1.1 A criança: da literatura tradicional ao
enfoque histórico
Naquilo que num sentido amplo pode ser denominado
campo
sócio-jurídico penal, a literatura
relativa a jovens é de uma
abundância considerável. Que não
se possa afirmar o mesmo a
respeito do tema "Crianças—sistema de justiça
penal" é uma mera
aparência. Além das dificuldades de
se encontrar parâmetros
objetivos não jurídicos para estabelecer
uma diferença clara entre
ambas as categorias (crianças e jovens),
pode-se afirmar que a
"escassez" de trabalhos sobre o tema "Crianças—sistema
de justiça
penal" deve-se, em grande parte, ao uso eufemístico
do termo jovem
ou menor, que salvo indicação em contrário,
cobre amplamente a
intervenção da justiça penal
sobre as crianças.
A abundância da literatura mencionada anteriormente
não se traduz,
porém, num maior conhecimento das dimensões
reais do fenômeno.
Mais que isto, pode-se afirmar que a maioria arrasadora
da literatura
específica contribui decididamente para aumentar
a confusão,
mistificando ainda mais o problema. Trata-se de
uma literatura que
não apenas não resolveu o "nó
da questão"—a contradição
proteção-controle penal-direitos e
garantias—como também nem
sequer expôs a questão.
O conteúdo essencial da mensagem da literatura
tradicional sobre o
tema "menores-controle social formal" pode ser resumido
da seguinte
maneira: os instrumentos jurídicos (penais)
aplicados à infância,
entendendo-se esta última como um dado ontológico-biológico,
percorreu um processo permanente de evolução
positiva realizado no
interesse dos menores. Não é difícil
entender as enormes dificuldades
e resistência que encontraram, e finda encontram,
todas as tentativas
de corroboração empírica das
intenções do discurso dominante com
os resultados concretos obtidos. O tema dos "menores
com conduta
"desviada" tem sido patrimônio quase exclusivo
de uma atitude
dogmaticamente moralista, que tem impedido durante
muito tempo
qualquer confrontação séria
baseada em argumentos racionais
Neste contexto não é de se estranhar
que, mesmo sob perspectivas
divergentes, o enfoque histórico constitua
um elemento comum a
quase todas as tentativas de caráter desmistificatório.
Se foi a perspectiva histórica que permitiu
colocar em evidência a
relatividade, arbitrariedade e contingência
dos sistemas penais,
pode-se afirmar com segurança que a início
desta perspectiva nos
estudos sobre a infância produziu resultados
análogos. Refutando as
teses da psicologia positivista que vinculam a categoria
infância a
determinadas características da evolução
biológica, no enfoque
histórico esta categoria é apresentada
como o resultado de uma
complexa construção social que responde
tanto aos condicionantes
de caráter estrutural quanto às sucessivas
revoluções no plano dos
sentimentos.
Num dos estudos históricos mais profundos
e completos sobre a
infância, Philippe Aries (1985) apresenta
sua tese central alarmando
que na sociedade tradicional, até meados
do século XVI, não se
entendia a infância tal como é entendida
hoje. Ao invés disso, ela era
encarada como um período de total dependência
física, após o qual
se adentrava imediatamente no mundo dos adultos.
Um exemplo e
prova disto é que o desconhecimento sobre
a criança por parte da
arte medieval não pode ser reduzido a um
mero erro ou distração dos
artistas .
Utilizando-se da pintura da época como documento
cuja importância
não pode ser desconsiderada, percebe-se que
o século XVII apresenta
uma inversão da tendência representada
pelo retrato da família já
organizada em torno da criança. Neste processo
de
descobrimento-invenção da infância,
a vergonha e a ordem
constituem dois sentimentos de caráter contrapostos
que ajudam a
modelar um indivíduo a quem a escola dará
forma definitiva. A
escola, organizada a partir de três princípios
fundamentais (vigilância
permanente, obrigação de denunciar
e imposição de castigos
corporais), cumprir: conjuntamente com a família,
a dupla tarefa de
prolongar o período da infância, arrancando-a
do mundo dos adultos.
É o nascimento de uma nova categoria.
Junto às representações de
caráter artístico, a percepção do
infanticídio constitui outro elemento de
importância central na tarefa
de reconstrução histórica.
Na antiga Roma, o vínculo de sangue contava
menos do que o vínculo
da escolha. Durante o tempo de Augusto, os recém-nascidos
eram
expostos nas portas do palácio imperial matando-se
os que não eram
escolhidos: uma prática que cumpria as atuais
funções do aborto. Até
a era medieval durante a qual as profundas mudanças
ocorridas não
conseguiram modificar o fato de que o matrimônio
e, em
conseqüência, a família, constituíam
um âmbito exclusivo da vida
privada, o infanticídio continuou tendo uma
influência quantitativa de
bastante importância. É interessante
observar que apesar de no
século IV o infanticídio ter começado
a ser juridicamente considerado
um delito, foi somente no século XVI que
começou a haver uma certa
repulsa social por parte das classes populares.
Repulsa que coincide,
por outro lado, com a necessidade estrutural de
se possuir uma
família numerosa. De acordo com Aries (1985,
p. 459), houve três
etapas importantes da morte infantil até
hoje. A morte como um fato
(a) provocado,
(b) aceito e
(c) absolutamente intolerável.
Dentre as múltiplas conclusões da investigação
de Aries (1985),
podem-se destacar as seguintes:
(a) o interesse pelas crianças despertado
na Idade Média constitui
mais uma tarefa para moralistas que para humanistas;
(b) além do breve período de dependência
física, na Idade Média,
percebia-se como pequenos adultos aqueles que hoje
consideramos
claramente como crianças;
(c) a consolidação da descoberta da
infância nos séculos XVI e XVII
ocorreu conjuntamente com o desenvolvimento dos
sentimentos sobre
crianças corrompidas, um conceito absolutamente
impensável nos
séculos anteriores.
Compartilhando a necessidade do enfoque histórico,
existe outra
investigação cuja importância
dificilmente pode ser ignorada.
Trata-se da obra coletiva dirigida por Lloyd De
Mause (1978), dedicada
à história da infância. As profundas
diferenças com as teses de Aries
se devem, entre outros motivos, ao fato de se ter
dado um enfoque
psico-histórico ao tema.
É interessante observar, contudo, que as
profundas e explícitas
críticas feitas por De Mause à tese
de Aries se relacionam mais a uma
diferença de programa de ação
(ausente da obra predominantemente
descritiva de Aries), do que a uma diferença
de constatação de fatos
históricos. Assim, por exemplo, a "inexistência"
da criança no período
anterior ao século XVI é explicada
não pela falta de amor dos pais,
mas sim pela falta de maturidade emocional para
tratar a criança
como uma pessoa autônoma (De Mause, 1978,
35). De forma similar à
classificação realizada por Aries,
De Mause estabelece também uma
tipologia das etapas da infância, mas sob
a perspectiva dos diversos
momentos das relações entre pais e
filhos (De Mause, 1978, 82-83). No
caso do infanticídio, por exemplo, as afirmações
de De Mause
confirmam e reforçam a tese de Aries, sustentando
que tal prática foi
considerada normal até o século XIX
(pp. 51-52). Mas as profundas
divergências entre os dois enfoques podem
ser resumidas na
acusação de De Mause sobre a tendência
das investigações
sócio-históricas que justificam, sem
indignação moral, as crueldades
do passado. Além de polêmica, a investigação
de De Mause se
destina a mostrar a evolução da infância
também como um amplo
processo, mas no qual a luta pela diminuição
do sofrimento moral e
físico ocupa um lugar de crucial importância.
Criada a infância e
abrindo-se plenamente a possibilidade de sua corrupção
(a criança
corrupta como sujeito ativo ou passivo), lançam-se
as bases que
permitem tratar a infância "abandonada-delinqüente"
como uma
categoria específica.
1.2 A criança "abandonada-delinqüente''
A história do controle social formal da infância
como estratégia
específica constitui um exemplo paradigmático
de construção de uma
categoria de indivíduos débeis para
quem a proteção, muito mais que
constituir um direito, consiste numa imposição.
Por isso, não é sem motivo que uma
das obras pioneiras neste campo
foi denominada The child savers: the invention of
delinquency ("Os
salvadores de crianças: a invenção
da delinqüência" (A. Platt, 1969).
Poucas são as negações das
liberdades jurídicas não justificadas pelo
moralismo dos protagonistas deste movimento. Trata-se
de uma
situação que facilita a tarefa de
reconstrução histórico-crítica na
medida em que não exige um trabalho sofisticado
de interpretação
do material disponível, mas sim adequada
exposição do mesmo.
Na escassa documentação histórica
dedicada ao tema do controle
penal dos "menores" (W. Sanders, 1970), pode-se
identificar
objetivamente uma certa correspondência com
as teses de Philippe
Aries, que refletem um tratamento penal predominantemente
indiscriminado das crianças por parte dos
adultos, pelo menos até o
final do século XIX, tanto em nível
normativo quando no momento de
execução das penas.
Se o século XVIII "descobre'' a escola como
o lugar de produção de
ordem e homogeneização da categoria
criança, o século XIX se
encarrega da tarefa de conceber e colocar em prática
os mecanismos
que recolhem e '(protegem " aqueles que foram expulsos
ou não
tiveram acesso ao sistema escolar.
Se, como se verá mais adiante, 1899 constitui
uma data que marca
uma mudança fundamental na história
do controle penal da infância,
existem alguns antecedentes que devem ser mencionados,
na medida
em que ajudam a entender a direção
e a lógica dos acontecimentos
posteriores.
Os primeiros antecedentes modernos do tratamento
diferencial no
caso dos "menores delinqüentes" podem ser encontrados
em
disposições destinadas a limitar a
divulgação das ações de natureza
penal supostamente cometidas por menores. Nesse
sentido, existe
uma lei suíça de 1862, transformada
em lei especial em 1872, com
disposições que incluíam também
a inimputabilidade penal dos
menores de 14 anos (medidas similares podem ser
encontradas no
código penal alemão de 1871). Porém,
em matéria de antecedentes
diretos, parecem existir poucas dúvidas de
que a "Lei Norueguesa de
bem-estar infantil", de 1896, constitui o documento
jurídico mais
importante. Ela possui todas as características
do atual direito dos
menores (T. S. Dahl, 1985, 8). Neste sentido, é
importante deixar claro
que todas as disposições jurídicas
de caráter sócio-penal (ambos os
termos nascem e se desenvolvem num processo de permanente
confusão) contidas na política de
reformas, referem-se
invariavelmente a dois aspectos fundamentais:
(a) aumento da idade da responsabilidade penal para
afastar
completamente as crianças do sistema penal
dos adultos e
(b) imposição de sanções
específicas para as crianças "delinqüentes" .
A evolução e as características
dos instrumentos jurídicos destinados
ao controle dos menores devem ser necessariamente
interpretados à
luz da consciência social reinante durante
as distintas épocas. As
diversas políticas de segregação
dos menores, que começam a
adquirir caráter sistemático a partir
do século XIX, são legitimadas no
contexto "científico" do positivismo criminológico
e nas conseqüentes
teorias da defesa social que derivam desta corrente.
Conforme demonstra a essência de muitos documentos
da época, a
preservação da integridade das crianças
está subordinada ao objetivo
de proteção da sociedade contra os
"futuros" delinqüentes (S. J.
Pfhol, 1977, 311). A confusão já existente,
soma-se a consideração
indiscriminada dos conceitos da delinqüência
e pobreza, abuso e
maus-tratos. Há que se esperar até
os nossos dias para ver uma
verdadeira organização da consciência
e reação social que
reconheça o abuso e os maus-tratos à
criança como um problema
grave, e que sobretudo faz parte da esfera pública.
Não é de se
estranhar que o castigo das crianças venha
sendo legitimado durante
séculos por razões de obediência,
disciplina, educação e religião.
Aliás, muitos anos depois que o infanticídio,
como ato explicitamente
intencional, passou a encontrar forte reprovação
jurídica e social, os
castigos corporais que excluem a morte eram considerados,
sobretudo se realizados por familiares da vítima,
como um fato
normal. A primeira intervenção do
Estado, no caso de uma criança
vítima de maus-tratos por parte dos pais,
foi não apenas tardia como
também ironicamente premonitória.
Em 1875, num caso de grande
repercussão na imprensa e na opinião
pública, a menina Mary Ellen,
de 9 anos de idade, foi retirada da guarda de seus
pais por
autoridades judiciais. A instituição
que ativou o caso foi a "Sociedade
para a Proteção dos Animais", de Nova
York. Este fato coincide com a
criação da "Sociedade de Nova York
para a Prevenção da Crueldade
Contra Crianças" (S. J. Pfhol, 1977, 312).
Também a reação aos maus-tratos
de crianças, inexistente na
consciência social durante séculos,
tem sido entendida como o
resultado de uma aliança de interesses que
não pode simplesmente
ser atribuída ao aumento do número
de tais ocorrências. Uma
interpretação digna de se levar em
conta afirma que a luta pelo poder
no seio da comunidade médica—neste caso relacionada
aos Estados
Unidos—através da qual os especialistas em
radiologia tentavam
superar a função de subordinação
na qual estavam confinados por
outras especialidades, foi uma causa decisiva na
percepção negativa
dos maus-tratos como problema de domínio
público (idem, pp. 317 e
ss.).
Neste clima político-cultural, chega o momento
que marca um
instante fundamental nas práticas sócio-penais
de
"proteção-segregação"
da infância. Em 1899, por meio da "Juvenile
Court Act" de Ilinois, foi criado o primeiro tribunal
de menores.
Nos tópicos seguintes, tenta-se mostrar,
resumidamente, as
características mais relevantes de tais tribunais,
a direção que
imprimem à política de controle dos
"menores", bem como sua
extensão e implantação no contexto
latino-americano.
1.3 0 surgimento dos tribunais de menores
Inexistentes no século XIX, com a única
exceção de Ilinois, em 1930
os tribunais de menores são uma realidade
em um número
considerável de países. Para oferecer
apenas alguns exemplos, os
tribunais de menores foram criados em 1905 na Inglaterra,
em 1908 na
Alemanha, em 1911 em Portugal e na Hungria, em 1912
na França,
em 1922 no Japão e em 1924 na Espanha. Na
América Latina, foram
criados em 1921 na Argentina, em 1923 no Brasil,
em 1927 no México
e em 1928 no Chile.
Como já foi dito acima, a literatura descritiva-apologética
sobre o
tema "menores-delinqüentes-abandonados" possui
uma dimensão
quantitativa enorme. Por essa razão, torna-se
imprescindível
concentrar-se naqueles momentos de criação
e divulgação de idéias
dominantes constituídas por encontros de
caráter internacional. No
tocante aos tribunais de menores, não existem
dúvidas de que o
"Primeiro Congresso Internacional de Tribunais de
Menores"
realizado em Paris, entre 29 de junho e 1 de julho
de 1911, constituiu
um documento-chave na tarefa de reconstrução
histórica. Dificilmente
se poderia imaginar maior audiência do que
a existente no
Congresso, onde se encontravam presentes as mais
altas autoridades
francesas no assunto, bem como delegados oficiais
e de organizações
privadas de quase todos os países europeus
e dos Estados Unidos.
Três foram as presenças latino-americanas:
Cuba, El Salvador e
Uruguai, sem que exista qualquer elemento que ponha
em dúvida
que esta participação foi meramente
formal e marginal.
Os temas tratados pelo Congresso foram altamente
representativos do
debate da época, e podem ser resumidos nos
seguintes três pontos
principais:
a) Deve existir uma jurisdição especial
de menores? Em quais
princípios e diretrizes deverão apoiar-se
tais tribunais para obter o
máximo de eficácia na luta contra
a criminalidade juvenil?
b) Qual deve ser a função das instituições
de caridade frente aos
tribunais e frente ao Estado?
c) O problema da liberdade vigiada ou probation.
Funções dos
tribunais posteriormente à sentença.
A própria agenda do Congresso, que abriu caminho
para a aprovação
unanime da criação dos tribunais de
menores na França um ano
depois, oferece algumas indicações
de considerável importância. A
primeira parte da primeira pergunta põe em
evidência o caráter
meramente retórico sobre se deve ou não
existir uma jurisdição
especial de menores. O detalhe tem importância,
já que o forte
moralismo que impregna todos estes temas determina
a existência de
um altíssimo nível de consenso. Salvo
pequenas exceções, as
contradições neste campo jurídico
se caracterizam pela
marginalidade e banalidade dos argumentos. Tampouco
se pode
passar ao largo da segunda parte da primeira pergunta,
que oferece
bases que permitirão subordinar a tarefa
de proteger as crianças às
exigências da defesa social. O segundo tema,
por sua vez, legitima,
com certeza, a participação de instituições
de caráter privado na
delicada tarefa de controle dos menores.
O terceiro tema constitui um dos pontos mais espinhosos
do "direito
do menor", um aspecto que conserva toda sua vigência
e que se
refere fundamentalmente à imposição
de sentenças de caráter
indeterminado, assim como a intervenção
da justiça penal com
respeito ao comportamento não criminal dos
menores.
Contudo, a verdadeira importância do Congresso
de Paris não deriva
nem da enorme adesão que recebeu, nem de
sua representatividade
no mundo político-judicial. Seu caráter
de momento decisivo na
história do controle sócio-penal das
crianças provém, sobretudo, do
fato de que, pela primeira vez, foram expostos de
forma sistemática
todos aqueles temas que, com pequenas variações,
constituem até
hoje uma constante, recorrente na arrasadora maioria
dos discursos
oficiais sobre o menor " abandonado-delinqüente
" .
São dois os motivos mais importantes, declarados
pelo Congresso,
que servem para legitimar as reformas da justiça
de menores: as
espantosas condições de vida nos cárceres,
onde as crianças eram
alojadas de forma indiscriminada com os adultos,
e a formalidade e
inflexibilidade da lei penal, que, obrigando o respeito,
entre outros,
aos princípios de legalidade e de determinação
da sentença,
impediam a tarefa de repressão-proteção
própria do direito de
menores.
A atribuição de um caráter
revolucionário a estas reformas por parte
de seus recebedores—do qual o contexto latino-americano
é um bom
exemplo—constitui uma interpretação
subjetiva e absolutamente
errônea.
No discurso de abertura do Congresso, Paul Deschanel,
deputado e
membro da Academia Francesa, encarregou-se de afirmar
o contrário
de forma clara e explícita: "Estas conferências
são necessárias para
demonstrar que as reformas que queremos não
têm nada de
revolucionário, e podem ser realizadas sem
alterar substancialmente
os códigos existentes, com uma simples adaptação
das velhas leis às
necessidades modernas" (Atas, 1912, 48).
Mas a proteção e preservação
dos jovens em perigo moral não
constitui o único motivo declarado da legitimidade
destes tribunais.
No final de seu discurso de abertura do Congresso,
Deschanel expõe
outros motivos que ajudam a compreender a real dimensão
dos
problemas expostos: "Sinto-me muito feliz por poder
transmitir uma fé
profunda no futuro dos tribunais para crianças.
Tenho certeza de que
em alguns anos todos os países civilizados
os terão organizado
completamente. Estes tribunais se transformarão,
em todas as partes,
em centro de ação para a luta contra
a criminalidade juvenil. Não
somente nos ajudarão a recuperar a infância
decaída, como também
a protegê-la contra o perigo moral. Estes
tribunais poderão se
transformar, também, em auxiliares da aplicação
das leis escolares e
das lei do trabalho. Em seu redor, agrupar-se-ão
as admiráveis obras
da iniciativa privada, sem as quais a ação
dos poderes públicos não
poderia ser eficaz. Ao mesmo tempo em que manterão
a repressão
indispensável, proporcionarão uma
justiça iluminada, apropriada aos
que devem ser julgados. Serão também
a melhor proteção da
infância abandonada e culpável e a
segurança mais eficaz da
sociedade" (Atas, 1911, 49).
Lendo-se as atas do Congresso e comparando as discussões
e
propostas com as conclusões (Atas, 1912,
683-685), pode-se apreciar
com facilidade a grande influência do delegado
americano. A enorme
legitimação, a priori, de sua presença
se devia ao fato de representar
um país que não somente foi pioneiro
na matéria, como também foi
aquele no qual a política sócio-penal
de menores alcançou o maior
número de realizações administrativas
concretas. Mas não se pode
esquecer que os juristas europeus da época
que se ocupavam do
tema "menores" elogiavam permanentemente o pragmatismo
e a
flexibilidade dos americanos, que se caracterizavam
por seu absoluto
afastamento das formas dogmático-jurídicas.
Tem razão Anthony Platt
(1969, 46}ao afirmar que, se os europeus se caracterizam
por sua
contribuição ao desenvolvimento da
teoria penal, os americanos
representam uma posição dominante
em matéria de administração da
questão penal. A contribuição
do delegado americano ao Congresso
de Paris, cujos pontos mais importantes convém
recordar aqui,
confirma plenamente as afirmações
de Platt.
A clareza da intervenção do delegado americano
C.R. Henderson
torna supérflua qualquer interpretação
ou comentário adicional.
Pode-se dizer, em todo caso, que o enfoque de Henderson
parte da
eliminação total de qualquer tipo
de relativismo, fixando categorias
absolutas e universais amparadas no marco "científico"
do
positivismo. Assim, afirma que:
"Em primeiro lugar, a psicologia demonstrou a existência
de
diferenças radicais entre as crianças
e os adultos, pondo em relevo os
traços característicos da adolescência.
"A criança não é mais um adulto
em miniatura, nem em corpo, nem
em espírito: é uma criança.
Possui uma anatomia, uma fisiologia e
uma psicologia próprias. Seu universo não
é mais o do adulto. Não é
um anjo nem um demônio: é uma criança.
O estudo da infância se
converteu numa ramificação de uma
ciência especial. A divulgação
do resultado destas investigações
produziu uma revolução nos
métodos educativos. Os princípios
das investigações deixaram de ser
teorias abstratas e especulativas para se transformarem
em
generalizações resultantes de fatos
e experiências empíricas. As
escolas-reformatórios se converteram em verdadeiros
laboratórios de
ciências pedagógicas. Em todos os países
civilizados, associações de
caráter filantrópico lançaram
iniciativas em favor das crianças
abandonadas. Seus integrantes descobriram simultaneamente
as
necessidades da criança e os erros dos procedimentos
legais. Muitas
dessas pessoas são juristas profissionais"
(Atas, 1912, 56).
Se o século XVlIl fixa a categoria social
da criança tomando como
pontos de referência a escola, o início
do século XX assiste a uma
fixação da categoria sócio-penal
da criança, que tem como pontos de
referência a ''ciência" psicológica
e uma estrutura diferenciada de
controle penal.
Parece fora de discussão que nem toda política
de reformas responde
a meras razões humanitárias como conseqüência
de mudanças na
consciência social, quando se descobre a "incapacidade
e
debilidade" das crianças, sobretudo ao se
tomar em conta o que diz
Henderson:
"O movimento democrático deste século
provocou uma aproximação
inédita das classes sociais. Em conseqüência,
são muitas as pessoas
que compreendem os perigos que correm as famílias
trabalhadoras e
pobres. Esta é outra influência que
favorece uma modificação do
direito penal e processual" (Atas, 1912, 57).
O fato dos partidários das reformas repetirem
e darem ênfase ao
caráter não revolucionário
das mesmas, é explicado pela estratégia
de introduzir mudanças de tipo processual
que resguardem o caráter
discricionário das medidas a serem adotadas,
evitando o conflito com
as teorias penais dominantes. Para que o Estado
possa exercer as
funções de "proteção
e controle" (é impossível separar ambos os
termos), é necessário modificar radicalmente
os princípios
processuais próprios do direito iluminista.
Isto se consegue, em
primeiro lugar, anulando a distinção
entre menores delinqüentes,
abandonados e maltratados, uma proposta que encontrou
eco na
Resolução III do VIII Congresso Penitenciário
realizado em
Washington em 1910.
Mas a pedra angular das reformas se baseia em alterar
substancialmente as funções do juiz.
O delegado belga no Congresso
de Paris, o famoso professor de direito penal M.
Prins, afirma que a
jurisdição de menores deve possuir
um caráter familiar (Atas, 1912,
61). Em diferentes graus, todos os delegados concordam
com este
princípio, cujo requisito para plena realização
passa pela anulação
da figura de defesa. Neste sentido, tornam-se claras
as palavras do
delegado italiano que, citando Garofalo, afirma:
"... a intervenção do
defensor não parece necessária porque
quase sempre, em nosso país,
a defesa não se limita—diz Garofalo— a oferecer
desculpas para os
piores atos delituosos, mas também a fazer
sua apologia" (Atas, 1912,
250-251).
Com pequenas variações, os participantes
do Congresso concordam
com a necessidade das sentenças de caráter
indeterminado. Se a
condição indispensável para
a proteção é a sentença, somente uma
sentença de caráter indeterminado
poderá converter a proteção num
fato permanente. A delegada belga na Comissão
Real de Patronatos,
Madame Henry Carton de Wiart, afirma:
"A liberdade vigiada deve ser revestida das características
de uma
sentença indeterminada. Um termo fixo constitui
uma proteção
temporária. Uma sentença indeterminada
converte a proteção em
algo de caráter permanente" (Atas, 1912,
545).
Com o encerramento do Congresso, abre-se uma nova
etapa na
política de "controle-proteção"
de toda uma categoria de indivíduos
cuja "debilidade e incapacidade" deveria ser sancionada
jurídica e
culturalmente. Apesar das funções
centrais outorgadas às instituições
privadas, o Estado se reserva, na prática,
a tarefa de organizar e
supervisionar a assistência sócio-penal,
não sendo incomodado por
exigências de segurança ou garantias
jurídicas. Lançam-se, desta
forma, as bases de uma cultura estatal de assistência
que não pode
proporcionar proteção sem uma prévia
classificação da natureza
patológica: uma proteção só
concebida na medida das distintas
variações da segregação
que, na melhor das hipóteses, reconhece a
criança como objeto de compaixão mas
nunca como indivíduo
detentor de direitos.
Sem pretender que este ponto se converta numa descrição
e análise
exaustiva da nova política de controle dos
menores, o mesmo
proporciona o marco imprescindível de referência
para se entender o
rumo que toma a política de menores no contexto
latino-americano.
De forma similar que em outros campos de direito,
os juristas
latino-americanos redescobriram o problema do controle
"sócio-penal
dos menores" num marco conceitual previamente formulado.
Uma
influência maior das correntes antropológicas
em criminologia, além
dos problemas derivados do processo massivo de imigração
em
muitos países da região, constituirão
os marcos diferenciais de um
problema a respeito do qual, por diversas razões,
só se apresentam
aqui algumas bases para discussão.
1.4 0 controle sócio-penal das crianças
na América Latina
Faltam, na América Latina, investigações
no campo da história social
sobre a especificidade do processo que cria e fixa
a categoria
infância.
Os escassos dados disponíveis para o período
anterior e posterior à
conquista carecem de uma sistematização
mínima que permita a
compreensão dos traços característicos
do controle sócio-penal da
infância durante tal período.
Apesar disso, fica claro que o "descobrimento" da
criança
"delinqüente-abandonada" como problema específico
no campo do
controle social ocorreu no início do século
XX.
Até meados do século XIX, o retribucionismo
contratualista dos
(incipientes) códigos penais vigentes costumava
distinguir com certa
clareza os menores delinqüentes infratores
e os menores
abandonados ou em estado de perigo moral Em termos
gerais,
fixava-se a idade de nove anos como limite da inimputabilidade
absoluta, adaptando-se, para os maiores dessa idade,
os confusos
critérios de discernimento para decidir,
por parte dos juizes penais
ordinários, a possibilidade de serem aplicadas
as sanções
correspondentes.
Obviamente, o movimento em gestação
na Europa, descrito no ponto
anterior, não poderia passar despercebido
na América Latina.
O positivismo "científico" ciminológico,
importado em sua versão
antropológica mais ortodoxa, ainda que sob
um manto psicologista,
encontrou no "problema dos menores" um campo ideal
para estender
e consolidar seu poder perante os representantes
do dogmatismo
jurídico.
Num ambiente de agudos conflitos sociais que geravam
uma
recolocação subordinada no mercado
internacional durante as
primeiras décadas do século XX, a
criação dos tribunais de menores
aparecia como a resposta mais adequada, apesar de
insuficiente,
para o controle de infratores potenciais da ordem.
Simultaneamente, e mesmo antes de alguns países
europeus foram
criados tribunais de menores em 1921 na Argentina,
e; 1923 no Brasil,
em 1927 no México e em 1928 no Chile - só
para mencionar alguns
exemplos.
Tomando-se a Argentina como exemplo paradigmático,
pode-se
perceber que as metáforas utilizadas para
legitimar esta nova
estrutura jurídica correspondem aos conteúdos
de uma classe
dirigente agro-pastoril. Nas palavras do diretor
da Seção de Menores
da Polícia de Buenos Aires, os tribunais
de menores eram criados
"pela saúde física da raça,
por sua saúde moral, pelo porvir das novas
gerações, pela grandeza da pátria;
é indispensável cuidar a colheita
humana e prestar à infância a atenção
que merece... O governo e a
sociedade argentina têm dado repetidas provas
do quanto lhes
preocupa a solução deste problema
com a promulgação da Lei
10.903, com a criação dos tribunais
de menores, a designação da
Delegacia Judicial de Menores como casa de observação
e
classificação médico-psicológica
da infância abandonada e
delinqüente..." (C. de Arenaza, 1927, 36).
Mas a nova lei leva a novos problemas. Um dos mais
importantes se
refere à intervenção judicial
frente aos casos de abandono material
ou moral da infância (ou seja, frente aos
comportamentos não
"delinqüentes").
Apesar de dificilmente se poder conceber uma interpretação
mais
ampla do abandono material ou moral do que a contida
no artigo 21
da Lei 10.903 (denominada Ley Agote, que inclui
a "venda de jornais,
publicações ou objetos de qualquer
natureza nas ruas ou lugares
públicos..."), o fato de os juizes de menores
só poderem intervir nos
casos em que os menores compareçam como autores
ou vítimas de
um delito constitui um problema de grande importância
para uma
cultura político-social que só concebe
a proteção como uma forma de
controle repressivo.
O empenho por cancelar todo tipo de distinção
entre menores de
delinqüentes e abandonados se converte na profecia
que se
auto-realiza. Carlos de Arenaza expressa esta situação
com as
seguintes palavras: "Dá-se que, em determinados
casos, simula-se ou
acusa-se a criança de uma contravenção
para que a ação protetora
do Estado possa tornar-se um benefício" .
A questão dos menores "abandonados-delinqüentes)"
é colocada em
termos tais, que somente a eliminação
de todo tipo de formalidades
jurídicas constitui a única garantia
de eficácia das tarefas de
"proteção-repressão".
Nas palavras de Raul Zahroni (1984), é a
minimização formal do
controle para se atingir o mínimo de repressão
material. Por isto, em
termos gerais, a política de reformas não
se esgota na criação de uma
jurisdição separada daquela dos adultos.
Ela trata de elevar, na
medida do possível a idade máxima
da inimputabilidade para
aumentar quantitativamente a parcela da população
a ser
"protegida", mas despojada de todas as garantias
formais do processo
penal.
Um jurista brasileiro da época oferece uma
síntese clara dessas
idéias, que dispensa qualquer comentário:
" O caráter principal desses tribunais é
a simplicidade . Simplicidade
na organização. Simplicidade nas práticas
do julgamento.
Simplicidade na aplicação das medidas
de caráter educativo ou
coercitivo... Tribunal numeroso eqüivaleria
à morte da luminosa
criação . Basta um juiz para julgar.
Mas esse juiz deve ser
exclusivamente um juiz para menores; não
deve, não pode exercer
outra função.
"Se nas grandes cidades, ou nas regiões onde
o coeficiente da
criminalidade é mais elevado, se torna necessária
a criação de varas
especiais do crime, também é imperioso
que se designem juizes
especiais para o julgamento dos menores. Tais juizes
têm a missão
espinhosa e dificílima de se tornarem familiares
com esse mundo
misterioso e quiçá impenetrável
que é a alma infantil. Cada qual
deles será um juiz calmo, amorável,
dedicado ao seu sacerdócio.
Juiz-pai, eis a expressão que melhor o deveria
caracterizar.
"Nada de afectações prejudiciais.
Nada de inquirições públicas. Nada
de acusação e de defesa.
"O critério adaptado é este: segregar
o acusado do público,
principalmente dos outros menores. Não admitir,
senão em casos
singulares, a acusação, que busca
sempre entenebrecer o quadro,
aumentar a culpa do acusado, nem a defesa, que procurando
atenuar
a mesma culpa, poderá levar ao cérebro
do menor a convicção de
que o facto delictuoso de que se faz réo
é uma ninharia, um nonada,
uma ação trivial, perdoável,
que ele poderá repetir a vontade,
entregue às suas paixões, sem receio
de punição.
"O juiz age como pai. É o que diz o juiz
Tuthil, de Chicago, atilado e
eminente julgador de centenares de menores acusados
de faltas mais
ou menos graves (L. Brito, 1924, I, 7-80).
A confiança cega na "cientificidade" dos
instrumentos da medicina,
biologia e sobretudo da psicologia criminal, utilizados
sob o prisma
do positivismo, determina objetivamente a destruição
do princípio de
legalidade. O delinqüente—principalmente a
criança—não é mais o
comprovado infrator da lei, mas se torna toda uma
categoria de
indivíduos frágeis a quem os instrumentos
científicos permitem
detectar exatamente como delinqüentes em potencial.
O trabalho do
laboratório de biologia infantil do Rio de
Janeiro inaugurado em 1936,
cópia do Centro Médico Pedagógico
de observação de Roma de 1934,
constitui um bom exemplo das tendências anunciadas
anteriormente.
Para dizê-lo com as palavras de seu diretor:
"Estes centros de
investigação biológica da infância
e da adolescência devem ser...
dotados de todos os meios indispensáveis,
tanto em material como
em pessoal, para permitir, tanto quanto possível,
a compilação da
informação que facilitará o
conhecimento da vida dos menores
delinqüentes ou abandonados antes da prática
do delito..." (L.
Ribeiro, 1938, 226).
A obsessão por classificar, ordenar e estudar
o desenvolvimento dos
menores "delinqüentes-abandonados" permite
supor que estas
investigações oferecem um quadro quantitativo
bastante aproximado
do panorama geral desta categoria de indivíduos
vulneráveis. Nada
mais distante da verdade. A descomunal falta de
substancia e a
imprecisão das definições normativas
e "científicas" determinam que
os únicos dados disponíveis se referem
ao estreito mundo da
"anormalidade segregada". As características
da criança
"delinqüente-abandonada" resultam dos traços
das crianças
capturadas em algumas das inúmeras instituições
totais da "
proteção-repressão " .
Com relação ao caráter
indeterminado da sentença, salvo raras
exceções, o consenso é unanime.
A posição do educador e jurista
mexicano Manuel Velázquez Andrade
constitui uma das poucas exceções
à corrente dominante da época. É
óbvio, contudo, que sua posição
não se origina numa preocupação
pela ruptura do princípio da legalidade,
ou muito menos pelo temor à
violação de certas garantias jurídicas.
Sua posição responde a
exigências da eficácia na tarefa de
repressão da "delinqüência"
juvenil sob a perspectiva da defesa social. Mas
a posição de
Velázquez Andrade é mais curiosa ainda
ao se tomar em conta seu
firme determinismo biológico na percepção
da delinqüência:
"Deve-se considerar o anormal sempre como um delinqüente
em
potencial e tratá-lo com uma profilaxia educativa
e social adequada"
(M. Velázquez Andrade, 1932, 49).
Em todo caso, fica claro o contraste de sua
opinião com as idéias de
seu tempo:
"Conhecemos muitos casos de delitos juvenis
cuja causa é a incerteza
da duração da reclusão que
sempre se considera injusta. A resolução
de um juiz que sentencia reclusão ilimitada
a um adolescente ou
jovem, por todo o período necessário
para sua educação ou
preparação para o trabalho, é
contraproducente para o próprio
interessado... Quando o jovem delinqüente não
conhece o tempo que
durará sua pena, vêmo-lo entregue a
um desencorajamento moral
constante, a um desanimo difícil de ser vencido,
a uma repugnância
por qualquer esforço, mesmo que seja em seu
próprio benefício;... A
má conduta destes jovens parece irredutível
a termos desejáveis—ao
contrário daqueles que são sentenciados
a um tempo determinado.
Estes sempre têm uma data que esperam alcançar;
observa-se neles
uma vontade de não retardá-la ou alongá-la
com novos delitos ou
reincidências; esforçam-se por parecer—ainda
que realmente não o
estejam —arrependidos e influenciados pelo tratamento
educativo,
pelo trabalho ou pelo ambiente higiênico que
os rodeia" (pp. 85-86).
Citar a posição de Velázquez
Andrade (abstraindo-se seu estilo crítico)
possui o duplo sentido de, por um lado, mostrar
os argumentos de
uma voz dissonante a respeito do delicado problema
da
determinação/indeterminação
das sentenças e, por outro,
compreender que tais contradições
não afetam a essência da cultura
dominante neste plano do jurídico. Mais ainda,
a proteção aos
menores, subordinada às exigências
de repressão e controle, parece
ser um ponto fora de discussão em seu discurso.
Os motivos de
caráter político-estrutural, descritos
de forma geral no início deste
ponto, são transparentes. Além das
considerações de caráter racista,
muito comuns na época, as propostas de Velázquez
Andrade não se
abstraem do conflito social reinante. Sua experiência,
proveniente da
"Casa de Orientação para Varões"
—eufemismo utilizado para
designar um instituto fechado de detenção
de menores, fundado em
1921 em Tlalpan, no México— o conduz a afirmar:
"Organizada e
administrada a Casa de Orientação
para Varões tal como está
funcionando, dentro de uma tradição
não isenta do caráter de prisão
e tomando em conta a condição social
de onde provêm os menores
delinqüentes, a disciplina cívico-militar
é a mais apropriada".
Sem pretender de nenhuma forma reduzir a enorme
influência dos
avanços americanos e europeus no campo da
política de menores
latino-americana, uma avaliação provisória
do que foi dito até aqui
poderia conduzir à conclusão errônea
de que os projetos e
realizações nesta área, na
América Latina, constituem um simples
reflexo dos acontecimentos nos países desenvolvidos.
Existem,
contudo, algumas indicações em contrário.
Em meados dos anos 30, assiste-se, no campo
da teoria criminológica,
a um movimento que, tendo como epicentro a Argentina,
estende-se a
todo o continente. Nos limites da antropologia criminal,
desenvolvem-se, cada vez com maior força,
as correntes psicológicas
e pedagógicas que colocam em dúvida
os próprios fundamentos dos
mecanismos punitivos: a lei, o juiz e a pena aparecem
como os
maiores culpáveis.
O desenvolvimento dessas tendências
não se reduz aos estreitos
limites dos consultórios médicos ou
às universidades (cuja
importância na época não deve
ser subestimada). Entre 1884 e 1937,
quatro projetos de organização de
instituições para menores foram
apresentados ao Parlamento Argentino (1884, 1919,
1923, 1937)—como
se pode ver, dois deles são anteriores até
à criação da primeira lei
específica de menores. Convém transcrever
aqui um resumo dos
fundamentos do projeto de 1923, altamente representativo
das idéias
dominantes: "Isolar o menor —diz—estudá-lo
à luz da observação
cotidiana do homem de ciência, significa colocar
em relevo sua
enfermidade: apresentar o diagnóstico e ensaiar
o regime de cura
adequado". (Diário de Sessões da H.
C. de Deputados da Nação de 16
de agosto de 1923).
Os termos do conflito dominante na época
fazem referência ao
contraste de um enfoque jurídico e um enfoque
médico-psicológico
da "criminalidade". O problema da inimputabilidade
aparece
explícita ou implicitamente no centro do
debate. Desnecessário dizer
que as correntes médico-psicológicas
lutam por um aumento da idade
da inimputabilidade nos termos das leis penais.
A conclusão
resultante destas posições conduz
paradoxalmente à exigência da
extinção dos tribunais de menores.
Da forma como a cultura
dominante concebe a proteção de seus
indivíduos mais vulneráveis,
as únicas formalidades admitidas são
de caráter puramente
disciplinar.
Dificilmente se pode encontrar um exemplo mais claro
da
"medicalização" dos problemas sociais
do que o descrito abaixo:
"Não havendo castigo para as crianças
delinqüentes, mas ação
protetora do Estado, que significado teriam os tribunais
para
menores? Seriam absolutamente inúteis.
"Se as cortes juvenis constituem um aperfeiçoamento
das instituições
jurídicas dos Estados Unidos e da Europa,
podemos resolver nosso
problema com um critério mais moderno e dar
um passo ainda mais
decisivo no sentido de progresso.
"Toda criança que tivesse cometido um ato
anti-social seria levada
diretamente ao Instituto de Observação
e Esclarecimento do
Departamento Nacional da Criança, e de lá,
após um cuidadoso
estudo médico-psicológico, seria encaminhada
ao estabelecimento
mais adequado para seu tratamento médico-pedagógico.
Para um
critério estritamente científico;
o propósito de proteger e não castigar.
O tribunal, portanto, é desnecessário".
(A. Foradori, 1938, 343).
Independentemente das intenções declaradas,
as correntes
psicológicas da antropologia criminal erguem
a obra mais gigantesca
de negação e mistificação
dos profundos conflitos estruturais, que as
sociedades latino-americanas atravessam. Uma vez
mais, as
interpretações são desnecessárias
face à clareza dos protagonistas da
época:
"Insistiremos no ponto de vista clínico-psico-pedagógico...
Aqueles
que falam da infância abandonada e delinqüente
como um problema
social só querem ver as conseqüências
de um processo, e não sua
origem e evolução" (A. Foradori, 1938,
343).
Nas décadas de 40 e 50, inicia-se um lento e contraditório
processo de
deslegitimação cultural das distintas
correntes
biopsico-antropológicas que fundamentam o
direito dos menores. Na
realidade, isto não significa, contudo, uma
alteração radical nas
características essenciais da política
anterior. A indeterminação das
sentenças, a confusão entre menores
delinqüentes e abandonados, a
luta permanente pelo aumento ou diminuição
da idade da
inimputabilidade penal, mas sobretudo o exercício
da "proteção"
através das múltiplas variações
da segregação, permanecem como
temas (e fatos) centrais no discurso e na prática
oficiais.
A mais importante característica, a partir da década
de 40, é a
internacionalização e "sociologização"
do tema "menores". O
primeiro elemento não é novo. Já
em 1924, os tribunais de menores
haviam sido um tema central do III Congresso Latino-Americano
de
Criminologia, realizado em Buenos Aires. A este
propósito, é
interessante enfatizar que nas resoluções
do Congresso aparece,
objetivamente exposta, uma contradição
que a política de
"proteção-repressão" não
conseguiu resolver até hoje. O mesmo
documento estabelece que "a distinção
entre menores delinqüentes e
menores abandonados é ineficaz para o melhor
tratamento dos
mesmos"; e, algumas linhas mais adiante, "que o
princípio da estrita
legalidade dos delitos e da sanções
deve ser mantido no direito
positivo da garantia das liberdades individuais,
que consagram todos
os regimes democráticos na América".
De toda maneira, será somente após
a introdução das correntes
sociológicas norte-americanas sobre o tema
"menores" que a
internacionalização do discurso começará
a adquirir maior poso.
O "problema" dos menores foi tema do I Congresso
Pan-americano de
Criminologia, Santiago, Chile, em 1944; do I Congresso
Pan-americano de Medicina, Odontologia Legal e Criminologia,
Havana, Cuba, em 1946; da I Conferência Pan-americana
de
Criminologia, Rio-São Paulo, em 1947; do
Seminário
Latino-Americano sobre Prevenção do
Delito e Tratamento do
Delinqüente, Rio de Janeiro, em 1953; e do
I Congresso
Hispano-Luso-Americano-Filipino, São Paulo,
em 1955 (para citar
apenas os mais importantes).
Mas a internacionalização do discurso
sobre o menor, que alcança
seu ponto mais alto na década de 60, não
se reduz a um mero
intercâmbio de enfoques originados em distintos
contextos nacionais.
A hegemonia das teorias sociológicas norte-americanas
no contexto
latino-americano, durante tal período, dificilmente
se expressa em
outra área com mais força e clareza
do que no campo da "juvenile
delinquency".
Vagas referências de caráter estrutural,
desajustes emocionais, falhas
de personalidade e pais divorciados substituem a
anormalidade física,
a decadência da raça e a amoralidade
dos imigrantes na legitimação
das recorrentes práticas de classificação.
Em nome da reeducação, as
medidas tutelares se constituem no eufemismo que
designa e legitima
as novas formas de segregação. Uma
indicação interessante deste
desenvolvimento é o uso esquizofrênico
do termo
"menor-delinqüente". Mas a má consciência
não se traduz,
curiosamente, em qualquer revisão profunda
ou radical dos termos do
problema. Ao contrário, a capilaridade do
controle social ativo dos
países desenvolvidos é reforçada
como aspiração explícita e objetivo
a ser alcançado. Aliás, afirma-se
que "não se pode medir com a
mesma vara a situação no Chile e nos
Estados Unidos. Enquanto em
nosso país se considera delinqüente—ainda
que
inapropriadamente—o menor que comete um ato que
se cometido
por um adulto constituiria um delito, nos Estados
Unidos o termo
"delinqüência" abrange uma grande variedade
de atos ou de formas
de conduta que, em sua maioria, não são
perseguidos quando seu
autor é um adulto; por exemplo, na descrição
jurídica de
delinqüência entram as seguintes situações:
"faltar habitualmente à
escola; ser incorrigível; iludir a autoridade
do pai ou tutor;
comportar-se de maneira imoral ou indecente; vagar
de noite pelas
ruas sem justificativa; dedicar-se a ocupações
ilegais, etc." (J. Pena
Nunez, 1960, 9).
O princípio da legalidade torna-se, assim,
um "luxo" para indivíduos
fortes, ao que, no caso da "delinqüência
habitual", os mecanismos de
criminalização secundária se
ocuparão de dar conteúdo concreto.
Para os "menores", o tratamento reservado é
outro: "mesmo que o
Juiz chegue à conclusão de que o fato
não foi cometido, ou que o
menor não participou do mesmo, esse poderá
aplicar as medidas de
proteção estabelecidas na lei, caso
o menor se encontre em perigo
moral ou material" a Pena Nunez, 1960, 18).
Conclusão
As tendências que emergem durante os anos
60 tendem a se
consolidar na década de 70. Mas, enquanto
boa parte das instâncias
oficiais legitimavam velhas políticas através
de discursos abertos e
espaços fechados, a incipiente criminologia
crítica latino-americana
afirmava que certos problemas nada mais eram que
reflexos de
condicionantes estruturais. As transformações
de caráter geral
ofereceriam, por sua vez, as soluções
adequadas. Em todo caso, o
desafio atual não é simples. Tampouco
se trata de uma guinada de
180 graus em nome de um realismo que põe
entre parênteses "até
nova ordem" a crítica profunda.
A política jurídica e social no campo
da infância-adolescência
constitui o lado contrário de um problema
banal. O abandono da luta
pelo respeito aos direitos e garantias jurídicas
e sociais da infância
inclui o risco potencial de transformar todo direito
penal num "direito
penal de menores".
A informalidade dos mecanismos formais de controle
sócio-penal dos
menores deve ser colocada em evidência para
tirar conclusões que
permitam a elaboração de uma política
social baseada no respeito
profundo aos direitos humanos.
Eu excluí, deliberadamente, deste trabalho,
o estudo da casuística
normativa dos últimos anos, não porque
me pareça pouco importante
ou por crer que o tema é patrimônio
exclusivo dos penalistas. Pelo
contrário, o direito da infância e
da juventude, assim como todas as
práticas de intervenção sócio-penal,
são de tal importância para mim
que requerem a estreita colaboração
de outras disciplinas (tendo em
mente, por exemplo, as carências no campo
da história social
apontadas no início).
Definitivamente, trata-se de mudanças nos
padrões culturais que
demonstram o absurdo de se pensar na proteção
dos setores mais
vulneráveis de nossa sociedade, declarando
sua incapacidade e
condenando-os à segregação.
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