® BuscaLegis.ccj.ufsc.br
 
 

SECRETARIA DA JUSTIÇA E DA DEFESA DA CIDADANIA.

Publicações - Cidadania, Verso e Reverso
Trajetórias de Crianças e Jovens das Classes Populares
 
Rubens de Camargo Ferreira Adorno
Professor Associado do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública - USP

A violência e a referência a drogas como o "crack" apresentam-se hoje, de maneira reflexiva, presentes no cotidiano da população. A divulgação e o tratamento dado ao problema através da media, rádio, jornais, noticiários de televisão, os tornam parte do cenário cotidiano. Risco real e risco virtual se misturam a partir da aproximação de uma criança à janela do carro. A presença de qualquer jovem de feições pobres ao lado de cidadãos motorizados passa a representar uma ameaça, seja essa real, seja aquela que passa a fazer parte do imaginário da população.

"Crianças abandonadas", "jovens de rua", "infratores", "meninos de rua" passaram a ser os qualificativos atribuídos a essas crianças e jovens, entrevistos como ameaçadores ou como "abandonados" , fora da família e soltos pela cidade e por isso "não cidadãos"

O termo "meninos de rua" passou a se consagrar e ser conhecido nas décadas mais recentes, expressando a história da ação de um conjunto de atores da sociedade brasileira que lutaram contra a discriminação e a discriminalização de crianças e jovens - através do plano político institucional, voltando-se para os poderes legislativos e judiciários e inscrevendo conquistas no plano institucional da sociedade, como foi a história do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente.

Considerados até então (e ainda no cotidiano) como menores "infratores" de rua ou "soltos" na rua, ou "crianças abandonadas", são ainda alvo e argumento para o apelo ao assistencialismo e a repressão, esta última aumentando à medida em que diminuem os recursos e os grupos que desenvolvem trabalhos abordando as situações de rua de forma direta.

Na história recente registrou-se o desenvolvimento de atividades e programas voluntários, de organizações não governamentais, ou mantidas por instituições oficiais, que através de oficinas, espaços, "circos-escola" e jogos vem buscando manter outras perspectivas de vínculo e de comunicação, partindo da utilização do espaço "rua". 

Esse quadro possibilitou olhar não apenas para os "meninos de rua" como um "problema social", mas como uma expressão social urbana contemporânea que suscita ao mesmo tempo a discussão sobre a cidade, as formas de vida e de conduta, que tanto podem ser pensadas no plano local - a cidade de São Paulo, como nas suas vias de contato com outras cidades contemporâneas, em que a presença dos jovens pobres ficam contidas em "guetos" específicos, identificados como imigrantes, não pertencentes às sociedades nacionais como em cidades européias, ou como comunidades étnicas, como nos Estados Unidos.

Nos trabalhos de pesquisa que desenvolvemos, passamos a utilizar a expressão "crianças e jovens em trânsito para as ruas" para falar de um conjunto de situações que descrevem o cotidiano desses cidadãos que tiveram sua trajetória a partir da periferia das cidades brasileiras, sendo em sua maior parte filhos de famílias de baixa renda, pobres, e não necessariamente miseráveis. Famílias que ganham a vida em serviços domésticos ou da construção civil, ou a partir de estratégias de sobrevivência, do trabalho informal. Longe de terem seus problemas de moradia, saúde, educação, previdência social atendidos por políticas sociais do Estado, por si mesmas, usando terrenos coletivos, onde passaram a construir cômodos para resolver seus problemas de moradia. E, quando impossibilitados ou excluídos da força de trabalho, passam a obter pequenos e precários benefícios, remendos que asseguram, no limiar, a cesta básica de sobrevivência.
 

São crianças e jovens vulneráveis cidadãos não filhos da miséria, mas da condição de vida, cidadania e trabalho dos pobres, das famílias assalariadas e hoje de trabalhadores informais de baixa renda.

Ao falar de "crianças e jovens em trânsito e em direção à rua", procura-se situar um conjunto de experiências de vida, de "estilo de vida", marcados e construídos por adesão a um espaço, que por ser amplo, exposto, desprotegido e alvo de assédios, requer a construção de estratégias, de mecanismos de manipulação e de defesa que acabam por formar um tipo de sociabilidade que se produz e reproduz tendo como referência o grupo, "a turma", o "bando", que se opõe à casa, à família, como forma de organização de vida, que tem sido negativa para esses jovens, não apenas pela experiência social da pobreza. 

Por oposição à casa, a rua representa um conjunto de territórios que rompe com a dimensão do tempo, violentando limites, entre possível e impossível. "Zoar" nesse espaço significa transitar, ir de um espaço para outro, obter as coisas que o mundo da casa não permite. Essa condição procura expor, mascarar ou negar a reprodução da condição de vida do bairro, da família, que é relatada como um local do qual se procura sair. 

Nessa interpretação do fenômeno social da criança/jovem em direção à rua, vamos ver aspectos como a construção de um modo de vida: a sobrevivência a partir da exposição às ruas, o contato com as redes que manipulam drogas, armas e subsidiam as formas de vida violentas, ao lado também da violência e da deterioração física da cidade, e no corpo dos que aí habitam a marca de uma intensa energia e resistência a esse mundo muito rápido, ágil, fugaz, que tem um outro tempo: o de zoar, o de "dançar" ou não "dançar" de repente, o de viajar, ou o de ficar horas sentado/ deitado em um banco com um cobertor e um saquinho de cola, até há um ano atrás de esmalte, conversando bobagens, dormindo, viajando de olhos fechados ou juntando-se de repente para dar um giro, para apanhar alguma coisa, conseguir algum bagulho, algum trocado e traçar alguma coisa. 

Todos se conhecem como uma grande "horda", "clã", os contatos podem ser mais próximos com alguns da "turma" mais próxima. Conhecem-se a todos e principalmente participam de um mesmo código de mensagens, em que avisos como presença de um outro tipo de polícia, traficante, ou então "sujou", ir parar outro lugar, agir, são comunicados.

Cabe destacar que o crescimento hoje do "crack" dentro desse circuíto no cordão central da cidade de São Paulo, vem causando um estreitamento da vivência das ruas na cidade.

Nesse texto narramos alguns trechos de observações e entrevistas que fizemos na região central da cidade de São Paulo1, intercalando texto e trechos de diários de campo que descrevem mais diretamente as situações compartilhadas.


1. "Crianças e Jovens em Trânsito para a rua: um problema de saúde Pública", financiada pela FAPESP, e realizada com a participação de Paulo Malvasi, Luis Antonio Barata e Fernanda Fernandes, alunos do Curso de Ciências Sociais da USP e bolsistas de Iniciação Científica da FAPESP e do CNPq.
 
 
 

 

Retirado de: http://www.justica.sp.gov.br/vrev_11a.htm