® BuscaLegis.ccj.ufsc.br

 

A Disciplina Jurídica da Filiação

Gustavo Tepedino




          Resumo:
          O presente texto expõe a evolução legislativa da disciplina da família e da filiação  no direito brasileiro,
          constatando que houve grande mutação na sua abordagem. Se anteriormente os diplomas legais tinham
          como objetivo oferecer máxima proteção à paz doméstica, hoje privilegiam a criança e o adolescente
          considerando sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento. A família instituição fundada no
          casamento indissolúvel, no poder marital  e no  poder paterno extremado cedeu lugar  à família
          instrumento, consubstanciada não necessariamente no casamento, mas sim na paridade dos cônjuges
          e na democratização da personalidade de quantos a compõem. No tocante ao último aspecto, é
          importante frisar que o direito pátrio segue nítida tendência de conferir aos filhos maior autonomia,
          devendo este ser sempre que possível ouvido em juízo quando  a demanda referir-se a ele, podendo
          ainda propor ação sem a anuência dos pais e até mesmo contra estes.
 
 

      Evolução Legislativa e Igualdade Constitucional da Filiação
 

   Dentre as inovações mais significativas da Constituição de 5 de outubro de 1988 situa-se o art. 227, § 69, pelo qual "os
   filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e, qualificações, proibidas
   quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação". O preceito, reproduzido no art. 20 da Lei n. 8.069, de 13 de
   julho de 1990, o chamado Estatuto da Criança e do Adolescente, constitui o último patamar de uma longa e tormentosa
   evolução legislativa, que altera radicalmente o tratamento diferenciado conferido pelo legislador civil aos filhos, segundo a
   espécie de relação existente entre seus pais 2.

    A filiação, de acordo com o Código Civil Brasileiro qualificava-se como civil, quando derivada da adoção e, se oriunda da
    consangüinidade, legítima ou ilegítima. A primeira destas resultava do casamento válido; a segunda, da relação sexual
    extramatrimonial.

   Os filhos ilegítimos, por sua vez, eram considerados filhos naturais, quando derivados de relação extramatrimonial entre
   pessoas sem impedimento legal para o casamento; e chamados espúrios, se fruto de relação entre pessoas com
   impedimento legal para o casamento. A designação de filhos espúrios compreendia tanto os filhos adulterinos, isto é,
   oriundos de relação adulterina, onde pelo menos um dos pais, no momento da concepção, se encontrava casado com
   terceira pessoa, como os filhos incestuosos, provenientes de relação sexual entre parentes próximos.

   Para pôr em realce o tratamento legislativo discriminatório, basta sublinhar alguns dispositivos do Código Civil. O art. I. 605,
   § 12, conferia ao filho natural apenas a metade do quinhão hereditário reservado ao filho legítimo. O art. 358 dispunha que
   "os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos".

   Quanto aos filhos adulterinos, o Decreto-Lei n. 4.737, de 24 de setembro de 1942 3 e a Lei n. 883, de 21 de outubro de
   1949. permitiram o seu reconhecimento, desde que, nos termos deste último diploma, "dissolvida a sociedade conjugal",
   hipótese que se ampliou com a Lei n. 6515, de 26 de dezembro de 1977, a chamada Lei do Divórcio, que acrescentou
   parágrafo único ao art. 1º da mencionada Lei 883/49, permitindo o reconhecimento do filho adulterino também "por
   testamento cerrado, aprovado antes ou depois do nascimento do filho, e nesta parte, irrevogável". Nova alteração da Lei
   883/49, por obra da Lei 7.250, de 14 de novembro de 1984, ampliou ulteriormente as hipóteses de reconhecimento de filho
   adulterino: "Mediante sentença transitada em julgado, o filho havido fora do matrimônio poderá ser reconhecido pelo cônjuge separado de fato há mais de 5 (cinco) anos contínuos" Art. 1º, § 2º L. 883/49).

   No tocante aos filhos naturais, a Constituição de 1937, em seu art. 126, equiparou-os aos filhos legítimos, dispondo:
   "Aos filhos naturais, facilitando-lhes o reconhecimento, a lei assegurará igualdade com os legítimos, extensivos àqueles os
   direitos e deveres que em relação a estes incumbem aos pais".

   Doutrina majoritária sustentou a plena eficácia do dispositivo 4, considerado, todavia, sem validade por muitos, com base ora na falta de regulamentação do Texto, ora na ilegitimidade da Carta outorgada de 1937, a qual não se seguiu o plebiscito
   popular, previsto no art. 187 do mesmo Texto, e que, segundo se argumentou, lhe serviria de pressuposto de legitimidade
   ("Esta Constituição entrará em vigor na sua data e será submetida ao plebiscito nacional na forma regulada em decreto do
   Presidente da República") 5.

   Prevaleceria, para esta corrente, o art. 1. 605, § I Q, do Código Civil 6, e, para os filhos adulterinos reconhecidos, o art. 2º
   da Lei 883/49, pelo qual, para efeitos sucessórios, e "a título de amparo social", ao filho reconhecido na forma daquela lei
   cabia a metade da herança que viesse a receber o filho legítimo ou legitimado 7.

   A Lei do Divórcio, de toda sorte, trinta anos depois da Carta de 1937, revogaria expressamente o art. I. 605, § 19 (art. 54) 8, alterando, ainda, o referido art. 22 da Lei 883/49, determinando a plena igualdade de direitos de todos os filhos, para efeitos sucessórios: "Qualquer que seja a natureza da filiação, o direito à herança será reconhecido em igualdade de condições"
   (art. 51).

   Mesmo depois desta última disposição, entendeu-se, majoritariamente, que a igualdade sucessória se restringiria aos filhos
   reconhecidos na forma da Lei 883/49, alvo específico do legislador de 1977, não se aplicando a isonomia aos filhos
   insuscetíveis de reconhecimento (mantendo-se assim em vigor o aludido art. 358, Código Civil), nem aos filhos adotivos.

   A propósito dos filhos adotivos, o art. 377, em sua versão primitiva, tornava ineficaz a adoção posterior à concepção pelo
   adotante de outro filho. O mesmo preceito, com a redação da Lei n. 3.133, de 8 de maio de 1957 (que admitiu a adoção por casais que já possuíssem filhos reconhecidos), determinava que "quando o adotante tiver filhos legítimos, legitimados ou
   reconhecidos, a relação de adoção não envolve a de sucessão hereditária". Com o preceito combinava-se o § 2' do art.
   1605:
 

   "Ao filho adotivo, se concorrer com legítimos, supervenientes à adoção, tocará somente metade da herança cabível a cada
   um destes. Ambos os dispositivos continuaram a ser aplicados majoritariamente após a edição da Lei do Divórcio,
   entendendo-se compatível com a propalada igualdade de direitos sucessórios, seja qual fosse a natureza da filiação, o
   escancarado ataque ao quinhão hereditário do filho adotivo" 9.

   O art. 227, § 69. da Constituição Federal de 1988, portanto, põe fim a uma longa história de discriminações, e a rigor
   poderia evitar maiores investigações em tema de igualdade, encerrando o debate doutrinário, tal a clareza do Texto 10.

   Todavia, a resistência da doutrina em absorver a plena igualdade, sustentando a manutenção das designações
   tradicionalmente adoradas e a proibição do reconhecimento dos filhos (ainda chamados de) espúrios 11, levou o legislador
   ordinário a revogar, expressamente, o art. 358 do Código Civil (Lei' 7.841 de 17 de outubro de 1989), reproduzindo, ainda, o preceito constitucional no art. 20 do Estatuto, em sintomática redundância: "Os filhos, havidos ou não da relação do
   casamento ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias".

    2 - O Reconhecimento dos Filhos e as Ações de Estado Aspectos Controvertidos, a Presunção de
    Aspectos Controvertidos, a Presunção de Paternidade do Marido
 

    De outra parte, a atitude refratária ao Texto Constitucional, nostálgica tentativa de restauração do ancién régime, serve de
    advertência para o intérprete, suscitando a reflexão sobre alguns aspectos polêmicos em tema de igualdade da filiação, em
    particular no que concerne ao reconhecimento dos filhos e às ações de estado.

   Em primeiro lugar, não se pode pretender em vigor os dispositivos da Lei 883/49 (art. 12 e seus parágrafos) que
   condicionam o reconhecimento do filho adulterino à dissolução da sociedade conjugal, ou à separação de fato há mais de
   cinco anos, ainda que tais preceitos tenham representado, a seu tempo, indiscutível avanço legislativo. A isonomia da
   constitucional determina que a possibilidade de reconhecimento dos filhos seja incondicional, libertando-os das
   circunstâncias jurídicas e morais que envolvem as relações dos pais.

   Apresenta-se igualmente incompatível com o Texto de 1988, não tendo sido, portanto, recepcionado pela nova ordem
   constitucional, o art. 42 da Lei 883/49, pelo qual os direitos dos falhos adulterinos, durante a sociedade conjugal do pai
   casado, limitava-se à pretensão alimentícia.

   Também incompatível com a isonomia constitucional é o art. 32 da mesma Lei 883/49, dispondo que o cônjuge, casado
   pelo regime de separação de bens, na falta de testamento, tinha direito à metade dos bens deixados pelo outro, se
   concorresse à sucessão exclusivamente com filho adulterino reconhecido. O edito, destinado a proteger o cônjuge, criava
   injustificável discriminação dos filhos adulterinos, aos quais se conferia quinhão hereditário repartido com o cônjuge,
   concurso inexistente no caso de filiação legítima ou natural.

   Questão de grande relevância, a suscitar, provavelmente, vivo debate, refere-se à filiação adulterina a marte, diante da
   vetusta presunção de paternidade do marido: pater is est quem nuptiae demonstrant. A regra, como se sabe, foi acolhida
   integralmente pelo art. 344 do Código Civil brasileiro, segundo o qual "cabe privativamente ao marido o direito de contestar a legitimidade dos falhos nascidos de sua mulher".

   Cuida-se de grave obstáculo à investigação de filho adulterino de mulher casada, justificável "no interesse da paz
   doméstica" 12. Observa-se, a propósito, ser a ação de contestação de paternidade legítima, além de privativa do marido,
   sujeita a duas ulteriores restrições. No que tange ao prazo decadencial para propô-la, deverá ser intentada nos dois meses
   contados do nascimento, se o marido era presente, ou em três meses se o marido encontrava-se ausente ou se lhe
   ocultaram o nascimento, contando-se o prazo a partir de seu retomo ou da ciência do fato (art. 178, §§ 32 e 4-, I). A outra
   restrição consiste na vedação da ação de contestação de paternidade em favor do marido que, ao se casar, tinha ciência da
   gravidez da mulher e do respectivo parto, sem que se opusesse ao registro do filho como seu 13.

    Tais obstáculos hão de ser examinados à luz da isonomia constitucional e da legislação especial.

   Examine-se, em primeiro lugar, o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõe: "O reconhecimento de
   estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus
   herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça".

   Já anteriormente à Constituição de 1988, a Lei 7.250/84 admitiu o reconhecimento do filho havido fora do matrimônio pelo
   cônjuge separado de fato há mais de 5 anos, contribuindo para atenuar a presunção pater is est quem nuptiae demonstrant,
   processo evolutivo que se consolidaria com a igualdade constitucional dos filhos, conforme registra a doutrina e tem sido
   reconhecido pela jurisprudência 14.

   Registre-se, em seguida, a entrada em vigor da Lei n. 8.560, de 29 de dezembro de 1992. Pelo art. 12 desta Lei o
   reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento poderá ocorrer, de modo irrevogável, pelo simples registro de
   nascimento, sem cogitar o legislador do estado civil dos pais.

   Nos termos do art. 2º da mesma lei, na hipótese de apenas a maternidade ter sido estabelecida, com o comparecimento da
   mãe sem a presença do pai, o oficial remeterá ao juiz a certidão do termo de registro, a fim de ser notificado o suposto pai
   e, caso este não admita a paternidade espontaneamente, poder ser investigada a paternidade que lhe foi atribuída, sob a
   iniciativa do Ministério Público.

   Interpretando-se tais dispositivos de acordo com a. proibição constitucional de discriminação da filiação extramatrimonial e
   com o aludido art. 27 do Estatuto, vê-se que a possibilidade de propositura de ação de contestação de reconhecimento,
   atribuída ao filho ilegítimo pelo art. 362, há de alcançar necessariamente o filho havido na constância do matrimônio, sob
   pena de se lhes oferecer tratamento desigual.

   Mais ainda: verifica-se que o prazo de quatro anos fixados pelo mesmo art. 362, para a impugnação do reconhecimento, ao
   menos com relação ao filho reconhecido não se coadua a imprescritibilidade fixada pelo art. 27, sobretudo diante dos
   princípios estatuídos em favor do prioritário interesse da criança e do adolescente.

   A grande novidade em termos hermenêuticos, cristalizada na Constituição, embora já enunciada pelo revogado Código do
   Menor de 1979, conforme adiante melhor se colocará em destaque, constitui-se no deslocamento do objeto da tutela
   jurídica no âmbito do direito de família. A disciplina jurídica da família e da filiação antes se voltava para a máxima proteção
   da paz, doméstica, considerando-se a família como um bem em si mesmo, enaltecida como instituição essencial. Hoje, ao
   revés, não se pode ter dúvida quanto à funcionalização da família para o desenvolvimento da personalidade de seus
   membros, devendo a comunidade familiar ser preservada (apenas) como instrumento de tutela da dignidade da pessoa
   humana e, em particular, da criança e do adolescente. Assim dispõem os princípios constitucionais, bem como o revogado
   art. 52 do Código de Menores e o art. 6º da atual Lei 8.069/90 15.

   Diante de tais considerações, pode-se afirmar que as restrições do Código civil foram revogadas, seja no que tange à
   irrestrita legitimação processual do próprio filho, decorrente do art. 27 do Estatuto, para investigar a sua paternidade,
   impugnando, quando for o caso, a atribuição insincera da paternidade 16 seja no que concerte ao prazo oferecido ao filho
   para a propositura das respectivas ações 17.

   Ainda no âmbito da investigação de paternidades os mesmos princípios e preceitos antes invocados, coibindo quaisquer
   restrições ao direito de ação conferido ao filho, servem a revisitar o art. 363 do Código Civil, tanto no sentido de não mais
   considerá-lo aplicável somente aos filhos ilegítimos - o que seria discriminatório - 18, como no que concerte aos
   pressupostos ou condições especificadas pelos incisos I, II e III, para a propositura da ação.

   Em que pese a existência de conceituadas vozes em contrário, considerar as hipóteses previstas pelo art. 363 como
   "enumeração taxativa" 19, posto que justificável no regime pré-vigente, seria hoje uma forma de restrição à investigação de
   paternidade, em desajuste com o art. 27 do Estatuto. A rigor, o legislador do Código Civil, quando emanou o dispositivo,
   relacionou hipóteses que, embora pudessem ser consideradas taxativas, permitiam uma investigação a seu tempo ampla e
   irrestrita, bastando para a propositura da ação que se provasse, por exemplo, a ocorrência de relações sexuais no período
   da concepção. De fato, seria impensável uma hipótese em que se pudesse excluir a conjunção carnal. Nos dias de hoje,
   contudo, a possibilidade de estabelecimento de paternidade sem relações sexuais, através dos métodos de concepção
   artificial 20, bem como o desenvolvimento de provas cada vez mais definitivas da paternidade - o exame do DNA, por
   exemplo -, traduzem situações fáticas que não se compadecem com a realidade de outrora. Daí porque não se justificara à
   luz do art. 27 tantas vezes invocado, a exclusão da ação por não se prefigurarem as condições expressamente enunciadas
   pelo Código, desde que possa ser evidenciada a paternidade.

   Na mesma linha de raciocínio encontra-se revogado o art. 364 do Código Civil 21, restringindo a investigação de maternidade que atribuísse prole ilegítima a mulher casada ou incestuosa à solteira. O preceito, destinado a preservar valores morais compatíveis com o período histórico de sua promulgação, não se compadece com a diretriz constitucional e estatutária
   voltada para a igualdade de direitos entre todos os filhos, retirando-lhes o estigma oriundo do tipo de relação sexual de seus
   pais 22.

   Quanto à filiação adotiva, convém realçar a revogação dos arts. 377 e 1.605, § 2º, dispositivos incompatíveis com o art. 51
   da Lei do Divórcio, com o texto expresso do art. 227, § 62, da Constituição Federal e com o art. 20 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

   Note-se que o Estatuto trata especificamente da adoção de menores de 18 anos, admitindo, portanto, a adoção regida pelo
   Código Civil para os maiores daquela idade (art. 368 e segs., Código Civil) . A permanência dessa adoção mais tênue, por
   assim dizer, aos moldes do Código, não pode significar, de forma alguma, a manutenção dos arts. 377 e I. 605, § 2º, para
   essa modalidade, já que a igualdade constitucional da filiação, ao incluir expressamente os filhos adotivos, não admite
   diferenciação discriminatória no que tange à relação adotante-adotado.

   Dito diversamente, a existência de modalidades diferenciadas de adoção (nas formas como são disciplinadas pelo Código,
   para maiores de 18 anos, e pelo Estatuto, para todas as crianças e adolescentes, até 18 anos), não pode implicar a
   distinção de direitos ou qualificações relativamente à filiação. A Constituição Federal, em última análise, não admite efeitos
   discrepantes derivados da relação entre os pais e os respectivos filhos adotivos.

3 - A Filiação no Estatuto (Lei 8,069/90), Novas Perspectivas na Educação e Formação da Personalidade; Aspectos Predominantes
 

   O Estatuto da Criança e do Adolescente traz como. principal novidade, conforme já antes observado, a caracterização do
   filho como alvo de tutela prioritária por parte do ordenamento, protagonista do próprio processo educacional. Três aspectos
   colhidos da Lei 8.069/90 servem a demonstrar e exemplificar a tese ora proposta:
   a) o legislador fixa como critério interpretativo de todo o Estatuto a tutela incondicionada da formação da personalidade do
   menor, mesmo se em detrimento da vontade dos pais;
   b) a criança e o adolescente são chamados a participar com voz ativa na própria educação, convocados a opinar sobre os
   métodos pedagógicos aplicados, prevendo-se, expressamente, em algumas hipóteses, a sua "oitiva" e até o seu
   "consentimento";
   c) a lei determina um controle ostensivo dos pais e educadores em geral, reprimindo não só os atos ilícitos mas também o
   abuso de direito.

   Convém examinar, inicialmente, as indicações hermenêuticas contidas na Lei 8.069/90. O art. 62 preceitua: "Na
   interpretação desta lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e
   deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento".

   O preceito não é ocioso nem supérfluo, apresentando-se, ao revés, como peça-chave da estrutura familiar, por cuja tutela
   incumbe ao intérprete zelar. Indica uma inflexão relativamente à política legislativa do passado, deslocando a proteção
   primordial do Estado, antes dirigida à "família-instituição", para a "família-instrumento" de proteção e desenvolvimento da
   personalidade dos seus componentes.

   Com efeito, a família, segundo o septuagenário Código, redigido na virada do século, é estabelecida exclusivamente pelo
   casamento indissolúvel, conformada ao poder marital e ao desmesurado poder paterno, voltada prioritariamente para a
   procriação. A entidade familiar da Constituição de 1988, ponto de referência normativo do legislador de 1990, é uma
   formação social não necessariamente fundada no casamento, hoje dissolúvel, permeada pela paridade dos cônjuges e pela
   democratização da relação pai-filho, dirigida ao desenvolvimento da personalidade de quantos a compõem.

   Do cotejo resulta o ocaso da família tutelada em si mesma, enquanto núcleo indissolúvel, a ser preservado ainda quando já
   se houvessem dissipados os liames de afeto entre seus membros, prestigiando-se sempre a autoridade do chefe - de modo
   a mantê-la coesa - e a ancestralidade, motor da perpetuação patrimonial no mesmo tronco familiar, biologicamente
   concebido. A imagem da "família-instituição", assim delineada, dá lugar à família funcionalizada à formação e
   desenvolvimento da personalidade de seus componentes, nuclear, democrática, protegida na medida em que cumpra o seu
   papel educacional, e na qual o vínculo biológico e a unicidade patrimonial são aspectos secundários.

   A proteção hereditária do cônjuge 23 e a tutela plena do filho adotivo prestigiam os laços não-biológicos, atestando não ser
   mais a procriação o objetivo central da família. Até porque a igualdade dos filhos autoriza sua plena proteção a prescindir da
   existência de núcleo familiar, o qual só se justifica, no contexto legislativo atual, pelo aspecto volitivo e efetivo, não mais
   como regularização das relações sexuais. O regime de bens fragmenta o patrimônio do casal e o trabalho independente e
   remunerado da mulher retira da relação conjugal o aspecto patrimonialista que a caracterizava, submetendo os membros da
   família ao centro econômico representado pelo marido. Fala-se por isso mesmo em despatrimonialização da família,
   desprovida das relações de dependência econômica 24.

   Todos estes importantíssimos aspectos evolutivos, fotografados tangencialmente, explicam e ao mesmo tempo definem o
   alcance do art. 6º do Estatuto. A invocação do legislador aos fins sociais do diploma e às exigências do bem comum
   especifica o princípio geral do art. 5' da LICC, cujo conteúdo, todavia, se enriquece pela parte final do preceito, impondo ao operador ter em mira a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento. Eis o fim último a
   que a lei se destina, objetivo maior do sistema legal em tema de família, traduzindo o caráter instrumental do núcleo família
   25.

   Outros dispositivos corroboram as considerações acima alinhadas. O art. 141, visando a privilegiar sempre o interesse do
   filho, permite que crianças ou adolescentes tenham acesso à Justiça, através da assistência judiciária pública e gratuita,
   independentemente dos seus pais, sem eles ou até mesmo contra eles. A Justiça providenciará para o menor um curador
   especial, irá ouvi-lo e lhe dará prestação jurisdicional. O legislador coloca o Ministério Público expressamente ao seu dispor,
   fixando, nos arts. 200 e segs., poderes amplíssimos em favor do fiscal da lei, no sentido de zelar pelo interesse da criança e
   do adolescente, incluindo-se aí a ação civil pública contra pais, responsáveis, educadores.

   Mais: prevê a Lei 8.069/90 o Conselho Tutelar, instância administrativa de tutela do menor e da efetivação dos objetivos do
   Estatuto. Preceitua, nesta direção, o art. 131: "O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional,
   encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei".

   O segundo aspecto proeminente da filiação no Estatuto refere-se aos preceitos que asseguram, de forma original, a
   participação do menor no próprio processo educacional. Sublinhem-se, em particular, o art. 15 e ss., e o art 53.

   Pelo art. 15 "a criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em
   processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis".

   O art. 16, por sua vez, pretende dar conteúdo concreto ao conceito de liberdade, visando à sua efetiva aplicação.
   Estabelece que "o direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I - (...); II - opinião e expressão; III - (... ); IV - V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação".

   Destaque-se, entre os dispositivos transcritos, o direito de opinião e expressão garantido ao menor. Com a atribuição do
   direito de opinião à criança e ao adolescente, abrangendo, portanto, o menor absolutamente incapaz, não pretenderia o
   legislador dar acolhida aos caprichos de quem, nos termos do art. 52 do Código Civil, não tem discernimento, não possui
   vontade própria, juridicamente considerada.

   Ao reverso, pretendeu o legislador, com a inovação, inserir o falho, com os seus sentidos e personalidade em
   desenvolvimento, no cenário das decisões que lhe dizem respeito, sob a evidente responsabilidade dos pais e educadores.
   O processo de informação e formação do filho, a partir do Estatuto, inclui o seu "direito de opinião e expressão", reclamando uma educação estabelecida através do diálogo, da troca e da reciprocidade entre educando e educador.

    Examine-se o outro dispositivo mencionado:

   Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao aro para o exercício da cidadania e qualificação para
   o trabalho, assegurando-lhes:
   I - (...)
   II - direito de ser respeitado por seus educadores;
   III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores;
   IV - direito de organização e participação em entidades estudantis".

   Mais uma vez o legislador indica a finalidade precípua da lei e do processo educacional: o pleno desenvolvimento da pessoa
   do menor, preparando-o para o exercício da cidadania. Além disso, tem-se no transcrito inciso III uma das mais
   significativas inovações legislativas: o direito da criança, absolutamente incapaz, de contestar os critérios de avaliação
   adotados pela escola. Esta sua <<prerrogativa>>, evidentemente, deve ser interpretada com a devida cautela,
   considerando-se, de um lado, a própria situação de incapacidade jurídica, e, de outro, o fato de a criança, as mais das
   vezes, não dispor de elementos avaliatórios suficientes, em razão da pouca experiência de vida.

   A disposição, portanto, deve ser temperada - sem que se dissipe seu conteúdo inovador -, tendo como critério interpretativo
   o art. 6º e o caput do próprio art. 53, acima transcrito, segundo o qual a educação se direciona ao pleno desenvolvimento da pessoa, princípio que subordina todos os direitos em jogo, inclusive a vontade dos pais e dos filhos.

   De toda sorte, não se entenda o art. 53 como preceito meramente decorativo, sendo de considerá-lo, ao contrário, como
   reafirmador da educação participativa.

   Ao propósito, note-se que o conferimento de direitos e prerrogativas ao filho não se dá sem contrapartida. O Estatuto, em
   seu art. l I 6, responsabiliza o patrimônio do adolescente - menor com mais de 12 anos -, pelos danos eventualmente
   causados por atos infracionais, vale dizer, atos coincidentes com os tipos penais caracterizadores de conduta delituosa,
   mas que, no caso do menor, estando ausentes a vontade e o discernimento, não podem ser como tal considerados.

   Trata-se, portanto, de responsabilidade civil em que inexiste propriamente o elemento subjetivo da culpa, no caso dos
   adolescentes, embora necessário se faça estabelecer o nexo de causalidade entre o ato infracional e o dano causado a
   terceiro, daí surgindo a responsabilidade. Interpretada a norma em sintonia com o Código Civil, tem-se que, a partir do
   Estatuto, o patrimônio do menor, acima de 12 anos, responde pelos danos causados a terceiros, solidariamente com o
   patrimônio dos pais, como já ocorria, anteriormente, para os maiores de 16 anos, nos termos do art. 156, combinado com o
   art. I. 518, parágrafo único, do Código Civil.

   Ainda sobre o redimensionamento do papel do filho no processo de formação de sua própria personalidade, dois outros
   dispositivos merecem atenção: o art. 161º § 22 e o art. 45, § 22.

   O art. 161, § 21, em tema de perda ou suspensão do pátrio poder, afirma que se o pedido "importar em modificação de
   guarda, será obrigatória, desde que possível e razoável, a oitiva da criança ou adolescente".

   O preceito determina, portanto, que se ouça o filho, a despeito de ser absolutamente incapaz, sempre que possível e
   razoável. A possibilidade e a razoabilidade são, pois, os parâmetros do juiz, ao se deparar com a necessidade de colher o
   depoimento do menor quanto ao seu destino.

   O art. 45, § 22, é algo inusitado e provavelmente polêmico. Ao disciplinar a adoção do adolescente, determina que "em se
   tratando de adotando maior de doze anos de idade, será também necessário o seu consentimento".

   O termo "consentimento", pressupondo o discernimento, do qual é o incapaz desprovido, leva o intérprete a imaginar, lendo
   isoladamente o dispositivo, ter o legislador reduzido de 16 para 12 anos o início da incapacidade relativa. A providência, de
   resto, não seria tão distoante da tradição lusobrasileira, já que as Ordenações do Reino admitiam que os homens e as
   mulheres, acima dos 14 e 12 anos, respectivamente, praticassem certos atos da vida civil, sendo, então, apenas
   relativamente incapazes.

   Com efeito, tecnicamente, nos termos do art. 5' do Código Civil, o menor de 16 anos, como absolutamente incapaz, não
   pode praticar pessoalmente os atos da vida civil, carecendo de representação.

   Entretanto, o art. 142 da mesma Lei 8.069/90, ao se referir ao ingresso da criança e do adolescente em juízo, afirma que
   "os menores de dezesseis anos serão representados e os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos assistidos
   por seus pais, tutores ou curadores, na forma da legislação civil ou processual".

   Resulta daí, com evidência palmar, ter o legislador, expressamente, admitido a vigência da incapacidade absoluta do menor
   de 16 anos, denunciando, ao mesmo tempo, a má redação do art. 45, § 22, ao empregar o termo consentimento, não
   pretendendo revogar o limite de idade para a incapacidade civil

   Assim sendo, uma vez em vigor o art. 45, § 29, criou-se uma exceção ao princípio milenar da incapacidade absoluta,
   admitindo o legislador que, neste caso específico, tenha condições o incapaz de discemir, sendo essencial o seu
   consentimento, não obstante incapaz para a prática dos demais atos da vida civil. De toda sorte, pode-se entender o termo
   consentimento não no sentido estritamente técnico, revelador de vontade própria, mas como forma de se perquirir a
   satisfação dos anseios e. portanto, o bem-estar do filho, determinando-se a aprovação do adolescente com base nos
   critérios hermenêuticos e ermeiam todo o Estatuto, ou s 'a, tendo em mira o desenvolvimento de sua personalidade.

   O terceiro e último aspecto anteriormente acentuado do Estatuto, acerca do controle ostensivo do Estado sobre os
   educadores, visando a preservar a formação da personalidade da criança e do adolescente, pode ser demonstrado pela
   leitura do art. 53, ll, já transcrito, que fixa o "direito de ser respeitado por seus educadores", combinado com as rigorosas
   medidas de proteção, dispostas no Título 11 do Estatuto, destacando-se a seguinte regra:

   "Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei
   forem ameaçados ou violados:
   I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
   II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
   III - (...)"

   O legislador prevê o desencadeamento de medidas de proteção na falta, omissão ou abuso dos educadores. A utilização
   dessas três expressões sugere a tipificação de três situações distintas. Na Primeira hipótese, a falta, tem-se um ato
   comissivo do pai ou responsável, um comportamento positivo e danoso ao desenvolvimento da personalidade do filho. A
   segunda situação prevista pelo inciso 11 é a omissão do pai ou responsável, traduzindo comportamento negligente, negativo
   e daninho, violador de dever legal, decorrente, portanto, da inexecução de comportamento exigido pelo legislador para o
   bem-estar do filho e o desenrolar satisfatório do processo de educação.

   A terceira razão justificativa da intervenção estatal, a ocorrência de <<abuso>> do pai ou responsável (excluído pudesse
   descrever situação idêntica às anteriores, quando a expressão seria ociosa), refere-se à hipótese de abuso de direito.

   O legislador, não satisfeito com o controle dos atos ilícitos atentatórios à dignidade e à personalidade do filho, reprime
   também o abuso de direito, impedindo que em nome dos direitos subjetivos conferidos aos pais pudessem ser sacrificados
   os valores atinentes à tutela da personalidade da criança e do adolescente, alvo de atenção específica pelo ordenamento
   civil-constitucional.

   A inovação é de notável alcance, evitando que se restrinja a proibição do abuso do direito à matéria patrimonial, atinente, no
   comum dos casos, à propriedade e à vizinhança, aceita pela doutrina com base ora no art. 5º da LICC, quando o exercício
   do direito subjetivo se desvirtua de sua finalidade social 26, ora no art. 160, I, Código Civil, indicador do exercício irregular de um direito 27.

   A expansão da repressão ao abuso dos direitos subjetivos para à temática das situações extrapatrimoniais, mercê de longo
   trabalho doutrinário 28, encontra agora, no art. 98, II, da Lei 8.069/90. em matéria de filiação, expressa e definitiva guarida,
   em favor da criança e do adolescente, conformando, ainda uma vez, o pátrio poder, à sua acepção de múnus de direito
   privado 29, essencialmente voltado ao interesse e ao bem-estar do filho, ao desenvolvimento de sua personalidade e à
   preservação de sua dignidade como pessoa humana, instrumento privilegiado na preparação da criança e do adolescente
   para o pleno exercício da cidadania.

   Anote-se, em propósito, algumas hipóteses sintomáticas, indicando linha de tendência que se deverá consolidar, mais e
   mais, na jurisprudência, confortada pelo dado normativo. Merece destaque, em primeiro lugar, interessante caso atinente à
   guarda de filho menor, onde o pai, separado judicialmente, alegando o direito de visita, opunha-se à viagem do filho de um
   ano e três meses para o exterior, em companhia da mãe, que pretendia permanecer seis meses em Londres, para a
   realização de um curso importante para a sua carreira. Na espécie, o filho, concebido durante a vida em comum, nasceu
   após a separação judicial, restando sob a guarda materna. A oposição do pai à viagem, não obstante decorresse do
   legítimo direito de visitar o filho menor, foi considerada "abusiva e injusta" pela doutrina, diante do interesse do menor em
   não se separar da mãe, e da relevância da viagem para a carreira desta, com direta repercussão na formação da
   personalidade do filho 30.

   Em situação diversa, também foi considerado abuso de direito a recusa do pai em permitir que os filhos se avistassem com
   os avós, considerando-se o interesse do menor prevalente sobre a discricionariedade do pai, na titularidade do pátrio-poder
   31.

Na jurisprudência alemã, examinou-se a hipótese "do pai que, gravemente incompatibilizado com o filho, proíbe este de
   visitar a sepultura da mãe, localizada no jardim de um seu imóvel", invocando, ainda, doença cardíaca, a não recomendar o
   indesejado encontro com o filho. Não obstante o ; direito de propriedade do pai sobre o jardim de sua casa, e a doença
   alegada, deve prevalecer o direito extrapatrimonial do filho de visitar a sepultura materna, tendo-se por abusiva a
   obstaculação 32.

   Tais hipóteses servem a indicar a gama de situações em que será preciso controlar direitos conflitantes e, sobretudo, o
   exercício do pátria poder, tendo-se presente o art. 98, II, da Lei 8.069/90, bem como os princípios hermenêuticos
   constantes do mesmo diploma estatutário. Na variedade de situações que se configuram, diuturnamente, no âmbito da
   convivência familiar -incluindo-se aí, por exemplo, a fixação de domicílio e a opção por escolas e critérios pedagógicos , o
   limite aos poderes resultantes do pátrio poder é definido pela absoluta prioridade constitucional e legislativa dada ao
   desenvolvimento da personalidade do filho, a cujo interesse devem submeter-se todos os protagonistas do processo
   educacional.

            Referências Bibliográficas
 

    3229 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil Aplicado, v. 2, cit., p. 113 e segs.

    3229 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil Aplicado, v. 1, cit., p. 255 e segs.

    3231 VARELLA, Antunes. O Abuso do Direito no Sistema Jurídico Brasileiro, cit., p. -tu.

    Gustavo Tepedino é Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direitoda Universidade do Estado do
    Rio de Janeiro. Doutor pela Universidade de Camerino, Itália. Procurador da República.
 

Retirado de: http://www.abmp.org.br