O Ministério Público e a Proteção aos Interesses Individuais, Coletivos e Difusos Relacionados à Infância e Juventude
Dr. Olympio de Sá Sotto Maior Neto
Resumo:
O autor analisa os fundamentos básicos da lei 8069/90, destacando
sua importância na
materialização dos direitos consagrados à criança
e adolescente na Constituição Federal de
1988. Neste contexto, são abordadas a nova política de atendimento,
as medidas judiciais, as
infrações administrativas, bem como as figuras típicas
penais destinadas à satisfação do direito
violado. Merece atenção especial o papel conferido ao Ministério
Público na desfesa dos
interesses e direitos pertinentes a infância e juventude.
Como se sabe, para a formulação
do Estatuto da Criança e do Adolescente, que contou com significativa
participação da
sociedade civil organizada (principalmente
das entidades de defesa dos direitos das crianças e adolescentes,
tais como o
Movimento Nacional de Meninos e Meninas
de Rua, a Pastoral do Menor e o Fórum DCA, entre outras, levou-se
em
consideração dois aspectos
fundamentais: a intenção de que o novo texto legal restasse
adequado à nossa realidade social
e a proposta de se trazer ao ordenamento
jurídico brasileiro uma lei que, por ser justa, pudesse servir de
instrumento para o
resgate da cidadania de milhões de
crianças e adolescentes brasileiros.
A idéia foi de manter fidelidade à
máxima no sentido de que a realidade social e a justiça devem
estar presentes em todos
os momentos da vida do Direito.
Assim, no que tange ao primeiro ponto, não
se olvidou o fato de que vivemos uma realidade social, cuja marca mais
significativa é a contradição,
delineada no contraste entre um pais extremamente rico e uma nação
absolutamente pobre.
Levou-se em conta a incongruência de
estar o Brasil pretendendo ser a 7ª economia do mundo, enquanto o
seu povo se
encontra em 74º lugar a nível
de qualidade de vida Considerou-se que somos o 5° maior produtor de
alimentos do mundo,
enquanto a maioria de nossa população
é subnutrida, passa fome, morre de fome.
A análise partiu então dessa
realidade cujo signo é a contradição, que tem, sem
dúvida, como motivo determinante o dado
concreto de ser o Brasil o país com
a mais alta taxa de concentração de riqueza do mundo, seguido
pelo Nepal e Quênia.
Isto significa que as riquezas produzidas
por todos não são distribuídas entre todos, acabando
nas mãos de pequenos
grupos hegemônicos que se aproveitam
da estrutura social injusta estabelecida no país.
Se de um lado da moeda temos a concentração
absurda de riquezas, o seu outro lado estará cunhado, inevitavelmente,
com os traços da marginalidade, a
imagem da grande maioria da população à margem dos
benefícios produzidos pela
sociedade.
Nesse quadro real de marginalidade,
padecem especialmente as crianças e adolescentes, vítimas
frágeis e vulneradas pela
omissão do Estado e da própria
sociedade.
As estatísticas oficiais indicam hoje
a existência de quase 40 milhões de crianças e adolescentes
carentes, em situação
de risco pessoal ou social. Possuímos
índice de mortalidade infantil a transformar nosso país em
holocausto permanente:
são 500 mil crianças que morrem
por ano em razão de, principalmente, desnutrição aguda
e doenças facilmente evitáveis.
Só para comparação,
trata-se de duas vezes os efeitos mortais das bombas de Hiroshima; nove
vezes o número de
americanos que morreram na guerra do Vietnã.
São essas crianças, em regra quase absoluta, filhas da classe
trabalhadora, atingida pelo desemprego,
pelo subemprego e pelo salário mínimo aviltado, que corresponde
hoje a 18% do
seu valor real quando instituído
em 1940 (e anote-se, ainda, que mais da metade da população
brasileira integra famílias
cuja renda per capita é inferior
a meio salário mínimo).
E exatamente para essa realidade social -
e para dar contornos de factibilidade às promessas contidas no texto
constitucional pátrio (v. art. 227)
- que se pretendeu elaborar um diploma legal capaz de tratar com justiça
a infância e
juventude brasileiras.
E o Estatuto da Criança e do Adolescente
se fez, então, objetivando essencialmente assegurar na área
específica a
materialização das políticas
sociais públicas (as chamadas políticas sociais básicas,
as politicas sociais assistenciais em
caráter supletivo e programas de
proteção especial), de molde a se poder superar a situação
de marginalidade
experimentada pela maioria de nossos infantes
e jovens.
Daí o equívoco quando se critica
o Estatuto da Criança e do Adolescente sob o argumento de que se
trata de diploma legal
próprio para países desenvolvidos,
do primeiro mundo. Ora, em tais países, o Estado cumpre com o seu
dever institucional e
indelegável de atuar concretamente
no campo da promoção social e, por isso mesmo, exsurgiria
como absolutamente
desnecessário o comando legal no
sentido de indicar, por exemplo, o direito à educação,
à saúde, etc A necessidade de
uma lei garantista de direitos se dá,
assim, em países como o nosso, caracterizados pela omissão
do Estado na linha de
estabelecer o bem-estar geral, donde decorre
o subdesenvolvimento e o carimbo de terceiro mundo.
O legislador do Estatuto da Criança
e do Adolescente levou a cabo então a proposta de dar um tratamento
diferenciado à
nossa infância e juventude. Para tanto
e desde logo, fez por romper com o mito de que a igualdade resta assegurada
ao
tempo em que todos recebem idêntico
tratamento perante a lei. Concluiu-se, com indisputável acerto,
que - quando a
realidade social está a indicar desigualdades
- o tratar todos de forma igual, antes de garantia da isonomia, comparece
como proposta de cristalização
das desigualdade.
Então, como fórmula para estabelecer
a isonomia material, indispensável que os perseguidos, os vitimizados,
os
marginalizados na realidade social venham
a receber, pela lei, um tratamento desigual, privilegiado.
Sob esse enfoque é que vamos encontrar
como suporte teórico do Estatuto da Criança e do Adolescente
a doutrina da
proteção integral, cuja tese
fundamental assevera incumbir à lei assegurar às crianças
e adolescentes a satisfação de suas
necessidades básicas.
Pela nova lei, as crianças e adolescentes
não podem mais ser tratados como meros objetos de intervenção
do Estado,
devendo-se agora reconhecê-los como
sujeitos dos direitos elementares à pessoa humana, de maneira a
propiciar o
surgimento de uma ponte de ouro entre a
marginalidade e a cidadania plena.
Essa nova postura implica em afastar a falsa
e perversa idéia, absorvida e fomentada pelo revogado Código
de Menores, de
que os carimbados pelo rótulo da
situação irregular vivem na marginalidade social porque foram
ou são incapazes de uma
plena integração, vale dizer,
eles próprios são responsáveis pela condição
marginal em que se encontram. Portanto, através
de tal manipulação ideológica,
alcançar-se o resultado de excluir a estrutura social do âmbito
da questão (imunizando-a,
assim, de críticas), bem como de
legitimar retoricamente as medidas judiciais impostas (mesmo que elas signifiquem
em
determinadas situações apenas
um objetivo de segurança aos grupos marginalizadores). A alavanca
mitológica
impulsionava medidas judiciais que se perfaziam
mediante meros processos lógico-dedutivos de subsunção
do fato à
norma, decidindo-se por destituições
do pátrio poder ou por internações em unidades ditas
de "reeducação" sem
indagações de outra ordem
que não as técnico-jurídicas, já que se cria
(ou fingia-se crer) no fato de ter havido opção
voluntária pela vida marginal ou
delinqüencial, pois o pressuposto era de que a todos os indivíduos
são dadas iguais
oportunidades de progresso social.
Alertado pela realidade social e alentado
pelo propósito de justiça, o legislador do Estatuto da Criança
e do Adolescente
estabeleceu um conjunto de normas tendentes
a colocar a infância e juventude a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, violência,
crueldade, exploração e opressão.
O Estatuto da Criança e do Adolescente se encontra edificado sobre duas pilastras básicas.
Uma delas (e exatamente a que não
carece ser contemplada com maiores considerações no âmbito
deste trabalho) diz
respeito à indicação
de uma nova política de atendimento à infância e juventude,
sendo que os seus componentes mais
significativos têm sede na descentralização,
municipalização e participação obrigatória
da sociedade civil. Pretende-se,
nesta nova linha, que o município
seja o espaço adequado para a reflexão acerca dos problemas
existentes e também o
equacionador dos mesmos, apresentando os
programas e ações a serem efetivados para superar as dificuldades
(e
contando para isso com o Conselho dos Direitos
da Criança e do Adolescente, cuja incumbência maior é
a de formular a
política municipal de atendimento
à infância e juventude, bem como de gerenciar os recursos
públicos destinados à
assistência social voltada à
criança e adolescente já na consecução das
metas estabelecidas). Além de possuir caráter
deliberativo, os prefalados Conselhos dos
Direitos da Criança e do Adolescente devem contemplar a participação
popular
paritária por meio de organizações
representativas (v. art. 88, inc. II), que se traduz em verdadeira fórmula
para o exercício
direto do poder pelo povo, acolhendo-se
a proposta de democracia participativa acenada pelo parágrafo único,
do artigo 1°, da Constituição Federal.
O Conselho Tutelar, enquanto órgão
permanente e autônomo, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento
dos
direitos da criança e do adolescente
(e por isso mesmo fiscalizador de todo o sistema de atendimento), também
é fruto
deste anseio de trazer a sociedade civil
para a co-gestão da matéria relacionada à infância
e juventude, máxime diante do
fato de que os conselheiros serão
pessoas da comunidade e escolhidos pela comunidade para o exercício
de mencionada
e relevante função.
A outra pilastra básica do Estatuto
da Criança e do Adolescente consiste no desiderato de garantir à
infância e juventude
todos os direitos prometidos na Constituição
Federal, impedindo transformem-se eles em letras mortas.
Para evitar o que infelizmente ocorre com
outras normas constitucionais de amplo alcance social (como a que trata
de um
salário mínimo capaz de satisfazer
as necessidades básicas do trabalhador e de sua família,
ou a que prevê a participação
dos trabalhadores nos lucros das empresas),
torna-se imperioso travar luta com o escopo de não permitir que
os direitos
mencionados na Carta Magna acabem postergados
ou transmudados em meras declarações retóricas. De
nada adianta a
fixação de direitos fundamentais
para a infância e juventude se a omissão generalizada possibilitar
sejam eles tratados
como singelas exortações morais,
com o valor e peso de avisos, lições ou conselhos e, por
isso mesmo, relegados ao
abandono.
Como responder a esse intuito de ver efetivados os direitos da população infanto-juvenil foi o trabalho melhor realizado pelo legislador do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Num primeiro passo, formulou-se título
específico acerca dos direitos fundamentais, objetivando pormenorizar,
detalhar o
que se encontrava genericamente indicado
no texto constitucional.
Assim, cada capítulo destinou suas
normas para o fim de explicitar a maneira pela qual restariam materializados
os direitos
à vida, à saúde, à
liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência
familiar e comunitária, à educação, à
cultura, ao
esporte, ao lazer, à profissionalização
e à proteção no trabalho.
Daí, por exemplo, restou expresso
que ter direito à educação, enquanto proposta de desenvolvimento
pessoal, preparo para
o exercício da cidadania e qualificação
para o trabalho, implica na igualdade de condições para o
acesso e permanência na
escola; na garantia de acesso ao ensino
fundamental público e gratuito; no atendimento educacional especializado
às
crianças e adolescentes portadores
de deficiência; no atendimento em creche e pré-escola às
crianças de zero a seis anos
de idade; na oferta de ensino regular noturno
adequado às condições do adolescente trabalhador;
na existência de
programas suplementares de material didático-escolar,
assistência à saúde, transporte e alimentação
para atender às
crianças e adolescentes carentes;
etc.
Em outro vértice da mesma figura,
o legislador fez também por instituir capítulo próprio
para tratar da proteção judicial dos
interesses individuais, coletivos e difusos
relacionados à infância e juventude. A idéia central
é de que as regras enunciadas
no Estatuto da Criança e do Adolescente
se constituem em comandos obrigatórios à família,
à sociedade e ao Estado,
aguardando-se, especialmente por parte dos
poderes públicos, o cumprimento das normas estabelecidas. Todavia,
e
exemplificando, se o administrador, espontaneamente,
não tornar efetivo o que lhe foi determinado pela lei, exsurge
disponível ao interessado um conjunto
de medidas judiciais especificamente destinadas à satisfação,
via prestação da tutela
jurisdicional, do direito violado.
Dentre as medidas judiciais elencadas vale
anotar, pela importância, a ação civil pública
(destinada à proteção dos
interesses individuais, coletivos e difusos
próprios da infância e da adolescência) e que corresponde
a extensão para a área
das previsões contidas na Lei n°
7.347/85. Também é digna de nota a ação mandamental
contra atos ilegais ou abusivos de
autoridade pública ou agente de pessoa
jurídica no exercício de atribuições do poder
público, que lesem direito líquido e
certo previsto no Estatuto da Criança
e do Adolescente. Não é de se afastar entretanto, a eventual
importância de se propor
mandado de injunção (quando
a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício
de direito constitucional pertinente
à infância e juventude), das
ações diretas de inconstitucionalidade ou das representações
interventivas, quando
fundamentadas na necessidade da salvaguarda
de interesses de crianças e adolescentes.
Ainda nesse caminho de buscar efetividade
às sus normas, o Estatuto da Criança e do Adolescente cria
uma série de
infrações administrativas
e figuras tipicas penais destinadas à punição de todos
que apresentarem comportamento em
confronto com aquele querido pela lei. A
observação significativa se dá no sentido de que as
malhas da sanção contemplam
especialmente os governantes, as autoridades
públicas, enfim, aqueles que sempre estiveram imunes à ação
do direito
repressivo (a regra, máxima do direito
penal, é de que tanto no momento de criminalização
primária quanto secundária os
destinatários da repressão
sejam integrantes das camadas sociais empobrecidas, enquanto que os colarinhos
brancos -
dos crimes econômicos, da corrupção,
da violação ao meio ambiente, etc. - restam imunizados de
perseguição pela justiça
criminal). Dessa forma, uma vez estabelecido
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que, por ter direito à
liberdade,
toda criança ou adolescente pode
ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários,
só podendo ser aprendido
em situação de flagrante de
ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária
competente (v. arts.
16, inc. I, e 106), surgirá como
conduta criminosa "privar a criança ou o adolescente de sua liberdade,
procedendo à sua
apreensão sem estar em flagrante
de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária
competente" (cf.
art. 230) ou "deixar a autoridade competente,
sem justa causa, de ordenar a imediata liberação de criança
ou adolescente,
tão logo tenha conhecimento da ilegalidade
da apreensão" (cf. art. 234) ou, ainda, "descumprir, injustificadamente,
prazo
fixado nesta lei em benefício de
adolescente privado de liberdade" (cf. art. 235). Também, uma vez
estabelecido pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente
um conjunto de direitos assegurados à gestante, à parturiente
e ao neonato (v. art.
10), restará criminoso o comportamento
que desatenda a tais comandos garantistas (v. arts. 228 e 229).
Mas, além de explicitar os direitos
genericamente prometidos pela Constituição Federal, de estabelecer
um conjunto de
medidas judiciais para a garantia de tais
direitos e de ameaçar com a pena os que não cumprirem os
seus imperativos
proibitivos, o Estatuto da Criança
e do Adolescente apresenta outro importante mecanismo destinado a fazer
valer os
ditames que assenta.
Trata-se o de incumbir uma instituição,
integrante da estrutura organizacional do Estado, da defesa dos interesses
e
direitos pertinentes à infância
e juventude.
Como se sabe, os Promotores e Procuradores
de Justiça passaram a ter o dever funcional de atuar no sentido
de garantir a
efetivação das normas
estabelecidas em favor das crianças e adolescentes.
Num país onde a maioria da população
não tem acesso à justiça (seja por falta de condições
econômicas para pagar
honorários advocatícios ou
até mesmo custas processuais, seja pela inexistência da Defensoria
Pública na grande maiorias
das comarcas), andou bem o legislador do
Estatuto da Criança e do Adolescente ao elevar em dignidade a atividade
do
Ministério Público, atribuindo-lhe
tão magnânima missão.
Aliás, é de se abrir parênteses
para dizer que o Estatuto da Criança e do Adolescente alcançou
compreender corretamente
os novos contornos institucionais do Ministério
Público, alinhavados especialmente pela Constituição
Federal de 1988.
Entendeu-se, acertadamente, que quando o
legislador constitucional indicou ser o Ministério Público
"instituição
permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica,
do regime democrático
e dos interesses sociais e individuais indisponíveis"
(cf. art. 127, caput), bem como ao arrolar como uma das suas funções
institucionais a de "zelar pelo efetivo
respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância
pública aos direitos
assegurados nesta Constituição,
promovendo as medidas necessárias a sua garantia" (cf. art. 129,
inc. II), podendo, para
tanto, "promover o inquérito civil
e ação civil pública, para a proteção
do patrimônio público e social, do meio ambiente e de
outros interesses difusos e coletivos" (cf.
art. 129, inc. III), deu-lhe foro de instituição de primeira
grandeza, convocando-o
para efetiva defesa da sociedade.
Se é vazia a discussão acerca
de o Ministério Público ter ou não se transformado
num 4° Poder, afastado de dúvida está
que veio a alcançar, via do novo
ordenamento constitucional, o poder inerente às instituições
que são independentes e
autônomas. A preocupação,
agora, consiste em estabelecer a maneira pela qual restará atendida
a regra, absoluta e
inafastável, no sentido de que o
poder, que emana do povo, a favor deste deve ser exercido.
Assim, fez-se por reconhecer no Estatuto da Criança
e do Adolescente que o exercício democrático do poder exige
do
Ministério Publico um atuar permanente
em proveito da maioria da população brasileira, que hoje
se encontra à margem dos
benefícios produzidos pela sociedade
e afastada da possibilidade real de vida digna.
Foi também absorvida a idéia
de que o Ministério Público, rompendo com antiga postura
de estrita burocracia legal (mero
fiscalizador da correta aplicação
das leis, inclusive daquelas injustas, destinadas à dominação,
enquanto foram de dar
legalidade a situações de
exploração e opressão), deve agora atuar como verdadeiro
agente político, interferindo
positivamente na realidade social e, através
exame do conteúdo ideológico das normas jurídicas,
dar a prevalência para
efetivação daquelas que signifiquem
proposta de libertação do povo, internalizando no espaço
oficial do judiciário as
reivindicações sociais na
forma de conflitos coletivos, politizados e valorados sob a ótica
das classes populares.
Por tudo isso - e porque se acredita no Ministério
Público como verdadeiro defensor de um Estado genuinamente
democrático - é que o legislador
do Estatuto da Criança e do Adolescente determinou-lhe o zelo pelos
interesses
individuais, coletivos e difusos ligados
à proteção da infância e da juventude, que não
raras vezes implicará em cobrar das
autoridades públicas uma atuação
mais eficiente no fornecimento às crianças e adolescentes
de educação, saúde,
profissionalização, lazer,
etc., vez que sua tarefa obriga preferência ao interesse público
primário (ou seja, o interesse do
bem geral), em contraposição
às vezes com o interesse público secundário (ou seja,
o modo pelo qual os órgãos
governamentais vêm o interesse público).
Em outro aspecto, considerada a infeliz praxe
forjada no sentido de que quando surgem leis a favor dos oprimidos ainda
assim de nada servem, porquanto não
são aplicadas, convém ressaltar que o Ministério Público
- assumindo a
responsabilidade de construtor de uma nova
ordem social, progressivamente melhor e mais justa - poderá transformar
a
Justiça da Infância e da Juventude
em significativo aspaço de luta.
Não se tenha dúvida de que
garantir educação, saúde, trabalho digno e outros
direitos estabelecidos no Estatuto da Criança
e do Adolescente (seja na via administrativa
ou judicial) corresponderá à incrementação
do processo de democratização da
sociedade brasileira, canalizando-se as
aspirações de emancipação dos segmentos populares
e contribuindo assim para o
superar a alienação política
e econômica da classe trabalhadora.
Nesse contexto é que se pretende ver
reconhecido que a proteção aos interesses individuais, coletivos
ou difusos
relacionados à infância e juventude
deve ser tratada com absoluta prioridade pelo Ministério Público,
já que o comando da
Constituição Federal nesse
sentido ("É dever do Estado assegurar à criança
e ao adolescente, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar
e comunitária ..." - v art. 227), bem como do Estatuto da Criança
e do Adolescente (v. art.
4°, par. único, letra c), tornam
obrigatório o estabelecimento de uma politica institucional nessa
área que contemple a
preferência manifestada pelo ordenamento
jurídico.
Tanto assim é que, em reunião
realizada em Basília no período de 19 a 21 de maio de 1992,
membros do Ministério Público
dos Estados e do Distrito Federal elaboraram
documentos com o seguinte teor:
"I - A Lei nº 8.069/90 é importante
instrumento para garantia e promoção dos direitos das crianças
e adolescentes,
mostrando-se capaz de resgatar-lhes a cidadania
e impulsionar a instalação de uma sociedade progressivamente
melhor e
mais justa.
II - Do Estatuto da Criança e do Adolescente
exsurge para o Ministério Público o poder-dever de agir,
conferido que restou
aos Promotores de Justiça desta área
a possibilidade de intervir concreta e positivamente na realidade social,
em busca de
sua transformação.
III - Vara que prefalada intervenção
se opere com eficiência, impõe-se, além de vontade
política, o alcance de estrutura
física, material e de recursos humanos
quantitativa e qualitativamente apta para a ação.
IV - A falta de mencionada estrutura tem
obrigado os Promotores de Justiça, neo raras vezes, a iniciativas
e esforços
individuais, comprometendo o rendimento
desejado e, também, tornando mais lenta a implantação
do Estatuto da Criança e
do Adolescente.
V - Neste contexto, entende-se indispensável
o estabelecimento de postura institucional que materialize o comando de
prioridade absoluta contido na Constituição
Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, a partir de compromissos
internos e ações concretas
no sentido da estruturação dos setores pertinentes à
área da infância e da juventude.
VI - Assim, da mesma forma que apresentamos
a todos os Governadores dos Estados, que estiveram reunidos em Basília
no dia 20 de maio de 1992, documento referente
ao Pacto pela Infância, deliberou-se encaminhar aos Procuradores
Gerais
de Justiça, porque consideradas como
necessárias à correta atuação ministerial como
intransigente defensor dos direitos
individuais, coletivos e difusos relacionados
à infância e juventude, sugestão consistente nas medidas
práticas a seguir
enunciadas.
1. Criação e/ou implementação,
em todos os Estados, de Centro de Apoio Operacional das Promotorias da
Infância e
Juventude, objetivando adequada formulação
da política institucional desta área, bem como o auxílio
e orientação aos
respectivos órgãos da execução.
2. Instalação de Promotorias de Justiça, especializadas e exclusivas, junto às Varas da Infância e da Juventude.
3. Estabelecimento de estrutura pertinente
a recursos humanos e materiais, de molde a viabilizar as ações
inerentes à
Instituição.
4. Desenvolvimento de programas de capacitação
direcionados a todos os membros do Ministério Público, inclusive
os
atuantes em segunda instância".
Mais que essa opção politico-institucional,
pretende-se também alteração legislativa para fazer
incluir na Constituição
Federal - na seção própria
do Ministério Público - norma que, expressamente, estabeleça
a função institucional prioritária na
defesa dos interesses da população
infantojuvenil.
O desejo é de que o Promotor de Justiça
da Infância e Juventude dê especial contribuição
à esperada conformação de um
novo Ministério Público, que
cada vez mais se distancie de suas raízes de patrocinador dos interesses
dos reis e dos
poderosos, e que se reconheça como
o mais legitimo defensor dos interesses da sociedade, com a visão
clara de que
defender a sociedade implica em defender
prioritariamente as suas camadas distantes da cidadania, em optar pela
defesa
dos oprimidos e dos explorados.
Em assim sendo, interagindo articuladamente
com os segmentos organizados da sociedade civil e cumprindo a tarefa de
promoção dos direitos das
crianças e adolescentes, o Ministério Público restará
importante instrumento para que a nação
brasileira venha a alcançar um dos
seus objetivos fundamentais: o de instalar uma sociedade livre, justa e
solidária.
Retirado de: http://www.abmp.org.br