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DAS NECESSIDADES AOS DIREITOS
             Emílio Garcia Mendez
         Antônio Carlos Gomes da Costa
 
 
       HISTÓRIA DA CRIANÇA COMO HISTÓRIA DO SEU  CONTROLE
 
 
    1.1 A criança: da literatura tradicional ao enfoque histórico
     1.2 A criança "abandonada-delinqüente''
     1.3 0 surgimento dos tribunais de menores
     1.4 0 controle sócio-penal das crianças na América Latina
     1.5 Conclusão.
 

    1.1 A criança: da literatura tradicional ao enfoque histórico
    Naquilo que num sentido amplo pode ser denominado campo
    sócio-jurídico penal, a literatura relativa a jovens é de uma
    abundância considerável. Que não se possa afirmar o mesmo a
    respeito do tema "Crianças—sistema de justiça penal" é uma mera
    aparência. Além das dificuldades de se encontrar parâmetros
    objetivos não jurídicos para estabelecer uma diferença clara entre
    ambas as categorias (crianças e jovens), pode-se afirmar que a
    "escassez" de trabalhos sobre o tema "Crianças—sistema de justiça
    penal" deve-se, em grande parte, ao uso eufemístico do termo jovem
    ou menor, que salvo indicação em contrário, cobre amplamente a
    intervenção da justiça penal sobre as crianças.
    A abundância da literatura mencionada anteriormente não se traduz,
    porém, num maior conhecimento das dimensões reais do fenômeno.
    Mais que isto, pode-se afirmar que a maioria arrasadora da literatura
    específica contribui decididamente para aumentar a confusão,
    mistificando ainda mais o problema. Trata-se de uma literatura que
    não apenas não resolveu o "nó da questão"—a contradição
    proteção-controle penal-direitos e garantias—como também nem
    sequer expôs a questão.
    O conteúdo essencial da mensagem da literatura tradicional sobre o
    tema "menores-controle social formal" pode ser resumido da seguinte
    maneira: os instrumentos jurídicos (penais) aplicados à infância,
    entendendo-se esta última como um dado ontológico-biológico,
    percorreu um processo permanente de evolução positiva realizado no
    interesse dos menores. Não é difícil entender as enormes dificuldades
    e resistência que encontraram, e finda encontram, todas as tentativas
    de corroboração empírica das intenções do discurso dominante com
    os resultados concretos obtidos. O tema dos "menores com conduta
    "desviada" tem sido patrimônio quase exclusivo de uma atitude
    dogmaticamente moralista, que tem impedido durante muito tempo
    qualquer confrontação séria baseada em argumentos racionais
    Neste contexto não é de se estranhar que, mesmo sob perspectivas
    divergentes, o enfoque histórico constitua um elemento comum a
    quase todas as tentativas de caráter desmistificatório.
    Se foi a perspectiva histórica que permitiu colocar em evidência a
    relatividade, arbitrariedade e contingência dos sistemas penais,
    pode-se afirmar com segurança que a início desta perspectiva nos
    estudos sobre a infância produziu resultados análogos. Refutando as
    teses da psicologia positivista que vinculam a categoria infância a
    determinadas características da evolução biológica, no enfoque
    histórico esta categoria é apresentada como o resultado de uma
    complexa construção social que responde tanto aos condicionantes
    de caráter estrutural quanto às sucessivas revoluções no plano dos
    sentimentos.
    Num dos estudos históricos mais profundos e completos sobre a
    infância, Philippe Aries (1985) apresenta sua tese central alarmando
    que na sociedade tradicional, até meados do século XVI, não se
    entendia a infância tal como é entendida hoje. Ao invés disso, ela era
    encarada como um período de total dependência física, após o qual
    se adentrava imediatamente no mundo dos adultos. Um exemplo e
    prova disto é que o desconhecimento sobre a criança por parte da
    arte medieval não pode ser reduzido a um mero erro ou distração dos
    artistas .
    Utilizando-se da pintura da época como documento cuja importância
    não pode ser desconsiderada, percebe-se que o século XVII apresenta
    uma inversão da tendência representada pelo retrato da família já
    organizada em torno da criança. Neste processo de
    descobrimento-invenção da infância, a vergonha e a ordem
    constituem dois sentimentos de caráter contrapostos que ajudam a
    modelar um indivíduo a quem a escola dará forma definitiva. A
    escola, organizada a partir de três princípios fundamentais (vigilância
    permanente, obrigação de denunciar e imposição de castigos
    corporais), cumprir: conjuntamente com a família, a dupla tarefa de
    prolongar o período da infância, arrancando-a do mundo dos adultos.
    É o nascimento de uma nova categoria.
    Junto às representações de caráter artístico, a percepção do
    infanticídio constitui outro elemento de importância central na tarefa
    de reconstrução histórica.
    Na antiga Roma, o vínculo de sangue contava menos do que o vínculo
    da escolha. Durante o tempo de Augusto, os recém-nascidos eram
    expostos nas portas do palácio imperial matando-se os que não eram
    escolhidos: uma prática que cumpria as atuais funções do aborto. Até
    a era medieval durante a qual as profundas mudanças ocorridas não
    conseguiram modificar o fato de que o matrimônio e, em
    conseqüência, a família, constituíam um âmbito exclusivo da vida
    privada, o infanticídio continuou tendo uma influência quantitativa de
    bastante importância. É interessante observar que apesar de no
    século IV o infanticídio ter começado a ser juridicamente considerado
    um delito, foi somente no século XVI que começou a haver uma certa
    repulsa social por parte das classes populares. Repulsa que coincide,
    por outro lado, com a necessidade estrutural de se possuir uma
    família numerosa. De acordo com Aries (1985, p. 459), houve três
    etapas importantes da morte infantil até hoje. A morte como um fato
    (a) provocado,
    (b) aceito e
   (c) absolutamente intolerável.
   Dentre as múltiplas conclusões da investigação de Aries (1985),
    podem-se destacar as seguintes:
    (a) o interesse pelas crianças despertado na Idade Média constitui
    mais uma tarefa para moralistas que para humanistas;
    (b) além do breve período de dependência física, na Idade Média,
    percebia-se como pequenos adultos aqueles que hoje consideramos
    claramente como crianças;
    (c) a consolidação da descoberta da infância nos séculos XVI e XVII
    ocorreu conjuntamente com o desenvolvimento dos sentimentos sobre
    crianças corrompidas, um conceito absolutamente impensável nos
    séculos anteriores.
    Compartilhando a necessidade do enfoque histórico, existe outra
    investigação cuja importância dificilmente pode ser ignorada.
    Trata-se da obra coletiva dirigida por Lloyd De Mause (1978), dedicada
    à história da infância. As profundas diferenças com as teses de Aries
    se devem, entre outros motivos, ao fato de se ter dado um enfoque
    psico-histórico ao tema.
    É interessante observar, contudo, que as profundas e explícitas
    críticas feitas por De Mause à tese de Aries se relacionam mais a uma
    diferença de programa de ação (ausente da obra predominantemente
    descritiva de Aries), do que a uma diferença de constatação de fatos
    históricos. Assim, por exemplo, a "inexistência" da criança no período
    anterior ao século XVI é explicada não pela falta de amor dos pais,
    mas sim pela falta de maturidade emocional para tratar a criança
    como uma pessoa autônoma (De Mause, 1978, 35). De forma similar à
    classificação realizada por Aries, De Mause estabelece também uma
    tipologia das etapas da infância, mas sob a perspectiva dos diversos
    momentos das relações entre pais e filhos (De Mause, 1978, 82-83). No
    caso do infanticídio, por exemplo, as afirmações de De Mause
    confirmam e reforçam a tese de Aries, sustentando que tal prática foi
    considerada normal até o século XIX (pp. 51-52). Mas as profundas
    divergências entre os dois enfoques podem ser resumidas na
    acusação de De Mause sobre a tendência das investigações
    sócio-históricas que justificam, sem indignação moral, as crueldades
    do passado. Além de polêmica, a investigação de De Mause se
    destina a mostrar a evolução da infância também como um amplo
    processo, mas no qual a luta pela diminuição do sofrimento moral e
    físico ocupa um lugar de crucial importância. Criada a infância e
    abrindo-se plenamente a possibilidade de sua corrupção (a criança
    corrupta como sujeito ativo ou passivo), lançam-se as bases que
    permitem tratar a infância "abandonada-delinqüente" como uma
    categoria específica.
 

    1.2 A criança "abandonada-delinqüente''
 
   A história do controle social formal da infância como estratégia
    específica constitui um exemplo paradigmático de construção de uma
    categoria de indivíduos débeis para quem a proteção, muito mais que
    constituir um direito, consiste numa imposição.
    Por isso, não é sem motivo que uma das obras pioneiras neste campo
    foi denominada The child savers: the invention of delinquency ("Os
    salvadores de crianças: a invenção da delinqüência" (A. Platt, 1969).
    Poucas são as negações das liberdades jurídicas não justificadas pelo
    moralismo dos protagonistas deste movimento. Trata-se de uma
    situação que facilita a tarefa de reconstrução histórico-crítica na
    medida em que não exige um trabalho sofisticado de interpretação
    do material disponível, mas sim adequada exposição do mesmo.
    Na escassa documentação histórica dedicada ao tema do controle
    penal dos "menores" (W. Sanders, 1970), pode-se identificar
    objetivamente uma certa correspondência com as teses de Philippe
    Aries, que refletem um tratamento penal predominantemente
    indiscriminado das crianças por parte dos adultos, pelo menos até o
    final do século XIX, tanto em nível normativo quando no momento de
    execução das penas.
    Se o século XVIII "descobre'' a escola como o lugar de produção de
    ordem e homogeneização da categoria criança, o século XIX se
    encarrega da tarefa de conceber e colocar em prática os mecanismos
    que recolhem e '(protegem " aqueles que foram expulsos ou não
    tiveram acesso ao sistema escolar.
    Se, como se verá mais adiante, 1899 constitui uma data que marca
    uma mudança fundamental na história do controle penal da infância,
    existem alguns antecedentes que devem ser mencionados, na medida
    em que ajudam a entender a direção e a lógica dos acontecimentos
    posteriores.
    Os primeiros antecedentes modernos do tratamento diferencial no
    caso dos "menores delinqüentes" podem ser encontrados em
    disposições destinadas a limitar a divulgação das ações de natureza
    penal supostamente cometidas por menores. Nesse sentido, existe
    uma lei suíça de 1862, transformada em lei especial em 1872, com
    disposições que incluíam também a inimputabilidade penal dos
    menores de 14 anos (medidas similares podem ser encontradas no
    código penal alemão de 1871). Porém, em matéria de antecedentes
    diretos, parecem existir poucas dúvidas de que a "Lei Norueguesa de
    bem-estar infantil", de 1896, constitui o documento jurídico mais
    importante. Ela possui todas as características do atual direito dos
    menores (T. S. Dahl, 1985, 8). Neste sentido, é importante deixar claro
    que todas as disposições jurídicas de caráter sócio-penal (ambos os
    termos nascem e se desenvolvem num processo de permanente
    confusão) contidas na política de reformas, referem-se
    invariavelmente a dois aspectos fundamentais:
    (a) aumento da idade da responsabilidade penal para afastar
    completamente as crianças do sistema penal dos adultos e
    (b) imposição de sanções específicas para as crianças "delinqüentes" .
    A evolução e as características dos instrumentos jurídicos destinados
    ao controle dos menores devem ser necessariamente interpretados à
    luz da consciência social reinante durante as distintas épocas. As
    diversas políticas de segregação dos menores, que começam a
    adquirir caráter sistemático a partir do século XIX, são legitimadas no
    contexto "científico" do positivismo criminológico e nas conseqüentes
    teorias da defesa social que derivam desta corrente.
    Conforme demonstra a essência de muitos documentos da época, a
    preservação da integridade das crianças está subordinada ao objetivo
    de proteção da sociedade contra os "futuros" delinqüentes (S. J.
    Pfhol, 1977, 311). A confusão já existente, soma-se a consideração
    indiscriminada dos conceitos da delinqüência e pobreza, abuso e
    maus-tratos. Há que se esperar até os nossos dias para ver uma
    verdadeira organização da consciência e reação social que
    reconheça o abuso e os maus-tratos à criança como um problema
    grave, e que sobretudo faz parte da esfera pública. Não é de se
    estranhar que o castigo das crianças venha sendo legitimado durante
    séculos por razões de obediência, disciplina, educação e religião.
    Aliás, muitos anos depois que o infanticídio, como ato explicitamente
    intencional, passou a encontrar forte reprovação jurídica e social, os
    castigos corporais que excluem a morte eram considerados,
    sobretudo se realizados por familiares da vítima, como um fato
    normal. A primeira intervenção do Estado, no caso de uma criança
    vítima de maus-tratos por parte dos pais, foi não apenas tardia como
    também ironicamente premonitória. Em 1875, num caso de grande
    repercussão na imprensa e na opinião pública, a menina Mary Ellen,
    de 9 anos de idade, foi retirada da guarda de seus pais por
    autoridades judiciais. A instituição que ativou o caso foi a "Sociedade
    para a Proteção dos Animais", de Nova York. Este fato coincide com a
    criação da "Sociedade de Nova York para a Prevenção da Crueldade
    Contra Crianças" (S. J. Pfhol, 1977, 312).
    Também a reação aos maus-tratos de crianças, inexistente na
    consciência social durante séculos, tem sido entendida como o
    resultado de uma aliança de interesses que não pode simplesmente
    ser atribuída ao aumento do número de tais ocorrências. Uma
    interpretação digna de se levar em conta afirma que a luta pelo poder
    no seio da comunidade médica—neste caso relacionada aos Estados
    Unidos—através da qual os especialistas em radiologia tentavam
    superar a função de subordinação na qual estavam confinados por
    outras especialidades, foi uma causa decisiva na percepção negativa
    dos maus-tratos como problema de domínio público (idem, pp. 317 e
    ss.).
    Neste clima político-cultural, chega o momento que marca um
    instante fundamental nas práticas sócio-penais de
    "proteção-segregação" da infância. Em 1899, por meio da "Juvenile
    Court Act" de Ilinois, foi criado o primeiro tribunal de menores.
    Nos tópicos seguintes, tenta-se mostrar, resumidamente, as
    características mais relevantes de tais tribunais, a direção que
    imprimem à política de controle dos "menores", bem como sua
    extensão e implantação no contexto latino-americano.

    1.3 0 surgimento dos tribunais de menores

    Inexistentes no século XIX, com a única exceção de Ilinois, em 1930
    os tribunais de menores são uma realidade em um número
    considerável de países. Para oferecer apenas alguns exemplos, os
    tribunais de menores foram criados em 1905 na Inglaterra, em 1908 na
    Alemanha, em 1911 em Portugal e na Hungria, em 1912 na França,
    em 1922 no Japão e em 1924 na Espanha. Na América Latina, foram
    criados em 1921 na Argentina, em 1923 no Brasil, em 1927 no México
    e em 1928 no Chile.
    Como já foi dito acima, a literatura descritiva-apologética sobre o
    tema "menores-delinqüentes-abandonados" possui uma dimensão
    quantitativa enorme. Por essa razão, torna-se imprescindível
    concentrar-se naqueles momentos de criação e divulgação de idéias
    dominantes constituídas por encontros de caráter internacional. No
    tocante aos tribunais de menores, não existem dúvidas de que o
    "Primeiro Congresso Internacional de Tribunais de Menores"
    realizado em Paris, entre 29 de junho e 1 de julho de 1911, constituiu
    um documento-chave na tarefa de reconstrução histórica. Dificilmente
    se poderia imaginar maior audiência do que a existente no
    Congresso, onde se encontravam presentes as mais altas autoridades
    francesas no assunto, bem como delegados oficiais e de organizações
    privadas de quase todos os países europeus e dos Estados Unidos.
    Três foram as presenças latino-americanas: Cuba, El Salvador e
    Uruguai, sem que exista qualquer elemento que ponha em dúvida
    que esta participação foi meramente formal e marginal.
    Os temas tratados pelo Congresso foram altamente representativos do
    debate da época, e podem ser resumidos nos seguintes três pontos
    principais:
    a) Deve existir uma jurisdição especial de menores? Em quais
    princípios e diretrizes deverão apoiar-se tais tribunais para obter o
    máximo de eficácia na luta contra a criminalidade juvenil?
    b) Qual deve ser a função das instituições de caridade frente aos
    tribunais e frente ao Estado?
    c) O problema da liberdade vigiada ou probation. Funções dos
    tribunais posteriormente à sentença.
   A própria agenda do Congresso, que abriu caminho para a aprovação
    unanime da criação dos tribunais de menores na França um ano
    depois, oferece algumas indicações de considerável importância. A
    primeira parte da primeira pergunta põe em evidência o caráter
    meramente retórico sobre se deve ou não existir uma jurisdição
    especial de menores. O detalhe tem importância, já que o forte
    moralismo que impregna todos estes temas determina a existência de
    um altíssimo nível de consenso. Salvo pequenas exceções, as
    contradições neste campo jurídico se caracterizam pela
    marginalidade e banalidade dos argumentos. Tampouco se pode
    passar ao largo da segunda parte da primeira pergunta, que oferece
    bases que permitirão subordinar a tarefa de proteger as crianças às
    exigências da defesa social. O segundo tema, por sua vez, legitima,
    com certeza, a participação de instituições de caráter privado na
    delicada tarefa de controle dos menores.
    O terceiro tema constitui um dos pontos mais espinhosos do "direito
    do menor", um aspecto que conserva toda sua vigência e que se
    refere fundamentalmente à imposição de sentenças de caráter
    indeterminado, assim como a intervenção da justiça penal com
    respeito ao comportamento não criminal dos menores.
    Contudo, a verdadeira importância do Congresso de Paris não deriva
    nem da enorme adesão que recebeu, nem de sua representatividade
    no mundo político-judicial. Seu caráter de momento decisivo na
    história do controle sócio-penal das crianças provém, sobretudo, do
    fato de que, pela primeira vez, foram expostos de forma sistemática
    todos aqueles temas que, com pequenas variações, constituem até
    hoje uma constante, recorrente na arrasadora maioria dos discursos
    oficiais sobre o menor " abandonado-delinqüente " .
    São dois os motivos mais importantes, declarados pelo Congresso,
    que servem para legitimar as reformas da justiça de menores: as
    espantosas condições de vida nos cárceres, onde as crianças eram
    alojadas de forma indiscriminada com os adultos, e a formalidade e
    inflexibilidade da lei penal, que, obrigando o respeito, entre outros,
    aos princípios de legalidade e de determinação da sentença,
    impediam a tarefa de repressão-proteção própria do direito de
    menores.
    A atribuição de um caráter revolucionário a estas reformas por parte
    de seus recebedores—do qual o contexto latino-americano é um bom
    exemplo—constitui uma interpretação subjetiva e absolutamente
    errônea.
    No discurso de abertura do Congresso, Paul Deschanel, deputado e
    membro da Academia Francesa, encarregou-se de afirmar o contrário
    de forma clara e explícita: "Estas conferências são necessárias para
    demonstrar que as reformas que queremos não têm nada de
    revolucionário, e podem ser realizadas sem alterar substancialmente
    os códigos existentes, com uma simples adaptação das velhas leis às
    necessidades modernas" (Atas, 1912, 48).
    Mas a proteção e preservação dos jovens em perigo moral não
    constitui o único motivo declarado da legitimidade destes tribunais.
    No final de seu discurso de abertura do Congresso, Deschanel expõe
    outros motivos que ajudam a compreender a real dimensão dos
    problemas expostos: "Sinto-me muito feliz por poder transmitir uma fé
    profunda no futuro dos tribunais para crianças. Tenho certeza de que
    em alguns anos todos os países civilizados os terão organizado
    completamente. Estes tribunais se transformarão, em todas as partes,
    em centro de ação para a luta contra a criminalidade juvenil. Não
    somente nos ajudarão a recuperar a infância decaída, como também
    a protegê-la contra o perigo moral. Estes tribunais poderão se
    transformar, também, em auxiliares da aplicação das leis escolares e
    das lei do trabalho. Em seu redor, agrupar-se-ão as admiráveis obras
    da iniciativa privada, sem as quais a ação dos poderes públicos não
    poderia ser eficaz. Ao mesmo tempo em que manterão a repressão
    indispensável, proporcionarão uma justiça iluminada, apropriada aos
    que devem ser julgados. Serão também a melhor proteção da
    infância abandonada e culpável e a segurança mais eficaz da
    sociedade" (Atas, 1911, 49).
    Lendo-se as atas do Congresso e comparando as discussões e
    propostas com as conclusões (Atas, 1912, 683-685), pode-se apreciar
    com facilidade a grande influência do delegado americano. A enorme
    legitimação, a priori, de sua presença se devia ao fato de representar
    um país que não somente foi pioneiro na matéria, como também foi
    aquele no qual a política sócio-penal de menores alcançou o maior
    número de realizações administrativas concretas. Mas não se pode
    esquecer que os juristas europeus da época que se ocupavam do
    tema "menores" elogiavam permanentemente o pragmatismo e a
    flexibilidade dos americanos, que se caracterizavam por seu absoluto
    afastamento das formas dogmático-jurídicas. Tem razão Anthony Platt
    (1969, 46}ao afirmar que, se os europeus se caracterizam por sua
    contribuição ao desenvolvimento da teoria penal, os americanos
    representam uma posição dominante em matéria de administração da
    questão penal. A contribuição do delegado americano ao Congresso
    de Paris, cujos pontos mais importantes convém recordar aqui,
    confirma plenamente as afirmações de Platt.
   A clareza da intervenção do delegado americano C.R. Henderson
    torna supérflua qualquer interpretação ou comentário adicional.
    Pode-se dizer, em todo caso, que o enfoque de Henderson parte da
    eliminação total de qualquer tipo de relativismo, fixando categorias
    absolutas e universais amparadas no marco "científico" do
    positivismo. Assim, afirma que:
    "Em primeiro lugar, a psicologia demonstrou a existência de
    diferenças radicais entre as crianças e os adultos, pondo em relevo os
    traços característicos da adolescência.
    "A criança não é mais um adulto em miniatura, nem em corpo, nem
    em espírito: é uma criança. Possui uma anatomia, uma fisiologia e
    uma psicologia próprias. Seu universo não é mais o do adulto. Não é
    um anjo nem um demônio: é uma criança. O estudo da infância se
    converteu numa ramificação de uma ciência especial. A divulgação
    do resultado destas investigações produziu uma revolução nos
    métodos educativos. Os princípios das investigações deixaram de ser
    teorias abstratas e especulativas para se transformarem em
    generalizações resultantes de fatos e experiências empíricas. As
    escolas-reformatórios se converteram em verdadeiros laboratórios de
    ciências pedagógicas. Em todos os países civilizados, associações de
    caráter filantrópico lançaram iniciativas em favor das crianças
    abandonadas. Seus integrantes descobriram simultaneamente as
    necessidades da criança e os erros dos procedimentos legais. Muitas
    dessas pessoas são juristas profissionais" (Atas, 1912, 56).
    Se o século XVlIl fixa a categoria social da criança tomando como
    pontos de referência a escola, o início do século XX assiste a uma
    fixação da categoria sócio-penal da criança, que tem como pontos de
    referência a ''ciência" psicológica e uma estrutura diferenciada de
    controle penal.
   Parece fora de discussão que nem toda política de reformas responde
    a meras razões humanitárias como conseqüência de mudanças na
    consciência social, quando se descobre a "incapacidade e
    debilidade" das crianças, sobretudo ao se tomar em conta o que diz
    Henderson:
    "O movimento democrático deste século provocou uma aproximação
    inédita das classes sociais. Em conseqüência, são muitas as pessoas
    que compreendem os perigos que correm as famílias trabalhadoras e
    pobres. Esta é outra influência que favorece uma modificação do
    direito penal e processual" (Atas, 1912, 57).
    O fato dos partidários das reformas repetirem e darem ênfase ao
    caráter não revolucionário das mesmas, é explicado pela estratégia
    de introduzir mudanças de tipo processual que resguardem o caráter
    discricionário das medidas a serem adotadas, evitando o conflito com
    as teorias penais dominantes. Para que o Estado possa exercer as
    funções de "proteção e controle" (é impossível separar ambos os
    termos), é necessário modificar radicalmente os princípios
    processuais próprios do direito iluminista. Isto se consegue, em
    primeiro lugar, anulando a distinção entre menores delinqüentes,
    abandonados e maltratados, uma proposta que encontrou eco na
    Resolução III do VIII Congresso Penitenciário realizado em
    Washington em 1910.
    Mas a pedra angular das reformas se baseia em alterar
    substancialmente as funções do juiz. O delegado belga no Congresso
    de Paris, o famoso professor de direito penal M. Prins, afirma que a
    jurisdição de menores deve possuir um caráter familiar (Atas, 1912,
    61). Em diferentes graus, todos os delegados concordam com este
    princípio, cujo requisito para plena realização passa pela anulação
    da figura de defesa. Neste sentido, tornam-se claras as palavras do
    delegado italiano que, citando Garofalo, afirma: "... a intervenção do
    defensor não parece necessária porque quase sempre, em nosso país,
    a defesa não se limita—diz Garofalo— a oferecer desculpas para os
    piores atos delituosos, mas também a fazer sua apologia" (Atas, 1912,
    250-251).
    Com pequenas variações, os participantes do Congresso concordam
    com a necessidade das sentenças de caráter indeterminado. Se a
    condição indispensável para a proteção é a sentença, somente uma
    sentença de caráter indeterminado poderá converter a proteção num
    fato permanente. A delegada belga na Comissão Real de Patronatos,
    Madame Henry Carton de Wiart, afirma:
    "A liberdade vigiada deve ser revestida das características de uma
    sentença indeterminada. Um termo fixo constitui uma proteção
    temporária. Uma sentença indeterminada converte a proteção em
    algo de caráter permanente" (Atas, 1912, 545).
    Com o encerramento do Congresso, abre-se uma nova etapa na
    política de "controle-proteção" de toda uma categoria de indivíduos
    cuja "debilidade e incapacidade" deveria ser sancionada jurídica e
    culturalmente. Apesar das funções centrais outorgadas às instituições
    privadas, o Estado se reserva, na prática, a tarefa de organizar e
    supervisionar a assistência sócio-penal, não sendo incomodado por
    exigências de segurança ou garantias jurídicas. Lançam-se, desta
    forma, as bases de uma cultura estatal de assistência que não pode
    proporcionar proteção sem uma prévia classificação da natureza
    patológica: uma proteção só concebida na medida das distintas
    variações da segregação que, na melhor das hipóteses, reconhece a
    criança como objeto de compaixão mas nunca como indivíduo
    detentor de direitos.
    Sem pretender que este ponto se converta numa descrição e análise
    exaustiva da nova política de controle dos menores, o mesmo
    proporciona o marco imprescindível de referência para se entender o
    rumo que toma a política de menores no contexto latino-americano.
    De forma similar que em outros campos de direito, os juristas
    latino-americanos redescobriram o problema do controle "sócio-penal
    dos menores" num marco conceitual previamente formulado. Uma
    influência maior das correntes antropológicas em criminologia, além
    dos problemas derivados do processo massivo de imigração em
    muitos países da região, constituirão os marcos diferenciais de um
    problema a respeito do qual, por diversas razões, só se apresentam
    aqui algumas bases para discussão.
 

    1.4 0 controle sócio-penal das crianças na América Latina
 
    Faltam, na América Latina, investigações no campo da história social
    sobre a especificidade do processo que cria e fixa a categoria
    infância.
    Os escassos dados disponíveis para o período anterior e posterior à
    conquista carecem de uma sistematização mínima que permita a
    compreensão dos traços característicos do controle sócio-penal da
    infância durante tal período.
    Apesar disso, fica claro que o "descobrimento" da criança
    "delinqüente-abandonada" como problema específico no campo do
    controle social ocorreu no início do século XX.
    Até meados do século XIX, o retribucionismo contratualista dos
    (incipientes) códigos penais vigentes costumava distinguir com certa
    clareza os menores delinqüentes infratores e os menores
    abandonados ou em estado de perigo moral Em termos gerais,
    fixava-se a idade de nove anos como limite da inimputabilidade
    absoluta, adaptando-se, para os maiores dessa idade, os confusos
    critérios de discernimento para decidir, por parte dos juizes penais
    ordinários, a possibilidade de serem aplicadas as sanções
    correspondentes.
    Obviamente, o movimento em gestação na Europa, descrito no ponto
    anterior, não poderia passar despercebido na América Latina.
    O positivismo "científico" ciminológico, importado em sua versão
    antropológica mais ortodoxa, ainda que sob um manto psicologista,
    encontrou no "problema dos menores" um campo ideal para estender
    e consolidar seu poder perante os representantes do dogmatismo
    jurídico.
    Num ambiente de agudos conflitos sociais que geravam uma
    recolocação subordinada no mercado internacional durante as
    primeiras décadas do século XX, a criação dos tribunais de menores
    aparecia como a resposta mais adequada, apesar de insuficiente,
    para o controle de infratores potenciais da ordem.
   Simultaneamente, e mesmo antes de alguns países europeus foram
    criados tribunais de menores em 1921 na Argentina, e; 1923 no Brasil,
    em 1927 no México e em 1928 no Chile - só para mencionar alguns
    exemplos.
    Tomando-se a Argentina como exemplo paradigmático, pode-se
    perceber que as metáforas utilizadas para legitimar esta nova
    estrutura jurídica correspondem aos conteúdos de uma classe
    dirigente agro-pastoril. Nas palavras do diretor da Seção de Menores
    da Polícia de Buenos Aires, os tribunais de menores eram criados
    "pela saúde física da raça, por sua saúde moral, pelo porvir das novas
    gerações, pela grandeza da pátria;  é indispensável cuidar a colheita
    humana e prestar à infância a atenção que merece... O governo e a
    sociedade argentina têm dado repetidas provas do quanto lhes
    preocupa a solução deste problema com a promulgação da Lei
    10.903, com a criação dos tribunais de menores, a designação da
    Delegacia Judicial de Menores como casa de observação e
    classificação médico-psicológica da infância abandonada e
    delinqüente..." (C. de Arenaza, 1927, 36).
    Mas a nova lei leva a novos problemas. Um dos mais importantes se
    refere à intervenção judicial frente aos casos de abandono material
    ou moral da infância (ou seja, frente aos comportamentos não
    "delinqüentes").
    Apesar de dificilmente se poder conceber uma interpretação mais
    ampla do abandono material ou moral do que a contida no artigo 21
    da Lei 10.903 (denominada Ley Agote, que inclui a "venda de jornais,
    publicações ou objetos de qualquer natureza nas ruas ou lugares
    públicos..."), o fato de os juizes de menores só poderem intervir nos
    casos em que os menores compareçam como autores ou vítimas de
    um delito constitui um problema de grande importância para uma
    cultura político-social que só concebe a proteção como uma forma de
    controle repressivo.
    O empenho por cancelar todo tipo de distinção entre menores de
    delinqüentes e abandonados se converte na profecia que se
    auto-realiza. Carlos de Arenaza expressa esta situação com as
    seguintes palavras: "Dá-se que, em determinados casos, simula-se ou
    acusa-se a criança de uma contravenção para que a ação protetora
    do Estado possa tornar-se um benefício" .
    A questão dos menores "abandonados-delinqüentes)" é colocada em
    termos tais, que somente a eliminação de todo tipo de formalidades
    jurídicas constitui a única garantia de eficácia das tarefas de
    "proteção-repressão".
    Nas palavras de Raul Zahroni (1984), é a minimização formal do
    controle para se atingir o mínimo de repressão material. Por isto, em
    termos gerais, a política de reformas não se esgota na criação de uma
    jurisdição separada daquela dos adultos. Ela trata de elevar, na
    medida do possível a idade máxima da inimputabilidade para
    aumentar quantitativamente a parcela da população a ser
    "protegida", mas despojada de todas as garantias formais do processo
    penal.
    Um jurista brasileiro da época oferece uma síntese clara dessas
    idéias, que dispensa qualquer comentário:
    " O caráter principal desses tribunais é a simplicidade . Simplicidade
    na organização. Simplicidade nas práticas do julgamento.
    Simplicidade na aplicação das medidas de caráter educativo ou
    coercitivo... Tribunal numeroso eqüivaleria à morte da luminosa
    criação . Basta um juiz para julgar. Mas esse juiz deve ser
    exclusivamente um juiz para menores; não deve, não pode exercer
    outra função.
    "Se nas grandes cidades, ou nas regiões onde o coeficiente da
    criminalidade é mais elevado, se torna necessária a criação de varas
    especiais do crime, também é imperioso que se designem juizes
    especiais para o julgamento dos menores. Tais juizes têm a missão
    espinhosa e dificílima de se tornarem familiares com esse mundo
    misterioso e quiçá impenetrável que é a alma infantil. Cada qual
    deles será um juiz calmo, amorável, dedicado ao seu sacerdócio.
    Juiz-pai, eis a expressão que melhor o deveria caracterizar.
    "Nada de afectações prejudiciais. Nada de inquirições públicas. Nada
    de acusação e de defesa.
    "O critério adaptado é este: segregar o acusado do público,
    principalmente dos outros menores. Não admitir, senão em casos
    singulares, a acusação, que busca sempre entenebrecer o quadro,
    aumentar a culpa do acusado, nem a defesa, que procurando atenuar
    a mesma culpa, poderá levar ao cérebro do menor a convicção de
    que o facto delictuoso de que se faz réo é uma ninharia, um nonada,
    uma ação trivial, perdoável, que ele poderá repetir a vontade,
    entregue às suas paixões, sem receio de punição.
    "O juiz age como pai. É o que diz o juiz Tuthil, de Chicago, atilado e
    eminente julgador de centenares de menores acusados de faltas mais
    ou menos graves (L. Brito, 1924, I, 7-80).
    A confiança cega na "cientificidade" dos instrumentos da medicina,
    biologia e sobretudo da psicologia criminal, utilizados sob o prisma
    do positivismo, determina objetivamente a destruição do princípio de
    legalidade. O delinqüente—principalmente a criança—não é mais o
    comprovado infrator da lei, mas se torna toda uma categoria de
    indivíduos frágeis a quem os instrumentos científicos permitem
    detectar exatamente como delinqüentes em potencial. O trabalho do
    laboratório de biologia infantil do Rio de Janeiro inaugurado em 1936,
    cópia do Centro Médico Pedagógico de observação de Roma de 1934,
    constitui um bom exemplo das tendências anunciadas anteriormente.
    Para dizê-lo com as palavras de seu diretor: "Estes centros de
    investigação biológica da infância e da adolescência devem ser...
    dotados de todos os meios indispensáveis, tanto em material como
    em pessoal, para permitir, tanto quanto possível, a compilação da
    informação que facilitará o conhecimento da vida dos menores
    delinqüentes ou abandonados antes da prática do delito..." (L.
    Ribeiro, 1938, 226).
    A obsessão por classificar, ordenar e estudar o desenvolvimento dos
    menores "delinqüentes-abandonados" permite supor que estas
    investigações oferecem um quadro quantitativo bastante aproximado
    do panorama geral desta categoria de indivíduos vulneráveis. Nada
    mais distante da verdade. A descomunal falta de substancia e a
    imprecisão das definições normativas e "científicas" determinam que
    os únicos dados disponíveis se referem ao estreito mundo da
    "anormalidade segregada". As características da criança
    "delinqüente-abandonada" resultam dos traços das crianças
    capturadas em algumas das inúmeras instituições totais da "
    proteção-repressão " .
     Com relação ao caráter indeterminado da sentença, salvo raras
    exceções, o consenso é unanime.
     A posição do educador e jurista mexicano Manuel Velázquez Andrade
    constitui uma das poucas exceções à corrente dominante da época. É
    óbvio, contudo, que sua posição não se origina numa preocupação
    pela ruptura do princípio da legalidade, ou muito menos pelo temor à
    violação de certas garantias jurídicas. Sua posição responde a
    exigências da eficácia na tarefa de repressão da "delinqüência"
    juvenil sob a perspectiva da defesa social. Mas a posição de
    Velázquez Andrade é mais curiosa ainda ao se tomar em conta seu
    firme determinismo biológico na percepção da delinqüência:
    "Deve-se considerar o anormal sempre como um delinqüente em
    potencial e tratá-lo com uma profilaxia educativa e social adequada"
    (M. Velázquez Andrade, 1932, 49).
     Em todo caso, fica claro o contraste de sua opinião com as idéias de
    seu tempo:
     "Conhecemos muitos casos de delitos juvenis cuja causa é a incerteza
    da duração da reclusão que sempre se considera injusta. A resolução
    de um juiz que sentencia reclusão ilimitada a um adolescente ou
    jovem, por todo o período necessário para sua educação ou
    preparação para o trabalho, é contraproducente para o próprio
    interessado... Quando o jovem delinqüente não conhece o tempo que
    durará sua pena, vêmo-lo entregue a um desencorajamento moral
    constante, a um desanimo difícil de ser vencido, a uma repugnância
    por qualquer esforço, mesmo que seja em seu próprio benefício;... A
    má conduta destes jovens parece irredutível a termos desejáveis—ao
    contrário daqueles que são sentenciados a um tempo determinado.
    Estes sempre têm uma data que esperam alcançar; observa-se neles
    uma vontade de não retardá-la ou alongá-la com novos delitos ou
    reincidências; esforçam-se por parecer—ainda que realmente não o
    estejam —arrependidos e influenciados pelo tratamento educativo,
    pelo trabalho ou pelo ambiente higiênico que os rodeia" (pp. 85-86).
     Citar a posição de Velázquez Andrade (abstraindo-se seu estilo crítico)
    possui o duplo sentido de, por um lado, mostrar os argumentos de
    uma voz dissonante a respeito do delicado problema da
    determinação/indeterminação das sentenças e, por outro,
    compreender que tais contradições não afetam a essência da cultura
    dominante neste plano do jurídico. Mais ainda, a proteção aos
    menores, subordinada às exigências de repressão e controle, parece
    ser um ponto fora de discussão em seu discurso. Os motivos de
    caráter político-estrutural, descritos de forma geral no início deste
    ponto, são transparentes. Além das considerações de caráter racista,
    muito comuns na época, as propostas de Velázquez Andrade não se
    abstraem do conflito social reinante. Sua experiência, proveniente da
    "Casa de Orientação para Varões" —eufemismo utilizado para
    designar um instituto fechado de detenção de menores, fundado em
    1921 em Tlalpan, no México— o conduz a afirmar: "Organizada e
    administrada a Casa de Orientação para Varões tal como está
    funcionando, dentro de uma tradição não isenta do caráter de prisão
    e tomando em conta a condição social de onde provêm os menores
    delinqüentes, a disciplina cívico-militar é a mais apropriada".
     Sem pretender de nenhuma forma reduzir a enorme influência dos
    avanços americanos e europeus no campo da política de menores
    latino-americana, uma avaliação provisória do que foi dito até aqui
    poderia conduzir à conclusão errônea de que os projetos e
    realizações nesta área, na América Latina, constituem um simples
    reflexo dos acontecimentos nos países desenvolvidos. Existem,
    contudo, algumas indicações em contrário.
     Em meados dos anos 30, assiste-se, no campo da teoria criminológica,
    a um movimento que, tendo como epicentro a Argentina, estende-se a
    todo o continente. Nos limites da antropologia criminal,
    desenvolvem-se, cada vez com maior força, as correntes psicológicas
    e pedagógicas que colocam em dúvida os próprios fundamentos dos
    mecanismos punitivos: a lei, o juiz e a pena aparecem como os
    maiores culpáveis.
     O desenvolvimento dessas tendências não se reduz aos estreitos
    limites dos consultórios médicos ou às universidades (cuja
    importância na época não deve ser subestimada). Entre 1884 e 1937,
    quatro projetos de organização de instituições para menores foram
    apresentados ao Parlamento Argentino (1884, 1919, 1923, 1937)—como
    se pode ver, dois deles são anteriores até à criação da primeira lei
    específica de menores. Convém transcrever aqui um resumo dos
    fundamentos do projeto de 1923, altamente representativo das idéias
    dominantes: "Isolar o menor —diz—estudá-lo à luz da observação
    cotidiana do homem de ciência, significa colocar em relevo sua
    enfermidade: apresentar o diagnóstico e ensaiar o regime de cura
    adequado". (Diário de Sessões da H. C. de Deputados da Nação de 16
    de agosto de 1923).
     Os termos do conflito dominante na época fazem referência ao
    contraste de um enfoque jurídico e um enfoque médico-psicológico
    da "criminalidade". O problema da inimputabilidade aparece
    explícita ou implicitamente no centro do debate. Desnecessário dizer
    que as correntes médico-psicológicas lutam por um aumento da idade
    da inimputabilidade nos termos das leis penais. A conclusão
    resultante destas posições conduz paradoxalmente à exigência da
    extinção dos tribunais de menores. Da forma como a cultura
    dominante concebe a proteção de seus indivíduos mais vulneráveis,
    as únicas formalidades admitidas são de caráter puramente
    disciplinar.
    Dificilmente se pode encontrar um exemplo mais claro da
    "medicalização" dos problemas sociais do que o descrito abaixo:
    "Não havendo castigo para as crianças delinqüentes, mas ação
    protetora do Estado, que significado teriam os tribunais para
    menores? Seriam absolutamente inúteis.
    "Se as cortes juvenis constituem um aperfeiçoamento das instituições
    jurídicas dos Estados Unidos e da Europa, podemos resolver nosso
    problema com um critério mais moderno e dar um passo ainda mais
    decisivo no sentido de progresso.
    "Toda criança que tivesse cometido um ato anti-social seria levada
    diretamente ao Instituto de Observação e Esclarecimento do
    Departamento Nacional da Criança, e de lá, após um cuidadoso
    estudo médico-psicológico, seria encaminhada ao estabelecimento
    mais adequado para seu tratamento médico-pedagógico. Para um
    critério estritamente científico; o propósito de proteger e não castigar.
    O tribunal, portanto, é desnecessário". (A. Foradori, 1938, 343).
   Independentemente das intenções declaradas, as correntes
    psicológicas da antropologia criminal erguem a obra mais gigantesca
    de negação e mistificação dos profundos conflitos estruturais, que as
    sociedades latino-americanas atravessam. Uma vez mais, as
    interpretações são desnecessárias face à clareza dos protagonistas da
    época:
    "Insistiremos no ponto de vista clínico-psico-pedagógico... Aqueles
    que falam da infância abandonada e delinqüente como um problema
    social só querem ver as conseqüências de um processo, e não sua
    origem e evolução" (A. Foradori, 1938, 343).
   Nas décadas de 40 e 50, inicia-se um lento e contraditório processo de
    deslegitimação cultural das distintas correntes
    biopsico-antropológicas que fundamentam o direito dos menores. Na
    realidade, isto não significa, contudo, uma alteração radical nas
    características essenciais da política anterior. A indeterminação das
    sentenças, a confusão entre menores delinqüentes e abandonados, a
    luta permanente pelo aumento ou diminuição da idade da
    inimputabilidade penal, mas sobretudo o exercício da "proteção"
    através das múltiplas variações da segregação, permanecem como
    temas (e fatos) centrais no discurso e na prática oficiais.
   A mais importante característica, a partir da década de 40, é a
    internacionalização e "sociologização" do tema "menores". O
    primeiro elemento não é novo. Já em 1924, os tribunais de menores
    haviam sido um tema central do III Congresso Latino-Americano de
    Criminologia, realizado em Buenos Aires. A este propósito, é
    interessante enfatizar que nas resoluções do Congresso aparece,
    objetivamente exposta, uma contradição que a política de
    "proteção-repressão" não conseguiu resolver até hoje. O mesmo
    documento estabelece que "a distinção entre menores delinqüentes e
    menores abandonados é ineficaz para o melhor tratamento dos
    mesmos"; e, algumas linhas mais adiante, "que o princípio da estrita
    legalidade dos delitos e da sanções deve ser mantido no direito
    positivo da garantia das liberdades individuais, que consagram todos
    os regimes democráticos na América".
    De toda maneira, será somente após a introdução das correntes
    sociológicas norte-americanas sobre o tema "menores" que a
    internacionalização do discurso começará a adquirir maior poso.
    O "problema" dos menores foi tema do I Congresso Pan-americano de
    Criminologia, Santiago, Chile, em 1944; do I Congresso
    Pan-americano de Medicina, Odontologia Legal e Criminologia,
    Havana, Cuba, em 1946; da I Conferência Pan-americana de
    Criminologia, Rio-São Paulo, em 1947; do Seminário
    Latino-Americano sobre Prevenção do Delito e Tratamento do
    Delinqüente, Rio de Janeiro, em 1953; e do I Congresso
    Hispano-Luso-Americano-Filipino, São Paulo, em 1955 (para citar
    apenas os mais importantes).
    Mas a internacionalização do discurso sobre o menor, que alcança
    seu ponto mais alto na década de 60, não se reduz a um mero
    intercâmbio de enfoques originados em distintos contextos nacionais.
    A hegemonia das teorias sociológicas norte-americanas no contexto
    latino-americano, durante tal período, dificilmente se expressa em
    outra área com mais força e clareza do que no campo da "juvenile
    delinquency".
    Vagas referências de caráter estrutural, desajustes emocionais, falhas
    de personalidade e pais divorciados substituem a anormalidade física,
    a decadência da raça e a amoralidade dos imigrantes na legitimação
    das recorrentes práticas de classificação. Em nome da reeducação, as
    medidas tutelares se constituem no eufemismo que designa e legitima
    as novas formas de segregação. Uma indicação interessante deste
    desenvolvimento é o uso esquizofrênico do termo
    "menor-delinqüente". Mas a má consciência não se traduz,
    curiosamente, em qualquer revisão profunda ou radical dos termos do
    problema. Ao contrário, a capilaridade do controle social ativo dos
    países desenvolvidos é reforçada como aspiração explícita e objetivo
    a ser alcançado. Aliás, afirma-se que "não se pode medir com a
    mesma vara a situação no Chile e nos Estados Unidos. Enquanto em
    nosso país se considera delinqüente—ainda que
    inapropriadamente—o menor que comete um ato que se cometido
    por um adulto constituiria um delito, nos Estados Unidos o termo
    "delinqüência" abrange uma grande variedade de atos ou de formas
    de conduta que, em sua maioria, não são perseguidos quando seu
    autor é um adulto; por exemplo, na descrição jurídica de
    delinqüência entram as seguintes situações: "faltar habitualmente à
    escola; ser incorrigível; iludir a autoridade do pai ou tutor;
    comportar-se de maneira imoral ou indecente; vagar de noite pelas
    ruas sem justificativa; dedicar-se a ocupações ilegais, etc." (J. Pena
    Nunez, 1960, 9).
    O princípio da legalidade torna-se, assim, um "luxo" para indivíduos
    fortes, ao que, no caso da "delinqüência habitual", os mecanismos de
    criminalização secundária se ocuparão de dar conteúdo concreto.
    Para os "menores", o tratamento reservado é outro: "mesmo que o
    Juiz chegue à conclusão de que o fato não foi cometido, ou que o
    menor não participou do mesmo, esse poderá aplicar as medidas de
    proteção estabelecidas na lei, caso o menor se encontre em perigo
    moral ou material" a Pena Nunez, 1960, 18).
 

    Conclusão
    As tendências que emergem durante os anos 60 tendem a se
    consolidar na década de 70. Mas, enquanto boa parte das instâncias
    oficiais legitimavam velhas políticas através de discursos abertos e
    espaços fechados, a incipiente criminologia crítica latino-americana
    afirmava que certos problemas nada mais eram que reflexos de
    condicionantes estruturais. As transformações de caráter geral
    ofereceriam, por sua vez, as soluções adequadas. Em todo caso, o
    desafio atual não é simples. Tampouco se trata de uma guinada de
    180 graus em nome de um realismo que põe entre parênteses "até
    nova ordem" a crítica profunda.
    A política jurídica e social no campo da infância-adolescência
    constitui o lado contrário de um problema banal. O abandono da luta
    pelo respeito aos direitos e garantias jurídicas e sociais da infância
    inclui o risco potencial de transformar todo direito penal num "direito
    penal de menores".
    A informalidade dos mecanismos formais de controle sócio-penal dos
    menores deve ser colocada em evidência para tirar conclusões que
    permitam a elaboração de uma política social baseada no respeito
    profundo aos direitos humanos.
    Eu excluí, deliberadamente, deste trabalho, o estudo da casuística
    normativa dos últimos anos, não porque me pareça pouco importante
    ou por crer que o tema é patrimônio exclusivo dos penalistas. Pelo
    contrário, o direito da infância e da juventude, assim como todas as
    práticas de intervenção sócio-penal, são de tal importância para mim
    que requerem a estreita colaboração de outras disciplinas (tendo em
    mente, por exemplo, as carências no campo da história social
    apontadas no início).
    Definitivamente, trata-se de mudanças nos padrões culturais que
    demonstram o absurdo de se pensar na proteção dos setores mais
    vulneráveis de nossa sociedade, declarando sua incapacidade e
    condenando-os à segregação.
 

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