PAINEL: POBREZA E EXCLUSÃO
SOCIAL NO BRASIL - 300 ANOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A
CRIANÇA BRASILEIRA
Roberto da Silva*
Em PreTextos desde 16/02/1998
TEMA: 50 ANOS DO PENSAMENTO JURÍDICO-ASSISTENCIAL
BRASILEIRO 1927 - 1997
Dedicando-me a estudar o contexto
sócio-político e cultural em que constituiu-se a tradição
de concubinato, de geração de filhos tidos como ilegítimos,
de constituição da família brasileira, e como conseqüência
de tudo isto, do abandono de crianças, na presente conferência
abordarei a evolução da construção jurídica
através da qual o Estado brasileiro pretendeu normatizar a política
de assistência à criança carente, órfã
e/ou abandonada.
Os cursos jurídicos ensinam
que as fontes do direito são a natureza, a tradição
e os hábitos e costumes social e culturalmente consagrados. Tendo
em mente também que as leis são formuladas, na sua origem,
para assegurar os direitos de um protótipo de homem, que no caso
brasileiro apresentava-se, no início do século, como homem,
branco, letrado e cristão, a mulher e a criança tornaram-se
tributários destes direitos apenas a partir da relação
de parentesco e de consangüinidade com o varão.
Com estas premissas, teremos oportunidade
de ver que se os conceitos ontológicos fundamentam o capítulo
referente à família no Código Civil Brasileiro, dando
origem a um ramo das ciências jurídicas, que é o Direito
de Família, os hábitos e os costumes social e culturalmente
aceitos no Brasil fundamentaram uma legislação paralela,
o Direito do Menor, destinada a legislar sobre aqueles que não
se enquadravam dentro do protótipo familiar concebido pelas elites
intelectuais e jurídicas.
Iniciarei esta apresentação
comentando os Códigos de Menores de 1927 e o de 1979, ressaltando
o tratamento diferenciado reservado à família desestruturada
e precária, incidindo de modo particular sobre os direitos de pátrio
poder, de tutela, de legitimação dos filhos ilegítimos
e os instrumentos pelos quais legitimou-se a figura do juiz como o fiel
a normatizar e intermediar as relações destes pais e de seus
filhos com o Estado.
Em seguida abordarei o Estatuto
da Criança e do Adolescente, tido como uma das mais avançadas
legislação de proteção à criança,
e darei ênfase à fundamentação que ele recebeu
das convenções e dos tratados internacionais, já na
perspectiva de proteção dos direitos humanos, constituindo-se
em um instrumento pelo qual pode se dar a transição, gradativamente,
da tutela da criança e da família em situação
de risco pessoal e social, da figura do juiz para o educador social.
Apresentarei também um breve
panorama do estágio atual de implantação do ECA no
país, relatando as principais conquistas e as principais dificuldades
na sua efetivação.
A Construção do Direito
do Menor
Desde 1916 o Brasil possui, ainda
em pleno vigor, um Código Civil, que basicamente regula os direitos
individuais, o direito de propriedade e o Direito de Família.
Na parte referente ao Direito de
Família estão especificados as obrigações dos
pais em relação aos seus filhos, desde o nascimento até
a idade de 21 anos. Dentre tais obrigações estão o
direito de filiação, a sucessão no nome e na herança,
a alimentação, a educação e a saúde,
entrando o Estado apenas a título complementar, se faltar a proteção
familiar.
O Código de Menores de 1927,
que consolidou toda a legislação sobre crianças até
então emanada por Portugal, pelo Império e pela República,
consagrou um sistema dual no atendimento à criança, atuando
especificamente sobre os chamados efeitos da ausência, que atribui
ao Estado a tutela sobre o órfão, o abandonado e os pais
presumidos como ausentes, tornando disponível os seus direitos de
pátrio poder. Os chamados direitos civis, entendido como os
direitos pertinentes à criança inserida em uma família
padrão, em moldes socialmente aceitáveis, continuou merecendo
a proteção do Código Civil Brasileiro, sem alterações
substanciais.
No que se refere à família,
a mais significativa das poucas alterações ocorridas de 1916
para cá foram a normatização do desquite e da separação
judicial, com a aprovação da Lei do Divórcio (n°
6.515/77), aprovada em 1977, da lavra do Senador Nelson Carneiro e a que
regulamentou a investigação de paternidade (n° 8.560/1992),
com o claro propósito de assegurar os mesmos direitos de filhos
legítimos aos filhos concebidos fora do casamento, ambas significando
a consagração em lei de uma prática social e culturalmente
aceita e amplamente difundida.
O descumprimento de quaisquer das
obrigações estipuladas aos pais pelo Código Civil,
bem como a “conduta anti-social” por parte da criança passou a justificar
a transferência da sua tutela dos pais para o Juiz, e conseqüentemente,
do Código Civil para o Código de Menores.
O Código de Menores de 1927
destinava-se a especificamente a legislar sobre as crianças de 0
a 18 anos, em estado de abandono, quando não possuíssem moradia
certa, tivessem os pais falecidos, fossem ignorados ou desaparecidos, tivessem
sido declarados incapazes, estivessem presos há mais de dois anos,
fossem qualificados como vagabundos, mendigos, de maus costumes, exercessem
trabalhos proibidos, fossem prostitutos ou economicamente incapazes de
suprir as necessidades de sua prole.
O Código denominou estas
crianças de “expostos” (as menores de 7 anos), “abandonados” (as
menores de 18 anos), “vadios” (os atuais meninos de rua), “mendigos” (os
que pedem esmolas ou vendem coisas nas ruas) e “libertinos” (que freqüentam
prostíbulos).
O mesmo Código estabeleceu
que os processos de internação destas crianças e o
processo de destituição do pátrio poder seriam gratuitos
e deveriam correr em segredo de justiça, sem possibilidades de veiculação
pública de seus dados, de suas fotos ou de acesso aos seus processos
por parte de terceiros.
O Código de Menores também
instituiu o intervencionismo oficial no âmbito da família,
dando poderes aos Juizes e aos Comissários de Menores, pelo Artigo
131, para vistoriarem suas casas e quaisquer instituições
que se ocupassem das crianças já caracterizadas como “menores”.
Como resultado das negociações
para erradicar o Sistema da Roda e a Casa dos Expostos, garantiu-se também
o segredo de justiça, reservando-se às entidades de acolhimento
de menores e aos cartórios de registro de pessoas naturais o sigilo
em relação aos genitores que quisessem abandonar os seus
filhos, garantindo-se em particular o sigilo da mãe quanto ao seu
estado civil e as condições em que foram gerada a criança.
Pelo seu Artigo 55, o Código
de 27 conferiu também ao Juiz plenos poderes para devolver a criança
aos pais, coloca-la sob guarda de outra família, determinar-lhe
a internação até os 18 anos de idade e determinar
qualquer outra medida que achasse conveniente.
Apenas no Artigo 68 o Código
ocupou-se do já então denominado “menor delinqüente”,
já fazendo a diferenciação entre os menores de 14
anos e os de 14 completos a 18 anos incompletos, sempre deixando clara
a competência do Juiz para determinar todos os procedimentos em relação
a eles e aos seus pais. Estabeleceu-se também a obrigatoriedade
da separação dos “menores delinqüentes” dos condenados
adultos, mas em 1940 foi promulgado o Código Penal Brasileiro (Decreto-lei
n° 2.848/40), consagrando a inimputabilidade criminal do menor de 18
anos de idade, depois regulamentada pelo Decreto-lei n°3.914/41 e até
hoje em vigor.
Aos delinqüentes maiores de
16 anos instituiu-se a possibilidade da “liberdade vigiada”, pela qual
a família ou os tutores deveriam responsabilizar-se pelo processo
de regeneração do menor, com as obrigações
de reparação dos danos causados e de apresentação
mensal do menor em juízo.
O Código de Menores estendeu
a autoridade do Juiz sobre os jovens de 18 a 21 anos de idade, condedendo-lhes
atenuantes frente ao Código Penal, mas determinando o recolhimento
em Colônias Correcionais dos vadios e dos jogadores de capoeira pelo
prazo de um até cinco anos.
O Código de 27 estabeleceu
como impedimento para o recebimento ou manutenção destas
crianças em casa o fato de qualquer pessoa da família ter
sido condenada pelos Artigos 285 a 293, 298, 300 a 302 do Código
Penal, por ser perigosa ou anti-higiênica, se o número de
habitantes fosse excessivo, e se, por negligência, ignorância,
embriaguez, imoralidade ou maus costumes, fosse incapaz de se encarregar
da criança.
O Artigo 48 estabeleceu que passados
trinta dias após a notificação do recolhimento da
criança, sem que o pai, a mãe ou tutores se manifestassem,
qualquer pessoa idônea poderia requerer diante do juiz os direitos
de pátrio poder sobre a criança.
No caso de crianças que
tivessem sido encaminhadas à famílias substitutas, foi concedida
a possibilidade da legitimação adotiva por cônjuges
casados ha mais de cinco anos, por casais que não pudessem ter filhos
ou por viúvos e viuvas, ocasião em que a criança passaria
a ter todos os direitos de filho legítimo e passaria então
a reger-se a sua tutela pelo Código Civil e não mais pelo
Código de Menores, isto é, a inclusão em uma família
legalmente constituída e julgada moralmente capaz tinha o poder
de fazer cessar sobre ela a jurisdição do juiz.
O Código Penal, que data
de 1940 e também está ainda em vigor, estabeleceu penas de
detenção de seis meses a três anos ao genitor que abandonasse
crianças, aumentou-a para pena de reclusão de um a cinco
anos, se do abandono resultassem lesões corporais de natureza grave,
e se o abandono causasse a morte da criança, a pena era de quatro
a doze anos, agravada se o abandono ocorresse em lugar ermo onde não
fosse possível o socorro à criança.
A situação acima
retratada caracterizou o que convencionou-se chamar “Doutrina do Direito
do Menor”, ao mesmo tempo uma derivação do Direito de Família
e uma nova especialização dentro das ciências jurídicas,
que até 1990 chamou-se Direito do Menor e tanto constituiu-se em
cadeiras específicas nos cursos de direito como orientou a organização
da magistratura brasileira, com a criação do Juízo
Privativo de Menores (Lei n° 2.059/25), do Conselho de Assistência
e Proteção do Menor (Decreto 3.228/25), do Serviço
Social de Menores (1938) do Serviço de Colocação Familiar
(Lei n° 560/49), da figura do Juiz de Menores, do Comissariado de Menores,
do Serviço de Assistência ao Menor, sendo que os procedimentos
de internação foram disciplinados por provimentos dos Conselhos
Superiores da Magistratura em cada Estado brasileiro
A Doutrina da Situação
Irregular
A Doutrina da Situação
Irregular, que substituiu a Doutrina do Direito do Menor, ao ser aprovado
o Código de Menores de 1979, é uma construção
doutrinária oriunda do Instituto Interamericano del Niño,
órgão da OEA, do qual o Brasil participa, juntamente com
os Estados Unidos, Canadá e os demais países das Américas.
Sua formulação teórica é atribuída ao
jurista argentino Ubaldino Calvento e teve como maior propagador no Brasil
o Juiz de Menores do Rio de Janeiro, Alyrio Cavallieri.
A Associação Brasileira
de Juizes de Menores incorporou tal conceito a partir do seu XIV Congresso,
realizado no Chile em 1973, sob a justificativa de que adequava-se à
tradição legislativa brasileira, de só tomar conhecimento
da problemática da criança a partir do momento em que se
configurasse estar ela em “situação irregular” junto à
família. De fato, as alterações promovidas no Código
de 27 ao longo dos anos, particularmente pelas leis n° 4.655/65, 5.258/67
e 4.439/68, foram todas no sentido de especificar a natureza do tratamento
necessário ao “menor infrator”, distinguindo-o do órfão
e do abandonado, ainda que todos fossem caracterizados como em “situação
irregular”.
Alyrio Cavallieri foi quem propôs
e fez aprovar no Código de Menores de 79 a substituição
das diferentes terminologias pelas quais se designava a criança,
exposto, abandonado, delinqüente, transviado, infrator, vadio, libertino,
etc., reunindo-os todos sob a mesma condição de “situação
irregular”.
Sob esta categoria o Código
de Menores de 1979 passou a designar as crianças privadas das condições
essenciais de sobrevivência, mesmo que eventuais, as vítimas
de maus tratos e castigos imoderados, as que se encontrassem em perigo
moral, entendidas como as que viviam em ambientes contrários aos
bons costumes e as vítimas de exploração por parte
de terceiros, as privadas de representação legal pela ausência
dos pais, mesmo que eventual, as que apresentassem desvios de conduta e
as autoras de atos infracionais.
A transição entre
os Códigos de 27 e de 79 ocorreu efetivamente com a criação
da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, em dezembro de
1964, que modelou a criação das Fundações Estaduais
do Bem-Estar do Menor, ainda hoje existente em alguns estados brasileiros.
A criação da Funabem
implicou na formulação de uma Política Nacional do
Bem-Estar do Menor, a que teve que subordinar-se todas as entidades públicas
e particulares que prestavam atendimento à criança e ao adolescente.
Concebida para ter autonomia financeira
e administrativa, a Funabem incorporou toda a estrutura do Serviço
de Assistência ao Menor existente nos estados, incluindo o atendimento
tanto aos carentes e abandonados quanto aos infratores.
É preciso entender que a
Funabem e as Febens estaduais foram concebidas no bojo de uma ampla reforma,
entendida como conquista da Revolução de 64, que incluiu
a outorga de uma nova Constituição em setembro do mesmo ano,
a decretação de vários atos institucionais, como o
AI-5, e por orientação do governo e das agências americanas,
a reforma do sistema educacional brasileiro a partir dos acordos MEC/USAID,
e posteriormente, a reforma do ensino universitário em 1968, com
o objetivo deliberado de constituir barreiras ideológicas, culturais
e institucionais à expansão da ideologia marxista, que então
estava em voga em todo o continente sul-americano.
A questão do menor passou
a ser tratada no âmbito da doutrina de Segurança Nacional,
cuja matriz brasileira foi a Escola Superior de Guerra e teve como matriz
americana o National College War e a sua National Security Act, de 1947.
A criação de uma
fundação nacional foi um projeto cultivado desde a realização
da 1a Semana de Estudos dos Problemas de Menores, que se sucederam depois
pelos anos de 49, 50, 51, 52, 53, 56, 57, 59, 70, 71 e 73 sob o patrocínio
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o que ocorreu
também no Rio de Janeiro a partir de 1955.
Submetida à Câmara
dos Deputados em 1961, a proposta foi rejeitada. Em 1964, um filho do então
Ministro da Justiça Milton Campos, foi barbaramente assassinado
por adolescentes moradores nos morros do Rio de Janeiro e o próprio
Ministro, juntamente com outros juristas do Rio de Janeiro, convenceram
o presidente General Humberto Castelo Branco a criar, por decreto, a almejada
fundação nacional.
Esboçada dentro do espírito
da Doutrina da Segurança Nacional, a formulação teórica
da Escola Superior de Guerra, que constituiu-se no norteador das ações
dos governos militares, a Funabem propunha-se a resolver um problema nacional,
pois nas palavras de seu primeiro presidente, o médico Mário
Altefender, “cada vez mais se acentuava a necessidade da elaboração
de uma nova política, cuja execução fosse entregue
a um órgão federal, fazendo desaparecer a idéia de
que cada um pode resolver seus problemas locais, estanques, quase pessoais,
sem pensar na Nação, como que ignorando a existência
de 22 Estados e territórios e que tudo se chama Brasil” (In: Anais
da X Semana de Estudos do Problema do Menor, São Paulo, 1971:476.
A tônica do seu discurso
insistia em que “o problema do menor, diretamente ligado ao problema da
família, tendo como agravantes fatores que todos nós conhecemos
[...] como a explosão demográfica, o problema da saúde,
a deficiente alimentação, a migração, o subemprego,
a falta de religião, o desrespeito à autoridade, a ignorância
da pátria, o problema do menor não pode ser solucionado com
a idéia ingênua de construir abrigos. Infelizmente ainda se
percebe no Brasil a influência dessa detestável política.
Questões como mendicância, abandono de menores, delinqüência,
ainda são tomados como existentes porque os Juizes de Menores e
a polícia são ineficientes”(idem).
Com esta percepção
quanto à problemática, o menor passou a figurar em lugar
de destaque na Doutrina da Segurança Nacional, passando a ser efetivamente
tratado como um problema de ordem estratégica, saindo da esfera
de competência do Poder Judiciário e passando diretamente
à esfera de competência do Poder Executivo.
A concepção arquitetônica
e pedagógica das unidades da Funabem e das Febens inspirou-se, como
parecia óbvio naquele momento, no modelo americano desenvolvido,
dentre outros, por Donald W. Winnicott, para atendimento de crianças
evacuadas ou tornadas órfãs em virtude da Segunda Guerra
Mundial.
Segundo este psiquiatra e psicanalista
americano “essas crianças [nossos menores] em tempos de paz, podem
ser classificadas em duas amplas categorias: crianças cujos lares
não existem ou cujos pais não conseguem estabelecer uma base
para o desenvolvimento delas, e crianças que têm um lar mas,
nele, um pai ou uma mãe mentalmente doente. Crianças como
essas apresentam-se em nossas clínicas em tempos de paz, e verificamos
que necessitam justamente do que precisavam as crianças que, durante
a guerra, eram difíceis de alojar. Seu ambiente familiar as frustrara.
Digamos que o que essas crianças precisam é de estabilidade
ambiental, cuidados individuais e continuidade desses cuidados. Estamos
pressupondo um padrão comum de cuidados físicos”
Orientado por esse pensamento,
instituiu-se o sistema de internação de carentes e abandonados
até os 18 anos e no tratamento dos infratores substituiu-se a “política
dos portões abertos” pela “política dos muros retentores”,
sob a justificativa, apresentada pelo Grupo de Trabalho do Tribunal de
Justiça de são Paulo, que propôs a criação
das unidades de infratores, de que era necessário tranqüilidade
para o trabalho dos técnicos e dos especialistas das várias
modalidades profissionais. Para possibilitar isso, o mesmo GT recomendou
que para essas unidades fossem contratados inspetores de alunos, monitores
ou atendentes jovens e vigorosos (com um mínimo de escolaridade),
a presença de guarda permanente (reedição do sistema
penitenciário), correlacionamento policial perfeito (o mesmo tratamento
para menores e adultos), que houvesse compreensão política
(para justificar a necessidade de isolamento das instituições
totais) e, sobretudo, confiança social (para que não houvesse
ingerência no que acontecia dentro dos muros das instituições).
Ao mesmo tempo que o sistema
educacional brasileiro foi afetado pela Doutrina da Segurança Nacional,
com a introdução de elementos curriculares que reforçassem
os sentimentos de patriotismo e de nacionalismo, a educação
das crianças e adolescentes sob a tutela da Funabem/Febem
passou a ser feita segundo os preceitos do militarismo, com ênfase
na segurança, na disciplina e na obediência.
É importante ressaltar que
os princípios da Declaração de Genebra sobre os Direitos
da Criança, de 1924, não teve nenhuma repercussão
na redação final do Código de Menores de 1927. Da
mesma forma os legisladores brasileiros não foram sensíveis
aos princípios já consagrados na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, na Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948 e no Pacto de San José
da Costa Rica, de 1969, que obrigou os países signatários
a adotarem em seu direito interno os princípios da Convenção,
figurando ali a proteção à família e os direitos
da criança, assim como a Declaração sobre os Direitos
da Criança, adotada pela ONU em 20 de novembro de 1959, o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais acima citados, ambos
de 1966, não tiveram nenhuma influência significativa na redação
final do Código de Menores de 1979, ainda que o Brasil fosse sensível
à agenda de discussões da Organização dos Estados
Americanos, como ficou patente na adoção da doutrina da Proteção
Integral.
É que entre as décadas
de 20 e 70 formava-se no Brasil, sobretudo dentro do Poder Judiciário,
uma “escola menorista”, que dialogava com os países sul-americanos
e mostrava-se sensível apenas às discussões travadas
no âmbito da Organização dos Estados Americanos.
O Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos, não obstante ter sido aprovado pela ONU
em 16 de dezembro de 1966, só foi ratificado pelo Brasil em 24 de
janeiro de 1992, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente,
já aprovado, passou a incorporar as regras previstas nos artigos
2°, 14, 17, 23 e 24 do Pacto, que condenavam o tratamento diferenciado
para crianças em razão da forma como fora concebida, de sua
origem social ou de sua condição econômica, preceitos
estes presentes no sistema dual enunciado pela subordinação
de crianças ora ao Código Civil ora ao Código de Menores,
segundo a sua composição familiar e origem social.
As mesmas objeções
existiam em relação ao artigo 10° do Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, também
só ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992.
A Convenção sobre
os Direitos da Criança, aprovada em 20 de novembro de 1989 e ratificada
pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, portando depois da aprovação
do ECA, é o mais completo tratado internacional sobre os direitos
da criança, colocando-a, ao longo de seus 54 artigos, em posição
de absoluta prioridade na formulação de políticas
sociais e na destinação de recursos públicos.
A DOUTRINA DA PROTEÇÃO
INTEGRAL
A Doutrina da Proteção
Integral do Menor foi enunciada inicialmente na Declaração
dos Direitos da Criança, em 1959, mas o 8° Congresso da Associação
Internacional de Juizes de Menores, (Genebra, 1959) posicionou-se no sentido
de que não era função do Poder Judiciário assegurar
à criança direitos tão amplos como o direito ao nome,
à nacionalidade, à saúde, à educação,
ao lazer e ao tratamento médico dos deficientes.
A posição majoritária,
defendida por Alyrio Cavallieri, e que redundou na adoção
da Doutrina da Situação Irregular, era no sentido de a Justiça
de Menores limitar-se à aplicação do Direito do Menor,
relegando os Direitos da Criança para a competência do Poder
Executivo.
Nas décadas de 60 e 70 Juizados
de Menores como o de São Paulo atuaram hegemonicamente na área
da criança, legislando, normatizando e criando as estruturas de
atendimento. No Rio de Janeiro o Juizado não assumia as funções
executivas e em todos os estados brasileiros havia esta indefinição
quanto ao que era da competência do Direito da Criança e do
Direito do Menor, misturando-se nos juizados as funções executivas
e judiciárias.
A criação da Funabem
e das Febens estaduais deslindou apenas uma das questões: o Juizado
de Menores passou a ocupar-se exclusivamente do Direito do Menor, com ênfase
nos infratores, e as fundações assumiram os encargos de formulação
e execução das políticas de atendimento. Antes desta
definição a política de atendimento ao menor era,
de acordo com o Estado, centralizada ora na Secretaria da Justiça,
na Secretaria da Segurança Pública ou na Secretaria da Promoção
Social, até que, no início da década de 80, com a
grande vitória eleitoral do PMDB, fomentou-se a criação
de uma Secretaria do Menor ou algo equivalente nos Estados.
Continuava indefinida ainda as
competências quanto aos Direitos da Criança e aos Direitos
do Menor, sem o quê não seria possível a adoção
da Doutrina da Proteção Integral.
Foi a conjuntura interna do país
na segunda metade da década de 80, mais do que todas as Declarações
e Convenções internacionais, que sinalizaram com as condições
propícias à adoção da Doutrina da Proteção
Integral.
O grande movimento pela democratização
do país colocou na ordem do dia a pauta dos direitos humanos, que
basicamente significava um veemente repúdio a tudo o que advinha
do Regime Militar.
O reordenamento jurídico
do país deu-se pelo Movimento Nacional Constituinte e pela promulgação
de uma Constituição Federal em 1988. A marca do reordenamento
jurídico foi a “remoção do entulho autoritário”
e a preocupação que norteou os constituintes e as pressões
dos movimentos populares e da sociedade organizada foi no sentido de assegurar
a inclusão, aprovação e manutenção de
diversos dispositivos que colocassem o cidadão à salvo das
arbitrariedades do Estado e dos Governos.
O Artigo 226 incorporou todos os
preceitos das Cartas Internacionais de 45, 48, 51, 59, 66, 68, 69 e 79,
no que se refere à proteção à mulher e à
família, mas foi no Artigo 227, ao exigir uma lei específica
que o regulamentasse, que possibilitou, através do Estatuto da Criança
e do Adolescente, finalmente aprovado em 13 de julho de 1990, que o constituinte
incorporou como obrigação da família, da sociedade
e do Estado, assegurar, com absoluta prioridade, os direitos da criança
e do adolescente.
Criança, até 12 anos,
e adolescente, até 18, são então definidos como “pessoas
em fase de desenvolvimento”, eliminou-se a rotulação de “menor”,
“infrator”, “carente”, “abandonado”, etc., classificando-os todos como
crianças e adolescentes em situação de risco.
A legislação específica
(o ECA), depois normatizou a atuação do Poder Judiciário
na defesa deste direitos, atribuiu ao Ministério Público
e aos Conselhos Tutelares a promoção e a fiscalização
dos mesmos direitos e aos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais a
atribuição de formularem as políticas nacional, estaduais
e municipais para a criança e o adolescente.
Mesmo no ECA, a Justiça
da Infância e da Juventude e o juiz continuaram com a possibilidade
de intervenção junto à família e à criança
nos casos típicos de Direito Processual Civil e Direito Processual
Penal, como a guarda, tutela, adoção, investigação
de paternidade e maus-tratos.
O juiz passou a ser obrigatoriamente
assessorado por uma equipe interprofissional, que no Código de 79
ficava ao seu arbítrio consultar ou não. A equipe técnica
(normalmente composta por um psicólogo e um assistente social, no
mínimo), tem o mesmo status científico, pois tanto o juiz
quanto o psicólogo e o assistente social são bacharéis,
mas o ECA ainda fez uma concessão ao Poder Judiciário, atribuindo
maior autoridade ao juiz, quando eu entendo que ali está configurado
um conselho de sentença que impediria definitivamente que as decisões
relativas à criança fossem tomadas por uma única pessoa.
Farei a seguir uma breve exposição
do estágio atual da implantação do ECA, dos Conselhos
Tutelares e Municipais no Brasil, situando as suas conquistas e dificuldades.
É preciso entender que o
ECA, como a constituição e os demais dispositivos de garantia
das liberdades individuais dela derivados possui um certo ranço
revanchista em relação à cultura autoritária
que o Brasil viveu sob o regime militar.
O ECA inaugurou uma nova ordem
jurídica e institucional para o trato das questões da criança
e do adolescente, estabelecendo limites à ação do
Estado, do Juiz, da Polícia, das Empresas, dos adultos e mesmo dos
pais, mas não foi capaz ainda de alterar significativamente a realidade
da criança e do adolescente. A mudança de nomenclatura, substituindo
os rótulos pejorativos de “menor”, “infrator”, “abandonado” e etc.,
estabeleceu a cultura do “politicamente correto”, mas quem estava nas ruas
ou nas instituições antes do ECA, hoje, se adulto, está
no Sistema Penitenciário ou continua sendo portador das marcas e
dos estigmas incorporados durante a infância.
Parcela significativa da sociedade
brasileira cultiva o sentimento de que o ECA, ao estabelecer limites ao
exercício da autoridade familiar, jurídica, institucional
e policial sobre a criança e o adolescente, reforçou
o também a impunidade aos delitos cometidos por eles.
Neste sentido, as distorções
mais visíveis na interpretação e aplicação
do ECA é o uso que adultos, quadrilhas criminosas e o tráfico
organizado passaram a fazer da criança e do adolescente, iniciando-os
precocemente nas lides delinqüenciais. Crianças e adolescentes
são recrutados por adultos e por quadrilhas para fazerem os seus
trabalhos sujos, tipo ser o portador da droga e das armas ou exercer a
vigilância armada nos locais de tráfico. O resultado desta
distorção foi o recrudescimento do extermínio de crianças
e de adolescentes por parte da polícia e dos grupos de justiceiros,
geralmente composto por policiais pagos por comerciantes das periferias
das grandes cidades e os clamores da sociedade no sentido de redução
da maioridade penal para os 16 anos.
O Código Civil Brasileiro
define a maioridade civil aos 18 anos e a maioridade jurídica aos
21. A maioridade eleitoral é estabelecida, opcionalmente, aos 16
anos, a maioridade trabalhista aos 14 anos e o Código Penal Brasileiro
estipula a maioridade penal também aos 18 anos. À crianças
menores de 12 anos autoras de ato infracional, de qualquer tipo, o ECA
manda o Conselho Tutelar aplicar medidas de proteção e medidas
sócio-educativas e aos maiores de 14 até 18 anos, o juiz
pode aplicar medidas de internação pelo período máximo
de três anos, liberdade assistida e semi-liberdade. Os mesmos crimes,
se praticados por adolescentes ou por adultos, podem receber penas de 3
ou 30 anos, e é neste sentido que dá-se a distorção
quanto à utilização de adolescentes por parte de adultos,
de quadrilhas e de gangs.
Este é, em síntese,
o quadro atual do pensamento jurídico-assintencial brasileiro no
que se refere à criança e ao adolescente órfãos,
abandonados ou que cometem atos infracionais.
* - Roberto da Silva, FEUSP/BRASIL
Rua da Reitoria 295, Bloco
E Apt° 107 Cidade Universitária – São Paulo
Cep 05508-900 E-mail – kalil@usp.br
Doutorando em Educação
pela Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo
Membro da Subcomissão de
Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Comissão
de Direitos Humanos da OAB-SP
Autor do livro “Os filhos do Governo:
a formação da identidade criminosa em crianças órfãs
e abandonadas, São Paulo, Àtica, 1997
Referência Bibliográfica
CAVALIERI, Alyrio. Direito do Menor,
Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1978.
GEVERNO DO ESTADO DE SÃO
PAULO. Direitos da Criança e do Adolescente, são Paulo IMESP,
1994.
MARTINS, Roberto R. Segurança
Nacional, São Paulo, Brasiliense, 1986.
OLIVEIRA, Juarez. Constituição
da República Federativa do Brasil, São Paulo, Saraiva, 1988.
PROCURADORIA GERAL DO ESTADO. Instrumentos
Internacionais de Proteção dos direitos Humanos, São
Paulo, PGE, 1996.
SENADO FEDERAL. Código de
Menores, 2ª ed., Brasília, Senado, 1984.
SILVA, Roberto da. Os Filhos do
Governo: a formação da identidade criminosa em crianças
órfãs e abandonadas, São Paulo, Àtica, 1997.
TEIXEIRA, Antonio L. Meireles.
Código Civil, 3ª ed., São Paulo, Rideel, 1995.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO
DE SÃO PAULO, Anais da X Semana de Estudos sobre Problemas de Menores,
São Paulo, TJ, 1971.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO
DE SÃO PAULO, Anais da XI Semana de Estudos sobre Problemas de Menores,
São Paulo, TJ, 1972.
WINNICOTT, Donald W. Privação
e Delinqüência, São Paulo, Martins Fontes, 1987.
|