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Denilson Cardoso de Araújo*
Inês Joaquina Sant'Ana Santos Coutinho**
A comemoração dos
80 anos do Código Mello Mattos oferece oportunidade para que lhe seja prestada
justa homenagem, até pela recente passagem dos 17 anos do Estatuto da Criança e
do Adolescente. Entre aquele ancião e este jovem que busca afirmação, reflexões
se impõem.
Se evoluímos do
paternalismo filantrópico à construção democrática de comprometimentos
comunitários e estatais, temos ainda, ligando os dois marcos legais, a mesma
miséria da realidade social brasileira. Injusta e excludente nos anos 20 do
século passado. Cruel e certamente mais complexa em pleno Século XXI. No
entanto, vencer a injustiça não é obra somente de textos, mas tarefa de homens
de bem. Com a ação, bons homens podem minorar imperfeições de ‘maus textos’ e
podem maximizar o bem que lhes dispuserem ‘textos bons’. Mas os inertes e o
omissos agravam maldades e impedem bondades, independente das letras que lhes
forneçam.
Mesmo quando
escritos à custa de lágrimas, pólvora ou sangue, textos não operam mágica.
Precisam ser trazidos à vida, em luta miúda e cotidiana, olhando nos olhos do
desespero. E essa operação exige vontade e coragem.
Não duvidamos que
o ECA inicie um ‘novo mundo’ na
tutela dos direitos infanto-juvenis. A mudança de paradigma é uma realidade.
Mas não autoriza o desprezo para com tudo o que, de ‘mundo anterior,’ existia. Queimar caravelas na chegada ao
mundo novo - sabe-se - não é atitude dos sensatos. A evolução da sociedade faz
natural que o avanço de ontem, hoje, seja atraso. Mas - é certo - não houve
Copérnico sem Ptolomeu.
Para o
desenvolvimento da humanidade, da democracia e da ciência jurídica e para a
construção de um direito infanto-juvenil qualificado e robusto, não podem ser
desprezadas contribuições sem as quais os caminhos necessários ao progresso não
teriam sido abertos. Nessa trilha de raciocínio, cremos ser possível conceder à
obra de MELLO MATTOS - e ao trabalho dos que o sucederam - a merecida
importância, tantas vezes desnecessariamente mitigada no intuito de defender-se
os inegáveis avanços promovidos pela Lei 8.069/90.
O Direito –
lembremos - não se constrói no vazio.
DIREITO ESCRITO – TERRITÓRIO DE LUTA
Grandes obras
legislativas ecoam nos tempos dando voz à altivez de um povo na medida de
grandeza do Direito que praticou. NORBERTO BOBBIO registra que o herói do mundo
clássico é o grande legislador. E realça o fato na seguinte história exemplar:
"A obra de Platão começa com as seguintes palavras: ‘Quem é que vocês
consideram como o autor da instituição das leis, um deus ou um homem?’, pergunta o ateniense a Clínias; e este
responde:" Um deus, hóspede, um deus." [01]
Natural que o
direito escrito tantas vezes se pretenda intocável, perene, remetendo o
Magistrado à condição estabelecida por MONTESQUIEU de ‘mera boca que
pronunciava a lei’, sem autonomia de interpretá-la ou adequá-la. Mas sabemos
que a lei escrita não congela o Direito. Luta política e jurisprudência estão
aí, conectando realidade social e processo legislativo.
O novo, entre
conflito e perplexidade, força as paredes do arcaico. Não mais o mero registro
unilateral das vontades e concessões do príncipe, o Direito, agora é
socialmente contratado, conforme ROUSSEAU. Surge a compreensão do Direito como
repositório de valores, mais do que carta de instruções para a pequena
desavença contratual e cotidiana. Momentos assim geram atestados de maturidade,
como a Magna Carta de 1215 e as declarações de direitos firmadas pela Revolução
Americana, pela Revolução Francesa ou pela Assembléia Geral da ONU, documentos
que inauguraram novos tempos. Assim fizeram as diversas Cartas de Direitos das
Crianças.
Documentos assim
têm irresistível efeito multiplicador. Seus princípios dizem quem somos ou,
pelo menos, quem almejamos ser. A lei que instrumentaliza um princípio,
inoculada no ordenamento, "contamina" com o bem as leis
circunvizinhas. Por isso é que se estabelece, em torno de cada palavra, um
verdadeiro campo de batalha, mais que técnica, ideológica, tanto no momento em
que as leis são redigidas quanto no passo em que a hermenêutica as transporta à
realidade concreta.
Mas a lei depende
da gradual evolução, nos povos, do sedimento cultural que firmará solo para
edifícios legais que expressam sua alma. Assim ensinou JEAN-JACQUES ROUSSEAU:
"Como o arquiteto que, antes de construir um edifício, sonda e
examina o solo para ver se pode agüentar o peso necessário, o sábio legislador
não começa redigindo leis boas por si mesmas, mas antes examina se o povo a que
são destinadas está apto para suportá-las". [02].
Já FERDINAND
LASSALLE, ensina que as leis não são apenas a tinta no papel, mas os "fatores reais de poder"
[03]. Direito escrito nada mais é do que a resultante do atrito entre,
dentre outros: governo, classes sociais e poder econômico. Se este último
predomina, marxistas avisam que a legislação é sempre um instrumento de
dominação, apenas viabilizando a manutenção do status quo pela classe dominante.
Por isso é que
RUDOLF VON IHERING, no inspirador "A
Luta pelo Direito", combatendo o espontaneísmo da Escola Histórica
de SAVIGNY, ensina que "a força
viva" do direito "só
se afirma numa disposição ininterrupta para a luta" [04],
construído em "um trabalho sem
tréguas, não só do Poder Público, mas de toda a população"
[05].
Se é no bom
combate que se fazem leis progressistas, os que entendem de luta não desprezam
o pequeno avanço, a cabeça de ponte conquistada e a ser defendida, como passo
para a vitória mais ampla.
Com essa rápida
digressão entendemos que, considerados os ‘fatores reais de poder’ de então, e
as regras, ainda de mera e miúda cabotagem, com que se fazia a navegação
política na década de 1920, MELLO MATTOS, na verdade, avançou ao Cabo da Boa
Esperança.
CONTEXTUALIZANDO O CÓDIGO MELLO MATTOS
O país vivia
grande efervescência quando surgiu a obra de MELLO MATTOS. De um lado, o poder
das elites conservadoras e rurais buscava perpetuação através de autoritarismo
e conchavos de governadores. WASHINGTON LUIZ, em meio à carestia e à recessão,
apontava a polícia como solução para os problemas sociais brasileiros, num
tempo de sufrágio excludente. Não mais censitário, permanecia masculino e para
os poucos alfabetizados, em eleições fraudadas ‘a bico de pena’.
Ocorriam lutas por
alterações desse quadro. Na Revolta da Chibata (1910), os marinheiros –
inclusive grumetes menores de idade - lutavam com JOÃO CÂNDIDO por comida e
contra a crueldade dos castigos físicos. Nos anos 20, os tenentes se
mobilizavam como porta-vozes de segmentos médios da população. PRESTES marchava
pelo Brasil com sua Coluna. Era fundado o Partido Comunista.
A população dava
um salto, passando, entre o final do século XIX e início do século XX, de 10
para 30 milhões, com os menores de 19 anos representando 51% da população.
[06] Sofria-se o impacto da industrialização nascente, com todas as suas
conseqüências sociais. A proletarização operária gerava situações de miséria e
exploração, como as descritas na ficção de CHARLES DICKENS. O inchamento das
cidades provocava a vivência do abandono, como descrito em ‘Capitães de Areia’ de JORGE AMADO.
ANDRÉ RICARDO
PEREIRA descreve o quadro das principais cidades brasileiras ao final do século
XIX, agravada no período a que nos referimos:
"... da noite para o dia (surgia), uma perigosa malta de pessoas
marginalizadas que ameaçavam a ordem vigente, seja como massa ativa nos
constantes motins urbanos, seja no exemplo negativo de um extrato que
não vivia do trabalho ‘honesto’. No
interior dessa malta, destacava-se, pela primeira vez, o grupo de crianças e
adolescentes. No período anterior, eram pouco visíveis, pois as crianças tinham
como destino as Casas do Expostos e os adolescentes trabalhavam como escravos."
[07] (nosso grifo)
Como tratar da
questão, àquela altura do nosso desenvolvimento histórico? Que forças atuariam
em tal embate? As lutas operárias apenas conheciam a incipiente mobilização dos
avós anarquistas, recém chegados na imigração. O "povo brasileiro"
era construção ainda dispersa, com lutas de fraca organicidade e consistência,
com baixo grau de consciência, sem condições de efetiva conquista de direitos e
espaços de poder. O aparato oficial se constituía de poucos, em favor de
poucos.
ROBERTO DA SILVA
esclarece bem o contexto:
"...as leis são formuladas, na sua origem, para assegurar os
direitos de um protótipo de homem, que no caso brasileiro apresentava-se, no
inicio do século, como homem branco, letrado e cristão, a mulher e a criança
tornaram-se tributários destes direitos apenas a partir da relação de parentesco
e de consangüinidade com o varão." [08]
O então recente
Código Civil Brasileiro cuidava preferencialmente desse homem branco e
proprietário, idealizado pelo Estado. Aos pobres e pretos, o Código Penal. Mas
os relatos da época já registravam a perplexidade das elites para com o
‘problema do menor’. O contexto era de limpeza da paisagem para saúde do sonho
dourado de nossas elites europeizadas.
Era necessário eliminar os fétidos cortiços e esgotos que corriam pelas
ruas. Era necessário controlar as epidemias e dar novos ares ao Rio de Janeiro
com a derrubada do Morro do Castelo, reprimindo "capoeiras" e
"vadios" improdutivos e limpando a paisagem da nódoa de crianças
pobres, entregues à mendicância ou à delinqüência.
Há dois elementos
a serem compreendidos. Primeiro, a filosofia positivista que imperava naquele
quadrante histórico. Dela resultava um dirigismo das elites que, na visão da
época, tornava o comando das oligarquias uma necessidade, já que, "sob o país oficial, estava o mundo informe",
ou seja, o povo difuso e composto de "incapazes de seguir diretrizes próprias no jogo das instituições, que
não conseguiam assimilar e que a grande maioria de seus membros não podia
sequer compreender" [09].
RAIMUNDO FAORO
menciona as avaliações sobre o fracasso da aventura republicana, na comparação
com os modelos que se pretendeu copiar: "Falhara a entrega da nação a uma sociedade que, não livre, carecia de
elementos vivos de coesão", pelo que "o governo deveria educar, cultivar e orientar o povo"
[10]
Sobre este
aspecto, e de particular interesse ao tema focalizado neste trabalho, é
emblemático o discurso do Senador LOPES TROVÃO em 1896, quando brada:
"...Temos uma pátria a reconstruir, uma nação a firmar, um povo a fazer e para empreender essa tarefa que elemento mais útil e moldável a
trabalhar do que a infância? São chegados os tempos de trabalharmos na infância a célula de uma
mocidade melhor, a gênese de uma humanidade mais perfeita."
[11] (nosso grifo)
A quem mais
entregar missão desta grandeza? Se não havia povo, ainda também não estavam
constituídas, com densidade reivindicativa, camadas médias em condições de
alguma intervenção política efetiva, como detecta FAORO:
"A classe média, a camada média da sociedade, segundo denominações
divergentes, não tinha condições objetivas de aspirar ao comando político do
país (...) reclama não um papel próprio, mas o abandono de um Estado não
intervencionista (...)" [12]
Era inevitável o
dirigismo elitista em face da dispersão das forças populares e da incapacidade
de ação das camadas médias que esboçavam atuação apenas no âmbito militar.
Positivismo mais
dirigismo eram conservadores e, se impulsionados a alguma atitude proativa nas
questões sociais, assim se fazia apenas como forma de prevenir e esterilizar os
reclamos e reivindicações nascentes. Ainda de perto se contemplavam as brasas
da Grande Guerra e da Revolução Soviética de 1917.
Eram passadas
menos de 03 décadas da abolição da escravatura, precedida de reforços
‘pseudocientíficos’ à mitologia quanto à maldade congênita do negro. JOAQUIM
MANUEL DE MACEDO chegou a escrever, numa espécie de ‘contra-ficção’, os três contos antiescravistas de "As vítimas algozes", em resposta
à publicação, no Brasil, de "A
Cabana do Pai Tomás", de Harriet Beecher-Stowe [13]. Defendia
que a escravidão precisava terminar, não porque os negros eram ‘bonzinhos’ e
dignos de pena, mas, sim, porque o sistema os transformava em criminosos
cruéis. Sua tese era reforçada pelo noticiário que registrava crimes de
escravos contra senhores, reação desesperada à ausência de horizontes. Não
bastasse serem tidos por inferiores, sem alma e sem direitos, veio a
disseminação do conceito do negro ‘ladino’ e aterrorizante, visão que
provavelmente se agravou quando o início da República recebeu a ilusão
cientificista e o positivismo que permitiram à criminologia preconceituosas
teorias de maldade congênita.
Neste contexto
estabelece-se a preocupação com a criminalidade juvenil. Por detrás do pequeno
delito se ocultaria a monstruosidade. Havia uma perspectiva higienista, com o
viés da eugenia. Unem-se a pedagogia, a puericultura e a ciência jurídica para
atacar o problema, tido como ameaçador aos destinos da nação: ‘o problema do
menor’.
Ocorre a
conscientização quanto à gravidade das precárias condições de sobrevivência das
crianças pobres. Havia epidemias, superstição materna e pátrio poder
impermeável às orientações quanto às providências básicas de saúde e higiene.
Era elevada a taxa de mortalidade infantil. No caso dos "expostos", entregues às Santas
Casas de Misericórdia, o índice chegava a 70%.
Marcos dessa
reflexão foram o Centenário da Independência e a Exposição Mundial de 1922, no
Rio de Janeiro. O clima era de ufanismo, esperança e crédito na capacidade
humana de transformação da realidade. A questão da criança é realçada,
destacando-se nessa reflexão médicos, políticos e advogados. O futuro do Brasil
– descobre-se - dependia de atenção especial para com a infância.
Efeméride
importante ocorreu, também em 1922: o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção
à Infância, realizado na Capital da República, em conjunto com o
Terceiro Congresso Pan-Americano da Criança, sob inspiração de conferências
internacionais. Criou-se uma agenda mais sistemática para a proteção social,
influindo em questões de higiene, medicina, pedagogia, assistência social e
legislação. Surgem recomendações para criação de leis de proteção à
infância.Diversas tentativas, capitaneadas por grandes idealistas como Tobias
Barreto, passando por Evaristo de Moraes, Lopes Trovão, Alcindo Guanabara,
dentre outros, foram empreendidas, mas sem que o Congresso as aprovasse ou
simplesmente, as discutisse. Até que vem o Projeto de Mello Mattos.
É NESSE QUADRO QUE
SURGE, COM TODAS AS HONRAS, UMA OBRA DA IMPORTÂNCIA DO CÓDIGO DE MENORES INSTITUÍDO
EM 1927. Muitos criticam a não adoção das recomendações da Declaração de
Genebra sobre os Direitos da Criança, que a Liga das Nações, com o voto
brasileiro, aprovou em 1924. Esquecem-se os críticos das características muito
particulares do Brasil em relação ao pensamento internacional. O mundo de então
vivia o tempestuoso entre-guerras da ascensão nazi-fascista e a débil Liga das
Nações, já em passo de derrocada, pouca condição tinha – como ocorre com a ONU
hoje – de impor normatividade às declarações de princípios.
Não se pode
apreciar o Código Mello Mattos com juízos fora desse contexto. Ninguém despreza
o pioneirismo operado, com as limitações de seu tempo, por Fra Angélico, porque
a técnica de Da Vinci ou a inventiva de Picasso seriam superiores! A cada um a
sua circunstância. Lembremos do ensino de MARX que, embora referido em outro
contexto, não atende só aos marxistas:
"Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como
querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que
se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado". [14]
UM HOMEM DE LUTA, NO LUGAR CERTO E NA HORA
CERTA
JOSÉ CÂNDIDO DE
ALBUQUERQUE MELLO MATTOS foi um pioneiro. Foi um homem de grandeza moral que,
com os mecanismos legados pelo passado brasileiro, obscuro e complexo,
acendeu uma lanterna em direção ao futuro, em auxílio à infância desvalida.
Engajou-se com o que de progressista então havia. Foi jurista e escritor
respeitado, advogado militante, com atuação destacada, referido por Evaristo de
Moraes, luminar do nosso direito, como "advogado
de incontestável talento". [15]
Como parlamentar,
em 1904, esteve na linha de frente da campanha pela vacinação obrigatória,
apoiando Oswaldo Cruz e atuando com firmeza nas duras refregas em torno do tema
na Câmara dos Deputados, onde ajudou a aprovar a autorização legislativa.
[16] Ainda no Congresso, apresentou em 1906, o projeto que resultou na
criação do Instituto que hoje leva o nome do grande sanitarista brasileiro. Foi
também, entre 1920-1924, diretor do Instituto Benjamin Constant, de educação
para cegos. Em 06 de março de 1924, [17] profere o primeiro despacho
como Juiz de menores, função em que teve, ainda, notável atuação extrajudicial
e humanista. Permaneceu à frente do Juizado até seu falecimento, em 1934.
Como descreve
GUARACI VIANNA, "cuidava de forma
paternal dos pequenos filhos de famílias pobres do Rio de Janeiro, ora
entregando-os aos cuidados de seus amigos e conhecidos bem de vida, ora
internando-os em patronatos ou instituições filantrópicas da época".
[18]
Alguém poderá
atribuir ingenuidades ao notável Magistrado, esquecendo-se de que, contra
carências assassinas, filantropia é muitas vezes a Cruz Vermelha que salva
vidas. Talvez a infância de esforços, como os do socialismo utópico, cujo
desdobramento desembocam em revoluções. MELLO MATTOS não era um ingênuo, como
não o eram os utópicos ROBERT OWEN, FOURIER OU SAINT-SIMON. Como estes, o
grande magistrado era um homem de sonhos, mas também de compromisso e de ação.
ALYRIO CAVALLIERI relata:
"Seu espírito humanístico levou-o a tentar preencher as lacunas
existentes nos anos vinte, na área do amparo às crianças. Criou
estabelecimentos para menores e sua esposa, Dona Chiquinha, foi diretora de
asilo. O primeiro juiz menorista, de tal modo se dedicou ao amparo direto que
ganhou o apodo carinhoso de ‘Mellinho das crianças’". [19]
Mereceu seu grande
título: foi o primeiro Juiz de Menores
da América Latina! Estava à frente de seu tempo, como em tão boas letras
diz GUARACY VIANNA, referindo-se à apresentação do projeto de lei de sua
autoria, que deu início ao processo legiferante que resultaria no consagrado
Código:
"1925 – um jurista maior avança no tempo" [20].
(nosso grifo)
Referenciado pelas
discussões internacionais em torno do tema, com a autorização legislativa
fornecida em 1926 (Lei 4.242/21) a partir de seu projeto de 1925, promoveu a
consolidação e sistematização de uma legislação de assistência e proteção aos
menores. Na edição do Decreto nº
17943-A, de 12 de outubro de 1927, surgiu o Código de Menores. Pela primeira
vez tinha-se direito escrito especializado, codificado, em torno de tema tão
relevante.
O CÓDIGO MELLO MATTOS E SEUS VALORES
Cuidou-se, naquele
quadrante histórico, da infância "exposta",
"abandonada" e "delinqüente". Era uma legislação
direcionada, sim, ao pobre e, àquela altura, era natural que o fosse. Afinal,
vivíamos numa sociedade patriarcal, onde pontificava o poder quase absoluto do
pai de família sobre sua prole, praticamente sem ingerência estatal. Na
concepção da época, os que tinham pai estavam protegidos. Mas, e os que não
tinham família? SE podemos surpreender-nos com métodos e motivações, não
podemos desrespeitar nossa própria história. Frente ao grito das ruas, ainda
sem efetividade, a lei – como dissemos - era uma concessão estatal mobilizada
pelas lutas, apenas, dos integrantes mais conscientes e progressistas da elite.
Num país com
mentalidade tão retrógrada, sem dúvida, o Código Mello Mattos era uma notável
lei. Embora usando terminologias que hoje nos soam estranhas (como "expostos", "vadios", "transviados", "libertinos"), ou adotando
institutos que hoje repudiamos (guarda "mediante soldada"), efetivamente
avançava. Exemplos: permitia-se a intervenção do Estado no pátrio poder de quem
submetesse os filhos a abusos, negligência e crueldades (art. 31); garantia-se
que o ‘menor delinqüente’ de até quatorze anos não fosse "submetido a
processo penal de espécie alguma" (art. 68), devendo aquele, entre
quatorze e dezoito anos merecer "processo especial" (art. 69);
proibia-se o recolhimento do menor à prisão comum (art. 86); vedava-se o
trabalho aos menores de doze anos (art. 101) e, aos que tinham menos de quatorze
anos, sem que tivessem instrução primária, assim, impulsionando sua
escolarização.
Instituía a grande
legislação, assim, a primeira estrutura de proteção aos menores, com a
definição ideal para os Juizados e Conselhos de Assistência, trazendo clara a
primeira orientação para que a questão fosse tratada sob enfoque
multidisciplinar.
Frente à novidade,
houve resistências, como relata TAMY VALÉRIA DE MORAES FURLOT:
"O Código de Menores de 1927, que causou tanto protesto dos
industriais por suas medidas de regulamentação do trabalho infantil, procurava
estabelecer medidas para garantir o bem-estar físico e moral das crianças.
Crueldade, negligência, abuso de poder, exploração pela primeira vez constavam
como motivos plenamente justificáveis para o Estado destituir alguém do pátrio
poder." [21]
Os industriais de
tecelagem tentaram obter prorrogação do prazo para a execução do Código, "especialmente sobre o artigo relativo à
duração do trabalho dos menores". Mello Mattos indeferiu a petição,
considerando-a "ilegal,
injurídica, desumana e impatriótica". Julgou que aceitar a alegação
da indústria, segundo a qual substituir o operário menor de 18 anos pelo adulto
encareceria a produção e diminuiria o orçamento doméstico, levaria a "conclusões que atingem as raias do absurdo":
"sacrificar a saúde e o direito
dos operários menores para proporcionar maiores lucros pecuniários aos seus
patrões, e permitir aos pais tirarem dos filhos rendimentos, como se estes
fossem propriedade sui generis, que aqueles tivessem o direito de explorar até
a custa dos seus perecimentos". [22] No Rio de Janeiro,
em junho de 1929, foi negado o agravo interposto contra 500 multas aplicadas
por Mello Mattos a empresas que descumpriam o Código. Também em São Paulo,
tendo o Conde Matarazzo à frente, os industriais se mobilizaram contra o
Código, alegando inclusive motivos humanitários, para seguirem na exploração do
trabalho infantil. [23]
LIBORNI SIQUEIRA,
esclarecendo que, pela primeira vez, trazia-se a "noção de pátrio dever, ao invés de pátrio poder", [24]
menciona inclusive o questionamento que se deu, nas instâncias jurídicas, à
constitucionalidade do novo diploma, tido pelos pais como invasivo do poder
familiar:
"Os reflexos no contexto sócio-familiar foram grandes, eis que os
pais consideravam uma intromissão exagerada ao exercício do pátrio poder, pois
era uma verdadeira revolução no disciplinamento do assunto. Provocado, o
Colendo Superior Tribunal Federal manifestou-se favoravelmente à validade do decreto
que foi implantado e executado." [25]
O caso dizia
respeito à intervenção precursora de Mello Mattos, em Portaria baixada com base
no art. 131 do Código, vedando o ingresso indiscriminado de menores de dezoito
anos a apresentações de teatro de revista. Ridicularizado na imprensa e
combatido pela classe artística, o grande Juiz foi à luta, aceitou o debate e,
ao final, vencedor, consolidou o indispensável "princípio da
precaução".
Sua obra tornou-se
um marco referencial, cumprindo papel histórico. Ousaríamos dizer, mesmo, que
não se teria o Estatuto da Criança e do Adolescente sem Mello Mattos. A idéia
de uma legislação especial, com a característica de sistema, proporcionada por
um Código, atribuindo deveres paternos, impondo obrigações estatais e criando
estruturas, foi essencial – parece-nos - para que, hoje, encontrasse o ECA
amparo mais firme para tornar-se instrumento de construção de cidadania. Ambos
os diplomas – o primeiro em 1927 e o último em 1990 – estão absolutamente
antenados com o avanço possível em seus períodos históricos. Não seria possível
crianças e adolescentes sujeitos de direito, aptos à reivindicação e garantia,
sem a anterior definição das obrigações sócio-estatais em favor do menor.
Natural que a
realidade tenha defasado aquela obra legislativa, destino inexorável do qual
não escapam nem mesmo construções insignes como as de Nelson Hungria e Clóvis
Bevilácqua, e de que, certamente, não escapará o nosso ECA.
ENTRE O CÓDIGO MELLO MATTOS E O ECA
Vencido o esquema
da República Velha, o Brasil se moderniza sob impulso governamental, vincado na
forte tradição autoritária de uma nação de burguesia atípica que, por sua
origem patrimonialista, preza favores governamentais. A industrialização gera
uma classe operária de relevo, o governo central manipula concessões. Vem o
sufrágio feminino, surgem as leis trabalhistas e os partidos ligados às classes
populares. Campanhas mobilizam multidões.
Entretanto, as
forças militares se consolidam como sombra do populismo, por vezes indo à boca
de cena assumir o papel principal quando alguém ousava o improviso, à margem do
enredo programado. É assim que, nos anos 60, o regime se fecha. Na resistência,
o novo movimento operário serve de base à emergência de organizações e
reivindicações que vocalizam os anseios de um povo que agora quer protagonismo.
Os progressos internacionais na luta por direitos se transmitem às lutas
nacionais.
Memoráveis
campanhas levaram à Constituição Cidadã de 1988, com significativos avanços. A
correlação de forças se altera até ao ponto da quase vitória do candidato das
esquerdas nas eleições presidenciais de 1989. Não estávamos mais na elitista belle époque !
Nesse contexto
privilegiado surge o ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Os "fatores
reais de poder", modificados, alteravam o direito escrito. Por
isso, torna-se impossível a comparação, fora de contexto, entre dois diplomas
que refletem suas épocas. Os méritos do ECA não ofuscam o brilho da obra de
MELLO MATTOS. Repetimos: um preparou o caminho para o outro.
Entretanto, antes
do surgimento do ECA, o Código Mello Mattos, em dada altura, tornara-se
insuficiente, frente à realidade modificada. Como verificou ALYRIO CAVALIERI,
empoeirava-se na estante. [26] Na transição entre uma e outra
realidade, sob novos mecanismos de atenção ao problema da criança, destaca-se a
atuação dos Juízes de Menores, tema que merece algumas considerações.
O PAPEL DOS JUÍZES
É comum, hoje,
depreciar-se o papel exercido pelos Magistrados menoristas, cabendo, também
aqui, a observação de que a crítica não pode ser descontextualizada. Cabe ao
Magistrado promover as adequações que a realidade pede, priorizando a visão que
melhor faça avançar o Direito e melhor produza Justiça. Entretanto, Juízes
trabalham com as leis que lhes são dadas, sendo obrigados, ainda, a atentar
para o grau médio de consciência dos seus jurisdicionados. Também neste campo
verifica-se a ação dos "fatores reais de poder".
Os juízes que
atuaram entre o Código Mello Mattos e o ECA, inclusive sob a égide do Código de
Menores de 1979, merecem, no entanto, o reconhecimento, obviamente
contextualizado, da sua contribuição. Assim se deve olhar a crítica à "doutrina da situação irregular".
Ainda que os novos tempos a tenham tornado obsoleta e a realidade tenha
demonstrado a má prática que inspirou em alguns, é de justiça reconhecer a sua
bem intencionada base teórica. Adolescentes em "risco moral e
social", a rigor, estão em "situação irregular" em relação ao
que lhes seria ideal.
Os trabalhos que tratam
do tema [27] deixam claro que pretendeu-se impedir o estigma que
acompanhava o adolescente que recebia a pecha de "infrator" ou
"delinqüente". A idéia era a de que aquele necessitava de família,
escola, saúde e formação profissional para que saísse da criminalidade e que o
miserável (‘carente’) precisaria de família, escola, saúde e formação
profissional, para que na criminalidade não ingressasse.
Em visão isenta
não se pode deixar de perceber que CAVALLIERI, como principal formulador,
preocupava-se com a demarcação do território da atuação jurisdicional. Operador
consciente e angustiado não vislumbrava, na realidade brasileira, em tempos de
ditadura militar, possibilidade de aplicação da "doutrina da proteção
integral". Daquele ponto de vista, seu discurso guarda irretocável
coerência, até porque pugnava por restringir a atuação extrajurisdicional dos
Juizados de Menores, no intuito de impelir os agentes estatais pertinentes ao
cumprimento das suas obrigações. [28]
Também naquela
época – seu livro "Direito do
Menor" é de 1976 - já defendia a tese de que toda a perspectiva do
‘menorismo’ era no sentido de tratar a criança como sujeito de direitos,
[29] discussão, aliás, que não era nova, vindo desde os anos 40 [30].
Mais contribuições
foram dadas por outros magistrados.
ALBERTO AUGUSTO
CAVALCANTI DE GUSMÃO, que militava no Juizado da Capital da República nos anos
60 - "viga mestra do menorismo brasileiro", como o chamou CAVALLIERI,
quando participou da Comissão Revisora do Código de Menores, ainda em 1968,
tentou incluir no anteprojeto a Declaração dos Direitos da Criança, proclamada
pela ONU em 1959. Acabou obstado por questões metodológicas e certamente,
políticas, sem que se possa deixar de registrar seu esforço. [31]
O Relatório da
Comissão Parlamentar de Inquérito, instalada em 1975 para investigar o "Problema da Criança e do Menor Carentes no
Brasil", registra o esforço dos Magistrados em busca da atualização
do Código de Menores, mencionando projeto de revisão de autoria do Senador
NELSON CARNEIRO, que então tramitava:
"Nesse projeto são aproveitadas as sugestões feitas em 1957, pelos
Juízes de Menores do Brasil, tendo em conta o que, à época, tramitava na Câmara
dos Deputados." [32]
Na mesma CPI
vários Juízes deram seu testemunho demonstrando as necessárias mudanças
legislativas e organizacionais. Já se falava na necessidade de municipalização
e participação comunitária. Também havia a crítica às instituições de
internação, como na fala de NELSON LOPES RIBEIRO LIMA, Juiz de Menores em
Recife. O Magistrado, após defender o fim das medidas coercitivas, propôs um
rol de providências de proteção e prevenção nas áreas de saúde e alimentação,
dentre outras, realçando a necessidade de fechar "os reformatórios para os necessitados de correção, por inadequados e
prejudiciais à infância e à adolescência". [33]
A atuação dos
Juízes de Menores, dentro de uma estrutura injusta e sob uma lei defasada, sob
a pressão de uma realidade social dramática que os obrigava à ação, [34]
merece ser mais bem analisada em estudo próprio. O certo é que não se pode, por
culpa dos que eventualmente foram somente repressivos ou se fizeram meros
espectadores do passo lento da história, desprezar aqueles que lutaram contra a
realidade injusta, tornando-se, eles próprios, fatores de transformação.
Não se pode
esquecer que um dos mais brilhantes e decisivos autores do ECA, o DESEMBARGADOR
ANTONIO FERNANDO DO AMARAL E SILVA, autor da idéia dos Conselhos, foi, ele
próprio, Juiz de Menores, em virtuosa luta contra a realidade que enfrentava.
Se havia ímpeto
transformador, é natural que os Juízes menoristas vissem a concepção de sua
atuação nos marcos em que a dispôs o francês GASTON FÉDOU, como um "direito novo, que leva os juristas clássicos
a uma certa inquietação", pelo que "teria efeitos comparáveis à erupção de um vulcão ou de um
estremecimento da terra". [35] Também compreende-se que
os autores do ECA, com passionalidade cívica, freqüentemente usem a expressão
"revolução" para referir-se ao novo diploma, embora seja lamentável
que cheguem a usar adjetivação desrespeitosa quando se referem aos
‘menoristas’, sem qualquer ressalva, como representantes da barbárie. [36]
É de todo
compreensível – e até certo ponto, recomendável - que assunto de tamanha
relevância eleve temperaturas. Tudo o que não precisamos no trato com a questão
infanto-juvenil é de mornidão. Guardamos discordâncias com os que parecem
desconhecer os profundos avanços trazidos pelo ECA. Igualmente temos diferenças
de método e discurso em relação a certos defensores do ECA, especialmente
quando não tributam o respeito devido às contribuições do passado.
Não devemos
esquecer o ensino de MAHATMA GANDHI: "Discórdia honesta é freqüentemente um bom sinal de progresso".
Lembrando que um grande teatrólogo já nos alertou sobre a pouca estatura
intelectual que caracteriza toda unanimidade, sejamos honestos na discórdia! O
que para nós faz efetiva diferença é a postura que assume o Magistrado frente à
realidade concreta, diante de problemas tantas vezes sem solução legal ou
institucional. Aí, para nós, o ponto de convergência dos realmente honestos.
Aí, recordamos MELLO MATTOS.
Em sua obra
‘Direito do Menor’ afirma CAVALLIERI, às fls. 16: "Os juizados de menores não devem ter funções que extrapolem os limites
da prestação jurisdicional". Entretanto, o mesmo autor menciona (
às fls. 166/169) circunstância dos anos 70 em que precisou baixar Portaria
criando, ainda que em aparente contragosto, o que seria função de outra esfera
pública, o SLA – Serviço de Liberdade Assistida, então voltado prioritariamente
para a recuperação de toxicômanos.
É de se notar que
nem um dos mais importantes Juízes da atualidade, apaixonado defensor do novo
paradigma oferecido pelo ECA, o Doutor JOÃO BATISTA SARAIVA, titular da Vara
especializada da Comarca de Santo Ângelo (RS), escapou dos apelos das urgências
cotidianas. A organização não-governamental CEDEDICA (Centro de Defesa dos
Direitos da Criança e do Adolescente), nasce de sua iniciativa de mobilizar, no
próprio Juízo, voluntários aos quais capacitou para o acompanhamento da
execução das medidas de liberdade assistida. [37]
Experiências
similares ocorrem em todo o Brasil. Em Recife (PE), o Juiz LUIZ CARLOS DE
BARROS FIGUEIREDO, querendo minimizar os índices de internação de seus
adolescentes, criou grupo de voluntários para acompanhamento das medidas em
meio aberto. [38] No Distrito Federal, sob o comando do Juiz RENATO
RODOVALHO SCUSSEL, a Vara da Infância e da Juventude mobiliza voluntários em
programas próprios, de que é exemplo a "Rede Solidária Anjos do Amanhã". [39]
Diversos
Magistrados têm sido distinguidos no prêmio "Innovare", do Ministério da Justiça, por sua ação
catalisadora de apoios e compromissos de voluntários e instituições, em prol
dos direitos infanto-juvenis.
Destaque-se também
o hoje Desembargador SIRO DARLAN, quando, à frente da 1ª Vara da Infância e da
Juventude da Comarca do Rio de Janeiro, deixou registrada sua ação proativa,
nem sempre compreendida por muitos, mas sempre respeitada por quem conhece a
realidade dos problemas infanto-juvenis.
Na Comarca de
Teresópolis, dentro das limitações que possuímos, igualmente não ousamos
descansar a consciência frente aos clamores das mazelas com as quais
diariamente nos defrontamos. Por isso também ali, à sombra do Dedo de Deus,
buscamos motivar e mobilizar voluntários dispostos a contribuir na recuperação
de vidas e na prevenção de situações de risco. [40]
MAGISTRADO DA
INFÂNCIA E DA JUVENTUDE É MAGISTRADO SENSÍVEL. PORTANTO, NÃO PODE DESCANSAR NOS
CONFORTOS DO PRINCÍPIO DA INÉRCIA. AGE. Esta a concórdia a ser construída.
LEI E REALIDADE
O desenrolar da
nossa história demonstra como é penosa a construção democrática. Não se deve
descurar, inclusive, de que se tenta fazer no Brasil algo novo. Sem experiência
de democracia representativa em moldes estáveis, até pelo clamor das suas
deficiências, esforçamo-nos por apontar para modelos de democracia
participativa. Não é uma transição fácil. Por isso, não é possível imaginar a
proteção aos direitos infanto-juvenis sem uma atuação efetiva do Magistrado
especializado.
É cinzento o pano
de fundo dessa tentativa. O Estado de Bem-Estar, que nos chegou com tanto
atraso pela Constituição de 1988, defronta-se com o retraimento do modelo
econômico em que se baseava. A modernização produtiva, destruindo empregos,
coloca desafios que não eram os esperados no momento constituinte.
A solidariedade
possível num ambiente de pleno emprego se torna penosa num quadro de
precarização, informalidade e disputa constante. As organizações sindicais se
debilitam. Tendo sido elas o móvel das transformações, estas também acabam em
compasso de espera. As batalhas se tornam individuais e corporativas. Os
valores éticos são corroídos.
A redução do
Estado neoliberal é acompanhada pela emergência do terceiro setor. As
organizações não governamentais, se por um lado criam espaço de reivindicação
mais ordenado e pontual, por outro são incorporadas ao modelo excludente, na
medida em que se tornam válvulas de escape para as deficiências estatais, não
se descurando que reforçam, de algum modo, a tradição filantrópica.
É neste quadro que
a malha do sistema de garantias, previsto pelo ECA, precisa se instalar. Daí a
árdua batalha para a criação dos Conselhos Tutelares e dos Conselhos de
Direitos, para seu aparelhamento e para conscientização de Conselheiros e
autoridades. Ocorrem tensões, cooptação e oportunismos. Candidatos a
Conselheiros, em tempos de emprego precário, buscam o mandato como forma de
subsistência. Outros anseiam por uma pré-vereança. Ao mesmo tempo, escasseiam
militantes para a cobertura das frentes abertas à participação, sendo comum a
ação múltipla de alguns heróicos abnegados em diversos Conselhos. [41]
Por outro lado, o
modelo previsto pelo legislador tem se mostrado, em alguns casos, apenas uma
maximização das possibilidades representativas, já que a discussão popular mais
ampla e a fiscalização contínua exigida em modelos participativos continua
obstada pelo individualismo dos tempos.
Esta é a realidade
com que nos defrontamos. Em termos de infância e juventude os desafios são
maiúsculos e não podem esperar. Criança com fome não espera. Criança abusada
não espera. Criança carente do remédio salvador não espera. Família
desesperada, sem saber como agir com o filho pré-adolescente que se envolve com
o tráfico, não merece esperar.
Somente agora -
dezessete anos depois! - alcançamos a instituição de Conselhos em 90% dos
municípios brasileiros. E muitos deles existem apenas no papel ou – em alguns
casos - bravos Conselheiros lutam contra adversidades quase intransponíveis.
Por isso, a lenta e penosa construção do sistema de garantias preconizado pelo
ECA exige leitura de compromisso teleológico da diretriz do seu art. 262:
"Enquanto não instalados os Conselhos
Tutelares, as atribuições a eles conferidas serão exercidas pela autoridade
judiciária". Mais que transitória, a regra é de transição, impondo
ao Juiz que atue. Essencial é impedir a lacuna, até a chegada dos novos tempos
de plenitude participativa, dos quais deve também ser, com os demais atores, um
construtor substantivo.
Como ocorreu com
MELLO MATTOS, não nos é dado o conforto de descansarmos sobre o princípio da
inércia!
MELLO MATTOS, UM EXEMPLO DE LEI VIVIDA
Mello Mattos foi
mais que um Juiz, mais que o autor de um código. Foi o apóstolo de uma causa.
Os relatos de seu empenho pessoal enobrecem a história da Magistratura
brasileira. Necessário que, com a ferramenta democrática e abrangente dos
tempos atuais, o ECA, exerçamos a luta pelos direitos infanto-juvenis
com o mesmo ímpeto missionário daquele grande mestre, impregnando-nos com sua
indissociável paixão transformadora.
Onde existirem
Conselhos atuantes, Promotores de Justiça eficazes, Chefes de Executivo
compromissados, entidades sérias e responsáveis, caminhem juntos os
Magistrados. Onde ocorrer desleixo ou omissão para com os deveres estatutários,
os Magistrados devem colocar-se como ponta de lança do avanço necessário,
agindo e motivando o agir. O novo exige atitude nova. A antiga (e inevitável)
onipresença solitária do Juiz agora é presença catalisadora e solidária.
É interessante
notar a coincidência na adjetivação que dois importantes líderes da
Magistratura especializada atribuíram à missão que exercemos. Disse CAVALLIERI,
o líder que atuou em tempos tão difíceis: "Os juízes de menores são os juízes novos de um direito novo".
[42] Diz JOÃO BATISTA COSTA SARAIVA, referência atual de Magistrado na
dianteira do bom combate: "Há,
sim, um Novo Direito, e deve existir um Novo Juiz. Aliás, se não existir um
Novo Juiz, apto a operar este Novo Direito, Novo Direito não existirá, pois ao
Juiz compete dar eficácia às normas". [43]
Não nos cabe aqui
descermos à minúcia do debate doutrinário por detrás de tais assertivas. Não
pretendemos estar à altura de tais mestres. O certo é que SARAIVA e CAVALLIERI,
cada um a seu tempo, ‘novos’ e inovadores foram. Como, antes de todos, o foi o
grande MELLO MATTOS. Poderão acusar-nos de simplórios, românticos ou ingênuos.
O certo é que aprendemos que as letras envelhecem. A atitude transformadora, no
entanto, que está acima de teses, das doutrinas e das associações, forçando os
muros da realidade na busca de horizontes para as crianças brasileiras - que
precisam mais de certezas do que de esperanças - esta, nunca envelhece.
Guerreiros experientes são guerreiros mais sábios. É na inércia, na falta do
bom combate, que mora a decrepitude. MELLO MATTOS, ainda hoje, por ser dos que
deram, às narinas da Lei, os próprios pulmões, tem o frescor dos que lutam
sempre. São os indispensáveis, como diria BRECHT.
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www.risolidaria.org.br/util/view_noticia.jsp?txt_id=200511240013.
www.cededica.org.br.
www.oabsp.org.br
NOTAS
01 Em "A Era dos Direitos" pp. 56.
02 O Contrato Social – Capítulo VIII - Do Povo
– pp 60 – Ediouro, 19ª edição.
03 Tese defendida na
célebre obra "A essência da
Constituição".
04 A Luta pelo
Direito, Martin Claret, 2005 - pp 27
05 pp. 27
06 Dados em "Diretrizes Nacionais para a Política de atenção
integral à Infância e à Adolescência", do CONANDA, pp. 15, no sítio
www.mj.gov.br/sedh/ct/conanda/diretrizes2.htm.
07 No ensaio
"Criança X Menor: A origem de dois mitos da política brasileira"
constante de "Que História é essa?" (Relume Dumará, 1994), conforme
citados por Judite Maria Barboza Trindade em "Mulheres e abandono de
menores em Curitiba: Das imagens do progresso à construção coletiva das
representações", disponível em
www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/vol04_atg3.htm.
08 Conforme consta
em "Painel: pobreza e exclusão
social no Brasil – 300 anos de Políticas Públicas para a criança brasileira"
– Em www.facom.ufba.br/pretextos/silva1.html. - acesso em 07/07.
09 Conforme Raimundo
Faoro, mencionando Oliveira Vianna. "Os Donos do Poder", pp.278.
10 Op. Citada, pp.
296/297.
11 Cfe IRENE
RIZZINI, citada no trabalho do CONANDA, antes mencionado, pp 16.
12 Op. Citada, pp.
302
13 Conforme LUIZ
FELIPE DE ALENCASTRO, em "Vida
Privada e Ordem Privada no Império", no vol. 2 de "História da Vida Privada no Brasil",
pp. 90/91 (Companhia das Letras, 1998).
14 MARX, Karl –
"O 18 Brumário de Luís
Bonaparte", pp15. Fon Fon e Seleta. Rio,1968.
15 Consta da
Biblioteca do Senado Federal estudo crítico assinado por Rui Barbosa em torno
de um Habeas-Corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal por Mello Mattos, em
favor de políticos confinados pelo Executivo na Ilha de Fernando de Noronha
(senador João Cordeiro, deputados Alcindo Guanabara e Alexandre José Barbosa
Lima, e major Thomaz Cavalcante de Albuquerque): "A lição dos dois acórdãos: estudo crítico acerca da jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal em matéria de habeas-corpus contra atos do poder
executivo", na página do SICON, codificado sob nº 680.867. A
referência de Evaristo de Moraes se encontra no artigo que menciona o embate
entre ambos no julgamento de um crime passional envolvendo personalidades da
época sob o título "Tragédia de Tijuca", no endereço
http://www.oabsp.org.br/institucional/grandes-causas/a-tragedia-de-tijuca.
16 Há um discurso
virulento contra sua atuação, em que o parlamentar vencido, além de chamar a
medida de odiosa e violenta, acusa o "nosso amorável e cândido" Mello Mattos de ser um carrasco,
que se prestou a "fazer
movimentar o lúgubre aparelho da guilhotina". – Ver transcrição, do
discurso proferido na sessão de 29.09.1904, em
<www2.prossiga.br/Ocruz/textocompleto/imprensa_sobre/sessão/1904.htm>.
17 cfe. Cavallieri,
op. citada.
18 Direito
Infanto-Juvenil – Freitas Bastos Editora, 2004 - pp.6. Sobre este aspecto entendemos
que, de certa forma, é o que fazem os Juízes da Infância e da Juventude, nos
dias atuais, em seus diversos programas de apadrinhamento, amplamente
divulgados em suas cartilhas de atividades, na área da prevenção.
19 Op citada, pp.
14.
20 Op. citada, pp.
39.
21 em "Segredos de Família: violência doméstica
contra crianças e adolescentes na São Paulo das primeiras décadas do Século XX",
disponível no sítio
http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/vol04_rsm2.htm
22 LIMA, Marcos
Alberto Horta. "Legislação e
Trabalho em Controvérsias Historiográficas: O Projeto Político dos Industriais
Brasileiros (1919-1930)". em
http://libdigi.unicamp.br/document/?view=vtls000350096.
23 Idem. Insistindo na tese de que
"a escola do trabalho"
era a solução para a "salvação da
raça", chegam a mencionar que em Taubaté teria aumentado a
criminalidade e a prostituição infanto-juvenil, porque lá tecelagens cumpriam o
Código,
24 em ‘Adoção no Tempo e no Espaço – Doutrina e
Jurisprudência’ – Forense, 1993 – pp. 29
25 Op. citada, pp.
40, 41
26 Sobre este fato
Alyrio Cavallieri relata o início de sua carreira no Juizado de Menores, quando
sua "primeira providência foi
desencavar na biblioteca o Código de Menores". Op. Citada, nota 34,
pp. 26.
27 Além da clássica
obra "Direito do Menor", de Cavalieri, há um texto publicado pelo
aposentado Ministro do STF, Sálvio de Figueiredo Teixeira, quando era
Desembargador, na Revista Jurídica Mineira de setembro de 1986 (disponível em
www.bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/1875/1/o_direito_do_menor.pdf.).
28 Op citada, pp16.
29 Op. Citada, pp.
20
30 CRISTINA
LAZZAROTTO FORTES, em sua dissertação "Políticas Públicas em direção à prevenção da violência contra crianças
e adolescentes" relata: "Em 1940, com o novo Código Penal, falou-se em reformular o Código de
Mello Mattos, tendo em vista que aquele passou a idade da imputabilidade penal
para os 18 anos. Assim, em 24 de novembro de 1943 foi aprovado o
Decreto-Lei nº 6.026, conhecido como"lei
de emergência", que atualizou o processo destinado aos menores
abandonados e delinqüentes. Projetos de lei foram apresentados para a
reformulação do Código de Mello Mattos, os quais ensejaram o debate entre
juristas da época. As questões eram "o menor enquanto objeto do direito penal e menor enquanto sujeito de
direitos" e,ainda, a "perspectiva
judiciária pura", pela qual o judiciário não deve cumprir o papel
da administração, tampouco do serviço assistencial.
31 Cavalieri, op.
citada, pp 12/13.
32 "A Realidade Brasileira do Menor",
pp 50 (Câmara dos Deputados – Centro de Documentação e Informação, 1976).
33 Op citada, pp 51
e 228.
34 Cavallieri
registra os episódios em que famílias famélicas que buscavam internar filhos,
ainda que não delinquëntes, em reformatórios, para que ao menos tivessem cama e
comida.
35 Conforme citado
por Cavallieri – OP citada, PPs 06 e 27.
36 EDSON SEDA DE
MORAES em entrevista, comparou os menoristas a bárbaros situando-os entre
adversários de combates atuais como terroristas e George Bush. Na seção
"Memória Vova do Estatuto" no sitio
www.risolidaria.org.br/util/view_noticia.jsp?txt_id=200511240013.
37 A experiência de
Santo Ângelo se encontra no link "histórico" do sítio
www.cededica.org.br junto a outras experiências que dela se originaram
38 Conforme
mencionada no trabalho "Análise
situacional e algumas experiências inovadoras no atendimento sócio-educativos
aos adolescentes autores de ato infracional no Brasil" que pode ser
localizado seguindo o endereço <www.socialtec.org.Br/Downloads/InfanciaJuventude/...>
39 Conforme livro
Comemorativo dos 40 anos da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal
editado em 2007 pelo TJDFT. (Pp71).
40 Desde 1990 cerca
de 300 jovens em estado de risco moral e social que receberam medidas
sócio-educativas ou protetivas reunem-se no EOJ - Encontro de Orientação de
Jovens, coordenado pelo Comissariado de Justiça e no qual o orientador
voluntário promove atividades de aconselhamento, acompanhamento e dinâmica com
grupos de cinco a dez jovens, visando à criação de valores e referências
positivas. Além disso atuam voluntários em Programas de Recuperação de
Alcoólatras, de Justiça Terapêutica, Orientação de Pais, Reforço Escolar,
Iniciação à Informática, Teatro e Artesanato, dentre outros.
41 Sobre as
dificuldades nessa área, é interessante este trecho do trabalho de RUBENS PINTO
LYRA "As vicissitudes da
democracia participativa no Brasil" que, embora refira informações
de 1998, infelizmente não parece vencido pela realidade: "(...) Mesmo com relação aos Conselhos de
Saúde, da Criança e do Adolescente e Tutelar, cujo funcionamento é, por lei,
obrigatório, as atitudes de Governadores e Prefeitos são freqüentemente
marcadas pela lerdeza, ou mesmo completa inação. (...) Esta predisposição
negativa de prefeitos, a nível nacional, é confirmada na Paraíba pela denúncia
do Procurador da República Antonio Edílio Teixeira para quem "95%
dos Conselhos existentes na área de saúde, só funcionam no papel. Na prática
não existem e isso é muito preocupante porque quem deve decidir sobre a saúde é
o Conselho e não o prefeito, como ocorre atualmente" (Correio da Paraíba, 9-5- 1998)...". - em www.ufpb.br/ufpb/home/ouvidoria/artigos/demopartic.htm.
42 Op. citada,
pp.136
43 Em "O perfil do Juiz e o Novo Direito da
Infância e da Juventude" – disponível no sítio do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul e na Revista AJURIS nº 85 – março/02
* Serventuário de Justiça do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro.
** Juíza de Direito da Vara da Infância, da
Juventude e do Idoso de Teresópolis (RJ)
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10879&p=1
Acesso em: 14 out.
2008.