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O princípio da absoluta prioridade dos direitos da criança e adolescentes e a dignidade humana dos maiores de 18 anos: análise da solução de conflitos fundamentais sob o enfoque de Robert Alexy
Marcelo de Souza Moura
RESUMO[1]: A Constituição da República Federativa
do Brasil tem como um de seus fundamentos o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana, que é concretizado por vários direitos fundamentais. A Carta Política
consignou, também que a efetividade dos direitos fundamentais de crianças e
adolescentes teria absoluta prioridade sobre o direito de outras pessoas
humanas, o que pode acarretar conflitos entre os dois princípios. O desafio de
interpretá-los no contexto brasileiro atual, onde perdura extrema desigualdade
sócio-econômica, pode ser vencido pela aplicação da Teoria da solução de
Conflitos sob o enfoque das Teorias dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy.
Palavras-chave: Constituição Federal - ECA - Prioridade Absoluta -
Direitos Fundamentais – Conflito de Princípios – Robert Alexy.
1- Introdução.
O
art. 1º da Constituição da República de 1988 (CR) apresenta como um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro o princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. Para se garantir a efetividade deste fundamento, o
texto Constitucional elenca vários direitos fundamentais, dentre eles, os
direitos sociais, expressos no art. 6º, quais sejam: educação, saúde, trabalho,
moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à
infância, além de assistência aos desamparados.
No
âmbito dos direitos fundamentais de proteção à criança e ao adolescente, a
legislação brasileira constitucional regulou a matéria no art. 227, caput, da
CR, determinando que a família, a sociedade e o Estado devem assegurar para as
pessoas em formação, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além do dever de garantir que fiquem a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Dispositivo
semelhante é o art. 4º da Lei 8.069, de 13 de agosto de 1990, o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA).
2- A Prioridade Absoluta para crianças e adolescentes.
A
preocupação com crianças e adolescentes é pertinente, pois representam, segundo
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2005, p. 32),
33% da população brasileira, ou seja, 60 milhões de pessoas são crianças e
adolescentes.
Além
disso, estudos comprovam que o crescimento e desenvolvimento de crianças
dependem de fatores intrínsecos, que são relacionados à herança genética, e
extrínsecos, relacionados ao meio ambiente (BRASIL, 2003: 14).
Conforme bem observam Nery Júnior e Machado (2002, p.17), por não terem, as
crianças e adolescentes, o desenvolvimento pleno de suas potencialidade,
característica inerente à condição de seres humanos ainda em processo de
formação sob todos os aspectos, “físico (nas suas facetas constitutivas,
motora, endócrina, da própria saúde, como situação dinâmica), psíquico,
intelectual (cognitivo) moral, social”, dentre outros, devem ser protegidos até
atingirem seu desenvolvimento pleno. Assim, o legislador constitucional entendeu
por bem em proteger-lhes mais do que aos maiores de dezoito anos, garantindo
absoluta prioridade de seus direitos fundamentais, para que possam se
desenvolver e atingir a plenitude do potencial que pode ser alcançado pelos
seres humanos, garantindo-se inclusive, o Princípio da Igualdade, ao
ofertar-lhes direitos e prioridades para efetivação de direitos fundamentais de
forma a equilibrar suas peculiaridades com o desenvolvimento dos maiores de
dezoito anos.
Parte considerável da doutrina entende o princípio da absoluta prioridade como
sendo uma barreira para que as políticas públicas sejam criadas e implementadas
primeiro para crianças e adolescentes, de forma a minimizar qualquer outro tipo
de recurso público para outros titulares de direitos fundamentais. Por absoluta
prioridade, entende Liberati (1991, p. 21) que crianças e adolescentes “deverão
estar em primeiro lugar na escala da preocupação dos governantes; devemos
entender que, primeiro, devem ser atendidas todas as necessidades das crianças
e adolescentes [...]”.
O
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) apresenta uma limitação do alcance
da garantia de absoluta prioridade. Em seu art. 4º, parágrafo único, diz que
tal garantia compreende a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer
circunstâncias; a precedência do atendimento nos serviços públicos ou de
relevância pública; a preferência na formulação e na execução das políticas
sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
3- Os direitos fundamentais dos maiores de 18 anos e aplicação do
Princípio da Prioridade Absoluta: Colisão de Direitos Fundamentais.
Na
linha de raciocínio exposta alhures, a atuação da Administração Pública fica
limitada à efetividade dos direitos das crianças e dos adolescentes. Ou seja,
os outros titulares de direitos fundamentais, maiores de 18 anos, só poderão
ter seus direitos efetivados após a efetivação dos direitos das crianças e
adolescentes. O ECA fala em ‘primazia’, ‘preferência’ e ‘precedência’, mas não
em exclusividade.
Dessa forma, abre-se espaço para uma discussão, pois existe a possibilidade do
conflito entre a expectativa de implementação de políticas públicas que
concretizem os direitos fundamentais dos seres humanos em processo de
desenvolvimento, representada pelo Princípio da Absoluta Prioridade, e a
expectativa de concretização dos direitos fundamentais dos maiores de 18 anos,
que garantem uma existência humana digna.
A
questão levantada se mostra mais preocupante quando observamos a realidade
fática de um País como o Brasil, em que as desigualdades sociais são tão
extremas, que dificultam a decisão de como, quanto e onde aplicar recursos
públicos, uma vez que não se pode negar uma existência digna a ninguém, seja
criança, adolescente, adulto ou idoso.
Robert Alexy (1999, p.68) analisando nossa Constituição da República de 1988,
chamou de Colisão de Direitos Fundamentais, é a situação que ocorre quando o
exercício ou realização de um direito fundamental acarreta conseqüências
negativas sobre outros titulares de direitos fundamentais.
4- Expondo o marco teórico utilizado.
Para
o exame do problema levantado, toma-se como base a teoria dos Princípios de
Robert Alexy, que considera a norma jurídica como um gênero, que possui entre
as suas espécies os Princípios e as Regras. O que os diferencia é uma graduação
de qualidade: “[...] las normas puedem dividirse em reglas y principios y
que entre reglas y principios existe sólo uma diferencia gradual sino
cualitativa [...]” (ALEXY, 1997:86).
O
conceito de norma adotado pelo jurista alemão é de origem semântica e
pragmática, pois uma proposição normativa somente seria possível no contexto de
sua expressão na sociedade (GALUPPO, 1998: 135). Uma norma, para Alexy, é o
significado de um enunciado que diz algo que deve-ser de uma sociedade (ALEXY,
1997: 83).
Por
normas princípios, Alexy entende serem mandados de otimização, que estão
caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus,
dependendo das possibilidades reais e jurídicas. Ao seu turno, regras são
normas que podem ser cumpridas ou não, contendo determinações no âmbito do
fático e do juridicamente possível. Se uma regra é válida, deve-se fazer
exatamente o que ela exige. (ALEXY, 1997: 86).
A
solução de conflitos ou tensões entre direitos fundamentais na teoria dos
princípios, é respondida pela hierarquização dos princípios conflitantes. Para
realiza tal hierarquização, procede-se a uma ponderação racional ou
argumentativa, feita num enfoque pragmático-argumentativo (ALEXY, 2001: 269),
indicando qual dos interesses em conflito ou tensão, possui maior ou menor peso
no caso concreto.
Ponderação
racional é aquela feita com base em enunciados de precedência, que
necessariamente devem ser fundamentados racionalmente. São exemplos de
enunciados de precedência: a intenção original do legislador, as conseqüências
sociais benéficas ou maléficas da decisão, as opiniões dogmáticas e a
jurisprudência (ALEXY, 1997: 159).
Mas
esta precedência não é absoluta, mas sim uma precedência condicionada, onde
leva-se em conta o caso concreto, e indica-se as condições sob as quais um
princípio precede ao outro. Sobre outras condições, a questão da precedência
pode ser resolvida de forma inversa. (ALEXY, 1997, p. 90)
5- Solucionando o Conflito de Direitos Fundamentais.
Da
situação aqui explanada, observamos que a dignidade humana e a absoluta
prioridade são princípios, ou seja, normas que podem ser aplicadas em
diferentes graus, dependendo das possibilidades reais e jurídicas.
Quanto à possibilidade jurídica, esta existe, vez que ambas as normas estão
perfeitamente em vigor[2]. Já as possibilidades reais devem ser
observadas com cautela, sob pena de tornarem ineficazes os direitos e garantias
fundamentais do texto constitucional para toda e qualquer pessoa humana acima
dos 18 anos.
Cabe
aqui a seguinte pergunta: os maiores de dezoito anos somente teriam direitos
fundamentais, garantidores da Dignidade Humana, apenas depois de satisfeito o
direito das pessoas em formação?
A
resposta deve ser negativa, usando-se como enunciado de precedência a
legislação brasileira. O Administrador Público está obrigado a administrar para
toda a população. Ora, dentro dos Princípios da Administração Pública,
determinados pelo art. 37 caput da CR, entre eles os da Moralidade e
Eficiência, deverão os entes federativos agir escolhendo o que melhor atenderá
a população local. E, como se mostra evidente, a população brasileira é
composta de crianças, adolescentes, adultos e idosos.
Pela
Teoria de solução de conflitos de Princípios Fundamentais de Robert Alexy, a
ponderação deverá ser feita mediante a situação concreta, ou seja, quando da
criação e implementação de Políticas Públicas de assistência, ou da efetividade
dos direitos das crianças e adolescentes. Assim, a prioridade dos direitos das
crianças e dos adolescentes é ponderada, podendo ter seu grau de aplicação
diminuído em relação a algum direito fundamental de uma pessoa maior de 18
anos.
Um
exemplo. Em uma determinada cidade brasileira sem atendimento médico, existe
verba suficiente apenas para a contratação de um profissional e a instalação de
um posto de saúde. O Administrador Público desta mesma cidade agirá
corretamente implantando um posto de saúde de atendimento geral com a
contratação de um clínico geral. Não deve instalar um posto de saúde
especializado em atendimento Infanto-Juvenil. O posto deve atender toda a
população, inclusive a crianças e adolescentes. Ponderou-se que o Princípio
Fundamental da Saúde para todos teve preferência em relação ao Princípio da
Absoluta Prioridade de crianças e adolescentes.
Em
outra situação na mesma cidade, que não possui verba suficiente, pode-se
ponderar que é mais necessária a instalação de uma Escola Pública de Ensino
Fundamental do que uma Instituição de Ensino Superior Federal, pela absoluta
prioridade à educação fundamental infanto-juvenil, que pode, inclusive, atender
a adultos sem ensino fundamental, desde que todas as crianças do município
estejam matriculadas e existam vagas para os adultos.
6- Conclusão.
À
vista do exposto, observamos que o legislador constitucional considerou como
direitos fundamentais tudo aquilo que é necessário para se promover uma vida
digna à pessoa humana. Dentre estes direitos fundamentais, considerou também
que os direitos de aplicação às crianças e aos adolescentes detêm prioridade
absoluta face aos direitos das demais pessoas humanas.
Se
estes Princípios entrarem em conflito, deve ocorrer uma hierarquização com base
em uma ponderação racional face o caso concreto, estabelecendo-se em qual grau
cada um dos Princípios deverá ser utilizado.
Não
adianta efetivar os direitos de crianças e adolescentes, mitigando direitos dos
demais titulares, como os direitos a segurança, habitação, saúde e a própria
vida. Não estaríamos resolvendo problemas sociais. Apenas mudaríamos a faixa
etária de sua ocorrência. De recém-nascido até a idade adulta todo ser humano
teria seus direitos fundamentais efetivados. A partir de sua entrada na vida
adulta, o Estado os deixaria à mercê de sua própria sorte.
Na
atual realidade brasileira, os direitos fundamentais não podem ainda ser
totalmente efetivados para todos na forma como a lei contempla, uma vez que
ainda perdura no País a pobreza, a marginalização, a delinqüência e as graves
desigualdades sócio-econômicas.
Ao
se ponderar racionalmente os princípios fundamentais garantimos a retirada mais
célere do ser humano de qualquer faixa etária da indesejável situação de
indignidade.
7- Referências bibliográficas:
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Direitos Fundamentais no Estado de Direito Democrático. Revista de Direito
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LIBERATI, Wilson
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federal: princípio da especialidade e direito intertemporal. Revista de Direito
Privado, São Paulo, v.3, n.12, p. 9-49, out./dez. 2002.
Notas:
[1] A Teoria dos Direitos Fundamentais, bem
como a Teoria de Argumentação Jurídica, elaboradas por Robert Alexy estão longe
de serem unanimidades na doutrina. Juristas como Giorgio Del Vecchio, Norberto
Bobbio, Ronald Dworkin, Klaus Günther e filósofos como Jüngen Habermas
apresentaram visões críticas das Teorias desenvolvidas por Alexy, apresentando
suas próprias teorias aplicáveis ao caso aqui analisado. Para levar o leitor a
um melhor embasamento crítico das teorias existentes, recomenda-se, além das
obras originais: BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios
Constitucionais – O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro –
São Paulo: Renovar, 2001. 327 p.
[2] Neste trabalho não se visa maiores
esclarecimentos da polêmica doutrinária e jurisprudencial acerca de serem os
princípios constitucionais normas com eficácia positiva ou normas
programáticas, ou seja, se são aplicáveis ou se não possuem valor de imposição
ou coerção pelo Estado. Sobre o tema: BARROSO, Luís Roberto. O Direito
Constitucional e a efetividade de suas normas. 7 ed., Rio de Janeiro – São
Paulo: Renovar, 2003. 369 p. e SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. 4. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 158 p.
*Especialista em
Direito Constitucional pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do
Estado de Minas Gerais - FESMP-MG. Professor das disciplinas Realidade
Brasileira e Economia Política no Curso de Liderança da Federação dos
Trabalhadores Cristãos de Minas Gerais - FTC-MG. Advogado em Minas Gerais
MOURA, Marcelo de Souza. O princípio da absoluta prioridade dos direitos da criança e adolescentes e a dignidade humana dos maiores de 18 anos: análise da solução de conflitos fundamentais sob o enfoque de Robert Alexy. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 5, nº 201. Disponível em:<http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1622> Acesso em: 27 out. 2006.