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MÃE GENTIL

João Batista Costa Saraiva *



 
 
"...não vês ali, sentadas nessa casa, essas

crianças que parecem emergir dum sonho?

Os mesmos que lhes deviam amor lhes

deram morte..."

(Ésquilo. Orestíada. 498 a.C.) 

          Moacir Scliar em um artigo seu relata uma história contada por Simone de Beauvoir onde uma mulher, maltrada pelo marido, arranjara um amante, a cuja casa ia uma vez por semana. Para visitar o amante tinha de atravessar um rio e podia fazê-lo de duas maneiras: por barca ou por uma ponte. Ocorre que nas vizinhanças havia um conhecido assassino, motivo pelo qual a mulher a evitava. Um dia, demorou-se mais que de costume, e quando chegou ao rio, o barqueiro não quis levá-la, dizendo que seu expediente tinha terminado. A mulher pediu ao amante que a acompanhasse até a ponte, mas este recusou, alegando cansaço. A mulher resolveu arriscar, e o assassino a matou.

        Simone então pergunta: quem é o culpado? O barqueiro burocrata? O amante negligente? Ou a própria mulher, por adúltera? E comenta:

        - Em geral, as pessoas culpam um destes três, mas ninguém se lembra do assassino. É como se fosse normal para um assassino assassinar.

        Retoma com força a idéia de redução da idade de responsabilidade penal para fazer imputável os jovens a partir dos 16 anos (há quem defenda menos).

        Esta tese, em princípio, convenço-me, se faz inconstitucional, pois o direito insculpido no art. 228, da CF (que fixa em 18 anos a idade de responsabilidade penal) se constitui em cláusula pétrea, pois é inegável seu conteúdo de "direito e garantia individual", referido no art. 60, IV da CF como insusceptível de emenda. Demais a pretensão de redução viola o disposto no art. 41 da Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança, onde está implícito que os signatários não tornarão mais gravosa a lei interna de seus países. O texto da Convenção se faz Lei interna de caráter constitucional à luz do parágrafo segundo do art. 5º da CF.

        Mas a questão de fundo não é esta. Tangenciando a sempre lembrada tese do discernimento - absolutamente descabida, pois é notório que se trata de decisão de política criminal a fixação etária - tal procedimento vem na contramão da história, vide a recente reforma do Código Penal Espanhol que, desde o tempo da ditadura franquista fixava a responsabilidade penal em 16 anos e que agora foi elevada para 18 anos.

        A questão da responsabilização do adolescente infrator e a eventual sensação da impunidade que é passada para a opinião pública decorre não do texto legal nem da necessidade de sua alteração - mesmo se admitindo não ser o Estatuto da Criança e do Adolescente uma obra pronta e acabada. A questão toda se funda na incompetência do Estado na execução das medias sócio-educativas previstas na Lei, a inexistência ou insuficiência de programas de execução de medidas em meio aberto e a carência do sistema de internamento (privação de liberdade), denunciado diariamente pela imprensa, com raras e honrosas exceções.

        Como no caso do homicídio da mulher adúltera narrado por Simone se fica discutindo o crescimento da violência juvenil - esquecendo que tem como causas o desemprego, a miséria, a deseducação e a desagregação familiar - , se fica afirmando a necessidade de redução da responsabilidade penal - esquecendo que o sistema penal brasileiro é caótico, pretendendo lançar jovens de 16 anos no convívio de criminosos adultos - , e não se fala do verdadeiro vilão, qual seja, a ausência de comprometimento do Estado e da Sociedade com a efetivação das propostas trazidas pelo ECA.

        O modelo preconizado pelo ECA é totalmente eficaz e adequado, e estão aí as experiências onde houve uma efetiva aplicação a demonstrar o que afirmo, responsabilizando e recuperando jovens, devendo sim ser efetivado o que Marcel Hope vaticina: O Estatuto é a receita, que a nós cumpre aviar.

        Em resumo: falhas há e são graves, mas não são falhas de legislação. O erro que subsiste está na execução das medidas, na ausência (ou insuficiência) de investimentos nesta área e na necessidade de uma organização própria e especializada para o trato de jovens em confronto com a lei, cujos exigem tratamento diferenciado daquele dedicado a jovens e crianças em situação exclusiva de abandono ou portadores de necessidades especiais.

        Enquanto se despende energia vital discutindo redução da idade de responsabilidade criminal, permanecemos a ignorar a questão fundamental, qual seja, basta se dar meios de execução às medidas que o ECA propõe que se alcançará os resultados que toda a sociedade afirma desejar. O fato é que falamos muito em igualdade de direitos e de obrigações, mas no momento de cobrarmos, especialmente dos excluídos suas obrigações, que são iguais a que exigimos dos incluídos, nos esquecemos de que àqueles não se assegura os mesmos direitos do que a estes . Nossa "pátria mãe gentil" tem sido madrasta para a grande maioria de seus filhos: cobra de todos , mas oferece condições a poucos... acabará sendo destituída do pátrio poder por abandono.
 
 

* Juiz de Direito da Vara da Infância e Juventude

da cidade de Santo Angelo - RS

Retirado de: http://www.olhonofuturo.com.br/