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ABANDONO E ADOÇÃO: UM OLHAR SOBRE A AMÉRICA LATINA





                                                    Conferência apresentada no congresso "Le bébé face à
                                                    l’abandon, le bébé face à l’adoption", realizado nos dias
                                                    23 e 24 de janeiro de 1998, em Montrouge, França.
                                                    Lidia Natalia Dobrianskyj Weber
                                                    Psicóloga ; Professora do Dep. De Psicologia da UFPR.
 
 
 

  "Muitas coisas que nós precisamos podem esperar. A
  criança não pode. Agora é o tempo em que seu ossos estão
  sendo formados; seu sangue está sendo feito; sua mente
  está sendo desenvolvida. Para ela nós não podemos dizer
  amanhã. Seu nome é hoje". Gabriela Mistral.
 
 
 

Gostaria de aproveitar esta oportunidade para agradecer aos organizadores deste Colóquio o convite para a minhaparticipação. Fui solicitada a falar sobre a América latina e espero poder contribuir para mostrar um pouco os problemas sociais que estão por trás do abandono e das questões sobre a adoção de crianças e adolescentes desta região. Pretendo generalizar alguns aspectos entre os países da AL e focalizar alguns problemas específicos de determinados países, mas gostaria que vocês tivessem consciência que existem questões muito diversas entre os paísesque compõem a América Latina, embora haja uma tônica clara entre todos: a pobreza.

Gostaria de iniciar contando rapidamente 3 historias e deixar uma pergunta para reflexão: qual dessas histórias parece a mais improvável?
 
 

Ano 40 a C., Jerusalém. Herodes, ao ver que os Magos o haviam enganado, ficou muito desgostoso e mandou matar todas as crianças com menos de 2 anos que havia em Belém e arredores. Este fato ficou conhecido como a "Matança dos Inocentes".

Século 19, Alemanha. Em um país não muito distante, numa época de grande carestia, viviam um lenhador, seus dois filhos e a madrasta. Chegou uma época em que o preço das coisas subiu demais, a comida foi acabando e a mulher teve a cruel idéia de diminuir os gastos abandonando João e Maria no meio da floresta. O pai ficou com o coração partido mas acabou concordando com a esposa. João e Maria perderam-se na floresta e foram parar na casa da bruxa.

Fim século XX. América Latina. Crianças são objeto de tráfico com o objetivo de trabalhos forçados, prostituiçãoinfantil, adoção e até transplante de órgãos. Crianças são esquecidas em orfanatos e abandonadas nas ruas. Crianças consideradas "perigosas" são assassinadas nas ruas.
 
 

CONDIÇÕES DE VIDA NA AMÉRICA LATINA E DIREITOS HUMANOS:
 
 

Não é possível falar de abandono de crianças em países da América Latina sem se remeter às questões gerais sobredireitos humanos, às questões específicas sobre direitos da criança e os problemas desta região. É preciso referir-se aos contextos macroeconômicos e às políticas governamentais insuficientes que não conseguem proteger a amplos setores da população que está na pobreza extrema. Em 1998 será comemorada a data de 50 anos de aprovação da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos. Naquela época de pós-guerra almejava-se construir um patamar de dignidade emrelação aos direitos, direitos estes que deveriam transcender a diversidade cultural, afirmando a universalidade dos direitos humanos que decorrem única e exclusivamente da condição de ser humano. O objetivo maior é termos direitos humanos sem fronteiras. Além de falarmos de Direitos Humanos, devemos lembrar os Direitos da Criança. "Em 1959 a
Declaração dos Direitos da Criança havia concluído um mínimo ético em relação à proteção da infância desvalida e, trinta anos depois a Convenção Internacional dos Direitos da Criança veio a constituir um máximo jurídico e constitui oinstrumento mais ratificado no âmbito jurídico e o mais aceito socialmente na história da humanidade".

O atual estado de globalização passou a ter como palavra de ordem a economia, sendo que os direitos ficaram em segundo plano. Os efeitos sobre a universalidade dos direitos humanos têm acentuado ainda mais o dualismo econômico e estrutural de diferentes países da América Latina, acentuando a pobreza e gerando um continente imensode excluídos, ou seja, de seres humanos destituídos de direitos básicos, como comida, saúde, educação, higiene, trabalho...

Para que possamos entender melhor as diferenças deste "mundo pobre" e os chamados países industrializados, mostraremos aqui algumas diferenças entre alguns países da AL e a França. Os mecanismos sociais mostram engrenagens perversas em toda a região: execuções extrajudiciais e "desaparecimentos" continuam no Brasil e no México. A Colômbia registra mais de 30 mil assassinatos políticos desde 1986, na maioria cometidos pelas Forças Armadas ou por seus protegidos paramilitares. Na Guatemala, correm risco de vida líderes indígenas e sindicais que se oponham ao poder dos latifundiários e políticos locais. No Peru, o governo e grupos armados mantém uma guerra que já conta com mais de 27 mil mortos. Grupos armados violam normas humanitárias básicas como seqüestros, torturas e execuções na Colômbia e Peru. Pessoas são ainda detidas por crenças políticas ou religiosas ou pelo simples exercício
de seus direitos civis na Bolívia, Chile, Equador e Uruguai. No Brasil esquadrões de morte, que muitas vezes incluem policiais de folga, executam ou fazem "desaparecer" adolescentes e crianças de rua. Dados mostram que somente em Pernambuco, nordeste do Brasil, 243 jovens foram assassinados no Estado; 86,9% das vítimas, com idade entre 10 e 18 anos, não tinha antecedente criminais. Destas mortes, somente 13 foram elucidadas. Existe uso excessivo de força no trato de conflitos sociais na Argentina, Costa Rica, República Dominicana e Paraguai. Tortura e maus-tratos de presos seguem sendo rotina na Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, México, Peru. Em uma prisão de Campinas, SP, acadeia tem capacidade para 24 presos mas abriga 194; cada preso tem o espaço de 18 cm para ocupar...
 
 

ABANDONO, INSTITUCIONALIZAÇÃO E ADOÇÃO DE CRIANÇAS NA AMÉRICA LATINA:

Apesar de avanços notáveis na região, especialmente com o fim das ditaduras militares, e programas de Direitos Humanos, ainda no limiar do novo milênio permanece o abismo entre as intenções e a vida real.

A situação econômica da AL aliada à incapacidade dos governos de dar respostas a problemas sociais tem sido um dos principais fatores que geram uma população de crianças carentes, abandonadas e esquecidas. A população de menores de 15 anos na AL, em geral, é de cerca de 40%. Vivem atualmente, na AL e Caribe, 440 milhões de pessoas, das quais 150 milhões são crianças em situação de pobreza. O Brasil e Honduas tiveram um aumento no n;umero e naproporção de pobres durante os anos 80, apesar da taxa razoável de crescimento econômico. Entre 1988 e 1993, o número de pessoas vivendo abaixo do limite de pobreza de um dólar por dia, aumentou pelo menos 20% na América Latina. É preciso não confundir o termo carente e abandonada. A grande maioria dos milhões de crianças pobres da América Latina, quem vivem nas ruas ou nas instituições públicas ou privadas, não são legalmente abandonadas. Seráque, a poucos meses do século 21, tendo conquistado outros planetas e construído inteligências artificias, ainda não temos condições de colocar em prática medidas urgentes para erradicar todas as formas de escravidão que desumanizam nossas crianças e nos fazem monstros de nossa própria história?
 
 

Nos países da AL existem basicamente duas práticas claras para atendimento de crianças em situação de risco, geralmente crianças carentes:

     Institucionalização:

          Até a década de 70 afirmava-se que crianças que se encontravam nas ruas eram produto do
          abandono e da orfandade familiar; a criança assim diagnosticada era levada a abrigos onde
          crescia e era "preparada" para sua integração na sociedade. A instituição era uma forma de
          "proteção" para a criança. Atualmente sabe-se que estar nas ruas é um meio de sobrevivência
          para estas famílias; as crianças "trabalham" e voltam para suas famílias ou ficam nas ruas com
          sua família, geralmente monoparental, onde existe somente a mãe. Com a institucionalização
          de crianças a sociedade livrou-se destes "produtos indesejáveis", mas não interrompeu as
          monstruosas engrenagens que os produziram. A institucionalização nestes países tem se
          mostrado não como uma alternativa mas como um incentivo ao abandono. Uma vez deixada a
          criança na instituição, a maioria das famílias não retorna para buscá-las.

     Adoção nacional e internacional:

          O início das adoções internacionais começou após a Segunda Guerra Mundial, quando
          crianças órfãs e abandonadas provenientes da Europa Central, Itália, Grécia e Japão foram
          adotadas nos EUA e Canadá. A adoção internacional continuou nos anos 50 com crianças
          coreanas e nos anos 60 com crianças vietnamitas e de outras regiões da Ásia. Em 1980, após o
          Vietnã e Coréia terem modificado suas leis e, com isso, limitar a saída de crianças, as
          agências internacionais voltaram seus olhos para a AL. Não eram mais crianças de países em
          conflitos de guerra mas crianças provenientes de países onde a miséria, a pobreza e o
          subdesenvolvimento estavam presentes.

O primeiro país latino-americano que incorporou a adoção internacional foi a Colômbia, seguido do México, El Salvador, Honduras e, em pouco tempo, toda a região. Dados da ONU informam que mais de 10.000 crianças por ano da AL são adotadas por estrangeiros, principalmente EUA, Canadá e Europa.

Existem 3 formas de uma criança ir ao exterior:

     Adoção legal: O objetivo é conseguir um bebê para pessoas que não podem ter filhos biológicos ou,
     visando o interesse da criança, encontrar uma família para crianças abandonadas.

     Adoção supostamente legal: realizada a cargo de agências internacionais de adoção, porém com subornosa funcionários, indução de mães ao abandono. Este tipo de adoção é geralmente de bebês      recém-nascidos, pois o objetivo é conseguir um bebê para casais que não podem ter filhos; Tráfico     clandestino, que pode ter diferentes objetivos:

          Prostituição infantil: A AL tem aumentado cada vez mais a prostituição, embora atualmente
          isso seja chamado de "exploração sexual infantil’.

          Pornografia

          Exploração de mão de obra barata: enquanto pais de crianças estão sub-empregados ou
          desempregados, existe grande oferta de emprego para seus filhos. Por que? Porque se pode
          pagar menos para as crianças. Por serem mais maleáveis, as crianças obedecem ordens sem
          contestar a autoridade; por terem menos poder têm menor possibilidade de se organizar
          contra a opressão e podem ser submetidas a abusos físicos sem reagir. O trabalho infantil é
          considerado fundamental para a manutenção da família. Um levantamento realizado em 9
          países da AL revelou que sem a renda das crianças trabalhadoras a incidência da pobreza
          aumentaria em cerca de 10 a 20%. A OIT – Organização Internacional do Trabalho mostrou
          que o total de crianças entre 5 e 14 anos de idade trabalhando no mundo chega a 250 milhões,
          ou seja, 20% das crianças nessa faixa etária. A Ásia abriga 61% das crianças trabalhadoras; a
          África em a seguir em 32% e a AL, junto com o Caribe, tem 7% dessas crianças. Milhões de
          crianças sofrem com a exploração no trabalho. No Brasil crianças de até 7 anos cortam cana
          de açúcar, colhem laranjas, cortam pedras. No Peru, trabalham em minas de ouro. No Haiti,
          trabalham em serviços domésticos sem remuneração.

          Tráfico de órgãos: Existem muitas denúncias e pouca comprovação.

          Adoção internacional: roubo de crianças para serem registradas como filhos legítimos de
          famílias estrangeiras

É importante esclarecer que destas adoções internacionais na AL, parece que cerca de 94% estão em boa situação, masrestam cerca de 6% de crianças das quais não se conhece o destino final. Algumas características problemáticas em relação à adoção em países da AL:
 

Colômbia: estatísticas oficiais mostram que existem cerca de 10 adoções diárias, realizadas legalmente, sendo que 66%delas são internacionais. Apesar da legalidade os índices de crianças desaparecidas não diminuíram; somente em Bogotá são raptadas 6 crianças por dia.
 

Chile: um dos países onde maior número de crianças tem sido adotadas por estrangeiros. Vários juizes estão sendoinvestigados.
 
 
 

Perú: crianças tem sido convertidas em "mercadoria exportável", e os provedores estão apelando para o seqüestro de bebês, motivados pelos altos preços pagos pelas pessoas de países desenvolvidos.
 
 
 

Guatemala: é considerado um país "estranho" onde muitos turistas, principalmente norte-americanos e europeus dão a luz a seus filhos quando estão de férias...
 
 
 

Paraguai: Somente uma juíza, que está sendo investigada, entregou cerca de 1000 crianças nos últimos dois anos, paraadoção internacional, e apenas 20 para casais paraguaios. A facilidade para se adotar uma criança paraguaia, sob um manto falso de legalidade, tem permitido que a demanda supere a oferta e com ela o aumento de compra e venda, de roubo e tráfico de crianças neste país. Existem no Paraguai inúmeras "casas de engorde", com inúmeras crianças,geralmente em péssimas condições de higiene e cuidado. Muitas vezes uma mãe vai "voluntariamente" entregar o seu bebê a um juiz para que ele seja adotado por determinado casal estrangeiro, o que indica claramente que houve um incentivo financeiro e uma indução desta mãe.
 
 
 

Argentina: Este país não aceita o funcionamento de agências internacionais de adoção. Muito nacionalistas, eles acreditam que on ne doit pas laisser partir à l’étranger les forces vives de la nation. No entanto a Argentina tem sido indicada como o país latino-americano por excelência para as transações ilegais na Europa, EUA e Canadá. Algumas organizações como a Anistia Internacional mostram que, nas últimas duas décadas, o número de crianças "exportadas" ilegalmente da Argentina ao exterior pode chegar a 40.000. A maioria das agências européias e norte-americanas utilizam cartilhas onde indicam claramente a Argentina como um bom país provedor de bebês loiros de olhos. Existe ainda um grande comércio de bebês dentro do próprios país.

Na verdade, é preciso deixar claro que, se existe tráfico de crianças e prostituição, é porque existem pessoas quecompram crianças e que usufruem destes "serviços", não esquecendo-se que estas pessoas fazem parte do chamado primeiro mundo e aproveitam-se da miséria de alguns povos. A adoção internacional é um negócio de cerca de 400 milhões de dólares anuais e funciona de acordo com a lei de "procura e oferta". Existe uma demanda importante nospaíses desenvolvidos, os quais possuem uma população que não cresce e os países pobres que tem uma grande quantidade de crianças abandonadas e vivem em uma situação de miséria acabam por constituir uma oferta. No meio disso existem os intermediários deste comércio monstruoso de seres humanos.

               Oferta: compõe-se de uma tríade integrada por pobreza, mãe sem um
               companheiro estável e baixo nível sócio-educacional. Estudos realizados no
               Brasil e Argentina revelam o perfil da mãe que entrega seu filho para adoção:
               Mulheres solteiras; trabalham como empregadas domésticas; faixa etária até 23
               anos; a maioria absoluta possui até 4 anos de estudo; engravidou de uma relação
               casual.

               Procura: compõem-se geralmente de casais de classe média e média alta que
               não puderam ter filhos biológicos. Sentem-se apoiados pela sociedade como um
               todo, pensam estar "ajudando" a criança e rompem com o sistema oficial de
               adoção argumentando geralmente sua lentidão e burocracia. Existem outros
               motivos não assumidos facilmente:

                         necessidade de imitar uma família biológico, com um bebê
                         recém nascido

                         os serviços oficiais de adoção dispõem de poucos bebês recém
                         nascidos e brancos

                         planejam ocultar da criança, e às vezes, de parentes e amigos,
                         que ela é filha adotiva

                         não confiam nos sistemas legais de adoção

                         o tempo estabelecido para guarda da criança, antes da
                         adoção, é visto como traumático porque eles não sabem se
                         ficarão ou não com a criança

                         o fato de serem controlados pelos técnicos dos Juizados é visto
                         como uma invasão de privacidade

                         são imediatistas e não se conformam em ficar em "listas de
                         espera" a partir do momento que decidem adotar

               Os intermediários: mulheres "caridosas", conhecidas como cegonhas, indicam e
               arranjam bebês para casais que não podem ter filhos. Profissionais de saúde,
               médicos e enfermeiras. Às vezes os próprios serviços assistenciais e judiciais e as
               maternidades. Oferece-se algum dinheiro para esta mãe e seu filho é inscrito
               como filho legítimo do casal "adotante".

Rosa Maria Ortiz, autora de um livro sobre Tráfico de Crianças no Paraguai revela os seguintes pontos, que podem ser generalizados:

     Sobre as mães biológicas e seu consentimento

        Falta de assessoramento e informação às mães doadoras
        Não há garantia que o consentimento seja livre
        Não há garantia de que o consentimento não esteja vinculado a pagamento
        Não há garantia que o consentimento tenha sido somente após nascimento do bebê
        Não há garantia da identidade da mãe;
        Não se esgotam esforços destinados a manter o vínculo mãe-criança, ao contrário parece haver um      estímulo para a doação do bebê
        Não há garantia da identidade da criança através do registro correto de seus dados

     Sobre os pais adotivos:

        Não existem estudos adequados;
        Não há proteção das chantagens de intermediários;
        Não há informações suficientes sobre a origem do bebê
 
 
 

BRASIL
 
 

É claro que num debate como este de hoje é preciso falar claramente dos problemas e este são muito grandes na AL.
No entanto, é preciso deixar claro que as situações apresentadas não têm o aval de toda uma população. Não quer dizer também que não existam coisas boas e corretas acontecendo em prol das crianças na AL. Existem muitas coisas boas acontecendo, especialmente vinda da sociedade civil, da conscientização da população, que embora estejam num ritmo muito lento, têm sido contundentes. Vou apresentar alguns dados do meu país, Brasil.

Para entender muitos dos preconceitos sociais que existem contra a adoção é preciso lembrar que o Brasil tem a pior concentração de renda do planeta, ou seja, tem o título de campeão mundial da desigualdade. Os 20% mais ricos da população detém 67,5% da renda total e os 50% mais pobres ficam com 12% e 2% de pessoas detêm 50% das terras do país. Além dos estereótipos de um país exótico, terra do futebol e do carnaval, este Brasil contemporâneo com 160milhões de habitantes, tem 38% da população de crianças e adolescentes, mas o governo federal destina-lhes apenas12,4% dos investimentos sociais. 30% da população é considerada pobre ou indigente e mais outros 30% são excluídos,pois estão à margem de qualquer possibilidade de ascensão social. 22% da população é analfabeta, quase 4 milhões decrianças entre 5 e 14 anos trabalham e meio milhão de meninas estão expostas à exploração sexual. Como na história
de Herodes, existem "esquadrões da morte" que fazem "desaparecer" crianças e adolescentes que "perturbam’ o comércio ou o narcotráfico.

Como na história de João e Maria, como na Roma Antiga, crianças são abandonadas nas maternidades, nas ruas, no lixo. Somente da cidade de São Paulo, um bebê é encontrado a cada dois dias na rua. Quantos nunca são sequer encontrados? Não adiante atirarmos pedras e culparmos as vítimas. Sabemos que famílias violentas são ecos da estrutura social e reproduzem as relações sociais permeadas de desigualdade, injustiças e individualismo.

Dados não oficiais indicam a existência de mais de um milhão de crianças nas casas da bruxa, digo, em instituições e outros milhares de crianças que estão nas ruas. No entanto, estas crianças não estão abandonadas legalmente, poisseus pais ainda têm o pátrio poder. A maioria das crianças têm sido entregues pelas sua próprias mães diante da situação de miséria de milhões de brasileiros e falta de alternativas para cuidar dos filhos. São crianças inadotáveislegalmente e inadotáveis porque os brasileiros desejam somente adotar bebês recém-nascidos, saudáveis e brancos. A maioria das adoções nacionais no Brasil são chamadas "adoções à brasileira" – quando um casal "consegue" (pagando por ele ou não) um bebê e registra-o como seu filho biológico.

O Brasil abriu a marcha da justiça para os jovens com o seu estatuto da Criança e do Adolescente, adotado depois de um escândalo provocado por grandes reportagens sobre a violência exercida contra as crianças de ruas. Este Estatuto é considerado como uma das leis mais avançados do mundo em relação à direitos da criança e do adolescente. No entanto, o processo de ultrapassar a Lei e caminhar para a Justiça tem sido penoso e lento para as crianças de todo o mundo, especialmente do mundo pobre. Na verdade, não é possível se acabar com a injustiça e com o preconceito por decreto. O ECA traz à tona a questão de que não devemos transformar a adoção em um "projeto de sociedade".
Devemos lutar contra a miséria e o abandono. A adoção internacional é bem vista aos olhos dos brasileiros. Com a nova lei ela tornou-se uma exceção, ou seja, uma criança somente poderá ser adotada por um estrangeiro se nãoconseguir ser adotada no Brasil. Este fato traz um novo impulso para um trabalho de conscientização da população. Os desafios que devemos enfrentar atualmente é não deixar as crianças envelhecer nas instituições e conscientizar os brasileiros sobre as adoções necessárias: crianças mais velhas, de cor e com necessidades especiais. O trabalho principal é pedagógico. É um trabalho gigantesco e a longo prazo, mas que já começou.

A adoção no Brasil sempre esteve ligada à clandestinidade, ao segredo e aos estereótipos e à falta de informação, quetornavam praticamente impossíveis a emergência de adoções tardias, multiraciais e de crianças portadoras de excepcionalidades. Em uma pesquisa que realizei sobre a opinião acerca da adoção, os dados mostram que osbrasileiros acreditam que "cedo ou tarde o filho adotivo vai dar problemas"; que "uma criança adotada sempre vai sofrer preconceitos e ser tratada diferentes pelos outros"; "algumas mulheres só conseguem engravidar depois de terem adotado uma criança, portanto, a adoção é um bom motivo para se tentar ter filhos biológicos"; pensam que "morte de um filho natural é motivo suficiente para um casal adotar uma criança"; "crianças adotadas devem ser devolvidas ao Juizado (ao orfanato ou aos pais biológicos) quando surgirem problemas como desobediência ou rebeldia"; "é interessante adotar crianças com mais de 10 anos de idade para que pudessem ajudar nos serviços domésticos"; "haverá menos problemas sea criança nunca souber que foi adotada"; acreditam que deveria ser feito um controle ostensivo à natalidade pelo governo e que somente "os pais são culpados pelos filhos que estão nas ruas e nos orfanatos porque não sabem educá-los".

As denúncias e trabalhos persistentes da sociedade civil têm trazido mudanças consistentes em poderes públicos. Em 1983 houve um grande escândalo de tráfico de crianças ocorrido em Curitiba, cidade onde eu habito, com funcionários do próprio tribunal da Infância e da Juventude. Após investigação rigorosa, prisão de alguns envolvidos, foi criada a primeira Comissão Estadual Judiciária de Adoção (CEJA), um órgão do Poder Judiciário que centraliza todas as adoções de um estado do país e desistimula o tráfico. Depois de Curitiba, foram criadas, progressivamente mais 13CEJAs em outros estados do Brasil. Recentemente em Curitiba, depois de denúncias sobre o estado de abandono de crianças em orfanatos e após a criação de uma Associação de Estímulo à Adoções tardias e multiraciais, com grande repercussão pela mídia, foi criada pelo Poder Judiciário o Primeiro Tribunal Especializado em Adoções do País. Estelongo processo de esclarecimento e conscientização teve seu inicio com uma ONG Suíça, Terre des Hommes (sede em
Lauseane) que iniciou seu trabalho em 1990. A princípio com apoio à adoção internacional e atualmente, transformada em uma ONG brasileira, lida com um programa de apoio à adoção nacional. Atualmente existem cerca de 25 associações e grupos de estudo e apoio à adoção, iniciativas da sociedade civil, geralmente pais adotivos voluntários, que viam promover a adoção de crianças esquecidas nas instituições, instaurando com os serviços oficiais de adoção uma parceria em que elas serão aceitas e reconhecidas.

É preciso enfatizar que existem programas oficiais em prol da criança, mas nenhum que vise realmente
desinstitucionalizar as crianças. Não é exatamente por falta de recursos financeiros que crianças são
institucionalizadas. Nós temos um salário mínimo de aproximadamente US$ 100, enquanto uma criança
institucionalizada chega a custar ao governo US$1.200 por mês! Os melhores programas para atendimento de crianças e adolescentes carentes vêm da sociedade civil. Em sua maioria ONGs nacionais e algumas internacionais. Apesar de todos estes dramas apresentados, o Brasil nunca esteve tão bem! Queda do crescimento populacional, educação como prioridade, bolsa-escola para famílias que deixam seus filhos na escola, campanhas contra a violência e desarmamento... Existem excelentes programas criados pela sociedade civil, empresários, Igreja, que trabalham pela defesa e proteção das crianças: educação e apoio à meninos de rua, aliás o educador de rua é um conceito inventadona AL, creches de período integral, casas de passagem para meninas que sofrem de exploração sexual, casas lares, proteção e defesa de crianças vítimas de violência doméstica, reintegração familiar, garantia de direitos das crianças,"empresa amiga da criança", que combate o trabalho infantil, oficinas de aprendizagem, grupos de dança, entre muitas
outras. É o que chamamos de tomada de consciência que possibilidade o engajamento da população nesses trabalhos.
É onde devemos investir, um trabalho que visa a educação, que faz do homem um ser criativo, questionador,
transformador, atuante e livre. Embora vagarosamente, estamos no caminho certo...
 
 

Acredito que o mundo tem recursos e conhecimento necessários para atingir a meta de vida decente e liberdade: o futuro não precisa ser caos e miséria. A pobreza não pode ser eliminada imediatamente, mas não se pode tolerar mais a exploração da pobreza. Todas essas crianças fazem parte, pelo menos imaginariamente, do contingente das espéciesconhecido como "ser humano".

Um famoso poeta brasileiro, Drumond de Andrade, disse em um de seus versos: "entre a raiz e a flor existe o tempo".
No entanto não devemos somente deixar o tempo passar, como o Gattopardo de Lampedusa, que admitia que tudo poderia mudar desde que permanecesse como estava. É preciso ações efetivas: cuidar da flor, maternar a flor, protegê-la... Vamos fazer todos juntos?

Não gostaria de, com essas imagens, apenas comover pessoas suscetíveis à atos caridosos. Não estamos falando de caridade. A caridade no sentido de alguém dar alguma coisa que não lhe faz falta serve apenas para diminuir nossa culpa e cultivar nosso narcisismo. Caridade é fazer parecer esmola o que deveria ser um direito. Estamos falando de fraternidade, que significa estar ao lado do outro como irmão. Estamos falando de Direitos Humanos. E de Crianças.
 
 

  Criança é coisa séria (Herbet de Souza - Betinho)

  A criança é o que fui em mim e em meus filhos,
  enquanto eu e humanidade.
  Ela, como princípio é a promessa de tudo.
  É minha obra livre de mim.
  Se não veja na criança, uma criança, é porque alguém a violentou antes
  e o que vejo é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado.
  Mas essa que vejo na rua sem pai, sem mãe, sem casa, cama e comida,
  essa que vive a solidão das noites sem gente por perto,
  é um grito de espanto.
  Diante dela, o mundo deveria parar para começar um novo encontro,
  porque a criança é o princípio sem fim
  e o seu fim é o fim de todos nós
 
 
 
 
 
 
 

                                   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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     institutionnalisation, abandon et adoption). Curitiba: Governo do estado do Paraná/Secretaria da Cultura.
 
 

Retirado de: http://www.lexxa.com.br/PBA/abandado1.htm