criado pela Convenção para controlar sua implementação. A única questão relativa ao texto da Convenção deixado, na Assembléia Geral, para ser resolvida em plenário, foi a de determinar se os gastos do Comitê deveriam ser subsidiados pelos Estados Membros ou pelo orçamento geral da ONU. Dois argumento prevaleciam em favor da segunda opção. Em primeiro lugar, é mais compatível o financiamento do Comitê pela ONU do que pelos Estados Membros, com o conceito da responsabilidade comum de todos em relação à infância, sem fronteiras ideológicas, culturais, religiosas, nacionais ou de outro caráter. O segundo argumento era de outra ordem: o controle do orçamento de um Comitê desse tipo pelos Estados Membros pode reduzir sua independência e autonomia. Por 137 votos contra um (os Estados Unidos) e uma abstenção (Japão), a Assembléia Geral determinou que a ONU pagará os gastos do Comitê.

           O Conteúdo da Convenção
 

    O Alcance da Convenção

A Declaração Universal dos Direitos Humanos abarca todos os direitos fundamentais da pessoa humana, incluindo os de caráter civil, político, social, econômico e cultural. Como se sabe, posteriormente, com a elaboração dos primeiros grandes tratados sobre a matéria, efetua-se uma divisão dos direitos humanos em duas grandes categorias: uma que compreende os direitos civis e políticos, e outra, os direitos sociais, econômicos e culturais. Essa decisão   que não foi tomada de forma unânime, nem por consenso, antes pelo contrário, de maneira bastante controvertida   obedecia à idéia de que existiam diferenças importantes na natureza de tais direitos.

   Alguns defendiam, inclusive, que os direitos sociais, econômicos e culturais nem sequer configuravam-se efetivamente como direitos, mas sim como meros objetivos, não suscetíveis de proteção jurídica. Uma versão mais detalhada desse ponto de vista sustentava que, ainda que ambas as categorias pudessem ser consideradas como direitos fundamentais da pessoa humana, apenas a primeira era suscetível de realização imediata, pois sua proteção se reduzia essencialmente a uma questão de vontade política, enquanto a proteção da segunda categoria apenas poderia ser alcançada progressivamente, por necessitar inversões em infra-estruturas do campo da saúde, da educação, etc. Graças a esses argumentos, os países de tradição jurídico-social liberal impediram a adoção de um Pacto único em matéria de direitos humanos.

   Desde então, a tendência, na consideração de instrumentos sobre direitos dos grupos vulneráveis é incorporar em um só instrumento todos os direitos fundamentais, qualquer que seja sua natureza. Tal é o caso da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial, por exemplo, e da Convenção Contra Toda Forma de Discriminação da Mulher. A Convenção sobre os Direitos da Criança, dentro dessa tradição, abarca todos os direitos fundamentais da criança, independentemente de sua categoria. Não obstante, diversamente dos instrumentos antes mencionados, os objetivos da Convenção sobre os Direitos
   da Criança não se reduzem à eliminação da discriminação, o que explica sua amplitude, contendo em sua Parte I quarenta artigos substantivos. Existem, entretanto, duas classes de direitos que não figuram na Convenção. Segundo a norma internacional vigente, os direitos políticos sticto sensu, ou seja, o direito de votar, de ser candidato, e de ter acesso à função pública, são próprios dos "cidadãos", conceito que reúne a nacionalidade e a maioridade. Portanto, esses direitos não figuram na Convenção sobre os Direitos da Criança. Porém, a omissão dos direitos políticos stricto sensu não implica na negação da criança como sujeito dos direitos políticos no sentido amplo. Com efeito, a Convenção reconhece a Criança como sujeito da liberdade de expressão e de reunião, por exemplo, sujeito unicamente aos limites inerentes a tais liberdades (quer dizer, as mesmas aplicáveis às pessoas em geral) e às considerações de caráter geral estabelecidas no artigo 5 da Convenção, ou seja, em consonância com a evolução das faculdades da criança e a correspondente orientação e direcionamento dos pais.

   O direito da livre determinação, reconhecido pelos Pactos Internacionais de 1966 como direito dos povos, tampouco figura na Convenção sobre os Direitos da Criança. A infância é um elemento intrínseco a todos os povos, não sendo necessário, então, reafirmar tal direito como direito dos povos, em um instrumento dessa natureza. Não obstante, podemos considerar que alguns artigos efetivamente tutelam determinados aspectos do direito de cada criança de fazer parte de um povo, como o artigo 11.(1), sobre a luta contra o transporte ilícito de crianças para o exterior de seu país; o artigo 21 (b), que dispõe que a adoção de uma criança por pessoas provenientes de outro país deve ser excepcional; e os artigos 7 e 8, que reconhecem o direito a uma nacionalidade e à identidade, respectivamente.

              Os Princípios Gerais
 

   Depois da definição de criança, contida, como vimos, no artigo primeiro da Convenção, os quatro artigos seguintes reconhecem alguns princípios gerais e definem em grandes linhas as obrigações dos Estados Membros.

   O artigo 2 contém a proibição de discriminação, semelhante à que figura nos demais instrumentos que tratam dos direitos humanos. Apenas dois aspectos desse artigo merecem um breve comentário. Pela primeira vez se faz uma proibição expressa da discriminação com base na origem étnica da pessoa. O artigo 2 amplia a proteção contra a discriminação, já estabelecida em outros instrumentos ao proibir expressamente não só a discriminação baseada nas características do indivíduo, senão também a discriminação contra uma criança, fundada nas características de seus pais ou tutores.

   O artigo 3 da Convenção consagra o princípio segundo o qual "o interesse superior da criança" será "uma consideração primordial" em todas as medidas que a afetem. O conceito de "interesse superior da criança" despertou algumas inquietações. Alguns receiam que esse princípio enfraquece a força da Convenção enquanto afirmação da criança como sujeito de direito, pois o gozo e exercício de todos os direitos nela enumerados estaria condicionado a eventuais conflitos com os interesses da própria criança. Outros perguntam se esse princípio não permitiria condicionar o conteúdo dos direitos reconhecidos na Convenção, não tanto com base em supostos conflitos com o bem-estar da criança em casos concretos, mas sim para a infância em geral, com base nos valores "superiores" de uma sociedade ou cultura.

   Este princípio tem sua origem no direito comum, onde serve para a solução de conflitos de interesse entre uma criança e outra pessoa. Em essência, o conceito significa que quando ocorrem conflitos desta ordem, como no caso da dissolução de um casamento, por exemplo, os interesses da criança sobrepõem-se aos de outras pessoas ou instituições.
   Interpretado assim, este princípio favorece a proteção dos direitos da criança, e o lugar central que deve ocupar na Convenção constitui, a nosso ver, uma valiosa contribuição à ideologia dos direitos da criança.

   Certamente, a Convenção permite impor aos direitos da criança limites destinados a assegurar a "proteção especial" que as crianças necessitam devido à sua maior vulnerabilidade e sua maturidade incompleta. Essa possibilidade não deriva exclusivamente do princípio dos interesses superiores da criança, mas é reconhecida explícita ou implicitamente em várias disposições da Convenção. De qualquer modo, a possibilidade de uma interpretação abusiva   talvez inerente a toda disposição relativa aos limites dos direitos fundamentais   não invalida o princípio mesmo, que, a nosso ver, tem fundamento e é inclusive necessário, em um instrumento que pretende definir os direitos de toda pessoa até os 18 anos de idade.

   O conceito dos interesses superiores da criança foi extraído do Princípio 2 da Declaração sobre os Direitos da Criança de 1959. A Declaração dispõe que o interesse superior da criança deve ser "a consideração fundamental" somente quanto à "promulgação de leis" destinadas à proteção e ao bem-estar da criança. A Convenção amplia o alcance deste princípio que, pelo teor do artigo 3. (1), deve inspirar não apenas a legislação, mas também "todas as medidas concernentes às crianças, tomadas pelas instituições públicas ou privadas de bem-estar social, pelos tribunais, pelas autoridades administrativas..."

    O artigo 5 da Convenção, relativo ao papel dos pais no exercício dos direitos da criança, estabelece o seguinte princípio:

   "Os Estados Membros respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, se for o caso, dos familiares ou da comunidade, conforme estabeleça o costume local, dos tutores e outras pessoas encarregadas legalmente de educar a criança, em consonância com a evolução de suas faculdades e com a orientação apropriada para que a criança exerça os direitos reconhecidos na presente Convenção."

   O impacto da Convenção no âmbito da família foi outro tema que despertou muito interesse, e também inquietação. Nos países nórdicos existe, no direito e na política social, uma tendência a ampliar cada vez mais os direitos da criança em relação à sua família, tendência que se evidenciou durante os debates do Grupo de Trabalho. Também se manifestaram posições contrárias, tanto de países industrializados como de países periféricos, que se esforçam em manter valores sociais tradicionais. Na última reunião ordinária do Grupo de Trabalho, por exemplo, o representante do Senegal propôs incluir na Convenção uma disposição sobre a obrigação das crianças de respeitar seus pais. A República Federal da Alemanha, em um memorando dirigido aos participantes da reunião de revisão técnica, propôs a inclusão de um artigo que
   dispunha que a legislação nacional poderia fixar uma idade na qual a criança teria competência para exercer alguns de seus direitos, sem o consentimento de seus pais, argumentando que, salvo disposição contrária, os direitos das crianças não são exercidos por elas, mas por seus pais.

   Em geral, a convenção pretende definir os direitos da criança mais em relação à sociedade que em relação à família. O conteúdo da Convenção não deve ser analisado como fato isolado, mas sim em seu contexto, como uma contribuição a um corpus juris existente, ou seja, ao direito internacional dos direitos humanos. Dos direitos já amplamente reconhecidos, têm especial relevância para a Convenção: o direito da criança a uma proteção especial e o direito da família a proteção, em particular o direito de ser protegida contra "ingerências arbitrárias ou ilegais". Podemos considerar que a interação desses
   direitos fundamentais determina a legitimidade de uma ingerência do Estado, ou do direito, na vida familiar. Se a ingerência for necessária para a proteção da criança, será legítima, caso contrário, constitui uma ingerência arbitrária na intimidade da família, "elemento natural e fundamental da sociedade". Essa relação permite apreciar a Convenção em seu contexto, e ajuda a entender que o propósito do artigo sobre a liberdade de expressão, por exemplo, não é o de permitir que uma criança recorra à justiça para acusar seu pai de ter-lhe negado o direito de expressar-se livremente durante o jantar, mas sim o de garantir-lhe o direito de recorrer à justiça quando é expulsa do colégio por haver expressado suas opiniões sobre questões sociais e políticas.

   Por outro lado, o dever do Estado e da sociedade de proporcionar à criança sua necessária proteção, dá legitimidade à intervenção na vida familiar, quando a desproteção ou a negação dos direitos de uma criança chegam a prejudicar seu bem-estar ou seu desenvolvimento físico ou psicológico. Ainda que o principal objetivo da Convenção seja definir os direitos da criança em relação à sociedade, muitas de suas disposições também buscam esclarecer o difícil equilíbrio entre o direito da família em sua intimidade e o direito da criança à proteção da Convenção. Como princípio geral que inspira a Convenção, o artigo 5 estabelece um marco geral para os diversos artigos que tratam de aspectos concretos da relação
   entre a família, a criança e o Estado. As considerações fundamentais feitas no artigo 5 são três: a reafirmação da tarefa natural dos pais de criação e educação da criança; a confirmação de que são as crianças mesmas que exercem seu direito; e a introdução ao conceito da evolução progressiva da competência da criança em exercer seus direitos com crescente autonomia, que permite superar uma aparente contradição entre os dois primeiros conceitos.

       Reafirmação e Consolidação dos Direitos da Criança
 

   A Convenção representa um esforço de reafirmação e de consolidação dos direitos da criança. A importância da reafirmação é dupla. Juridicamente, a reafirmação de uma ampla gama de direitos fundamentais na Convenção elimina qualquer dúvida que pudesse perdurar sobre o lugar da criança no direito internacional dos direitos humanos: não é o mero objeto do direito a uma proteção especial, senão sujeito de todos os direitos reconhecidos pela norma internacional como "direito de toda e qualquer pessoa". Se isso parece hoje indiscutível, não era tão evidente há algum tempo atrás, como pode ser comprovado com um rápido cotejo da maior parte dos códigos de menores vigentes com os instrumentos internacionais, tais como o Pacto de San José ou o Pacto Internacional sobre os Direitos Humanos Civis e Políticos.

   Ademais, a reafirmação da maior parte dos direitos fundamentais, mesmo os já reconhecidos em outros instrumentos   vigentes, realça o valor didático da Convenção, facilitando sua utilização em qualquer programa de conscientização, mobilização, educação e capacitação de todo tipo.

   Um aspecto importante da Convenção é a incorporação ao Direito Internacional de alguns direitos previamente reconhecidos a nível de declarações . Um exemplo é o artigo 37 (b) da Convenção, que dispõe, em sua parte pertinente, que "A detenção, encarceramento e/ou prisão de uma criança serão utilizados apenas como último recurso e pelo período mais breve possível". Antes de ser acrescentado à Convenção durante a reunião de revisão técnica, em dezembro de 1988, este princípio ou direito apenas figurava nas Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração de Justiça ou "Regras de Beijing". O artigo 40 da Convenção, sobre a justiça de menores, também contém algumas disposições inspiradas diretamente pelas Regras de Beijing, entre elas o inciso 3 (a) sobre a conveniência de estabelecer uma idade mínima para a aceitação da incapacidade penal total; o inciso 3(b), sobre a conveniência de mecanismos de remissão para evitar a adjudicação quando possível, e o inciso 4, sobre as medidas alternativas à institucionalização do menor.

   De igual importância é a incorporação na Convenção de algumas disposições da Declaração sobre os Princípios Sociais e Jurídicos, relativas à Proteção e ao Bem-Estar das Crianças, com particular referência à Adoção e à Colocação em Locais de Guarda nos Planos Nacional e Internacional de 1986. O artigo 21 da Convenção incorpora entre eles o princípio de que a adoção será feita apenas por meio das autoridades competentes; o princípio segundo o qual a adoção internacional deve ser admitida unicamente como último recurso; e a proibição de adoção com fins lucrativos.

   O artigo 21, já mencionado, foi um dos mais controvertidos da Convenção. Em primeiro lugar, os países de Direito Islâmico manifestaram a mesma renitência que haviam manifestado anteriormente na Assembléia Geral a respeito da Declaração de 1986 sobre a aceitação de qualquer norma que reconhecesse a adoção. Sua oposição foi superada com a inclusão, no artigo 21, de uma cláusula que limita sua aplicação aos países que reconhecem ou permitem a adoção, assim como a inclusão de uma referência à instituição do Direito Islâmico, chamada "Kafalah", no artigo 20 da Convenção, que define as obrigações dos Estados Membros em relação às crianças que não possuam ou estejam afastadas de seu meio familiar.

   Outra controvérsia centrou-se na questão da licitude da adoção com fins lucrativos. A versão inglesa do artigo 21 (d) proíbe "undue financial gains", e "profit material indu", respectivamente. Essas versões prestam-se a uma interpretação no sentido de que o lucro seria legítimo, desde que não fosse excessivo. Entretanto, a palavra "gain" em inglês não tem necessariamente a conotação de lucro, e é o texto em inglês o que se deveria considerar o mais exato, pois foi essa a versão adotada pelo grupo de redação nomeado durante a reunião de revisão técnica, encarregado de chegar a um texto de consenso sobre o controvertido tema da adoção. Os debates na plenária da reunião de revisão técnica confirmam que a intenção não era a de regulamentar a adoção com fins lucrativos, mas sim a de proibir a obtenção de lucros por intermediários, sob o pretexto de cobrar remunerações desproporcionadas. Assim, na medida em que pudessem ser interpretadas como legitimadoras de uma comercialização da adoção, as versões em espanhol e francês do texto do artigo 21 (d), aprovadas pela Assembléia Geral, devem ser consideradas incorretas. Cabe esperar que o Comitê dos Direitos da Criança esclareça oportunamente o significado do inciso d) do artigo 21, descartando definitivamente a interpretação que permitisse a obtenção de benefícios, que não fossem a remuneração proporcionada por serviços profissionais legítimos e necessários.

   Outros exemplos da consolidação de "soft law" em obrigações vinculantes são os artigos 23 e 25 da Convenção. O artigo 23 apresenta, de forma sintética, os elementos centrais da Declaração dos Direitos dos Deficientes Físicos, de 1975, e o artigo 25, que garante a toda criança privada de liberdade "para fins de atenção, proteção ou tratamento de saúde física ou mental" o direito a exames periódicos, inspira-se no artigo 7 da Declaração dos Direitos do Deficiente Mental, de 1971.

          A Criança, a Família e o Estado
 

   A complexa rede de direitos e responsabilidades que unem a criança à família e ao Estado ocupa um lugar importante na Convenção. Por certo, a maior parte dos artigos dedicados à definição dos direitos e liberdades da criança, de 6 a 41, tratam das obrigações do Estado em relação à criança, sem referir-se ao papel da família. Entretanto, apenas 11 artigos são dedicados a diversos aspectos da relação entre Estado, família e criança, explicitando o papel da família enquanto co-responsável, ao lado do Estado, pela realização de alguns dos direitos da criança, traçando os limites da autoridade paterna e materna frente à autonomia e o bem-estar da criança, e, finalmente, definindo as responsabilidades do Estado na tutela desses limites.

   Globalmente, essas disposições representam uma importante contribuição para o conceito de família como "elemento básico da sociedade", já reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, assim como pelos mais importantes pactos sobre os direitos humanos. Ao mesmo tempo, essas disposições representam um dos aspectos mais inovadores e interessantes da Convenção.

   O artigo 5 estabelece, como vimos, um princípio geral que constitui, a nosso ver, a pedra angular da Convenção. "As responsabilidades, os direitos e os deveres" dos pais em relação à criança, segundo esse princípio, são duplos: por um lado, deve permitir que ela exerça os direitos reconhecidos na Convenção, e, por outro, deve proporcionar "educação e orientação apropriadas" para seu exercício. Ambas as funções, a permissiva e a orientadora, devem estar de acordo com a "evolução das faculdades da criança".

   De acordo com o artigo 5, a obrigação principal do Estado é a de respeitar essa dinâmica entre pais e filhos. O Estado também tem a obrigação, não menos importante, de ajudar os pais e as mães no cumprimento de suas responsabilidades, como assinalam outros artigos, que serão analisados a seguir. Assim mesmo, os direitos da criança condicionam o respeito do Estado à autonomia da família. Estes corolários ao princípio anunciado no artigo 5, e suas implicações em determinadas situações, são como um fio que une os vários artigos da Convenção sobre a relação entre criança, família e Estado.

   Uma das disposições mais relevantes é o artigo 18, cujo primeiro inciso estabelece que "a responsabilidade primordial pela criação e desenvolvimento da criança" é dos pais ou, na falta deles, de seus tutores, e acrescenta que "o interesse superior da criança" será "a preocupação fundamental" dos pais ou tutores.

   A obrigação do Estado de prestar assistência aos pais, para efeitos de garantia e promoção dos direitos reconhecidos na Convenção, está consagrada no inciso segundo do artigo 18. O reconhecimento desta obrigação do Estado em relação à família dá à Convenção um enfoque equilibrado e realista, evitando cair em um tratamento excessivamente liberal, que atribuiria à família toda a responsabilidade do bem-estar do menor, ignorando a co-responsabilidade do Estado. Nada expressa melhor a importância dessa forma de enfocar a co-responsabilidade do Estado e da família que o dito brasileiro "Não há menor abandonado sem família abandonada".

   Dois outros artigos referem-se às funções dos pais como co-responsáveis pela proteção de determinados direitos da criança. O artigo 24 dispõe que as obrigações do Estado em matéria de direito à saúde incluem esforços, encaminhados através da família em particular, no sentido de ter obrigação de proporcionar aos pais educação e orientação no assunto.

   Através do artigo 27, os Estados Membros reconhecem o direito de toda criança a "um nível de vida adequado para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social", e reconhece os pais como detentores da "responsabilidade primordial para proporcionar, dentro de suas possibilidades e meios econômicos, as condições de vida necessárias para o desenvolvimento da criança". Ao mesmo tempo, esse artigo reforça a obrigação do Estado de adotar   também dentro das condições e meios existentes   "medidas apropriadas para ajudar os pais... a proporcionar o direito da criança a um nível de vida adequado". Um aspecto específico dessa obrigação, a de oferecer creches aos pais e mães que trabalham, é expressamente mencionada no artigo 19 da Convenção.

   A inserção da criança em sua família é um elemento chave da temática dos direitos da criança, e vários artigos da convenção o abordam, a partir de ângulos distintos. O artigo 7 (I) reconhece o direito da criança "desde seu nascimento...
   de conhecer seus pais e de ser cuidada por eles". No mesmo sentido, o artigo 8 consagra o direito da criança de preservar as relações familiares como elemento de seu direito à identidade. O artigo 8 também reconhece, de forma expressa, a obrigação do Estado de ajudar a criança a restabelecer rapidamente todos os elementos de sua identidade, em caso de ser dela privada de forma ilegal. Em casos de pais separados de suas famílias, por razão de medidas como prisão ou exílio, o artigo 9 contém uma disposição semelhante que obriga o Estado a proporcionar à criança determinadas informações sobre o pai ausente.

   A integridade da família também é protegida pelos artigos 10, 11 e 22, relativos à reunificação familiar e ao transporte ou retenção ilícitos. O artigo 10, em seu inciso primeiro, refere-se à situação de crianças e pais que se encontram em países diferentes por qualquer motivo, e obriga o Estado a atender a todas as solicitações relacionadas à sua reunião "de maneira favorável, humanitária e expeditiva". O artigo 22, relativo às crianças refugiadas, consagra a obrigação dos Estados de cooperar na busca dos parentes de crianças refugiadas que foram separados de suas famílias, a fim de facilitar a reunião familiar.

   O artigo 10 também contempla, em seu segundo inciso, a situação das crianças cujos pais e mães vivem em países diferentes, estabelecendo alguns princípios que tendem a eliminar obstáculos ao desfrute de contatos pessoais entre a criança e os pais. O artigo 11, por sua vez, estabelece a obrigação do Estado de tomar medidas contra o transporte ou a retenção ilícitos das crianças no exterior, entre elas a celebração ou ratificação de acordos bilaterais ou multilaterais.

   A intimidade foi reconhecida há muito tempo pelo Direito Internacional como direito fundamental de toda pessoa. Em seu artigo 16, a Convenção reconhece como direito da criança a intimidade da relação entre ela e sua família. O alcance desse direito está limitado pela Convenção, em termos idênticos aos que figuram em outros instrumentos de direitos humanos, ou seja, a intimidade está protegida contra "ingerências arbitrárias ou ilegais".

   A questão transcendental de saber quando uma ingerência deixa de ser arbitrária, ou seja, saber as circunstâncias nas quais o dever do Estado em relação a uma criança e seu bem-estar justificam uma intervenção no âmbito familiar, é abordada pelo artigo 9 da Convenção. O princípio geral, segundo dispõe tal artigo, é que "nenhuma criança será separada de seus pais contra a vontade destes, exceto quando ... tal separação for necessária por interesse superior da criança".
   São mencionados como exemplos de circunstâncias nas quais o interesse superior da criança poderia fazer necessária sua separação dos pais: maus tratos e descuido.

   Este princípio está rodeado de garantias e salvaguardas. Em primeiro lugar, conforme seu inciso primeiro, a decisão de separar uma criança de sua família apenas pode ser tomada "pelas autoridades competentes, em conformidade com a lei e os procedimentos aplicáveis", e "sujeita a revisão legal". Em princípio, segundo o disposto pelo artigo 12 da Convenção, a criança tem direito a ser escutada, e sua opinião deve ser levada em conta, de acordo com sua idade e maturidade. Em caso de se proceder efetivamente à separação da criança dos seus pais, o artigo 19 (2) reconhece o direito da criança de manter "relações pessoais e contato direto com ambos de modo regular", a menos que tal contato seja contrário ao interesse superior da criança.

   Outros artigos complementam, de alguma forma, os princípios gerais consagrados pelos artigos citados, enfatizando suas aplicações em situações específicas. O mais pertinente é o artigo 19, que consagra a obrigação do Estado de tomar medidas para a proteção da criança "contra toda forma de violência, preconceito ou abuso físico ou mental, descuido ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, incluindo o abuso sexual, enquanto a criança se encontre sob a custódia dos pais ... ou de qualquer outra pessoa que a tenha a seus cuidados". Evidentemente, essas medidas não levam necessariamente à separação da criança de sua família, já que a separação, como dispõe o artigo 9 (1), está sujeita ao
   princípio da necessidade, ou seja, é uma medida tomada em último caso. No entanto, a maior parte das medidas que poderiam impor-se para esses efeitos, inclusive a investigação, constituem uma ingerência na intimidade da família, e, portanto, segundo o artigo 16, devem ser proporcionadas e justificadas.
 

Retirado de: http://www.abmp.org.br