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ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE:
É POSSÍVEL TORNÁ-LO UMA REALIDADE PSICOLÓGICA?1
Sylvia Leser de Mello2
"Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena"
(Fernando Pessoa)
O artigo descreve as barreiras à aplicação
efetiva de uma legislação avançada, como o Estatuto da Criança e do
Adolescente, quanto às suas disposições sobre a família, a
escola e o trabalho. Defende, ainda, maior participação dos cursos
universitários no conhecimento e respeito à lei, favorecendo sua aplicação no
cotidiano profissional.
Descritores: Estatuto da Criança e do
Adolescente. Família. Trabalho. Escola. Universidadade.
O artigo 5º da lei nº
8069, de 1990, denominada "Estatuto da Criança e do Adolescente" e
cognominada com carinho Eca, logo em suas disposições
preliminares, afirma: "Nenhuma criança ou adolescente será objeto de
qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos
seus direitos fundamentais" (Oliveira, 1995, p.2).
A leitura dessa disposição pode nos encher de
perplexidade. A primeira coisa que vem à mente é perguntar se uma legislação
tão avançada não seria uma contradição a mais num país já tão cheio de
contradições. É evidente que o dia-a-dia demonstra a grande distância que vai
do que a lei dispõe para a realidade onde o dispõe. Basta ler os jornais para
encontrar, cotidianamente, o relato da displicência com que são tratadas
questões de cunho social envolvendo os jovens.
Esse tema da contradição entre a concepção da lei
e sua aplicação já é, em si, um tema fascinante para pesquisas. Como não quero me
deixar levar por ele, vou tratar a nossa temática, das relações da Universidade
com o Estatuto, de modo bem formal.
Mesmo reconhecendo "a distância entre
intenção e gesto" é preciso saudar o Estatuto, com suas concepções
abrangentes dos direitos dos jovens, indo desde a criança como sujeito de
direitos abstratos até as disposições jurídicas para a sua proteção em caso de
delito. Também é importante que o poder público se estabeleça como zelador
desses direitos, reconhecendo, implicitamente, que o futuro do país está
guardado no coração e na mente das suas crianças.
Vou restringir minha exposição a três aspectos
que merecem atenção especial no Eca: família, escola,
trabalho. Há mais dois muito intimamente ligados a estes, a pobreza e a
violência, que serão discutidos no interior dos outros. Por fim, tentarei
esboçar algumas linhas de ação que poderiam transformar a universidade num foro
de discussão e de apoio ao fortalecimento das linhas da lei.
Em seu art. 15 o Eca
trata amplamente dos direitos que os jovens (crianças e adolescentes) têm a
condições dignas de vida, explicitando especialmente o direito à liberdade, ao
respeito e à dignidade.
Respeito e dignidade são elementos centrais na
elaboração de um conceito adequado de liberdade. Sem estes elementos, por onde
se começa a reconhecer o valor de si, e reciprocamente admitir-se o valor do
outro, é difícil criar-se o sentimento verdadeiro de liberdade, aquele ao qual
se refere a cidadania, feito de cuidado com o bem
comum.
No entanto, as precárias
condições de vida de uma grande parcela da população das metrópoles só recebe
atenção quando acontecem catástrofes maiores em sua vida diária: incêndios,
inundações, desabamentos. Nesse momento tornam-se especialmente visíveis os
sinais do desrespeito e da indignidade, quando o Estado tolera que seus
cidadãos vivam da maneira como vivem os segmentos mais pobres das camadas
populares. Mas é apenas aquele o momento em que os seus problemas merecem
consideração. São esquecidos em seguida. Às vezes, pequenos programas
aparatosos, como o Cingapura, parecem resolver os problemas habitacionais mas, na verdade, o abandono a que está relegada a população
maximiza o valor dessas obras aos olhos de quem vive em barracos,
transformando-as em lucrativo modo de ganhar as eleições e manipular as
necessidades dos que possuem pouco, muito pouco, ou quase nada.
A primeira violência que sofrem as populações de
origem rural, que fluem para São Paulo, está relacionada à moradia.
Paradoxalmente, na cidade é mais fácil obter um pouco de alimento do que
encontrar abrigo. Possuir uma habitação é, simbolicamente, mais do que estar
abrigado do sol e da chuva. Para Hannah Arendt, a casa, "este lugar tangível possuído na vida
por uma pessoa, oferece o único refúgio seguro contra o mundo público comum."
As atividades relativas à conservação da vida e que ... "devem ser escondidas
contra a luz da publicidade" (Arendt, 1981, p.
81)3
precisam da segurança do ocultamento que as paredes
oferecem.4
A moradia não é a família, mas a idéia de lar,
que abriga e protege, tem muito a ver com a casa. O lar não é, necessariamente,
um lugar físico, mas com certeza os espaços públicos não suscitam a idéia de
calor e proteção que dá substância à idéia de lar. Dir-se-ia que, no mínimo, a
própria noção de família se complementa com a idéia de um lugar de repouso e
abandono dos papéis e, algumas vezes, das máscaras que a vida pública impõe.
O Eca afirma que toda
criança tem direito à vida familiar e define a família de um modo bastante
amplo, procurando fugir dos estereótipos da família burguesa do casal e filhos.
Trata, mesmo, do que denomina família substituta, reconhecendo, desse modo, o
direito ao amparo afetivo e material nos anos de formação. A família, mais do
que uma instituição legal e jurídica, é um direito subjetivo de encontrar
acolhimento para as dificuldades, as dúvidas, as inseguranças que a vida vai
fazendo aparecer aos que crescem. O pequeno ser humano é muito frágil e precisa
proteção. Mas essa proteção não é, apenas, a comida e o agasalho. É difícil
chegar ao mundo, e as mãos que cuidam devem fazê-lo com carinho. O direito que o Eca supõe está radicado nesta concepção de ambiente
propício ao crescimento, não importando quem são, juridicamente, as figuras
adultas que vão servir como mediadoras para o ingresso da criança no mundo
institucional. O carinho representa, para a criança, o respeito e a dignidade
que lhe são devidos, e o alimento deveria ser completado com o pão do afeto.
Nada quer dizer a liberdade para a criança pequena, se ela não encontra, à sua
volta, adultos que lhe dêem respaldo nos seus tateios da realidade e lhe assegurem a experiência positiva
de estar no mundo. Penso que é essa a dimensão que o Estatuto quer dar à vida
familiar. Resguardar o jovem da violência, no âmbito doméstico, significa
permitir que cresça com uma experiência positiva da comunidade humana;
significa, ainda, que o mundo institucional dos adultos está pronto a dar
guarida aos projetos que os jovens têm para o futuro.
Quando falamos do futuro, falamos de
escolaridade. O Eca reafirma o direito à escola,
pública e gratuita, garantida, formalmente, pela Constituição. A escola é um
dos mediadores que, juntamente com a família, vão dar à criança condições para
o exercício da cidadania. Esta exige a compreensão plena da cultura e das
condições de vida na sociedade da qual se é membro. Na família e na escola a
criança deve ter acesso aos bens culturais da humanidade, tão indispensáveis à
vida quanto é o alimento para a sua manutenção física. A criança fora da escola
é uma das grandes contradições que a sociedade precisa resolver e está
vinculada ao problema da pobreza. A criança que não estuda deixa a escola por
motivos ligados às condições materiais de sua existência. Quando os jovens
podem ir à escola, muitas vezes seu interesse desaparece pela força do
desinteresse que a escola manifesta por eles. É um impasse de indiferença
mútua. O que se aplica às mãos que cuidam da vida inicial da criança vale para
a escola. Sem respeito à dignidade da criança, à sua família, não se faz o
aprendizado indispensável das letras e dos números e do pertencimento a grupos
sociais, que transcendem o pequeno universo da família. Se a escola não é capaz
de reter o interesse da criança, e por fim a própria criança, ela é inadequada.
Também a violência na escola não é desconhecida. Ela vai desde os castigos
físicos até a estigmatização do aluno e a
desqualificação de seu grupo familiar e social. Não se pode, pois, culpabilizar a família pela falta de escolaridade dos
jovens. Para que os pais possam favorecer a permanência das crianças na escola,
não basta dar à criança a merenda, o leite ou o livro. Sei que estes são pontos
favoráveis à ida da criança à escola. Mas é preciso mais do que isso. É preciso
amparar as famílias e permitir também o seu acesso à escola, quer em programas
conseqüentes de educação de adultos, quer para participar da vida da escola sob
a forma de Conselhos escolares ou outros. A escola pública, sobretudo, não
deveria ser fechada à comunidade em que recruta seus alunos, recebendo não
apenas as crianças mas acolhendo, sempre que possível,
os pais não só para fazer críticas ao desempenho escolar dos filhos mas para
estabelecer uma verdadeira parceria com a família na promoção do aprendizado.
As crianças não nascem com sete anos. Seria preciso que a escola retomasse o
processo educativo que os pais iniciaram, acrescendo-o dos elementos próprios à
educação formal, sem desqualificar a família que não a possui. Além disso, é
necessário ajudá-la a controlar o rendimento escolar das crianças, oferecer reforços nas matérias em que forem mais
necessários, rever os conteúdos programáticos, auxiliar os mais imaturos.
Poder-se-ia pensar, talvez, numa ajuda financeira condicionada à permanência da
criança na escola, como parte do projeto da renda mínima. Mas ainda é pouco.
Importante é melhorar a escola e o ensino que oferece. Se fosse possível fazer
a criança progredir, incentivar seu desempenho, tanto a escola como a criança sairiam fortalecidas do processo educativo,
capazes de gerar, reciprocamente, auto-imagens mais positivas. Também as
escolas públicas e seus professores têm sua imagem maculada pela péssima
qualidade dos serviços prestados. O bom desempenho dos alunos reforça o bom
desempenho da escola, restitui a dignidade que ambos perderam nessa espécie de disputa
sem glória em que se vêem metidos. Ambos saem dela vencidos, pois sem a
educação o círculo da pobreza e da exclusão se completam,
reproduzindo a miséria.
O Eca proíbe
terminantemente o trabalho a menores de 14 anos. Neste ponto estamos em face de
uma das maiores contradições entre o Eca e a vida
real, sem ironia. Primeiro porque o próprio Estado encontra maneiras, para dar
resposta a alguns setores produtivos, de legitimar o trabalho infanto-juvenil e
não exerce fiscalização sobre pontos críticos que sabidamente exploram a labuta
dos jovens. Em segundo lugar porque são dados do próprio governo que demonstram
a existência do trabalho dos jovens no Brasil. Existem aproximadamente 60
milhões de crianças e adolescentes no Brasil entre
Embora o trabalho infantil caracterize uma das
falências mais sombrias na aplicação dos direitos sociais básicos, é preciso
compreendê-lo na âmbito da experiência das famílias.
No campo ou na cidade o trabalho dos jovens é parte da composição da renda
familiar, mas a sua exploração não repercute na sociedade civil, que nem mesmo
chega a compreender a extensão do problema, embora tenha repercussões
fundamentais para a futura vida dos jovens. No trabalho sofrem mutilações
físicas além das mutilações psicológicas. Não podem freqüentar a escola e arcam, muito imaturos, com a responsabilidade do sustento de
irmãos menores ou de adultos incapacitados. Estão excluídos em várias
dimensões: perdem a despreocupação da infância e do momento de descoberta do
mundo nos jogos e brincadeiras; perdem o momento adequado do aprendizado
formal, da socialização que a escola propicia, do prazer da sociabilidade e do
fortalecimento da consciência do eu e da diferença do outro; perdem a
possibilidade do desenvolvimento físico que os torne aptos a enfrentar o futuro plenamente capacitados; aprendem desde cedo a
humilhação do trabalho desqualificado, quando não degradante; descobrem o valor
do salário de modo negativo, ou porque não são diretamente remunerados - no
campo a família é que é contratada - ou porque são explorados por adultos
inescrupulosos, ou por empresas e patrões interessados em garantir o uso da
mão-de-obra barata; chegam rápido a uma espécie de maturidade perversa, feita
de exigências maiores do que podem dar; ganham, com a falta de preparação
adequada, um futuro de reprodução da pobreza e da desigualdade, ou melhor,
perpetuam, em seus filhos, a sobrecarga de trabalho com que se viram
assoberbados desde pequenos. Como afirma José de Souza Martins
são adultos nos corpos de crianças.6
Não há projeto de vida para a criança pobre que é obrigada a trabalhar muito
cedo e sob condições extremamente desgastantes, pois que não é só o esforço
físico a afetá-la, mas a situação geral de sua vida, apertada entre o trabalho
e a impossibilidade de manter de outro modo a sua sobrevivência. A escola e a
experiência de uma vida sem trabalho são parte
daqueles sonhos que a criança nem se permite sonhar.
Mais uma vez é preciso não culpabilizar
as famílias que levam as crianças a trabalhar. Certamente, na maioria dos
casos, não o fazem porque desejam isso para a criança, mas porque constatam que
a sobrevivência é impossível sem a sua contribuição. O trabalho infantil
participa com 1/3 do orçamento familiar, quando não representa a sua
totalidade.
O protagonista da pobreza é um protagonista
coletivo. Não são crian-ças isoladas
nem adultos isolados que vivem a falta dos meios mais essenciais de
vida. A pobreza é uma experiência familiar. Adultos põem os filhos para
trabalhar porque só conheceram essa realidade em sua infância. A experiência de
uma vida sem saída, a não ser pelo trabalho, marcou as famílias desde as suas
origens, predominantemente rurais. Adultos pobres e iletrados são, de modo
geral, filhos de adultos pobres e iletrados, assim como adultos violentos podem
ser frutos da experiência de pobreza e exploração violentadoras que viveram na
infância e que se propaga como fogo e a todos atinge.
O trabalho duro e sem esperança é vivido pela criança
como destino, como a continuação de uma sina que atinge o grupo familiar e
todos os pobres igualmente. Sem escolaridade, marcado no corpo e na alma pelo
esforço do trabalho precoce, não é por acaso que crianças e jovens se deixam
levar pelo sucesso fugaz que lhes oferece o crime organizado, pelo pequeno
tráfico das drogas de ganho imediato. Entrados nesse caminho a vida é curta e
sem saída.
Quando, tangidas ainda pela adversidade de que a
pobreza é pródiga, fogem para as ruas, não conseguem aí escapar do infortúnio. A violência de que são vítimas as crianças e os adolescentes no
espaço público é, em si, um capítulo que está lentamente a ser escrito, depois
do notório massacre da Candelária.7
Resumindo, embora o Brasil possua uma das mais
avançadas legislações de proteção aos jovens, há muito trabalho a ser feito
para torná-la efetiva. Convivemos com o descaso dos governantes pela vida dos
jovens e com o abuso das autoridades constituídas, violando os direitos mais
elementares que o Eca garante às crianças e aos
adolescentes. A mídia burila suas invectivas, criminaliza
os jovens das camadas populares, alcunhando-os de menores e estigmatiza
as classes subalternas chamando-as de carentes. A mídia, porém,
apenas retrata as representações mais presentes no imaginário da população. Os
fóruns nacionais de discussão dos Direitos Humanos ainda estão muito longe de
conseguirem tornar efetivas as disposições e protocolos internacionais que o
governo federal firmou nos últimos anos.
O que pode a Universidade fazer para contribuir
com a transformação da letra da lei em instrumento eficaz de promoção dos
direitos das crianças e dos adolescentes?
Tendo vivido a Universidade em 1968, de comissões
paritárias e intensa movimentação estudantil, que
exigia que os meios acadêmicos não se afastassem da realidade
sócio-política e econômica do mundo e, de certa forma,
com nostalgia pelo profundo envolvimento, que então se propunha, da
Universidade com os problemas nacionais e com a transformação da sociedade,
desejo que minhas reflexões tenham esse ponto de partida. Penso que a
Universidade pode atuar em pelo menos dois níveis. Se fosse possível ir um
pouco além da técnica, valorizar e dar espaço maior a
discussões e debates como o que estamos realizando aqui hoje, sobre questões de
cunho social mais amplo; se fosse possível comprometer todos os alunos na
realização de trabalhos de extensão à procura de soluções para problemas que
afetam a população do país; se fosse possível quebrar as barreiras que separam
as especialidades, tornando o conhecimento um trabalho de equipe; se fosse
possível liberar a universidade de compromissos nem sempre muito claros com as
empresas privadas e com a classe dirigente; se, por fim, o futuro engenheiro,
assim como o médico e todos os outros profissionais recebessem, no conjunto das
disciplinas que compõem os cursos, noções básicas de direitos humanos; se tudo
isso fosse possível estaríamos mais próximos de proporcionar a um número maior
de estudantes a reflexão sobre instrumentos tão fundamentais para a cidadania,
como o Eca. A reflexão, o debate e o conhecimento podem ser
um primeiro momento para a ação.
O segundo nível de atuação da Universidade pode
ser bem exemplificado pelo curso de Psicologia. Este vem ganhando, com o tempo,
um caráter técnico. Os alunos aprendem uma infinidade de técnicas, desde os
testes, que ainda têm um largo espaço nos currículos, até variadas formas de
terapias e de intervenção. Até mesmo o conhecimento se congela num ritual de
técnicas. Tem-se a impressão de que um currículo de Psicologia é um desajeitado
arranjo de coisas que nem sempre casam umas com as outras. Não há tempo ou
espaço para questões que não sejam estritamente psi. Nada de errado nisso se
estamos formando psicólogos. Porém, trabalhar com a subjetividade não é como
tratar a dor de barriga (e mesmo esta não é tão simples...). A subjetividade é
histórica e social. Isto significa não só que estamos diante de seres
singulares, mas que estes seres singulares também não são iguais social e
culturalmente. A inegável expansão da Psicologia para áreas que envolvem o
trabalho com setores mais amplos da sociedade, como o trabalho em escolas
públicas, centros de saúde, hospitais, no poder judiciário em varas da infância
e da juventude, e tantas outras, exige uma urgente reformulação dos cursos.
Tomemos os aspectos a que me referi, mais
especialmente da família, da escola e do trabalho com suas referências à pobreza
e à violência.
Tarefa urgente nos cursos de Psicologia é não
partir do pressuposto de que as famílas pobres são
indignas, denunciando e tentando reverter o abuso cometido contra elas sempre
que são transformadas em responsáveis pela violência, pela criminalidade, e
até, no extremo, pelos desajustes do país. É preciso dizer e tornar a dizer que
a famosa "família desorganizada ou desestruturada" é um estereótipo
que culpabiliza as vítimas. A aplicação
indiscriminada de modelos familiares normativos a grupos familiares que são
divergentes deles pode causar muito mal, acentuando as diferenças e
transformando-as
Tarefa igualmente importante é fazer chegar às
escolas de Psicologia uma saudável desconfiança do valor dos testes, quer os de
inteligência e nível mental, quer os de diagnóstico de personalidade. Deveria
fazer parte do ensino levar os alunos a compreenderem
a qualidade do poder que a "especialização" lhes confere: encerrar no
inferno da Febem um jovem, negar uma adoção ou facilitar a " guarda"
de crianças, afastar filhos de pais, lançar uma criança na carreira, sem
esperança, das classes especiais, contribuir para a morte civil da criança ou
jovem contraventor.
É preciso introduzir o problema do trabalho dos
jovens, quando se fala de orientação vocacional ou profissional. Tornar a
Universidade menos auto-centrada, pensando o trabalho
e a profissão também para aqueles que não podem escolher e nunca irão ocupar os
seus bancos.
Enfim, ensinar responsabilidade social junto com
as técnicas, incentivar a criatividade dos alunos não os sobrecarregando com
disciplinas excessivas. Transformar a Ética num princípio ativo, devolvendo aos
alunos a humildade necessária aos profissionais que trabalham face a face com a
alteridade.
Enquanto um direito formal não se transforma em
direito reconhecido e intersubjetivamente compartilhado, tem-se que lutar por
ele, com as armas que a Universidade pode nos dar: consciência e conhecimento.
No caso do Eca tem-se que incluir necessariamente, não
só a guerra contra a pobreza e a violência senão também contra as formas mais
insidiosas de discriminação como o preconceito, o estigma e a exclusão. Mas
vale a pena.
Mello, S. L. (1999). The
Child and the Adolescent Statute: Is it Possible to Become a Psychological Reality? Psicologia USP, 10 (2), 139-151.
Abstract: The article describes the effective application
of an advanced
legislation, as the Child and Adolescent
Statute, considering the family, school
and work issues. It also defends a broader involvement of the university courses with the
statute acquaintance and enforcement, favoring its aplication
on the professional routine.
Index terms: Child and Adolescent
Statute. Family. Work. School. University.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Arendt, H. (1981). A
condição humana (R. Raposo, trad.).
Rio de Janeiro: Forense-Universitária / Salamandra, São Paulo: Ed. Universidade
de São Paulo.
Castro, M. M. P. (s.d.). Vidas sem valor: Um
estudo sobre os homicídios de crianças e adolescentes e a atuação das
instituições de Segurança e Justiça (São Paulo 1990-1995). Trabalho
mimeografado. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo, São Paulo.
Martins, J. S. (1991). Introdução. In J. S.
Martins (Coord.), O Massacre dos inocentes: A
criança sem infância no Brasil (pp. 9-18). São Paulo: Hucitec.
Oliveira, J. (Org.). (1995). Estatuto da
criança e do adolescente: Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990 (5a. ed.).
São Paulo: Saraiva.
Pinheiro, P. S., & Adorno, S. (1993).
Violência contra crianças e adolescentes, violência social e estado de direito.
São Paulo em Perspectiva, 7 (1),
106-117.
Weil, S. (1979). A
condição operária e outros estudos sobre a opressão (T. G. G. Langlada, trad.). Rio de Janeiro:
Paz e Terra.
1 Texto apresentado no
Simpósio Estatuto da Criança e do Adolescente: o que o Psicólogo tem a ver
com isso? Faculdade de Psicologia PUC-SP e Instituto de Psicologia USP, São
Paulo, 1996.
2 Endereço para
correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof.
Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP - CEP 05508-900. E-mail: sldmello@usp.br
3 Weil (1979) também vê como condição para combater o desenraizamento operário a posse "de uma casa, de um
canto de terra e de uma máquina ..." (p.354).
4 Os dados
sobre São Paulo são assustadores: "Entre seus 11,3 milhões de habitantes,
61,4% (7 milhões) vivem em favelas e cortiços, muitos em terrenos com situação
irregular" (Pinheiro & Adorno, 1993, p. 112).
5 Dados do
PNAD, 1990.
6
"Criança sem infância não é sinônimo de criança abandonada. É noção que a
esta inclui, mas a ela não se limita. Abrange, também, multidões de crianças
que têm lar e família, mas não têm infância. É de outra natureza a carência que
sofrem e elas próprias o dizem. Algumas carecem de amor, cujas famílias, às
vezes mutiladas, sucumbem às adversidades de um mercado de trabalho excludente,
ao trabalho incerto, ao salário insuficiente, à brutalização
da chamada mão-de-obra sobrante. Outras carecem de justiça.
Seus supostos direitos estão sendo negados. E elas sabem disso. Todas carecem
de infância, pois nelas já foi produzido à força o adulto precoce, a vítima
precoce, o réu precoce" (Martins, 1991, pp. 12-13).
7
Ver, a respeito, o excelente trabalho da pesquisadora Miriam Mesquita Pugliese de Castro, do Núcleo de Estudos da Violência da
USP, que há longos anos trabalha com assassinatos de crianças e adolescentes.
Em seu trabalho mais recente, intitulado Vidas sem valor: Um estudo sobre
os homicídios de crianças e adolescentes e a atuação das instituições de
Segurança e Justiça (São Paulo 1990-1995), com dados cuidadosamente
coletados e analisados, ela sugere duas teses: que se pode configurar, no
Brasil, uma situação próxima do extermínio, no que tange às mortes de jovens;
que se pode configurar, também, a quase absoluta impunidade dos matadores.
* Instituto
de Psicologia - USP
Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65641999000200010&lng=es&nrm=iso . Acesso em: 05 nov. 2006