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O Ministério Público e a Proteção aos Interesses Individuais, Coletivos e Difusos Relacionados à Infância e Juventude

                                                         Dr. Olympio de Sá Sotto Maior Neto
 
 
 

          Resumo:
          O autor analisa os fundamentos básicos da lei 8069/90, destacando sua importância na
          materialização dos direitos consagrados à criança e adolescente na Constituição Federal de
          1988. Neste contexto, são abordadas a nova política de atendimento, as medidas judiciais, as
          infrações administrativas, bem como as figuras típicas penais destinadas à satisfação do direito
          violado. Merece atenção especial o papel conferido ao Ministério Público na desfesa dos
          interesses e direitos pertinentes a infância e juventude.
 
 

   Como se sabe, para a formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente, que contou com significativa participação da
   sociedade civil organizada (principalmente das entidades de defesa dos direitos das crianças e adolescentes, tais como o
   Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, a Pastoral do Menor e o Fórum DCA, entre outras, levou-se em
   consideração dois aspectos fundamentais: a intenção de que o novo texto legal restasse adequado à nossa realidade social
   e a proposta de se trazer ao ordenamento jurídico brasileiro uma lei que, por ser justa, pudesse servir de instrumento para o
   resgate da cidadania de milhões de crianças e adolescentes brasileiros.

   A idéia foi de manter fidelidade à máxima no sentido de que a realidade social e a justiça devem estar presentes em todos
   os momentos da vida do Direito.

   Assim, no que tange ao primeiro ponto, não se olvidou o fato de que vivemos uma realidade social, cuja marca mais
   significativa é a contradição, delineada no contraste entre um pais extremamente rico e uma nação absolutamente pobre.

   Levou-se em conta a incongruência de estar o Brasil pretendendo ser a 7ª economia do mundo, enquanto o seu povo se
   encontra em 74º lugar a nível de qualidade de vida Considerou-se que somos o 5° maior produtor de alimentos do mundo,
   enquanto a maioria de nossa população é subnutrida, passa fome, morre de fome.

   A análise partiu então dessa realidade cujo signo é a contradição, que tem, sem dúvida, como motivo determinante o dado
   concreto de ser o Brasil o país com a mais alta taxa de concentração de riqueza do mundo, seguido pelo Nepal e Quênia.
   Isto significa que as riquezas produzidas por todos não são distribuídas entre todos, acabando nas mãos de pequenos
   grupos hegemônicos que se aproveitam da estrutura social injusta estabelecida no país.

   Se de um lado da moeda temos a concentração absurda de riquezas, o seu outro lado estará cunhado, inevitavelmente,
   com os traços da marginalidade, a imagem da grande maioria da população à margem dos benefícios produzidos pela
   sociedade.

    Nesse quadro real de marginalidade, padecem especialmente as crianças e adolescentes, vítimas frágeis e vulneradas pela
    omissão do Estado e da própria sociedade.

   As estatísticas oficiais indicam hoje a existência de quase 40 milhões de crianças e adolescentes carentes, em situação
   de risco pessoal ou social. Possuímos índice de mortalidade infantil a transformar nosso país em holocausto permanente:
   são 500 mil crianças que morrem por ano em razão de, principalmente, desnutrição aguda e doenças facilmente evitáveis.
   Só para comparação, trata-se de duas vezes os efeitos mortais das bombas de Hiroshima; nove vezes o número de
   americanos que morreram na guerra do Vietnã. São essas crianças, em regra quase absoluta, filhas da classe
   trabalhadora, atingida pelo desemprego, pelo subemprego e pelo salário mínimo aviltado, que corresponde hoje a 18% do
   seu valor real quando instituído em 1940 (e anote-se, ainda, que mais da metade da população brasileira integra famílias
   cuja renda per capita é inferior a meio salário mínimo).

   E exatamente para essa realidade social - e para dar contornos de factibilidade às promessas contidas no texto
   constitucional pátrio (v. art. 227) - que se pretendeu elaborar um diploma legal capaz de tratar com justiça a infância e
   juventude brasileiras.

   E o Estatuto da Criança e do Adolescente se fez, então, objetivando essencialmente assegurar na área específica a
   materialização das políticas sociais públicas (as chamadas políticas sociais básicas, as politicas sociais assistenciais em
   caráter supletivo e programas de proteção especial), de molde a se poder superar a situação de marginalidade
   experimentada pela maioria de nossos infantes e jovens.

   Daí o equívoco quando se critica o Estatuto da Criança e do Adolescente sob o argumento de que se trata de diploma legal
   próprio para países desenvolvidos, do primeiro mundo. Ora, em tais países, o Estado cumpre com o seu dever institucional e
   indelegável de atuar concretamente no campo da promoção social e, por isso mesmo, exsurgiria como absolutamente
   desnecessário o comando legal no sentido de indicar, por exemplo, o direito à educação, à saúde, etc A necessidade de
   uma lei garantista de direitos se dá, assim, em países como o nosso, caracterizados pela omissão do Estado na linha de
   estabelecer o bem-estar geral, donde decorre o subdesenvolvimento e o carimbo de terceiro mundo.

   O legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente levou a cabo então a proposta de dar um tratamento diferenciado à
   nossa infância e juventude. Para tanto e desde logo, fez por romper com o mito de que a igualdade resta assegurada ao
   tempo em que todos recebem idêntico tratamento perante a lei. Concluiu-se, com indisputável acerto, que - quando a
   realidade social está a indicar desigualdades - o tratar todos de forma igual, antes de garantia da isonomia, comparece
   como proposta de cristalização das desigualdade.

   Então, como fórmula para estabelecer a isonomia material, indispensável que os perseguidos, os vitimizados, os
   marginalizados na realidade social venham a receber, pela lei, um tratamento desigual, privilegiado.

   Sob esse enfoque é que vamos encontrar como suporte teórico do Estatuto da Criança e do Adolescente a doutrina da
   proteção integral, cuja tese fundamental assevera incumbir à lei assegurar às crianças e adolescentes a satisfação de suas
   necessidades básicas.

   Pela nova lei, as crianças e adolescentes não podem mais ser tratados como meros objetos de intervenção do Estado,
   devendo-se agora reconhecê-los como sujeitos dos direitos elementares à pessoa humana, de maneira a propiciar o
   surgimento de uma ponte de ouro entre a marginalidade e a cidadania plena.

   Essa nova postura implica em afastar a falsa e perversa idéia, absorvida e fomentada pelo revogado Código de Menores, de
   que os carimbados pelo rótulo da situação irregular vivem na marginalidade social porque foram ou são incapazes de uma
   plena integração, vale dizer, eles próprios são responsáveis pela condição marginal em que se encontram. Portanto, através
   de tal manipulação ideológica, alcançar-se o resultado de excluir a estrutura social do âmbito da questão (imunizando-a,
   assim, de críticas), bem como de legitimar retoricamente as medidas judiciais impostas (mesmo que elas signifiquem em
   determinadas situações apenas um objetivo de segurança aos grupos marginalizadores). A alavanca mitológica
   impulsionava medidas judiciais que se perfaziam mediante meros processos lógico-dedutivos de subsunção do fato à
   norma, decidindo-se por destituições do pátrio poder ou por internações em unidades ditas de "reeducação" sem
   indagações de outra ordem que não as técnico-jurídicas, já que se cria (ou fingia-se crer) no fato de ter havido opção
   voluntária pela vida marginal ou delinqüencial, pois o pressuposto era de que a todos os indivíduos são dadas iguais
   oportunidades de progresso social.

   Alertado pela realidade social e alentado pelo propósito de justiça, o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente
   estabeleceu um conjunto de normas tendentes a colocar a infância e juventude a salvo de toda forma de negligência,
   discriminação, violência, crueldade, exploração e opressão.

    O Estatuto da Criança e do Adolescente se encontra edificado sobre duas pilastras básicas.

   Uma delas (e exatamente a que não carece ser contemplada com maiores considerações no âmbito deste trabalho) diz
   respeito à indicação de uma nova política de atendimento à infância e juventude, sendo que os seus componentes mais
   significativos têm sede na descentralização, municipalização e participação obrigatória da sociedade civil. Pretende-se,
   nesta nova linha, que o município seja o espaço adequado para a reflexão acerca dos problemas existentes e também o
   equacionador dos mesmos, apresentando os programas e ações a serem efetivados para superar as dificuldades (e
   contando para isso com o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, cuja incumbência maior é a de formular a
   política municipal de atendimento à infância e juventude, bem como de gerenciar os recursos públicos destinados à
   assistência social voltada à criança e adolescente já na consecução das metas estabelecidas). Além de possuir caráter
   deliberativo, os prefalados Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente devem contemplar a participação popular
   paritária por meio de organizações representativas (v. art. 88, inc. II), que se traduz em verdadeira fórmula para o exercício
   direto do poder pelo povo, acolhendo-se a proposta de democracia participativa acenada pelo parágrafo único, do artigo 1°, da Constituição Federal.

   O Conselho Tutelar, enquanto órgão permanente e autônomo, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos
   direitos da criança e do adolescente (e por isso mesmo fiscalizador de todo o sistema de atendimento), também é fruto
   deste anseio de trazer a sociedade civil para a co-gestão da matéria relacionada à infância e juventude, máxime diante do
   fato de que os conselheiros serão pessoas da comunidade e escolhidos pela comunidade para o exercício de mencionada
   e relevante função.

   A outra pilastra básica do Estatuto da Criança e do Adolescente consiste no desiderato de garantir à infância e juventude
   todos os direitos prometidos na Constituição Federal, impedindo transformem-se eles em letras mortas.

   Para evitar o que infelizmente ocorre com outras normas constitucionais de amplo alcance social (como a que trata de um
   salário mínimo capaz de satisfazer as necessidades básicas do trabalhador e de sua família, ou a que prevê a participação
   dos trabalhadores nos lucros das empresas), torna-se imperioso travar luta com o escopo de não permitir que os direitos
   mencionados na Carta Magna acabem postergados ou transmudados em meras declarações retóricas. De nada adianta a
   fixação de direitos fundamentais para a infância e juventude se a omissão generalizada possibilitar sejam eles tratados
   como singelas exortações morais, com o valor e peso de avisos, lições ou conselhos e, por isso mesmo, relegados ao
   abandono.

    Como responder a esse intuito de ver efetivados os direitos da população infanto-juvenil foi o trabalho melhor realizado pelo legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente.

   Num primeiro passo, formulou-se título específico acerca dos direitos fundamentais, objetivando pormenorizar, detalhar o
   que se encontrava genericamente indicado no texto constitucional.

   Assim, cada capítulo destinou suas normas para o fim de explicitar a maneira pela qual restariam materializados os direitos
   à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à educação, à cultura, ao
   esporte, ao lazer, à profissionalização e à proteção no trabalho.

   Daí, por exemplo, restou expresso que ter direito à educação, enquanto proposta de desenvolvimento pessoal, preparo para
   o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, implica na igualdade de condições para o acesso e permanência na
   escola; na garantia de acesso ao ensino fundamental público e gratuito; no atendimento educacional especializado às
   crianças e adolescentes portadores de deficiência; no atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos
   de idade; na oferta de ensino regular noturno adequado às condições do adolescente trabalhador; na existência de
   programas suplementares de material didático-escolar, assistência à saúde, transporte e alimentação para atender às
   crianças e adolescentes carentes; etc.

   Em outro vértice da mesma figura, o legislador fez também por instituir capítulo próprio para tratar da proteção judicial dos
   interesses individuais, coletivos e difusos relacionados à infância e juventude. A idéia central é de que as regras enunciadas
   no Estatuto da Criança e do Adolescente se constituem em comandos obrigatórios à família, à sociedade e ao Estado,
   aguardando-se, especialmente por parte dos poderes públicos, o cumprimento das normas estabelecidas. Todavia, e
   exemplificando, se o administrador, espontaneamente, não tornar efetivo o que lhe foi determinado pela lei, exsurge
   disponível ao interessado um conjunto de medidas judiciais especificamente destinadas à satisfação, via prestação da tutela
   jurisdicional, do direito violado.

   Dentre as medidas judiciais elencadas vale anotar, pela importância, a ação civil pública (destinada à proteção dos
   interesses individuais, coletivos e difusos próprios da infância e da adolescência) e que corresponde a extensão para a área
   das previsões contidas na Lei n° 7.347/85. Também é digna de nota a ação mandamental contra atos ilegais ou abusivos de
   autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público, que lesem direito líquido e
   certo previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Não é de se afastar entretanto, a eventual importância de se propor
   mandado de injunção (quando a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direito constitucional pertinente
   à infância e juventude), das ações diretas de inconstitucionalidade ou das representações interventivas, quando
   fundamentadas na necessidade da salvaguarda de interesses de crianças e adolescentes.

   Ainda nesse caminho de buscar efetividade às sus normas, o Estatuto da Criança e do Adolescente cria uma série de
   infrações administrativas e figuras tipicas penais destinadas à punição de todos que apresentarem comportamento em
   confronto com aquele querido pela lei. A observação significativa se dá no sentido de que as malhas da sanção contemplam
   especialmente os governantes, as autoridades públicas, enfim, aqueles que sempre estiveram imunes à ação do direito
   repressivo (a regra, máxima do direito penal, é de que tanto no momento de criminalização primária quanto secundária os
   destinatários da repressão sejam integrantes das camadas sociais empobrecidas, enquanto que os colarinhos brancos -
   dos crimes econômicos, da corrupção, da violação ao meio ambiente, etc. - restam imunizados de perseguição pela justiça
   criminal). Dessa forma, uma vez estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que, por ter direito à liberdade,
   toda criança ou adolescente pode ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, só podendo ser aprendido
   em situação de flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (v. arts.
   16, inc. I, e 106), surgirá como conduta criminosa "privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua
   apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente" (cf.
   art. 230) ou "deixar a autoridade competente, sem justa causa, de ordenar a imediata liberação de criança ou adolescente,
   tão logo tenha conhecimento da ilegalidade da apreensão" (cf. art. 234) ou, ainda, "descumprir, injustificadamente, prazo
   fixado nesta lei em benefício de adolescente privado de liberdade" (cf. art. 235). Também, uma vez estabelecido pelo
   Estatuto da Criança e do Adolescente um conjunto de direitos assegurados à gestante, à parturiente e ao neonato (v. art.
   10), restará criminoso o comportamento que desatenda a tais comandos garantistas (v. arts. 228 e 229).

   Mas, além de explicitar os direitos genericamente prometidos pela Constituição Federal, de estabelecer um conjunto de
   medidas judiciais para a garantia de tais direitos e de ameaçar com a pena os que não cumprirem os seus imperativos
   proibitivos, o Estatuto da Criança e do Adolescente apresenta outro importante mecanismo destinado a fazer valer os
   ditames que assenta.

   Trata-se o de incumbir uma instituição, integrante da estrutura organizacional do Estado, da defesa dos interesses e
   direitos pertinentes à infância e juventude.

    Como se sabe, os Promotores e Procuradores de Justiça passaram a ter o dever funcional de atuar no sentido de garantir a
    efetivação das normas estabelecidas em favor das crianças e adolescentes.

   Num país onde a maioria da população não tem acesso à justiça (seja por falta de condições econômicas para pagar
   honorários advocatícios ou até mesmo custas processuais, seja pela inexistência da Defensoria Pública na grande maiorias
   das comarcas), andou bem o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente ao elevar em dignidade a atividade do
   Ministério Público, atribuindo-lhe tão magnânima missão.

   Aliás, é de se abrir parênteses para dizer que o Estatuto da Criança e do Adolescente alcançou compreender corretamente
   os novos contornos institucionais do Ministério Público, alinhavados especialmente pela Constituição Federal de 1988.

   Entendeu-se, acertadamente, que quando o legislador constitucional indicou ser o Ministério Público "instituição
   permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático
   e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" (cf. art. 127, caput), bem como ao arrolar como uma das suas funções
   institucionais a de "zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos
   assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia" (cf. art. 129, inc. II), podendo, para
   tanto, "promover o inquérito civil e ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de
   outros interesses difusos e coletivos" (cf. art. 129, inc. III), deu-lhe foro de instituição de primeira grandeza, convocando-o
   para efetiva defesa da sociedade.

   Se é vazia a discussão acerca de o Ministério Público ter ou não se transformado num 4° Poder, afastado de dúvida está
   que veio a alcançar, via do novo ordenamento constitucional, o poder inerente às instituições que são independentes e
   autônomas. A preocupação, agora, consiste em estabelecer a maneira pela qual restará atendida a regra, absoluta e
   inafastável, no sentido de que o poder, que emana do povo, a favor deste deve ser exercido.

Assim, fez-se por reconhecer no Estatuto da Criança e do Adolescente que o exercício democrático do poder exige do
   Ministério Publico um atuar permanente em proveito da maioria da população brasileira, que hoje se encontra à margem dos
   benefícios produzidos pela sociedade e afastada da possibilidade real de vida digna.

   Foi também absorvida a idéia de que o Ministério Público, rompendo com antiga postura de estrita burocracia legal (mero
   fiscalizador da correta aplicação das leis, inclusive daquelas injustas, destinadas à dominação, enquanto foram de dar
   legalidade a situações de exploração e opressão), deve agora atuar como verdadeiro agente político, interferindo
   positivamente na realidade social e, através exame do conteúdo ideológico das normas jurídicas, dar a prevalência para
   efetivação daquelas que signifiquem proposta de libertação do povo, internalizando no espaço oficial do judiciário as
   reivindicações sociais na forma de conflitos coletivos, politizados e valorados sob a ótica das classes populares.

   Por tudo isso - e porque se acredita no Ministério Público como verdadeiro defensor de um Estado genuinamente
   democrático - é que o legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente determinou-lhe o zelo pelos interesses
   individuais, coletivos e difusos ligados à proteção da infância e da juventude, que não raras vezes implicará em cobrar das
   autoridades públicas uma atuação mais eficiente no fornecimento às crianças e adolescentes de educação, saúde,
   profissionalização, lazer, etc., vez que sua tarefa obriga preferência ao interesse público primário (ou seja, o interesse do
   bem geral), em contraposição às vezes com o interesse público secundário (ou seja, o modo pelo qual os órgãos
   governamentais vêm o interesse público).

   Em outro aspecto, considerada a infeliz praxe forjada no sentido de que quando surgem leis a favor dos oprimidos ainda
   assim de nada servem, porquanto não são aplicadas, convém ressaltar que o Ministério Público - assumindo a
   responsabilidade de construtor de uma nova ordem social, progressivamente melhor e mais justa - poderá transformar a
   Justiça da Infância e da Juventude em significativo aspaço de luta.

   Não se tenha dúvida de que garantir educação, saúde, trabalho digno e outros direitos estabelecidos no Estatuto da Criança
   e do Adolescente (seja na via administrativa ou judicial) corresponderá à incrementação do processo de democratização da
   sociedade brasileira, canalizando-se as aspirações de emancipação dos segmentos populares e contribuindo assim para o
   superar a alienação política e econômica da classe trabalhadora.

   Nesse contexto é que se pretende ver reconhecido que a proteção aos interesses individuais, coletivos ou difusos
   relacionados à infância e juventude deve ser tratada com absoluta prioridade pelo Ministério Público, já que o comando da
   Constituição Federal nesse sentido ("É dever  do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o
   direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
   liberdade e à convivência familiar e comunitária ..." - v art. 227), bem como do Estatuto da Criança e do Adolescente (v. art.
   4°, par. único, letra c), tornam obrigatório o estabelecimento de uma politica institucional nessa área que contemple a
   preferência manifestada pelo ordenamento jurídico.

   Tanto assim é que, em reunião realizada em Basília no período de 19 a 21 de maio de 1992, membros do Ministério Público
   dos Estados e do Distrito Federal elaboraram documentos com o seguinte teor:

   "I - A Lei nº 8.069/90 é importante instrumento para garantia e promoção dos direitos das crianças e adolescentes,
   mostrando-se capaz de resgatar-lhes a cidadania e impulsionar a instalação de uma sociedade progressivamente melhor e
   mais justa.

   II - Do Estatuto da Criança e do Adolescente exsurge para o Ministério Público o poder-dever de agir, conferido que restou
   aos Promotores de Justiça desta área a possibilidade de intervir concreta e positivamente na realidade social, em busca de
   sua transformação.

   III - Vara que prefalada intervenção se opere com eficiência, impõe-se, além de vontade política, o alcance de estrutura
   física, material e de recursos humanos quantitativa e qualitativamente apta para a ação.

   IV - A falta de mencionada estrutura tem obrigado os Promotores de Justiça, neo raras vezes, a iniciativas e esforços
   individuais, comprometendo o rendimento desejado e, também, tornando mais lenta a implantação do Estatuto da Criança e
   do Adolescente.

   V - Neste contexto, entende-se indispensável o estabelecimento de postura institucional que materialize o comando de
   prioridade absoluta contido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, a partir de compromissos
   internos e ações concretas no sentido da estruturação dos setores pertinentes à área da infância e da juventude.

   VI - Assim, da mesma forma que apresentamos a todos os Governadores dos Estados, que estiveram reunidos em Basília
   no dia 20 de maio de 1992, documento referente ao Pacto pela Infância, deliberou-se encaminhar aos Procuradores Gerais
   de Justiça, porque consideradas como necessárias à correta atuação ministerial como intransigente defensor dos direitos
   individuais, coletivos e difusos relacionados à infância e juventude, sugestão consistente nas medidas práticas a seguir
   enunciadas.

   1. Criação e/ou implementação, em todos os Estados, de Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Infância e
   Juventude, objetivando adequada formulação da política institucional desta área, bem como o auxílio e orientação aos
   respectivos órgãos da execução.

    2. Instalação de Promotorias de Justiça, especializadas e exclusivas, junto às Varas da Infância e da Juventude.

   3. Estabelecimento de estrutura pertinente a recursos humanos e materiais, de molde a viabilizar as ações inerentes à
   Instituição.

   4. Desenvolvimento de programas de capacitação direcionados a todos os membros do Ministério Público, inclusive os
   atuantes em segunda instância".

   Mais que essa opção politico-institucional, pretende-se também alteração legislativa para fazer incluir na Constituição
   Federal - na seção própria do Ministério Público - norma que, expressamente, estabeleça a função institucional prioritária na
   defesa dos interesses da população infantojuvenil.

   O desejo é de que o Promotor de Justiça da Infância e Juventude dê especial contribuição à esperada conformação de um
   novo Ministério Público, que cada vez mais se distancie de suas raízes de patrocinador dos interesses dos reis e dos
   poderosos, e que se reconheça como o mais legitimo defensor dos interesses da sociedade, com a visão clara de que
   defender a sociedade implica em defender prioritariamente as suas camadas distantes da cidadania, em optar pela defesa
   dos oprimidos e dos explorados.

   Em assim sendo, interagindo articuladamente com os segmentos organizados da sociedade civil e cumprindo a tarefa de
   promoção dos direitos das crianças e adolescentes, o Ministério Público restará importante instrumento para que a nação
   brasileira venha a alcançar um dos seus objetivos fundamentais: o de instalar uma sociedade livre, justa e solidária.
 
 
 

Retirado de: http://www.abmp.org.br