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O Nascituro como Sujeito de Direitos - Início da Personalidade Civil: Proteção Penal e Civil
 
 

Guaraci de Campos Vianna
Juiz de Direito e Professor da Universidade Estácio de Sá, RJ





          Resumo:
          O autor examina o tema à luz do direito romano, avaliando a influência do cristianismo e do direito
          canônico na sua evolução histórica. Defendendo a tese do início da personalidade na concepção,
          enumera os dispositivos legais pertinentes à matéria, sobretudo no direito sucessório, não deixando de
          examiná-lo junto à Constituição Federal, ao Estatuto da Criança e do Adolescente e ao direito
          comparado.
 
 

   A personalidade civil começa na concepção. A partir daí o nascituro existe como pessoa, é sujeito de direitos e tem o
   direito constitucional prioritário de nascer com vida e continuar vital sendo defeso o abortamento. Daí o termo inicial para
   aquisição da personalidade não se sujeitar ao condicionamento do ser nascer com vida.

   Dominava entre os juristas a visão estóica segundo a qual a alma é o ar infiltrado no corpo, que apenas sai à luz, e, por
   conseguinte, enquanto este não nasce, suponha-se que fazia parte das entranhas da mãe, do mesmo modo que o fruto
   pegado à árvore. Daí, na antigüidade, não se reputava crime de morte a expulsão prematura e violentamente provocada do
   produto da concepção, o que a doutrina chama de abortamento (a despeito da redação dada pelo legislador penal, aborto é
   o produto do ato de abortar. O crime em questão é melhor descrito pelo termo abortamento, como em francês: avorton,
   avortement). O abortamento no início da sociedade romana constituía unicamente uma ofensa à pessoa da mulher.

   Como afirmou o eminente Ministro do STF, José Carlos Moreira Alves ("Direito Romano", vol. I, pág. 112 - Forense) "o feto é apenas parte das vísceras da mulher (partus enim antequam edatur, mulieris portio est uel uiscerum) e não podia, portanto, ser considerado homem.

   Destarte, surgiu a denominação de "nascituro" para designar aquele que irá nascer, ou seja, o feto durante a gestação.
   Para os romanos, o nascituro não era ser humano: não preencheu ainda os primeiros dos requisitos necessários à
   existência do homem , o nascimento. Mas, mesmo assim, Justiniano instituiu a regra geral de que o nascituro, quando se
   trata de vantagem em seu favor, se considera como se estivesse vivo - in rerum natura esse - (conforme Min. José Carlos
   Moreira Alves, obra citada, pág. 117). O Nascituro é o ser que já está concebido (conceptus), mas que ainda não nasceu
   (sed non natus).

    Com a evolução social dos costumes romanos passou-se a punir também a mulher pela provocação do abortamento por se
    entender uma ofensa ao direito do marido à prole esperada.

   Decaindo o Império Romano, ascendeu o Cristianismo que reputava ao feto, ainda no ventre materno, um ser, no sentido
   rigoroso do direito ou, pelo menos, uma entidade a quem a sociedade devia proteção. Daí a origem do aforismo, atribuído a
   Tertuliano, doutor da Igreja no primeiro século da era cristã: Homo est que futurus est (já é homem aquele que futuramente
   o será).

   Por outro lado parece que até hoje o Direito Canônico ainda faz a distinção entre feto animado e feto inanimado (colhida da
   Bíblia Sagrada - Levítico), inspiradora de muitas legislações, como a austríaca, muito embora não se possa precisar, ao
   certo, quando o feto passa de inanimado a animado. Há autores que propõem o termo de 40 (quarenta) dias (regra mais
   aceita na Antiguidade), mas a maioria das legislações, por dificuldade da prova, não acolhe a distinção preconizada.

   Decorrente dessas idéias históricas o direito moderno admite duas concepções para valorar juridicamente a vida que se
   forma: a mais antiga, vigorante desde a Idade Média, segundo a qual o feto é uma spes personae, ou uma humana em
   formação e a outra que vê no feto um ser completo que passa por fases naturais, biológicas e fisiológicas. Se o nascituro é
   um ser em formação, ainda não é ser e, portanto, tem mera expectativa de direito. Assim, o natimorto é juridicamente
   considerado como se não tivesse nascido. Pelo critério biológico, forçosamente, não se pode deixar de levar em conta que
   a vida do "ser futuro" ou do ser que já o é , começa no ventre, onde palpita, se move. Onde começa a vida, começa a
   existência do ser e da personalidade.

   Apesar de o Direito ser especificamente social, é a biologia que responderá a indagação: Quando começa a vida ? Cabe ao
   jurista dar o enquadramento legal! Botelho Lhuzia, in Gabriel Del Estal, Derecho a La Vida e Instituicion Familiar (Prefácio),
   nos ensina que o embrião é o próprio ser, individualizado, detentor de uma carga genética própria, distinta da de seus pais,
   ou seja, ele tem vida própria, é um ser definido. Com base nisso a perinatologia (ciência que cuida do processo que vai do
   feto à criança) justifica a tese da existência da vida na etapa mais elementar. Afinado ao mesmo tom, o Prof. R. Limongi
   França, em sua festejada obra "Instituições de Direito Civil" (Saraiva, 1988, pág. 50), sustenta, com todas as letras, que o
   nascituro é a pessoa porque traz em si o germe de todas as características do ser racional. A sua imaturidade não é
   essencialmente diversa da dos recém-nascidos, que nada sabem da vida, e, também não são capazes de se conduzir. O
   embrião está para a criança como a criança está para o adulto. Pertencem aos vários estágios de desenvolvimento de um
   mesmo e único ser: o homem, a pessoa.

   O nascituro é um ser dotado de personalidade jurídica civil. Reconhecendo que a substância da personalidade é a
   capacidade, também o nascituro é detentor de certa parcela de capacidade. Lecionam os jurisconsultos que a capacidade
   de ser sujeito de direito é um estado potencial. A capacidade transforma-se em titularidade através da aquisição de um
   direito que pode ser com ou sem manifestação de vontade do titular. Daí por que o pressuposto fático da capacidade é a
   existência da pessoa. Data máxima vênia, não se afina com a melhor razão dizer-se que a existência da pessoa começa no
   nascimento e termina com a morte. Quanto ao término, nada a acrescentar, mas a existência da pessoa começa na
   concepção e a partir daí existe a personalidade e conseqüentemente a capacidade. E nem poderia ser diferente. Senão
   como explicar o filho de instae nuptiae receber o estado do pai no momento da concepção ? E como justificar a
   possibilidade de o nascituro ser nomeado herdeiro ? Vamos procurar expor essas idéias com maior clareza.

   Longe do parecer nugas sem valor o minúcia inútil, é relevante, em face das conseqüências jurídicas diferenciadas, que
   advêm de uma teoria ou de outra, ter como ponto de partida ou o nascimento com vida ou a concepção como marco para o
   início de personalidade. Melhor posicionamento, diante da realidade atual, é a de atribuir-se à concepção o termo inicial da
   personalidade, porque é a partir dessa concepção que se tem como existente a pessoa.

   Como se sabe, o Direito, numa das concepções clássicas, é a faculdade ou poder de agir conferido a um sujeito ou titular.
   O sujeito é, portanto, o primeiro elemento da relação jurídica. Esta inexiste senão entre indivíduos. O próprio Direito
   pressupões a presença de duas pessoas pelo menos.

   Entretanto, "pessoa" é um conceito abstrato ou técnicos: é a integração de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos
   dentro da ordem jurídica. Todos os indivíduos são pessoas. A personalidade é um atributo que a ordem jurídica não nega a
   ninguém. Todo homem é pessoa, possui personalidade. Como leciona Washington de Barros Monteiro (Direito Civil, vol. I,
   pág. 56, Saraiva), pessoa é o entre físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações. No Direito moderno, todo ser
   humano é pessoa no sentido jurídico (pessoa natural) e a Lei dota de personalidade certas organizações ou coletividades
   (pessoa jurídica).

   Aqui interessa-nos a pessoa natural. Enfim o nascituro é ou não uma pessoa natural ? A indagação, a despeito de
   entendimentos divergentes, parece ter sido respondida desde o título do presente trabalho: Sim. A expressão "todo homem
   é capaz de Direitos...", contida no art. 2º do Código Civil compreende indistintamente a unanimidade dos seres
   componentes da espécie humana, sem discriminação de idade, sexo, raça, cor, estado de saúde, etc., como aliás consta
   no art. 5º da Constituição Federal.

   As restrições feitas aos escravos e estrangeiros, não considerados, em certa época, sujeito de direitos, e sim coisas,
   sucumbiram e hoje, mesmo os apátridas (que não pertencem a Estado algum, por terem perdido a nacionalidade de
   origem), são sujeitos de direitos, como decorrência de sua natureza humana. No mundo moderno, sem controvérsias, só
   não são considerados sujeitos de direitos os animais e as entidades físicas ou metafísicas (como os santos).

   Neste sentido, não há qualquer duvida: o feto concebido é sujeito de Direitos, vale dizer, não se pode negar ao nascituro a
   condição de sujeito de Direitos, de pessoa natural.

   Inclusive, o notável jurista português Victor Nunes, em seus "Comentários à Lei de Proteção aos filhos" (2ª Edição, 1939,
   pág. 210), mesmo entendendo que, à época, pela legislação portuguesa a capacidade só se adquire com o nascimento
   com vida (tese oposta à sustentada neste trabalho) reconhece no nascituro um sujeito de direitos. Diz ele"

   "...todavia, desde a sua concepção no ventre materno e na expectativa ou sob a condição de que nasça com vida e figura
   humana, a Lei já o considera sujeito de direitos ou pessoa. Desde logo lhe são concedidos expectativamente todos os
   direitos reais e efetivos após o nascimento com vida..."

   Constata-se que, em parte, o ilustrado autor português tem razão. Sim, o nascituro é sujeito de direitos. Mas seus direitos
   não são condicionados. Tem ele o direito primário à vida e com ele todos os subseqüentes.

   Tanto isso é certo que desde o Direito Romano existe a figura do curator ventris, hoje encampada pelo art. 462 do Cód. Civil que impõe, nas condições ali especificadas, a nomeação de um curador ao nascituro. Veja-se também, v.g., a capacidade de aquisição de patrimônio dos seres concebidos (art. 1718 do C.C.) e os artigos 353, 357, par. único, 372, 377 e 458 do mesmo diploma legal.

   Se o nascituro é um sujeito de Direitos, um ser, não há dúvidas que se adotou a concepção católica já exposta, segundo a
   qual já é homem aquele que futuramente será (homo est que futurus est), sem restrições com relação a ser um feto
   animado ou inanimado.

   Para atuar, o sujeito de direitos precisa ser dotado de um poder de agir e o ordenamento jurídico cria uma série de
   requisitos para o exercício desse poder de agir. Ao conjunto desses requisitos dá-se o nome de personalidade. Por isso
   deve-se considerar a personalidade, ao contrário de muitas visões doutrinárias, sob o ponto de vista da prática da atividade
   jurídica.

   Centro de imputações das relações jurídicas, repita-se, todo homem é pessoa. O conjunto de qualidades da pessoa institui
   a personalidade e esta considerada objetivamente pelo ponto de vista do poder de praticar as relações jurídicas é a
   capacidade. A capacidade é a projeção concreta da personalidade. Daí Washington de Barros, com maestria, afirma:
   "surge assim a noção de capacidade, que se entrosa com a de personalidade e a de pessoa. Com efeito, os diversos
   elementos da primeira constituem a segunda que se concretiza ou se realiza na terceira." (obra citada, pág. 57).

   Assentada a idéia de que o nascituro é considerado um sujeito de direitos, ou seja, uma pessoa apta a ser titular de um
   direito subjetivo, não há dificuldades em afirmar que a ordem jurídica assegura os direitos desde a concepção, ou desde o
   primeiro momento de vitalidade, entendida esta como aptidão do ser para a vida.

   Entretanto, como reconhece a ordem jurídica a existência da personalidade do nascituro ? Pontes de Miranda, com sua
   habitual profundidade e iluminação, chegou a enumerar (Tratado do Direito Privado, parte geral, tomo I) nove teorias que
   versam sobre a condição do nascituro: a teoria da ficção - construiu a proteção ao nascituro sobre ficção; a teoria dos
   sujeitos sem direito, de Windscheid; a teoria dos "hereditas iacens", de F. Endemann, que torna a herança sem dono até o
   nascimento se há nascituro; a teoria da eficácia passiva, de Von Ihering; a teoria dos direitos futuros; as teorias da
   condição: aparência da condição, condição em sentido próprio e do análogo à condição; a teoria da representação (curador
   representa o nascituro) e a teoria do sujeito indeterminado, de Stammler.

   O nosso Código Civil adotou várias, teorias, como, v.g., a teoria dos hereditas iacens conforme se vê no art. 1718,
   permitindo ao testador beneficiar um ser concebido, e também aproximando-se da teoria dos direitos futuros, reconhecendo
   a uma pessoa futura, sequer concebida, o direito de adquirir por testamento, na medida em que permite a contemplação de
   uma prole eventual, o que para muitos, melhor se enquadra na teoria da ficção.

   Diz o art. 4º do Código Civil: "A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo
   desde a concepção os direitos do nascituro". Encampou o nosso direito disciplina semelhante ao do Direito alemão,
   português e italiano que se reportam exclusivamente ao fato do nascimento como condição para início da personalidade
   contrariando a do Direito argentino que toma a concepção, isto é, o princípio da vida intra-uterina, como marco inicial da
   personalidade. Há as doutrinas ecléticas, adotadas pelo Código holandês e pelo suíço, que em seu art. 31 dispõe:

   "A personalidade começa com a vida depois do nascimento completo e termina com a morte. Antes do nascimento é a
   criança juridicamente capaz com a condição de que nasça viva."

   O Código Napoleônico parece estar mais próximo da doutrina da concepção como marco para inicio da personalidade
   dando ao ser concebido a capacidade para suceder (art. 725), não obstante deixar a regulamentação da matéria pertinente
   à aquisição e ao gozo dos Direitos Civis para a Lei Constitucional (art. 7º)

   Entretanto, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 ou, pelo menos, a partir da vigência da Lei 8069/90; só se pode sustentar a existência de uma única teoria para disciplinar o tema: a teoria da personalidade jurídica do nascituro,
   ou seja, a teoria da concepção para designar o início da personalidade. A personalidade não começa com o nascimento
   com vida, mas sim no momento da concepção.

   O art. 227 da C.F. versa que se deve assegurar o direito à vida com absoluta prioridade. Logo, longe de pôr a salvo o direito dos nascituros, a Constituição assegurou a eles o supremo direito de garantir a continuidade de vida após o nascimento.
   Veja-se que é um direito assegurado com absoluta prioridade. Assim, de lege ferenda, não é mais possível dar a outros
   interesses (como a honra da gestante) prevalência maior do que o direito do nascituro de nascer com vida. A semelhança
   de legislações alienígenas como a russa, o abortamento nunca deve ser praticado. Nunquam licet directe procurare
   abortum. Certo ou errado, o Legislador Constituinte privilegiou a vida do feto com absoluta prioridade. Não importando que
   fiquem na orfandade outros filhos, o médico não tem mais a opção de salvar a gestante ou o filho, não importando se a
   gestação é proveniente de estupro ou não; nem a honra nem a vida da gestante, com todas as vênias de estilo, podem
   prevalecer em relação à absoluta prioridade da vida do feto.

   Não se pode negar o fato da vida humana no ventre materno. A vida do feto não é uma questão apenas religiosa. É um
   problema humano. É uma questão de saber quem deve viver e quem deve morrer. A Constituição fez sua escolha; poderia
   ter sido outra, mas não foi.

    Como foi dito numa obra especializada sobre o aborto (colhido de um folheto explicativo):

   "Durante dois milênios, na nossa cultura ocidental, especificamente protegida pelas nossas leis e profundamente impressa
   no coração de todos os homens, existiu o valor absoluto de respeitar e proteger o direito de cada pessoa à vida. Este foi
   sempre um direito inalienável e inequívoco. As únicas excepções dão-se quando se considera uma vida por vida em certas
   circunstâncias ou por devido processo legal.

   As nossas novas e permissivas leis do aborto representam uma mudança completa, a rejeição de um dos valores básicos
   do homem ocidental e a aceitação duma nova ética em que a vida tem somente um valor relativo. Já não haverá para todo o
   ser humano o direito absoluta à vida, simplesmente porque existe. Agora, o homem só poderá existir se satisfazer a certas
   normas de independência, perfeição física ou utilidade proveitosa para os outros. Esta é uma mudança grave que ataca a
   raiz da civilização ocidental.

   Não faz diferença alguma assumir vagamente que a vida humana é mais humana depois do nascimento do que antes. O
   que é importante é decidir o que é e o que não é vida humana. Pela medida do "mais" ou "menos" vida humana qualquer
   pessoa pode fácil e logicamente justificar o infanticídio e a eutanásia. Pela medida da utilidade econômica e social
   chegaremos a ter as terríveis atrocidades dos assassínios em massa de Hitler. Não podemos fazer outra coisa senão
   lembrar o comentário angustiado dum Juiz nazista condenado que disse a um Juiz americano depois dos julgamentos em
   Nuremberg: "Nunca pensei que poderíamos chegar a isto". O Juiz americano respondeu simplesmente: "chegou-se a isto a
   primeira vez que condenaste uma vida inocente."

Continua o folheto explicativo da Literatura Pró-Vida:

   "A escolha do aborto como solução dos problemas sociais parece indicar que certos indivíduos e grupos de indivíduos estão
   a tentar levar ao máximo as suas próprias conveniências forçando a aceitar os seus próprios preconceitos. Como resultado
   disto, as estudantes grávidas continuam a ser postas à margem, as mães de crianças incapacitadas têm de arranjar a sua
   vida e os pobres não são ajudados na sua luta para conseguir condições de vida digna. A única solução oferecida a esta
   gente é o aborto. É inquietante pensar que esta técnica médica de destruição possa substituir o amor como modelador das
   nossas famílias e da nossa sociedade.

   Temos de ir para a criação de uma sociedade em que a busca de bens materiais não seja o fim da nossa vida; onde não
   haja crianças esfomeadas e abandonadas; onde mesmo as crianças deficientes tenham valor, porque elas despertam o
   nosso poder de amar e servir sem recompensa. Em vez de destruir a vida, devemos acabar com as condições que tornam a
   vida intolerável. Então, toda a criança sem olhar a sua capacidade ou condição de nascimento será bemvinda, amada e
   atendida."

   Creio que melhor seria o Legislador Constituinte adotar uma posição mais moderada, admitindo, por exemplo, salvar a vida
   da gestante quando ficar cientificamente comprovado que se a gravidez prosseguir, perecerá a gestante e com ela o filho
   que traz no ventre. Ao invés de um sacrifício, são dois. Poderia haver outros casos que justificariam a permissividade para o
   abortamento, mas a Constituição Federal foi de um extremismo terrível. Talvez seja dura demais a doutrina inflexível. Será
   ela divina ? Os céus em fogo, um dia, no alto do Sinai, se abriram para dar aos homens o decálogo como suprema Lei em
   que todas as outras se inspiram. E lá está, escrito pelo próprio dedo de Deus o preceito irrecorrível: Não matarás. Mas
   como não matar para salvar a vida de outrem ?

   É bom que se diga que se a personalidade começa na concepção, tão grave quanto o homicídio é o abortamento, pois em
   ambos os casos estamos tirando a vida de uma pessoa que tem personalidade civil. Mas, registre-se, coisa diversa é
   tipificação penal. Não se vislumbra uma inconstitucionalidade nos dispositivos pertinentes contidos no Código Penal.
   Vislumbra-se, isso sim, de lege ferenda, uma necessidade de alteração do Código Penal pelo menos para suprimir a
   condescendência com o aborto sentimental (da estuprada), o aborto eugenésico (para aqueles que o admitem) e restringir
   ou suprimir o aborto necessário ou terapêutico. Entretanto, não obstante hoje ser atípico, não estão isentos, por exemplo,
   os médicos, da responsabilização civil e administrativa pela prática de aborto em confronto com a Constituição Federal.
   Considera-se, também, insuficiente a proteção penal existente e, pela redação da Constituição Federal, repudia-se qualquer
   tentativa de ampliação, por Lei ordinária, das figuras atípicas do abortamento. Mas, para efeitos civis, o abortamento hoje é
   equiparado ao homicídio.

   Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) adotou a doutrina da proteção integral (art. 1º), dando ao ser, desde a concepção uma proteção especial, assegurando à gestante o atendimento pré e perinatal, alimentação, parto
   com dignidade e outros direitos (art. 8º). Do mesmo jaez o art. 26, parágrafo único, do mesmo diploma legal, assegurando o
   direito de os filhos serem reconhecidos antes do nascimento.

   O ordenamento jurídico, portanto, assegura a proteção ao nascituro não apenas pondo a salvo os seus direitos, mas
   assegurando a sua titularidade adquirida antes do nascimento, pois desde a concepção há pessoa com personalidade e
   capacidade de contrair direitos.

   Dessa forma, é importante ressaltar que o nascituro pode ser parte (sujeito ativo) numa ação cautelar de alimentos proposta
   em face do pai, para assegurar à gestante condições dignas de sobrevivência do feto (alimentação, despesas médicas,
   etc.). Pode também ser proposta, em face do pai, uma ação de investigação de paternidade (obviamente a prova deve ser
   diferenciada, pois não seria possível, antes do nascimento, o exame do D.N.A. completo). Não há dúvida de que o pai não
   declarado reconheça o nascituro como filho (conforme art. 26, parágrafo único, da Lei 8069/90). Pode, também, o nascituro ser sujeito ativo de uma ação proposta em face do Poder Público para, utilizando-se dos arts. 212 e 153 da Lei 8069/90, pedir apoio alimentar à gestante e à nutriz (conforme art. 8º, § 3º, da mesma Lei). Inquestionavelmente insere-se o nascituro na condição de descendente, na ordem de vocação hereditária, sendo herdeiro a partir da abertura da sucessão (princípio de Saizine). Pode-se, embora seja de difícil viabilização prática, suspender a gestante, que pretenda abortar, do serviço do pátrio-poder e tomar as medidas necessárias para assegurar o nascimento do feto. Enfim, todas as medidas judiciais que se destinem a assegurar direitos já adquiridos do nascituro (ou mesmo aqueles que a Lei põe a salvo) podem ser propostas em nome do nascituro, que é parte material). Os direitos que lhe competem podem se tornar efetivos antes do nascimento, obviamente dentro da possibilidade jurídica do seu gozo. É bom distinguir os direitos da gestante dos direitos do nascituro.

   E aqui vale represtinar a lição de R. Limongi França: o embrião está para a criança, assim como a criança está para o
   adulto. Pertencem aos vários estágios de um mesmo e único ser: o homem, a pessoa. Desta maneira, não se pode deixar
   de reconhecer que, existir, ter personalidade e capacidade para ter direitos e contrair deveres (art. 2º do Cód. Civil), não
   significa dizer que se possa exercer esses direitos. Somente quem possui a chamada capacidade de fato ou de exercício
   pode plenamente exercer os direitos a cumprir os deveres. O nascituro (assim como os que se enquadram no art. 5º do
   C.C.), a exemplo do que ocorre com os recém-nascidos, nada sabem da vida, são imaturos e incapazes de se conduzir.
   Mas é uma heresia jurídica dizer-se que a incapacidade absoluta do feto significa absoluta incapacidade.

   A lei reconhece a necessidade do exercício dos direitos e cumprimento dos deveres tanto para os absolutamente incapazes
   como para os relativamente incapazes, devendo, para tanto, haver um suprimento dessa incapacidade através do instituto
   da representação (se for absoluta) e assistência (se for relativa). Versa o art. 142 da Lei 8069/90, in verbis:

   "Os menores de dezesseis anos serão representados e os maiores de dezesseis e menores de vinte e m anos assistidos
   por seus pais, tutores ou curadores, na forma de legislação civil ou processual.

   Parágrafo único. A autoridade judiciária dará curador especial à criança ou adolescente, sempre que os interesses desde
   colidirem com os de seus pais ou responsável, ou quando carecer de representação ou assistência legal ainda que
   eventual."

   Dessa forma o nascituro, absolutamente incapaz, é representado por quem detém ou deterá o pátrio-poder ou na sua falta
   por um curador que pode ter representação de direito material (art. 462 do C.C.) ou exclusiva representação processual
   (Curador especial - que é o Defensor Público - art. 142, par. único, in line). A propósito, vide ensaio publicado no Livro
   Introdução Crítica ao Direito Penal e Processual Penal, entitulado do Curador Especial no Processo Penal, Civil e no Direito
   da Criança e do Adolescente. (Ed. Lumen Juris, 1995)

   Antes da vigência da Lei 8069/90, por certo, a maioria dos doutrinadores teria como ponto pacífico que o fato de se pôr a
   salvo os direitos do nascituro não significa a outorga da personalidade.

   Todavia, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao dispor sobre a proteção integral à criança e ao adolescente (art. 1º),
   afirma que a criança é a pessoa (grifos nossos) até doze anos incompletos (art. 2º). Como já deixamos registrado a pessoa
   é o ser que se forma na concepção e por isso o início da proteção integral se dá ainda no feto e a partir do primeiro sinal de
   vida no ventre materno começa a personalidade do nascituro.

   Reforça ainda mais esse entendimento a redação do art. 7º do Estatuto (Lei 8069/90) que assegura a proteção à vida e à
   saúde da criança mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio
   e harmonioso, em condições dignas de existência. Logo, o ser, convém repetir, tem o direito de continuar vivo após o
   nascimento, tem o direito de nascer com vida e esse direito é absoluto e prioritário, sem exceções.

   Dessa forma, a personalidade física começa com o nascimento e retroage à data da concepção, na hipótese de haver
   nascimento com vida, e a jurídica começa na concepção. A adoção da teoria condicional, preconizada por Clovis Bevilaqua,
   segundo a qual a personalidade existiria desde a concepção, mas sob a condição do nascimento com vida não se mostra
   adequada. A vida é privilegiada desde a concepção e a personalidade também.

   Ainda de lege ferenda, deve a Lei 8069/90 ser alterada para explicitamente, colocar o início da personalidade na concepção
   incondicionalmente, ou seja, independente do fato de nascer ou não com vida o nascituro. Isso resolveria muitos problemas
   na ordem jurídica, sobretudo no campo do direito sucessório. Ninguém tem dúvida de que o nascituro é herdeiro, podendo
   inclusive ser contemplado por testamento. Pois bem, aberta a herança, provocando um herdeiro necessário um
   abortamento, quem herdaria ? Se a teoria da concepção for incondicional, a genitora (por representação) herdaria na ordem
   da sucessão hereditária. Caso contrário, o provocador do abortamento seria beneficiado.

   Na verdade não há diferença substancial em provocar abortamento e matar a um recém-nascido. Para fins civis não poderia
   haver conseqüências jurídicas diferenciadas, sobretudo no campo sucessório. Como a pessoa tem o direito de nascer com
   vida, não se pode penalizá-la duas vezes se nascer morta, pois além de estar privada de seus direitos estará sem vida. Pelo
   menos que se compensem os seus herdeiros, se for o caso.

   Muitas considerações poderiam ainda ser feitas e outros argumentos poderiam vir a lume. Entretanto, espera-se que a
   argúcia dos juristas contribua para o aprimoramento do instituto e as eventuais discordâncias das idéias aqui expostas
   sirvam para engrandecer os debates e aclarar os caminhos jurídicos a serem tomados.

   Propositadamente não se mencionaram os problemas da fecundação artificial, da proveta, mas deixa-se bem patenteado
   que somente a vida concebida no ventre humano é considerada para fins de personalidade. Mas o tema comportaria outras
   considerações que ficarão para outra oportunidade.

    Concluímos repetindo a frase estampada no preâmbulo esperando que todos considerem que:

   "A personalidade civil começa na concepção. A partir daí o nascituro existe como pessoa, é sujeito de direitos e tem o
   direito constitucional prioritário de nascer com vida e continuar vital sendo defeso o abortamento. Daí o termo inicial para
   aquisição da personalidade não se sujeitar ao condicionamento do ser nascer com vida."
 

Retirado de: http://www.abmp.org.br