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Adopção — um direito para algumas crianças (*)

MARIA DULCE ROCHA
Delegada do Procurador da República
Portugal

 
 

O instituto da adopção esteve arredado do nosso ordenamento jurídico durante quase 100 anos. O Código Civil de 1867, mais conhecido por Código de Seabra, não inclui a adopção nas fontes de relações jurídicas familiares e essa circunstância tem ainda hoje consequências graves a nível cultural, na medida em que não existe uma consciência generalizada de que a institucionalização de uma criança deve ser o último recurso, por ser um direito da criança ter o afecto de um pai e de uma mãe.

O nosso País esteve praticamente isolado na previsão exclusiva da filiação biológica, e o certo é que de tal forma foram influenciados os espíritos que ainda hoje, 30 anos depois da reintrodução da adopção, os estudos nacionais que se conhecem cujos títulos mencionam a filiação apenas se referem à filiação biológica, sem que nenhuma alusão seja feita à filiação adoptiva.

Em boa verdade, não poderei deixar de precisar que, apesar de ter sido em 1966 que se reintroduziu a adopção no Código Civil, só doze anos mais tarde foi possível aos menores abandonados e maltratados serem adoptados plenamente, porque em 1966, ainda que os pais se mostrassem indignos ou tivessem demonstrado manifesto desinteresse ou tivessem colocado em perigo a vida do filho em termos de tornar irreversível a ruptura da relação afectiva, as crianças apenas poderiam beneficiar de uma adopção restrita, não adquirindo, portanto, a qualidade de filhos dos adoptantes. A adopção plena era apenas possível para os filhos de pais incógnitos ou falecidos.

Esta alteração foi muito criticada pelos sectores mais conservadores, porque continuavam a entender dever ser inteiramente excluída a adopção, e pelos sectores progressistas, porque se deixavam por resolver os casos mais dramáticos e em maior número, a justificar uma decisão diversa, a que aquela solução de compromisso não conseguiu dar resposta adequada.

É que a adopção não foi apenas ignorada pelo nosso sistema jurídico. Foi mesmo hostilizada. Sendo certo que durante os sécs. XVII e XVIII e quase todo o séc. XIX se assistiu a um declínio da adopção por toda a Europa, nos finais do séc. XIX, por influência do Código Civil francês, a adopção foi consagrada em vários códigos europeus, designadamente no espanhol e no italiano.

Mas é já no séc. XX, especialmente a partir da 1.ª Guerra Mundial, que se assiste a um movimento de consagração legal da adopção com os contornos que hoje lhe conhecemos, consequência sobretudo de um sentimento de solidariedade para com os órfãos de guerra, inscrevendo-se como uma medida de protecção à infância.

Após a 2.ª Guerra Mundial, um novo incremento foi dado à adopção. Nos Estados Unidos e na Europa eram publicados estudos sobre a família adoptiva e procurava-se a nível internacional estabelecer regras aceites por vários Estados no que respeita ao instituto da adopção.

Portugal mantinha-se arredado deste movimento e a classe que então dominava o País parecia resistir teimosamente às novas concepções.

O Tribunal da Relação de Lisboa, em Dezembro de 1956, proclamava que «a instituição da adopção não é admitida em Portugal por contrária aos princípios fundamentais do nosso direito de família».

E o certo é que de tal forma se interiorizou esta ideia que o Prof. Antunes Varela teve de expressamente argumentar a favor da constitucionalidade da adopção quando, como Ministro de Justiça, fez a apresentação do Código Civil perante a Assembleia Nacional.

Portugal corria o risco de ficar ainda mais isolado a nível internacional, porquanto os Estados membros do Conselho da Europa (Alemanha Federal, Dinamarca, França, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Malta, Noruega, Suécia, Suíça, Reino Unido) assinariam em breve a Convenção Europeia em Matéria de Adopção de Crianças — o que viria a suceder em 24 de Abril de 1967 (sendo que vários outros Países — Áustria, Bélgica, Chipre, Islândia, Países Baixos e Turquia — participaram nos trabalhos preparatórios). Portugal só viria a aprovar a Convenção para ratificação em 31 de Janeiro de 1990.

Estou a relatar de uma forma o mais telegráfica possível estes eventos e vou apenas abordar levemente algumas causas destes fenómenos.

Um artigo publicado no jornal «Público», no passado fim-de-semana, referiu serem dez mil as crianças internadas em lares da Segurança Social. É preocupante a dimensão deste problema, a aconselhar medidas urgentes com vista a alterar substancialmente este estado de coisas.

Seria bom que o Parlamento retomasse este tema e que procurasse obter depoimentos não só de psicólogos tradicionais, mas também de sociólogos sociais, pedo-psiquiatras e do Inspector-Geral de Segurança Social.

A exclusão da adopção teve na sua base concepções ultrapassadas em que se fazia corresponder casamento a procriação, olhando-se a mulher como instrumento de reprodução.

A capacidade de reprodução era olhada como sinónimo de virilidade e a esterilidade era considerada sempre causada por incapacidade feminina. O marido podia repudiar a mulher que lhe não desse filhos, e na nobreza os duques e os condes chegavam a repudiá-las por não darem à luz filhos varões.

Hoje os conhecimentos científicos, a descoberta do DNA designadamente, vieram desmentir todos esses mitos e a família deixou de ser olhada como célula reprodutiva, com a máxima exigência da descendência, e passou a ser mais importante a afectividade entre os seus membros.

A profundidade da relação afectiva passou a constituir a mais relevante característica de uma família de qualidade. É assim que, com os conhecimentos científicos actuais, nomeadamente com os contributos da Psicologia e da Pedopsiquiatria, e também da Biologia, obviamente, se chegou ao reconhecimento, por um lado, da necessidade do afecto e do estabelecimento de laços profundos e individualizados na infância para a formação de uma personalidade estruturada e equilibrada e, por outro lado, se proclama como direito da criança o crescer em ambiente familiar que permita um desenvolvimento harmonioso.

E é também assim que ao endeusamento das instituições de internato sucede o reconhecimento da família como o meio adequado para o desenvolvimento saudável e integral da criança.

Simultaneamente, o maior relevo dos direitos fundamentais reflecte-se também na dignificação do papel da mulher e da criança, quer ao nível do exercício dos direitos proclamados, no que respeita à mulher, quer ao nível da aceitação como sujeito de direito e de direitos, no que respeita à criança, daí resultando que a adopção não é já apenas uma situação tolerada, mas é agora uma situação aprovada socialmente, não obstante ser ainda culpabilizada a mulher que entrega um filho para adopção.

A Constituição da República passou a fazer uma referência expressa à adopção no art. 36.º, n.º 7, que refere que a adopção será regulada e protegida nos termos da lei — revisão de 1982.

Estamos assim chegados a uma questão importante, que é a de saber se do comando constitucional já foram tiradas as devidas consequências na legislação ordinária.

Penso que não. É que, pese embora ter sido feito um esforço que não é de mais registar, creio não se terem obtido os efeitos esperados.

As crianças continuam a aguardar, «depositadas» nos centros de acolhimento e em outras instituições (lares de internato), anos e anos, sem o calor, sem o afecto, sem o direito a um colo, como disse um dia com muita propriedade o Dr. Villas Boas, Director do Refúgio Aboim Ascenção.

A expressão feliz do Dr. Villas Boas contrasta com a expressão depreciativa da lei que, ao falar em «depósito de menor», desvaloriza a criança, tratando-a como um objecto de direitos.

Tenho a certeza absoluta de que não foi reduzido o tempo de espera de uma criança, em condições de ser adoptada, na instituição (relembro mais uma vez as palavras do Secretário de Estado Rui Cunha que disse estarem internadas cerca de dez mil crianças), a não ser que haja circunstâncias excepcionais que possibilitem a integração da criança numa família alternativa, como a prestação do consentimento dos pais.

Nos casos em que não é viável a confiança administrativa, a situação da criança pode ser analisada por três juizes sucessivamente, sem que isso signifique maior segurança e rigor, e sendo certo que, para a criança, maior tempo de espera numa instituição significa mais sofrimento, mais angústia, mais solidão afectiva, impossibilidade de estabelecer aquela relação, aqueles laços únicos, que só o amor de um pai e//ou de uma mãe permitem.

Após reflexão e discussão com outras colegas, a maior perplexidade de todas vai para a recusa da legitimidade para propor a acção de confiança judicial, com vista à adopção, aos candidatos à adopção. Ou seja, é indubitável o interesse em agir, mas a nossa lei não considera legítimo esse interesse.

Vejamos o caso de um menino que, desde os seis meses, está a cargo de uma família que o criou e o salvou de um incêndio ocorrido na barraca da mãe e da avó, ambas com debilidade mental, acentuada no caso da avó, ligeira no caso da mãe. Esta chegou a prestar serviços de limpeza na casa do casal de acolhimento. Na sequência do incêndio, foi viver para mais longe, em local inacessível. O menino tem entretanto três anos. Chama pai e mãe ao casal. A mãe biológica há dois anos deixou de visitar o filho, vê-o apenas na rua, sem se aproximar. Já teve outro filho, que veio a falecer por causa desconhecida. Hoje é toxicodependente, prostituindo-se para conseguir dinheiro para adquirir a droga. O casal afeiçoou-se à criança e pretende adoptá-la, mas o elemento masculino completou entretanto cinquenta e um anos. A relação afectiva entre a criança e os pais psicológicos é excelente. O pai dirigiu-se à mãe biológica expondo a pretensão e ela deu-lhe a entender que pretendia dinheiro para a droga e afirmou que um dia destes iria buscar a criança. Desesperados, os candidatos à adopção vão ao Tribunal de Menores. Passado um ano, o Tribunal de Menores, após vários relatórios sociais, comprovado o risco manifesto da situação da criança, proferiu sentença, atribuindo visitas à mãe. A mãe, durante mais sete meses, depois da notificação da sentença, não visitou o filho. E, entretanto, de acordo com a lei que temos, este casal não pode dirigir-se a um juiz a pedir a confiança judicial com vista à adopção, sendo certo que nem por ter já uma sentença de um outro juiz a confiar-lhe a criança lhe é reconhecido esse direito, quanto mais o de propor a acção de adopção directamente.

Estes processos não reconhecem o casal de acolhimento, cônjuges candidatos a adoptantes, como partes, o que se traduz num tratamento de inferioridade, e porque não dizê-lo abertamente, num menosprezo pelos seus direitos constitucionais, na medida em que não está a ser respeitada a protecção devida à adopção.

Decerto que não se previram todas as consequências da lei, tanto mais que já a Organização Tutelar de Menores tem idêntico comportamento, visto que, embora lhes atribua legitimidade para requerer a confiança, não lhes permite recorrer, o que os deixa numa situação de enorme desconforto processual, ignorando sempre o que se decide acerca da situação de criança que estão a criar, a amar e a cuidar com todo o carinho e a quem tantas vezes querem que seja dada a qualidade de filho.

Outra questão que deveria ter merecido a consideração de situações excepcionais é a idade em que manifestamente o interesse do menor aconselha a adopção por pessoa com mais de 50 anos e no caso de cônjuges fazer-se a exigência apenas relativamente a um deles. Deveria ter-se tido em conta situações excepcionais visto que elas fazem parte da vida, e uma limitação tão rígida em leis desta natureza pode prejudicar a criança.

Por fim, creio ser uma exigência da criança, pelo respeito que deve merecer o seu bem-estar e o seu equilíbrio emocional, que, quando após decisão do Tribunal de Menores a confiar a criança aos cuidados do Centro Regional se chegue à conclusão que estão reunidos os pressupostos para propor a acção de confiança judicial com vista à adopção, deverá nessa altura decidir-se o corte das visitas aos pais biológicos. Na verdade, não faz sentido que o Centro Regional, ou o Ministério Público na comarca, estejam a propor a acção com vista ao estabelecimento do novo vínculo jurídico e permaneça o direito dos pais biológicos às visitas, quando foi justamente por se terem considerado irremediavelmente comprometidos os laços com a família biológica que se decidiu investir na família alternativa.

Outros procedimentos poderão, à semelhança de legislações de outros países mais habituados à adopção e por isso com uma cultura mais enraizada nas práticas quotidianas, facilitar o estabelecimento da filiação adoptiva, mas creio bem que estes são talvez aqueles que, dignificando o papel dos candidatos a adoptantes, se traduzirão afinal num apoio à família adoptiva e assim lograrão pôr em prática o preceito constitucional que proclama o dever de protecção da adopção pela lei ordinária.

(*) Intervenção na qualidade da Vice-Presidente da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas na Audição Parlamentar sobre Adopção, que teve lugar no dia 21-2-97, promovida pelas Comissões de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e para a Paridade e Igualdade de Oportunidades e Família.


Retirado de: http://www.smmp.pt/rocha.htm