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O Trabalho Tolerado de Crianças até Catorze Anos

                Índice do Boletim DIEESE - Abril de 1997






Dados recentes, divulgados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), revelam que 250 milhões de crianças entre cinco e catorze anos trabalham em todo o mundo, sendo 120 milhões em período integral. O Brasil está entre os países com altos índices de trabalho infantil. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em 1993, trabalhavam no país 4.547.944 crianças brasileiras de cinco a catorze anos. Destas, 40% se encontravam nas cidades desenvolvendo trabalho tipicamente urbano. O DIEESE coordenou uma pesquisa em seis capitais com o objetivo de conhecer, analisar e discutir esse trabalho e, com isso, subsidiar propostas para sua erradicação. A pesquisa foi encomendada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), no âmbito do Programa Internacional para Erradicação do Trabalho Infantil (IPEC), da OIT.

A pesquisa realizada pelo DIEESE analisa as condições de trabalho e de educação de crianças de sete a catorze anos, em seis capitais brasileiras, com o objetivo de subsidiar a reflexão sobre as conseqüências da convivência de trabalho e estudo na infância para o desenvolvimento físico, psicológico, intelectual e social delas. (1) Um segundo objetivo específico foi o de reunir, sistematizar e analisar dados sobre o trabalho infantil que permitam elaborar propostas para sua erradicação no país.

Embora os grandes números de trabalho infantil encontrem-se na Ásia, África e América Latina, os países desenvolvidos não são imunes ao problema. O trabalho infantil não é um fenômeno moderno, mas até recentemente havia uma tendência de sua extinção, especialmente onde vigoravam condições de trabalho humanas resultantes de anos de lutas dos trabalhadores.

Hoje, em toda parte, o crescimento do setor de serviços, dos empregos de meio expediente e de relações de trabalho precarizadas, ou de mão-de-obra flexível, como muitos preferem chamar, facilita a entrada de crianças no mercado de trabalho.

Preocupado com essas novas formas de trabalho e de emprego, o movimento sindical brasileiro, ao lado de outros setores da sociedade, tem procurado soluções para eliminar essa que é uma das faces mais perversas do mundo do trabalho contemporâneo.

Algumas entidades sindicais têm desenvolvido ações, várias delas com o apoio da OIT/ IPEC, que incluem investigações e pesquisas para conhecer a realidade e formular propostas de políticas para erradicação do trabalho infantil. Dentro desse contexto, a CNTE encomendou ao DIEESE este trabalho com o objetivo de, ao mesmo tempo, colher e analisar dados sobre a realidade do trabalho infantil em grandes cidades e sensibilizar e mobilizar a família, a escola, professores e a sociedade em geral para a solução do problema.

Para atingir esses objetivos, delimitou-se a abrangência da pesquisa a crianças que freqüentam regularmente a escola e que estão na faixa etária em que o trabalho é proibido sob qualquer forma, ou seja, até os doze anos. (2) Entretanto, já que é com catorze anos que se chega à 8ª série, encerrando o ciclo de escolaridade considerado fundamental, o 1º grau, incluíram-se na pesquisa alunos dessa série freqüentando cursos regulares, independentemente da idade.

Outro limite previamente estabelecido foi o do trabalho urbano em grandes cidades. Já existem, no Brasil, alguns estudos, investigações e reportagens sobre o trabalho de crianças no campo ou na produção de carvão, mas é muito pouco o que se conhece do trabalho tipicamente urbano. Seria necessário investigar por que, como e com que conseqüências, nas grandes cidades do país, estudantes trabalham antes da idade permitida por lei.

Nos últimos tempos, os meios de comunicação têm dado destaque ao trabalho infantil. Com razão, as grandes manchetes se referem, de um modo geral, ao trabalho imediatamente reconhecido como intolerável, como o corte de cana-de-açúcar, o trabalho em carvoarias, na produção do sisal. Mostram, também, crianças que moram nas ruas das grandes cidades e que fazem todo tipo de "bico" para sobreviver. A partir desse noticiário seria fácil concluir que o trabalho de crianças no Brasil está restrito a esses casos limites, o que traria distorções importantes a projetos para sua erradicação.

Pouco se fala, porque pouco se sabe, do trabalho feito por crianças nas cidades, especialmente nas maiores do país. Trabalho tipicamente urbano, em sua maioria, passa despercebido aos olhos da mídia, tanto em termos qualitativos como quantitativos.

No primeiro caso, por serem serviços normais e cotidianos, as pessoas não se dão conta de que são executados por crianças. Quem presta atenção, de verdade, se é uma criança de nove anos ou um adulto que atende ao balcão de um bar de esquina? Quem, ao perceber a situação, tem algum mal-estar que dure mais que o momento?

No que se refere a números, de acordo com a PNAD, (3) em 1993, trabalhavam no Brasil 4.547.944 crianças de cinco a catorze anos. Pouca gente sabe entretanto que, entre estas, 1.834.026 exerciam atividades não agrícolas. Em outras palavras, 40% das crianças entre cinco e catorze anos que trabalham no Brasil estão nas cidades, fazendo trabalho tipicamente urbano.

A pesquisa do DIEESE pretende desvendar uma parte desse trabalho invisível, investigando alunos trabalhadores em seis capitais brasileiras, e iniciar uma reflexão sobre suas conseqüências. Pretende, ainda, apontar algumas de suas causas, refletir sobre o que permite e até incentiva o trabalho de crianças e discutir as idéias que estão por trás do trabalho infantil, ou seja, sua legitimidade social.

Não se trata, nesse caso, de repensar a possibilidade, oportunidade ou viabilidade do trabalho antes dos catorze anos. De acordo com todos os códigos, estatutos e normas relativos a direitos humanos, criança não deve trabalhar. O papel da criança na sociedade é outro. Trata-se, isso sim, de procurar meios e formas, envolvendo todos os setores da sociedade, através de políticas econômicas, sociais e projetos culturais para erradicar o trabalho na infância. É necessário algo que vá além, ou seja, mais eficaz que a proibição legal, pois o trabalho infantil já é proibido.

A pesquisa foi a campo nos meses de outubro, novembro e dezembro de 1995 em Belém, Recife, Goiânia, Belo Horizonte e Porto Alegre. Em São Paulo, em razão do recadastramento escolar realizado pelo governo do estado, só foi possível realizar a pesquisa no primeiro semestre de 1996, com a coleta dos dados sendo encerrada no final do mês de junho.

Em cada uma das cidades pesquisadas, a coordenação do trabalho de campo coube às entidades sindicais de trabalhadores em educação locais, a saber:

- Sintepp - Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Pará, em Belém;

- Sintepe - Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco, em Recife;

- Apeoesp - Associação (Sindicato) dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo, em São Paulo;

- Sintego - Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado de Goiás, em Goiânia;

- SindUte - Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais, em Belo Horizonte;

- CPERS - Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul - Sindicato dos Trabalhadores em Educação.

Os resultados da pesquisa foram organizados no relatório final de maneira que cada cidade tivesse uma análise em separado de sua investigação. Na verdade foram realizadas seis pesquisas distintas. Por esse motivo não se pode dar tratamento estatístico ao conjunto dos resultados. Entretanto, os grandes temas que a pesquisa suscitou foram discutidos levando em consideração as seis capitais, ou seja, foi apontar tendências e especificidades.
 

PRINCIPAIS RESULTADOS
 

- Foram entrevistadas 1.419 crianças.

- Mais de 70% dos entrevistados ainda não têm catorze anos.

- A maior parte das crianças vem de famílias tradicionalmente constituídas, com pai, mãe e irmãos morando juntos.

- Em mais de 70% dos casos, pai e mãe trabalham.

- A grande variedade de profissões exercidas por pais e mães não parece influir no fato de seus filhos trabalharem.

- Pais e mães ganham muito pouco.

- Embora tenha sido impossível calcular a renda familiar por falta de dados, as remunerações conhecidas mostram uma expressiva concentração nas faixas de rendimentos mais baixas.

- As crianças fazem trabalho de adulto cumprindo longas jornadas.

- De 55% a 70% dos entrevistados ganham menos de um salário mínimo.

- Uma grande parte das crianças trabalha cinco, seis ou sete dias na semana.

- Muitas trabalham em tempo integral, sendo que, em vários casos, uma parte da jornada se cumpre à noite.

- Um terço das crianças começou a trabalhar antes dos dez anos.

- O trabalho que exercem não é pedagógico, é pouco qualificado e se destina à produção de bens e serviços.

- A grande maioria não tira férias do trabalho.

- Os índices de repetência das crianças trabalhadoras entrevistadas alcançam 60% a 70%.

- A falta de interesse é o principal motivo apontado para a repetência.

- Deveres de casa são feitos à noite ou a cada dia em um horário, na maior parte das vezes por causa do trabalho.

- Muitas crianças não têm tempo para brincar ou praticar esportes.

- Quase todas dizem gostar de trabalhar.

- Os motivos mais citados para o trabalho são a ajuda em casa, o aprendizado que o trabalho representa e a alternativa à rua.

- Por isso mesmo não gostariam de parar de trabalhar.

- A maior parte acha que criança deve trabalhar antes dos catorze anos.

- Os poucos entrevistados que condenam o trabalho antes dessa idade querem brincar, estudar, ficar livre.

- A grande maioria sonha com profissões universitárias.

- Algumas das causas para o trabalho infantil no Brasil são a concentração de renda, a falta de uma política educacional integral, a precarização das relações de trabalho e o papel que a sociedade atribui ao trabalho.

- Além de ser uma estratégia de sobrevivência, o trabalho de crianças pobres é, ao mesmo tempo, estratégia de inserção social das famílias.

- A sociedade naturaliza o trabalho infantil urbano e o vê como tolerável e, muitas vezes, como desejável.

- O trabalho de crianças pobres reproduz e aprofunda a desigualdade social na medida em que prejudica o desenvolvimento físico, psicológico, intelectual e social na infância.

- Criança que trabalha não estuda bem, não brinca o suficiente, não se prepara para a vida.

- Trabalho infantil não é solução.

- Trabalho infantil é um problema para a criança e para a sociedade.
 

O TRABALHO NA VIDA DAS CRIANÇAS
 

Foi feito um esforço para entender o conjunto de dados obtidos de uma maneira articulada, tanto no que diz respeito aos vários momentos que compõem o cotidiano das crianças - escola, trabalho, brincadeiras - como relacionando o trabalho infantil com fenômenos sociais mais abrangentes.
 

Quem são os trabalhadores
 

Entre os pesquisados, a maioria é de meninos, sem que haja, entretanto, diferenças notáveis entre os sexos no que diz respeito aos estudos, ao trabalho e às idéias.

Mais de 70% das crianças, com exceção daquelas entrevistadas em Recife, onde o percentual é pouco maior que 50%, estão abaixo da idade em que o trabalho é permitido por lei. Em outras palavras, a grande maioria das crianças entrevistadas não deveria estar trabalhando em qualquer circunstância.

Esse fato é ainda mais chocante quando se constata que esses trabalhadores não são crianças de rua: têm casa, família constituída e freqüentam regularmente a escola. Em todas as cidades, exceto em Belém, mais da metade vive com pai, mãe e irmãos, todos morando juntos.

Outro dado surpreendente, em vista do argumento freqüente de que criança trabalha no lugar dos pais, é que a grande maioria destes trabalha. No caso dos homens, o percentual está sempre acima de 70%. A proporção de mães no mercado de trabalho é, na maior parte das vezes, acima de 60%. Além disso, em quatro das cidades pesquisadas, em torno da metade das crianças tem pai e mãe trabalhando. O maior índice chega a 71% e o menor percentual é um terço das crianças com pai e mãe trabalhando.

As ocupações dos pais e mães dos entrevistados são, em sua maioria, tipicamente urbanas, apresentando uma grande variedade, tanto no que diz respeito à qualificação necessária para seu exercício, como à remuneração habitualmente a elas atribuídas. Assim, tem-se garis e professores, faxineiras e gerentes, entre muitos outros. Essa diversidade, aparentemente, não influi no fato de seus filhos trabalharem. O que fica patente pelos resultados da pesquisa é que há uma semelhança notável nos motivos, justificativas e na idade de ingresso no mercado de trabalho de crianças provenientes de famílias muito diferentes. Parece que as pressões da vida moderna, e a opção pelo trabalho dos filhos como solução para muitas delas, predominam sobre as eventuais diferenças de setores ou grupos sociais.

Pelas respostas das crianças entrevistadas, apenas um pequeno número vive em casas de um só cômodo, que é ao mesmo tempo sala, quarto e cozinha. Mais da metade tem moradias com um ou dois dormitórios, e um terço, e em algumas cidades até um pouco mais, moram em sala e três ou mais quartos. Várias casas têm outras dependências, como garagens, varandas ou áreas de serviço. De um modo geral, as condições de moradia dos entrevistados são bastante razoáveis.

Os dados até agora apresentados não justificariam a necessidade de trabalho dos entrevistados. São crianças que estudam, têm hábitos urbanos, moram com a família em casas relativamente cômodas, em grandes cidades do país.

Chega-se, então, ao que parece ser a motivação mais imediata para a entrada dessas crianças no mercado de trabalho. Não foi possível calcular a renda familiar dos entrevistados, já que, em todas as cidades, a grande maioria não sabe quanto ganham seus pais e um número também expressivo, embora menor, não conhece a renda de suas mães.

Entretanto, os rendimentos informados apontam para uma das prováveis causas do trabalho infantil. A pesquisa realizou-se em outubro e novembro de 1995, com exceção de São Paulo, onde foi a campo em maio de 1996. No primeiro caso, o salário mínimo vigente era de R$ 100,00 e o salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE para uma família de dois adultos e duas crianças equivalia, no mês de novembro, R$ 742,41. Na época da pesquisa na capital paulista, o salário mínimo valia R$ 112,00 e um salário mínimo necessário estimado pelo DIEESE, R$ 801,95.

Quando se analisam as curvas de rendimentos de pais e mães em todas as cidades, independentemente de eventuais variações, constata-se que os pais ganham muito pouco e as mães menos ainda. As maiores concentrações estão nas faixas mais baixas, com grande parte dos pais ganhando entre um e dois salários e o maior grupo de mães recebendo até um salário mínimo.

Em outras palavras, de um lado, se impõe a necessidade de complementação da renda familiar. De outro, como o trabalho do chefe da família é ainda considerado o essencial, aquele que sustenta a família, cônjuge e filhos menores aceitam trabalhar por uma remuneração que, embora imprescindível, representa um percentual muito pequeno da renda familiar.
 

Qual é o trabalho
 

O trabalho que fazem as crianças entrevistadas é trabalho de adulto, é trabalho que qualquer adulto faz normalmente, ou seja, não é mais leve, menos perigoso ou menos insalubre pelo fato de ser feito por crianças.

O termo "ajuda", que aparece em várias descrições, como "ajuda a mãe a vender na feira", ou "ajuda o pai na oficina", pode ser enganoso ao identificar, como própria de crianças, uma atividade que no mundo de trabalho adulto corresponde à função de ajudante.

O trabalho infantil pesquisado é exercido em todos os setores da economia, predominando, entretanto, naqueles em que é mais fácil burlar a lei, dado o alto grau de precarização em que se encontram as relações de trabalho. Os serviços em geral, um certo tipo de comércio e o trabalho em casa de família estão nesse caso.

Diretamente relacionado a essa precariedade, provocada pela desregulamentação do mercado de trabalho, mas também pela falta de fiscalização, está o grande número de crianças de todas as idades, e em todas as cidades, que são empregadas em firmas. Esses estabelecimentos, regularmente constituídos, têm em seu corpo de funcionários crianças com menos de catorze anos, trabalhando no lugar de adultos. Não se trata de trabalho para a família, também não justificado, porém mais fácil de ser entendido, mas de serviço contratado no mercado de trabalho.

É claro que nessas condições quase ninguém tem carteira assinada. Mas não se trata aqui de reclamar o não cumprimento da legislação trabalhista. O estatuto que proíbe o trabalho infantil antes dos catorze anos antecede as leis do trabalho ou, em outras palavras, a legislação trabalhista não se aplica a menores de catorze anos, por não lhes ser permitido exercer qualquer tipo de trabalho.

Outro fato notável é o percentual de crianças trabalhando na rua, em torno dos 20% na maioria das cidades. Ora, sabe-se que as ruas das grandes cidades, respeitadas as devidas diferenças, não são de um modo geral o lugar mais apropriado para crianças (a maioria com menos de catorze anos) passarem várias horas por dia. Vale lembrar que um dos motivos alegados para justificar o trabalho infantil é que trabalhar é melhor que estar na rua. Mas, se a rua é perigosa, tanto para a segurança física como para o desenvolvimento social de crianças, o que justifica o trabalho nas ruas?
 
 
 

Tabela 1 - Onde as crianças trabalham - 1995/96 - (em %)
Cidade Firma Rua Casa
Belém 13 44 26
Recife 18 20 15
Goiânia 38 13 33
Belo Horizonte 38 18 42
São Paulo 41 17 18
Porto Alegre 60 21 14

Elaboração: DIEESE.
 

A iniciação no mundo do trabalho se dá cedo para uma grande parte das crianças entrevistadas. Entre um quarto e um terço delas, dependendo da cidade, começaram a trabalhar antes dos dez anos, o que faz com que muitas crianças já trabalhem há vários anos. Chama a atenção, por outro lado, não haver diferenças significativas, em função da idade, entre tipo de trabalho, jornada e remuneração.

Uma idéia recorrente no discurso a favor do trabalho infantil é sua função como aprendizado e qualificação. Fala-se muito do trabalho pedagógico voltado não para a produção de bens e serviços, mas para a formação profissional da criança. A pesquisa realizada desmente de forma categórica esse fato. O trabalho das crianças entrevistadas não se distingue de qualquer trabalho de adultos, acrescenta nada ou muito pouco à educação profissional, além de ocupar o tempo que deveria ser dedicado aos estudos ou a brincadeiras, considerados hoje como fundamentais para uma boa performance profissional do adulto.

Em todas as cidades pesquisadas, mais de 60% das crianças trabalham quatro horas, ou mais, por dia. Esse percentual chega a 82% em um dos casos. Mais ainda, em todas as cidades foram registradas jornadas diárias que ultrapassam as oito horas habituais do mundo de trabalho adulto de hoje.

A segunda referência de jornada é o número de dias trabalhados por semana. Apenas uma pequena parte das crianças trabalha menos de cinco dias. A maioria trabalha cinco dias e um pequeno grupo ultrapassa a chamada semana inglesa, trabalhando seis ou sete dias na semana.

Finalmente, três situações que agravam as condições em que o trabalho dos entrevistados é exercido: uma parte das crianças trabalha em tempo integral, outra parte faz trabalho noturno e um terceiro grupo trabalha em tempo integral que inclui uma parte da jornada à noite.

Essas características do trabalho infantil pesquisado - longas jornadas, mais de cinco dias trabalhados na semana, trabalho noturno e em tempo integral - atestam o caráter penoso do trabalho exercido por grande parte dos entrevistados.
 
 
 

Tabela 2 - Jornada diária de trabalho - 1995/96 - (em %)
Cidade Mais de 7 até 12 horas Integral, incluindo trabalho noturno
Belém 23 20
Recife 20 14
Goiânia 26 15
Belo Horizonte 9 18
São Paulo 28 12
Porto Alegre 16 17

Elaboração: DIEESE.
 
 

É muito difícil falar com tranqüilidade dos rendimentos que o trabalho infantil proporciona. Em todas as capitais pesquisadas variaram de 55% a 71% os percentuais de crianças ganhando até um salário mínimo. Porto Alegre e Belo Horizonte são as cidades em que as crianças ganham mais. Para completar o quadro, as crianças que ganham até meio salário mínimo por mês vão de 29% em Belo Horizonte a 50% em São Paulo.
 
 

Tabela 3 - Remuneração - 1995/96 - (em %)
Cidade Até meio salário mínimo De meio a um salário mínimo
Belém 42 25
Recife 40 24
Goiânia 40 31
Belo Horizonte 29 28
São Paulo 52 20
Porto Alegre 36 19

Elaboração: DIEESE.
 

Cabe aqui uma observação semelhante àquela já feita em relação ao registro em carteira. Não se trata de reivindicar o pagamento previsto em lei para crianças trabalhadoras. O que se quer é o fim desse trabalho. Entretanto, é impossível deixar de ressaltar a vergonhosa exploração de crianças que fazem trabalho de adulto, cumprem longas jornadas diárias e semanais, não têm qualquer tipo de proteção legal, tudo isso para receber uma remuneração indigna sob qualquer ponto de vista.

A grande maioria das crianças não tira férias do trabalho. Uma boa parte delas até aumenta sua jornada durante as férias escolares. Também, nesse caso, sem deixar de constatar mais essa forma de exploração, é bom lembrar que, antes de férias do trabalho, as crianças têm direito por lei a somente estudar até os catorze anos.

Por último, poucas crianças tiveram algum tipo de doença ou acidente que possam ser atribuídos diretamente ao trabalho. Entretanto, um trabalho exercido por longos anos, desde muito cedo, durante muitas horas por dia, acaba prejudicando o desenvolvimento físico, psicológico, intelectual e social das crianças. Vale lembrar, nesse caso, o estudo indiano que acompanha e registra o desenvolvimento físico de crianças trabalhadoras e daquelas que apenas estudam, mostrando uma evidente desvantagem para a primeiras.
 

Como vão os estudos e o lazer
 

Os estudos e o lazer vão mal para as crianças entrevistadas.

Em relação à escola, a primeira indicação de que as coisas não vão bem são os altíssimos índices de repetência encontrados e a conseqüente defasagem série/idade. A cidade com o menor percentual de repetentes é Belo Horizonte, onde a metade já repetiu. São Paulo, Porto Alegre e Goiânia têm índices acima de 60% e em Belém e Recife o percentual dos entrevistados que já repetiu de ano ultrapassa os 70%.
 
 
 

Tabela 4 - Repetência - 1995/96 - (em %)
Cidade Repetência
Belém 74
Recife 76
Goiânia 62
Belo Horizonte 51
São Paulo 62
Porto Alegre 62

Elaboração: DIEESE.
 
 
 

Gráfico 1

Idade em percentual

Gráfico 2

Série em percentual

O que se mediu na pesquisa foi o percentual de repetentes entre as crianças entrevistadas. As estatísticas dos órgãos de educação medem o percentual de repetentes em um ano letivo. Embora não seja o mesmo universo, chama a atenção o fato de que, em quase todas as cidades, as estatísticas oficiais de repetência cheguem no máximo a 20%, muito longe dos percentuais encontrados na pesquisa. A exceção é Belo Horizonte, onde os números oficiais e os resultados encontrados estão bem próximos. (4) Essa disparidade pode sugerir o aumento da repetência em um universo exclusivo de crianças trabalhadoras ou então a pouca confiabilidade dos dados oficiais.

Ao mesmo tempo, a comparação entre a distribuição etária e por série mostra que não passar de ano não é um acontecimento singular na trajetória escolar dos entrevistados. Muitas crianças acumulam repetências, o que torna o aprendizado cada vez mais difícil.

Ficou evidente, ainda pelos resultados da pesquisa, que as causas dessa situação têm duas origens: o próprio sistema educacional e o trabalho exercido na infância.

No primeiro caso, as crianças entrevistadas localizam o problema citando a falta de interesse e a dificuldade em aprender como os principais motivos para a repetência.

Ora, uma escola que não provoca interesse no aluno e onde aprender é muito difícil, evidentemente, não está cumprindo sua função educadora e deve ser responsabilizada, pelo menos em parte, pelo fraco desempenho de seus alunos. Nas palavras das próprias crianças, estudar é bom, mas a escola é pouco interessante.

O mesmo problema, a dificuldade que um grande número de crianças trabalhadoras tem em acompanhar os estudos, também está diretamente relacionado ao trabalho e a pesquisa encontrou várias pistas nesse sentido.

A mais importante é o tempo que a criança dedica aos estudos. Com exceção de Porto Alegre, em todas as cidades havia crianças estudando à noite, independentemente da idade. É sabido que, além de ser proibida a freqüência a cursos noturnos antes dos catorze anos, essa não é a melhor situação para o aprendizado. Por outro lado, é bem provável que a opção pelo noturno tenha sido determinada pelo horário de trabalho da criança.

Ainda em relação ao tempo dedicado aos estudos, a pesquisa mostrou que mais da metade das crianças, em todas as cidades, não tem tempo ou regularidade para estudar e fazer suas lições de casa. Um grupo de crianças, que em algumas cidades é bastante expressivo em termos numéricos, relata que o trabalho impede o estudo para além do período na escola.

As outras atividades fundamentais do ser humano na infância são o jogo, a brincadeira, o esporte. É nesses momentos que a criança desenvolve de forma espontânea e livre, ou orientada, a imaginação, a criatividade, o relacionamento em grupo, a convivência com a diversidade.

A maioria das crianças que trabalha tem muito pouco tempo e oportunidade para brincar ou praticar esportes. Seu dia é preenchido pela escola, pouco interessante e nada motivadora, e pelo trabalho repetitivo e não qualificado. Sobra muito pouco espaço para a diversão. Alguns só brincam nas folgas e fins de semana, por falta de tempo, confirmando a influência perniciosa do trabalho em seu cotidiano.

Em um mundo em transformação, onde as incertezas são muitas, uma das poucas unanimidades é o papel da educação como elemento básico para o sucesso profissional na vida adulta. Quais serão então as conseqüências, para um país como o Brasil, de uma política que não privilegia de fato a educação e que faz vista grossa para o trabalho na infância, que atrapalha o aprendizado e que, no limite, provoca o abandono da escola?
 
 
 

Tabela 5 - Quando as crianças brincam - 1995/96 - (em %)
Cidade Fim de semana Não brinca
Belém 39 9
Recife 31 17
Goiânia 38 17
Belo Horizonte 52 16
São Paulo 47 13
Porto Alegre 29 12

Elaboração: DIEESE.
 
 
 

As idéias por trás do trabalho infantil
 

Praticamente todas as crianças entrevistadas declararam gostar de trabalhar. Pode-se contar nos dedos as poucas que não gostam. Dadas as condições adversas em que trabalham, como, jornada e o trabalho exercido, a pequena remuneração que recebem e o prejuízo que têm nos estudos, é preciso procurar razões fora do trabalho em si para essa unanimidade.

Os motivos alegados para gostar de trabalhar já foram vistos em cada cidade, mas vale a pena recuperá-los com um enfoque diferente. De onde vêm essas idéias? Quem disse que criança precisa trabalhar para ajudar em casa? Por que é divertido trabalhar? Por que esse trabalho que exige tão pouca qualificação é visto como aprendizado?

É muito difícil encontrar razões concretas e objetivas para explicar essas idéias. No primeiro caso, há uma evidente distorção do lugar da criança na sociedade, imputando-se a ela o papel de provedor (ou co-provedor) da família, substituindo em parte a função dos adultos. Não se pode subestimar a necessidade financeira, mas é preciso perguntar se o trabalho infantil é a única alternativa para satisfazê-la. É necessário lembrar, ainda, que essas questões devem ser discutidas do ponto de vista social e não individual, ou seja, não é a família que inventa o trabalho infantil como solução para complementar a renda. O que ela faz é utilizar os meios legitimados socialmente para resolver o problema.

O segundo motivo para gostar de trabalhar lembra um pouco aquela frase comum em pará-choque de caminhão que diz: "Não tenho tudo que gosto mas gosto de tudo que tenho". É a felicidade conformada pela realidade. De qualquer modo, não se pode esquecer que as grandes cidades oferecem às crianças de baixa renda um cotidiano pobre e sem graça com poucas oportunidades de divertimento ou esporte.

Finalmente, talvez a grande mistificação esteja na idéia de que o trabalho exercido pelas crianças é um tipo de aprendizado e que, por esse motivo, pode ser privilegiado em detrimento dos estudos. É a visão mais arraigada, porque é parte de uma construção secular em torno dos benefícios do trabalho e, hoje em dia, ironicamente, a mais equivocada, em virtude dos requisitos educacionais que o trabalho contemporâneo exige.

O trabalho justificado como alternativa aos perigos e violência das ruas e o trabalho como obediência aos pais podem ser melhor compreendidos porque em ambos os casos há um imperativo real levando as crianças a trabalhar.

O fato de crianças e famílias dividirem entre si a responsabilidade pela decisão de entrar no mercado de trabalho mostra que a sociedade, como um todo, legitima essa resolução. Mais ainda, esta pesquisa, em seis capitais com características diferentes, aponta uma impressionante semelhança no que diz respeito às idéias relativas ao trabalho.

Em vista desses argumentos, não é surpreendente que pouquíssimas crianças queiram parar de trabalhar. Entretanto, esse pequeno grupo justifica sua intenção recuperando uma infância que deveria ser normal mas que se torna, cada vez mais, ideal. Diz que gostaria de não trabalhar para poder brincar e estudar. Afirma que não tem idade suficiente para o trabalho e que trabalhar cansa.
 


Tabela 6 - O que a criança quer ser quando crescer - 1995/96 - (em %)

Cidade Profissões universitárias Policial Profissões técnicas Jogador de futebol Artista Outros
Belém 39 18 7 3 5 27
Recife 43 16 8 6 3 18
Goiânia 52 6 5 3 4 29
Belo Horizonte 49 12 7 6 3 22
São Paulo 41 10 14 9 1 23
Porto Alegre 33 10 7 7 - 43

Elaboração: DIEESE.
 
 

Foi na questão sobre se crianças devem, ou não, trabalhar antes dos catorze anos que se esteve mais próximo de uma crítica ao trabalho infantil. Uma grande parte das crianças se posicionou contra o trabalho antes dos catorze anos, apesar de declararem que gostam de trabalhar. Talvez seja mais fácil ser contra o trabalho infantil em tese, como princípio, do que negar o próprio trabalho. Os motivos para não trabalhar são aqueles que recuperam a infância perdida: estudar, brincar, ficar livre.

Os sonhos de futuro profissional da maioria das crianças entrevistadas são a realidade de crianças ricas no Brasil. Pretendem uma profissão com diploma universitário.
 

POR QUE AS CRIANÇAS TRABALHAM
 

Essa parte do estudo procura refletir sobre as relações entre o trabalho de crianças e fenômenos sociais mais abrangentes, discutindo algumas causas sociais e econômicas do trabalho infantil. Comenta-se ainda por que o trabalho pesquisado e discutido ao longo desse relatório é tolerado e muitas vezes incentivado pela sociedade.
 

Algumas causas do trabalho infantil
 

A primeira causa para o trabalho de crianças é, sem dúvida alguma, a criminosa concentração da renda em nosso país. O Brasil tem hoje uma das piores distribuições de renda do planeta. Esse fato se expressa nos baixos salários, nos índices de desemprego, no número de excluídos vivendo à margem da sociedade e abaixo das linhas de pobreza convencionais, nos alarmantes indicadores de educação, saúde, mortalidade infantil, esperança de vida e, como não podia deixar de ser, no grande número de crianças de cinco a catorze anos trabalhando, quase 5 milhões segundo os dados mais recentes. (5)

A concentração da renda no Brasil teve, como elementos agravantes, a alta inflação, que durante décadas corroeu a maior parte dos rendimentos do trabalho, e uma série de políticas econômicas contendo medidas de arrocho salarial.

Com os salários cada vez mais baixos e o custo de vida cada vez mais alto, as famílias pobres e até as chamadas remediadas adotaram uma das estratégias mais conhecidas para superar as limitações de rendimentos individuais extremamente baixos: o ingresso no mercado de trabalho do maior número possível de membros da família. Essa medida leva, no limite, ao trabalho de crianças como última tentativa de aumentar a renda familiar.

O efeito benéfico da recente estabilização dos preços sobre a distribuição da renda é contrabalançado por salários insuficientes, pela crescente precarização das relações de trabalho e por índices alarmantes de desemprego. Por isso, as famílias continuam mandando seus filhos ao trabalho.

O que deve ser discutido, nesse caso, é se o trabalho infantil é a única, a mais fácil e, principalmente, a mais indicada opção para complementar a renda e, o que é muito importante, a eficácia dessa estratégia.

Não é possível que não se encontre outro meio para chegar a um patamar de renda adequado às necessidades básicas do indivíduo. O aumento gradativo do salário mínimo, a distribuição eqüitativa da produtividade entre capital, trabalhadores e consumidores, uma política de renda mínima, bolsas escolares, políticas de geração de emprego e renda são apenas algumas das medidas que podem substituir com vantagem o trabalho infantil em sua tarefa de aumentar a renda da família.

Comparando-se à eficácia dessas medidas, o trabalho de crianças, como ajuda financeira, pode ser descartado, de imediato, em vista de seu pequeno aporte ao orçamento familiar. Qualquer uma dessas políticas traz, a médio e longo prazos, resultados mais efetivos e duradouros.

Além disso, quando se verifica o que significam para um país uma ou duas gerações mal preparadas para o futuro, o trabalho de milhões de crianças assume sua verdadeira face. É o pior investimento que um país pode fazer para enfrentar um mundo competitivo, onde a escolaridade e qualificação da população são fatores fundamentais para o que se chama hoje de produtividade sistêmica.

Uma segunda causa importante e estrutural para crianças trabalharem no Brasil é a falta de uma política governamental para a educação, que considere o desenvolvimento infantil para além do aprendizado escolar. Não se concebe em nosso país a educação de modo integral, contribuindo para o crescimento não só intelectual mas também físico, psicológico e social das crianças, sendo dessa forma um instrumento essencial para a construção da cidadania.

Na ausência dessa política, os pais procuram o trabalho como meio de promover o desenvolvimento infantil e levar seus filhos à maturidade. Além disso, também por falta de uma política educacional integral, as crianças pobres não têm um espaço nas grandes cidades, hoje violentas e perigosas, para estudar, praticar esportes, brincar, aprender línguas, música, computação. Um lugar onde possam ser orientadas por profissionais da educação e estar em segurança durante o tempo em que não estão na escola. Não é de se admirar que a família prefira uma criança trabalhando, em local e horário conhecidos, do que fazendo sabe-se lá o que na rua.

Uma terceira causa para o aumento do número de crianças trabalhando são as recentes transformações no mundo do trabalho. A rápida e crescente precarização de relações e condições de trabalho abre brechas por onde se insinua o trabalho infantil. O exercício regulamentado de uma profissão, em condições acordadas entre patrões e empregados adultos, representados por suas entidades de classe, dificulta o trabalho precário e sua forma mais perversa que é o trabalho infantil.

Por último, não se pode deixar de mencionar os séculos de construção de uma ideologia do trabalho que considera essa atividade como a mais nobre exercida pelo homem, como panacéia para todos os males, como remissão para o crime e a marginalidade, como única forma legítima de aquisição de riquezas e de acesso aos meios de vida. É escola de vida para os jovens e motivo de orgulho para os mais velhos.

Essa ideologia não discute se todo trabalho é bom para qualquer pessoa, independentemente de sua natureza leve ou penosa, inócua ou perigosa, saudável ou insalubre. Não se discrimina entre aqueles que devem e podem trabalhar e os outros para quem o trabalho deve ser optativo ou proibido, como doentes, velhos e crianças.

Se o trabalho fosse o que essa ideologia proclama, também os filhos de famílias ricas passariam sua infância trabalhando. Mas são os pobres que lançam mão do recurso e do argumento moral do trabalho. Ao mesmo tempo que é estratégia de sobrevivência, o trabalho infantil é também estratégia de inserção social das famílias pobres, não propriamente miseráveis apesar da baixíssima renda, mas excluídas de toda e qualquer oportunidade social.

É apenas no discurso, e como ideal a ser atingido, que o trabalho aparece como a atividade mais nobre da humanidade. Na realidade, o trabalho é necessidade vital para alguns e forma eficaz de exploração para outros.

O trabalho de crianças hoje, em sua forma contemporânea é, de um modo ou de outro, determinado por essas causas estruturais e sua erradicação depende, em grande parte, da solução ou transformação desses determinantes.
 

O trabalho tolerado
 

Nos últimos tempos, os meios de comunicação no Brasil têm mostrado crianças trabalhando em situações consideradas inadequadas até para adultos. É o trabalho no corte da cana, na produção do sisal e da erva-mate, nas carvoarias, na produção de calçados, entre vários outros. Não é só o trabalho em si, penoso, insalubre e perigoso, que choca a sociedade, mas também as condições em que é exercido com jornadas longuíssimas e remuneração inexistente, ou perto disso.

Esse tipo de trabalho, que, com razão, a sociedade repudia como intolerável, tira crianças da escola, mutila física e socialmente e leva uma parte da população infantil brasileira de volta aos piores momentos do século XVIII. É como se não houvesse existido toda a trajetória de luta e conquista de direitos pelos trabalhadores ao longo dos últimos séculos. A cena de uma criança de dez anos carregando nas costas fardos de erva-mate com até 130 kg, durante oito, dez, doze horas por dia, causa uma indignação, infelizmente pouco comum nos dias de hoje.

A desfaçatez com que empregadores ou intermediários desse trabalho justificam e defendem sua existência e continuidade, alegando as necessidades da própria criança e de sua família, torna mais fácil o repúdio e faz com que se procure uma solução imediata, que interrompa o círculo vicioso miséria-trabalho-miséria.

Os dados que a pesquisa nas seis capitais apresenta são muito diferentes do quadro anterior. Como se viu, as crianças entrevistadas têm atividades usuais do meio urbano, vendas, seja em balcão ou na rua, serviços pessoais e doméstico, serviços especializados, entrega de encomendas, são ajudantes de produção na indústria leve ou artesanato, serviços de segurança, serviço de escritório, entre outros.

Uma criança pobre trabalhando nessas condições não provoca, hoje em dia, nem surpresa, nem indignação nos habitantes de grandes cidades brasileiras. Aliás, o que se sente é um certo alívio por não estarem pedindo dinheiro nos sinais de trânsito, cheirando cola pelas praças, dormindo embaixo dos viadutos. E se atribui ao trabalho que a criança exerce a responsabilidade pelo milagre de tirá-la da rua e inseri-la, desde já, no bom caminho.

Como nenhum daqueles serviços é considerado penoso, perigoso ou insalubre, o fato de serem exercidos por crianças, que deveriam estar estudando ou brincando, é rapidamente naturalizado pela sociedade, incorporando-se ao cotidiano das cidades.

Os dados da pesquisa sobre trabalho infantil em Belém, Recife, Goiânia, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre mostram que quase todas as crianças entrevistadas estão defasadas nos estudos, não se interessam pela escola, não brincam regularmente, não praticam esportes, enfim não estão se desenvolvendo de forma harmoniosa para chegar à idade adulta preparadas para a vida.

Mostram, ainda, que o trabalho exercido pelas crianças não lhes dá o tipo de aprendizado que se considera importante hoje em dia para a inserção no mercado de trabalho adulto. Pelo contrário, é responsável, em parte, por tirar de crianças pobres a grande oportunidade que têm de se igualar no futuro a jovens de classe média e alta. O trabalho na infância, em vez ser o instrumento de capacitação que a sociedade lhe atribui, acaba se tornando mais uma forma de reprodução e aprofundamento da desigualdade social existente.

Diante desse quadro, é possível que esse tipo de trabalho, tolerado e, tantas vezes, incentivado pela sociedade, seja a médio e longo prazos, tão nocivo quanto aquele considerado intolerável e, imediatamente, repudiado por todos.

Crianças que passam cinco, seis, sete ou mais horas por dia trabalhando durante, pelo menos, cinco dias na semana também estão sendo deformadas, embora a mutilação não seja de imediato evidente. É mais difícil perceber as conseqüências que tem, no longo prazo, esse tipo de trabalho infantil. Os resultados são crianças mal preparadas para ocupar seu lugar no mundo de adultos, do ponto de vista físico, intelectual, psicológico e social.

São crianças que vão adquirindo uma visão distorcida de mundo onde uma das atribuições da infância é complementar ou prover a renda da família através do trabalho. Mais que isso, como adultos talvez continue não lhes ocorrendo exigir da sociedade o direito a uma renda adequada que permita a seus próprios filhos não trabalhar.

A pesquisa realizada em seis capitais brasileiras leva a uma pergunta e a uma reflexão que a sociedade como um todo precisa enfrentar: o trabalho infantil que aparentemente não é penoso, insalubre ou perigoso, que é feito por crianças que não estão fora da escola, que não aparece no dia-a-dia, pois já foi naturalizado, esse trabalho pode ser tolerado ou é tão nocivo e prejudicial à criança e à sociedade que deve ser combatido?

A construção de uma sociedade de cidadãos responsáveis e bem formados implica a necessidade urgente de iniciar essa discussão. Porque criança que trabalha não se prepara para o futuro.

O problema do trabalho infantil não se resolve em si mesmo. Ele deve ser tratado como parte das graves questões que o país enfrenta em termos de renda, emprego e precarização do trabalho, políticas educacionais, de saúde e culturais. Mas o fundamental é partir do princípio de que o trabalho de crianças não é solução para qualquer problema. O trabalho infantil é em si um problema.
 
 

1. Utilizou-se o termo criança para indicar pessoas até quinze anos de acordo com a classificação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) - para questões relativas ao trabalho.

2. Apenas o trabalho de aprendiz é permitido aos doze e treze anos. Uma proposta do Executivo, enviada ao Congresso Nacional recentemente, recomenda sua extinção.

3. PNAD/IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.

4. Não foi possível encontrar o dado para Porto Alegre.

5. PNAD/93.
 
 

Escrito pelo dieese.
Retirado de: http://www.dieese.org.br/bol/esp/es1abr97.html