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VIDA E PATRIMÔNIO. DOIS CASOS DE CONTRADIÇÃO. 

MARCELO MOSCOGLIATO *




 A convicção de que o direito à vida é superior ao direito patrimonial é lógica. Mais ainda quando se trata do direito à vida de uma criança. Entretanto, nem sempre o que parece lógico ao homem de bom senso é razoavelmente aceito e aplicado, tanto que as contradições entre a vida e o patrimônio são freqüentemente apresentadas aos Tribunais. 

Abaixo, apenas a título de exemplo, encontram-se duas ementas de jurisprudência a respeito do direito à vida e à saúde de crianças e adolescentes em confronto com regras de proteção patrimonial. 

Em nosso sistema jurídico, muitas são as normas que indicam como preponderantes os interesses das crianças e dos adolescentes, reconhecidamente fundamentais ao desenvolvimento e à sobrevivência de qualquer nação. 

Observe-se que o art. 196 da nossa Constituição Federal diz que: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". E quanto à criança e ao adolescente, o art. 227 do mesmo diploma legal estabelece que: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Estas duas disposições constitucionais, por muitos desconhecidas e por alguns, propositadamente, esquecidas, merecem constante repetição para que ganhem domicílio definitivo na consciência de todos como regras fundamentais que devem ser necessariamente observadas em nossa organização social. 

A lei é fundamental. Entretanto, há muito tempo se sabe que apenas a lei é insuficiente para a solução do problema. Além dela é necessário a vontade de aplicá-la e a consciência a respeito dos direitos que ela gera e das obrigações que ela impõe. Como resultado da contradição entre a lei e a realidade documentada em nosso país, por exemplo, o Relatório de Direitos Humanos no Brasil – 1996**, feito pelo Departamento de Estado dos EUA registra o seguinte: "Apesar do progresso legislativo para proteger a criança e a crescente atenção às suas dificuldades pela mídia e campanhas de ONGS, milhões de crianças continuam a fracassar para obter uma educação, precisam trabalhar para sobreviver, e sofrem pela pobreza que aflige as suas famílias" (tradução livre). 

Quem caminha pelas ruas do Brasil sabe que este registro é puramente verdadeiro e, também, vergonhoso para uma nação como a nossa. 

Feitas essas anotações, voltemos ao tema inicial. A despeito das regras acima indicadas e da realidade documentada todos os dias a respeito da situação das nossas crianças e adolescentes, questões surgem nos tribunais acerca da predominância do direito patrimonial em confronto com o direito à saúde e à vida. Como exemplo, verifique-se o seguinte caso: - "Alienação de imóvel - Cláusula de inalienabilidade e impenhorabilidade - Menor - Alvará Judicial - Admissivel a concessão de alvará para alienação de imóvel doado a menores, com cláusula de impenhorabilidade e inalienabilidade, visando a apuração de valor para tratamento de um dos donatários, portador do vírus da AIDS, devendo-se, entretanto, resguardar os quinhões dos demais, a destinar-se à aquisição de outro imóvel" (Tribunal de Alçada de Minas Gerais, Rei. Juiz Alvim Soares, j. de 14.12.93, RJTAMG 53/71), 

Neste julgado tratou-se de institutos jurídicos de Direito Civil em contraste com as necessidades de um adolescente para o tratamento médico em face à AIDS. Em suma, no caso, uma viúva solicitou alvará judicial para a venda de um imóvel registrado em nome dos seus filhos com cláusula de inalienabilidade e impenhorabilidade. Referidas cláusulas, como os nomes já indicam, impedem que os imóveis por elas gravados sejam objeto de compra e venda ou de execução para o pagamento de dívida (art. 1676 do Código Civil - "A cláusula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia, imposta aos bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por necessidade ou utilidade pública, e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena de nulidade"). Em um primeiro momento, perante o Juiz de Direito, o pedido de alvará foi indeferido. Porém, mediante recurso o pedido foi provido e o Juiz Relator do processo no Tribunal de Alçada de Minas Gerais, Dr. Alvim Soares, registrou que: "... ante as razões expostas, paralelo-me ao entendimento esposado pelo Promotor de Justiça da comarca, ratificado nesta instância superior pelo Parecer da douta Procuradoria Geral da Justiça. É de se inquirir: qual mãe ou irmãos que não abririam mão de seus direitos materiais para conceder condições de tratamento e amenizar as dores físicas de um ente querido, portador do tão indesejável vírus da AIDS?" 

No caso, a regra patrimonial, rígida, cedeu lugar ao interesse maior pela vida. 

Com relação ao segundo caso, primeiramente, é preciso anotar que a Lei nº 7.670/88, no seu art. 1º, inciso II, autoriza a movimentação do saldo da conta do FGTS pelo seu titular quando ele for portador do HIV e necessitar do dinheiro para o tratamento da sua saúde. Por outro lado, é sabido que a única previsão legal à liberação do FGTS para o tratamento da saúde de dependente ocorre quando há neoplasia maligna – câncer (Lei 8.036/90, art. 20 = "- A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas seguintes situações: ... XI quando o trabalhador ou qualquer de seus dependentes for acometido de neoplasia maligna..."). 

Porém, em caso relativo ao tratamento de filho portador do HIV, o titular da conta do FGTS logrou êxito em liberar o seu saldo. É este o teor da jurisprudência: "Ementa: Administrativo. Liberação de valores depositados em contas vinculadas do FGTS para tratamento de doença de dependente. 1. Entender que a situação do autor, que pretende a liberação do saldo das contas do FGTS para tratamento de filho menor portador do vírus da AIDS, não está compreendida nos permissivos de saque é uma demasia, um exagerado apego à letra da lei; em frontal colisão com o espírito que animou o legislador ao editá-la. 2. lmprovido o apelo da CEF" 

(Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Rel. Juiza Marga lnge Barth Tessler, j. de 10.10.95, DJU-11 de 06.12.95, p. 85.120). 

Do nosso sistema constitucional e dos dois julgados acima indicados é possível extrair que fundamental mesmo, é o direito à vida. E quando a vida se vê ameaçada, regras de cunho meramente patrimonial não devem ser empecilhos aos esforços para evitar o perecimento do bem maior: a vida humana. 

Por fim, nunca é demais lembrar o teor do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (Dec.-Lei 4.657, de 04.09.42): - "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum". 

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* Marcelo Moscogliato, 32, Procurador da República, fone e fax: (012) 3416201, 
e-mail: moscogl@iconet.com.br 

** "Children. Despite progressive laws to protect children and a growing awareness of their plight through media and NGO campaigns, millions of children continue to fail to get na education, must work to survive, and suffer from the poverty afflicting their families" – United States Information Service – 1996. 

 

Retirado de: http://rosa.po.-pe.rnp.br/prr5r/art5.htm