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     Adoção à brasileira:

Uma análise sócio-jurídica

Emmanuel Pedro S. G. Ribeiro Graduado em Direito pela UEPB, mestrando em Sociologia pela UFPB-CAMPUS II     Artigos- Ano III - agosto - Nr. 18

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  Sumário: 1. Introdução. 2. Em que consiste a adoção à brasileira? 2.1. Apresentação do marco teórico. 2.2. Elementos constitutivos do direito como fato social. 2.3. Metodologia da pesquisa. 2.4. Análise e interpretação dos dados. 3. Conclusão.

1. Introdução

O presente ensaio se constitui numa síntese de uma pesquisa de iniciação científica, realizada entre agosto de 1995 e julho de 1996, intitulada "Adoção legal x Adoção à brasileira", junto ao PIBIC(Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica) do CNPq em convênio com a UEPB. Entretanto, esse estudo deriva de um outro, realizado entre agosto de 1994 e julho de 1995, também em convênio com aquela instituição de apoio à pesquisa, em que investigamos até que ponto as modificações relativas ao instituto jurídico da adoção , introduzidas pela Constituição Federal e pelo ECA(Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90), foram os principais fatores que impulsionaram a decisão de adotar.

No decorrer do processo de investigação científica percebemos, a partir dos contatos que mantivemos com juízes, promotores de justiça, advogados, assistentes sociais, psicólogos, sociólogos, que muitas adoções, na verdade, a grande maioria delas, eram informais, ou como preferem os juristas "adoções à brasileira". Justificada a terminologia pela alta incidência no Brasil.

Tais informações colocadas pelo senso comum eram muito interessantes, importantes, mas carentes de um tratamento científico-empírico mais rigoroso. Foi assim que nos propusemos a investigar a adoção à brasileira como fato social. 2. Em que consiste a adoção à brasileira?

Inicialmente, procuramos caracterizar no âmbito da dogmática jurídica o que vem a ser a adoção à brasileira. Verificamos, após as leituras de alguns manuais sobre ADOÇÃO, de alguns juristas que se dedicam ao assunto, como: Antonio Chaves, Roberto João Elias, J. Franklin Alves Felipe, Valdir Sznick, que poucas páginas são dedicadas à questão da adoção à brasileira e seu tratamento circunscreve-se à esfera da moral.

Já no concernente aos penalistas, estes mostram que em nosso Ordenamento Normativo Estatal não existe uma lei disciplinando e permitindo a prática da adoção à brasileira, pois esta é tratada como crime, tipificada no art. 242 do Código Penal, que assim a descreve:

"Art. 242- (...); registrar como seu filho de outrem; (...)

Pena - reclusão, de 2 a 6 anos

Parágrafo Único - Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza:

Pena - detenção, de 1 a 2 anos, podendo o juíz deixar de aplicar a pena"(Celso Delmanto, 1991:385).

Assim se configura na seara da dogmática jurídica a adoção à brasileira. Os que se utilizam dessa prática adotiva, agem à margem da lei, paralelamente e também contra a lei, simplesmente registrando as crianças como se filhos seus fossem. Constatamos, ante às leituras realizadas, que tudo indicava não existir pesquisa empírica sobre o fenômeno social da adoção à brasileira. Entendemos, portanto, a necessidade e a importância dessa investigação, no sentido de que se pudesse sair da aparência, dos estudos meramente descritivos e penetrar na essência, trazendo a lume um conhecimento mais sistemático e metódico sobre essa prática adotiva informal.

2.1. Apresentação do marco teórico

Partimos para o estudo indagando fundamentalmente: Será que essas adoções, embora praticadas à margem da lei, têm conteúdo jurídico?

Mas tal pergunta nos remete a uma anterior: Será que existe direito fora dos limites do direito do Estado?

Estudando o fenômeno, verificamos que para o Direito Oficial ele não é jurídico, pois para o positivismo estatal é "direito tudo aquilo que o Estado reconheça ou imponha como tal"(Souto & Souto, 1985:243). Com efeito, necessário se faz incursionarmos pela Ciência Social do Direito, a Sociologia Jurídica, para que possamos investigar a existência de direito além dos limites do direito do Estado.

Nesse novo ramo do saber jurídico, o sociológico, fundado no início do século pelo austríaco Eugen Ehrlich, nos situamos na perspectiva da teoria sociológica do direito de Cláudio Souto da UFPE, testada através de pesquisa empírica intitulada "Sentimento e Idéia de Justiça" realizada na Universidade de Colônia na Alemanha em 1965.

A perspectiva sociológica nos permite investigar o direito como fato social, cuja fonte é a realidade social, mais especificamente as relações sociais. Restringir o direito, ou melhor, a produção deste ao Estado, é limitá-lo por demais, é confundir o direito com a lei, o legal com o jurídico, como é "querer reduzir o social ao Estado (...) reduzir o todo à parte"(Souto, 1992:37)

Não se quer com isso dizer que a lei nunca se confunde com o direito(pois nossa postura não beira o irracionalismo), pode até se confundir, mas tão-só quando tenha conteúdo jurídico. O que se pretende é apontar para uma pluralidade de fontes quanto ao direito, demonstrar a possibilidade do seu surgimento em qualquer grupo social, não colocá-lo na camisa-de-força do Estado, não reduzir direito a poder.

Nesse sentido, para que não se operem tais equívocos e confusões, como reduzir o direito ao direito positivo, e tomar a lei como sua fonte principal, é necessário, tanto quanto possível, de uma maneira precisa, dizer o que o direito é, substantivamente. Eis a terefa primordial de uma ciência que se pretende moderna, não baseada numa racionalidade de forma, mas antes numa razão de conteúdo. Assim, "do ponto de vista científico-empírico: razão moderna de forma e pré-modernidade de conteúdo"(Souto, 1997:36-37). É o que a dogmática conseguiu atingir, o refúgio nas formas torna a linguagem sofisticada, entretanto, quanto ao conteúdo, qualquer um pode sê-lo, e qualquer um pode ser o direito, tendo em vista que sua legitimidade tem por base um critério tão-só formal.

Mas o formalismo, pois assim podemos chamá-lo quando se verifica uma total indefinição, uma total imprecisão quanto ao que seria o conteúdo do direito, não atinge apenas a dogmática jurídica ou ciência formal do direito, como também a própria sociologia do direito, chegando até a um "formalismo sociológico" como diria Souto. Numa perspectiva sociológica, certamente há uma tentativa de maior abrangência social quanto ao direito. Pois passa-se a admitir, quer com os sociólogos do direito, quer com os alternativistas, que o direito possa surgir a partir de outras fontes que não só as estatais, apesar dos mais românticos negarem as do Estado.

Tomando-se esse viés como referencial básico, desloca-se o fundamento epistemológico, de uma racionalidade baseada na legalidade, isto é, de uma legitimidade que se confunde com o legal, que remete a implicações já tratadas alhures, para uma legitimidade que se confunde com a vontade da maioria, qualquer que seja o grupo social(Estado, Comunidade, Favela, etc.). Tem-se, não há dúvida, uma maior amplitude quanto às possibilidades de produção do jurídico, porém, esse critério é "quantitativo-majoritário".

Pergunta o mestre pernambucano: "Será, então, possível enfrentar em ciência social o problema da 'legitimidade' numa perspectiva não apenas grupal-quantitativa, mas qualitativa?"(Souto, 1992:39). E apresenta uma terceira compreensão do que seja "legítimo". Desloca, agora, o critério do direito, do "quantitativo-majoritário" para o "qualitativo", ou seja, do critério em que prevalece a vontade da maioria para aquele fundado numa razão científica de conteúdo.

E os alternativistas, com raras e honrosas exceções, apesar de perpetuarem o "formalismo sociológico"(por não terem encontrado o conteúdo do direito permitem que qualquer um o seja), contribuem para uma crítica merecida à dogmática jurídica, pois assentada está ainda, em época científica e tecnológica como a nossa, em algo de indiscutível. Como diz Souto "o foro tem o seu saber específico (de que é uma técnica de aplicação judiciária de normas), e esse saber é dogmático, pois atua em função de um dogma: a lei"(Souto, 1997:15).

Não obstante sua contribuição crítica e antidogmática, e de sua maior abrangência social, ao permanecerem no "formalismo sociológico", permitem, muitas vezes, que o "torto" seja expressão do direito, por uma inespecificação de uma composição social do jurídico. E nesse ponto, Souto nos esclarece: "sem essa especificação, grupos sociais distintos, inclusive dentro de um mesmo país, poderiam e podem apresentar, sem qualquer limite, como direito, regras que se contradizem reciprocamente"(Souto, 1997:63).

Já Baptista, nessa mesma linha de raciocínio, nos informa que "lamentavelmente, os escritos a respeito, (...), nos parecem até certo ponto superficiais, por não atingirem o cerne da questão, ou seja: o direito é substancialmente o mesmo, como realidade transcultural, mas é preciso adequar as formas normativas à constante mudança a que se submete o social, na qualidade de um processo ligado à vida ou, melhor dizendo, ao universo da vida. A dificuldade é que poucos chegaram a compreender a fundo o que o direito substancialmente é"(Baptista, 1993:12)

Determinar o conteúdo do direito, eis a dificuldade secular, com que se depararam e ainda se deparam juristas, sociólogos e filósofos do direito. E a pesquisa "Sentimento e Idéia de Justiça" realizada na Alemanha em 1965, teve como objetivo principal "determinar qualitativamente ou substativamente o conteúdo de algo que possa ser chamado 'direito vivo', ou apenas 'direito'"(Souto, 1978:74). Claramente, Cláudio Souto nos dá pistas de que partiu do, considerado por alguns teóricos, fundador da Sociologia do Direito como Ciência.

Eugen Ehrlich em seu "Fundamentos de Sociologia do Direito", publicado pela primeira vez em 1913, definiu o que seria o objeto desta nova ciência social - o "direito vivo" - da seguinte forma: como "algo em contraposição ao apenas vigente diante dos tribunais e órgãos estatais. O direito vivo é aquele que, apesar de não fixado em prescrições jurídicas, domina a vida"(Ehrlich, 1986:378).

O mestre pernambucano parte também do pensamento de Nicholas Timasheff, autor de "Introdução à Sociologia do Direito", publicado em 1939. Este sociólogo-jurista recebeu forte influência da Escola Psicológico-Jurídica de Petrazhitsky, teórico russo-polonês, cujas idéias centrais são: "a) de emoções de dever, que seriam as reações, apulsivas ou repulsivas, originadas de idéias sobre determinados padrões de conduta; b) de que a coerção ou a possibilidade de coerção não é essencial ao direito; c) de que direito e moral integram a classe mais alta da experiência ética(...)" (Leon Petrazhitsky in Souto, 1974:118). Aqui, percebemos como este teórico toma o jurídico como fenômeno psíquico, já apontando para uma provável ligação entre o sentimento e a idéia.

Entretanto, é em Timasheff que encontramos o direito como um fenômeno inerente à natureza humana. Timasheff, citado por Souto, diz que "a realidade do direito deve ser averiguada em termos das experiências biopsíquicas do homem"(Timasheff in Souto, 1971:64). Partindo de Petrazhitsky, apontou para aquilo que Souto chamou de "impulso de ser"- como a experiência biológica, como também, falando em experiência psíquica, lança as bases para o que o autor pernambucano chamaria de "composto mental SIV"(sentimento,idéia,vontade), estando porém isso bem mais claro em Durkheim, conforme veremos a seguir.

Já no âmbito da Sociologia Geral, encontramos as influências de Weber, Simmel e, sobretudo, do Sociólogo francês Émile Durkheim. Considerado o fundador da Sociologia como ciência, quando da publicação do clássico "As Regras do Método Sociológico" em 1895. Por alguns, é considerado também o fundador da Sociologia do Direito, pelo tratamento dado ao direito em duas de suas obras: "Da Divisão do Trabalho Social"(1893) e "Lições de Sociologia", publicado em 1932. Durkheim em fins do século passado já apontava em sua construção do fato social para uma de suas características fundamentais, a exterioridade, quando em "Sociologia e Filosofia" falava do agregado: "é este que pensa, que sente , que quer, ainda que não possa querer, sentir ou agir senão por intermédio de consciências particulares"(Durkheim, 1970:39). Então, são os indivíduos, segundo Durkheim, que pensam, sentem e querem, e a consciência coletiva(psiqué coletiva ou agregado) só se realiza através deles, isto é, das consciências individuais.

Pois bem, o que fez Souto foi dar um tratamento sistemático àquilo que Durkheim tratou, apenas, ocasionalmente. E o próprio Souto diz: "pena que essa menção, (...), a elementos essenciais do psíquico e do psíquico-social (a menção a idéia, sentimento e vontade) não tenha merecido do Mestre francês um tratamento sistemático, e não apenas ocasional" (Souto, 1997:65).

Um outro, e este é brasileiro que influenciou bastante o pensamento de Souto, foi Pontes de Miranda, quando em 1922 publicou o clássico "Sistema de Ciência Positiva do Direito" em quatro volumes. Pontes de Miranda só não ganhou maior notoriedade porque seu livro não foi publicado em língua estrangeira. E a postura de Cláudio Souto em relação ao sociólogo do direito brasileiro é assim expressa: "Pontes de Miranda tem uma posição que se furta aos equívocos quer do racionalismo tecnicista de Weber, quer do sócio-espontaneísmo de Ehrlich. Sua posição é de racionalidade científica e racionalmente de ênfase no papel da ciência quanto ao direito. Mas sem negar a grande importância da elaboração jurídica inconsciente".(Souto, 1971:52). Percebemos como em Souto a informação científica é essencial para uma determinação do conteúdo do direito. É dessa fonte que provém a classificação operacional do direito em, refletido e espontâneo, construída pelo mestre pernambucano, mas que nesse ensaio não desceremos a maiores detalhes.

Temos a impressão de que a partir de tais elementos básicos, poderemos passar a construir a teoria sociológica do direito de Souto, e que se constitui como referencial fundamental para o entendimento da adoção à brasileira como fato social. É mister iniciarmos reconhecendo o mérito e a contribuição dos pensadores acima citados, todavia não se pode esconder os limites de suas teorizações. Tomando, em primeiro lugar, os sociólogos-juristas como alvo de uma crítica rigorosa, poderíamos apontar que a vaguidade em suas definições operacionais do direito, ofusca e perturba o desenvolvimento das demais tarefas da Sociologia Jurídica, que dependem de um mapeamento um tanto quanto possível, preciso do campo do estritamente jurídico. Já em Durkheim, embora não apresentado aqui pelo ângulo da sociologia do direito, pelo fato de não ter tratado sistematicamente aquilo que seria essencial para uma compreensão substantiva dos fenômenos sociais, peca também pelo seu formalismo e não escapa de críticas.

2.2. Elementos constitutivos do direito como fato social

Assim sendo, a perspectiva tentada pelo professor do Recife é substantiva, quando privilegia como critério científico para a definição do direito, o conteúdo e não a forma. Foi através da pesquisa empírica realizada na Alemanha em 1965, a qual já nos referimos, que o autor, partindo da abstração científica do sentimento da idéia de justiça, chegou à composição do direito como fato social.

Entretanto, para se tocar a realidade mais íntima do direito como fenômeno social é preciso romper com a concepção de ciência da sociologia jurídica tradicional, e que alcança, na sua história, a quase totalidade dos teóricos. O resíduo do "realismo cientificista" traduzido no desprezo pelo mundo das normas e dos valores, se constitui como obstáculo ao pleno desenvolvimento da ciência social do direito, que depende, para alcançar a modernidade, de uma razão de conteúdo, de se encontrar a composição do direito como fato social.

Diz Souto que "já se iniciou, contudo, entre os próprios cientistas, a reação a essa maneira de ver comum entre os sociólogos - sem negar-se, é claro, a objetividade na investigação científica"(Souto, 1974:120). O que se pretende com isso é mostrar que se deve reconhecer que o direito é um fenômeno de valor, um dever ser, um fenômeno normativo, porém é passível de um tratamento científico-empírico. Todos os cientistas estão permanentemente a buscar "o critério geral e atual da ciência, de tal sorte a podermos saber de modo geral se uma teoria é ou não científica, no sentido de corresponder ou não à ciência atual, como se pode negar que se possa e deva buscar o critério geral e atual do direito? De tal sorte a podermos saber - do modo mais definido possível - se um fenômeno é ou não jurídico?"(Souto, 1974:120).

A busca desse critério tem uma importância fundamental - pois é a partir dele que se pode avaliar, julgar se determinado conhecimento se configura como científico ou não. Da mesma forma, sendo o direito uma ciência, urge que se encontre também o critério geral e atual para o jurídico, para que se possa saber se um fenômeno se caracteriza como jurídico ou não.

Com efeito, a partir da pesquisa já citada, constatou o pesquisador pernambucano: a existência de uma ligação, na realidade social normativa, do sentimento humano de justiça a uma idéia de acordo com os dados da ciência atual. E definiu: "o fenômeno jurídico, em suas linhas mais gerais, ainda não específicas, é um fenômeno que associa um imperativo(dever ser) e um conhecimento(ser) - um fenômeno de normação social(...)"(Souto, 1978:68).

Então, qual seria afinal a composição do direito como fato social?

Afirma-nos Souto que "Direito é o que está de acordo com o sentimento do dever ser e com a ciência atual"(Souto, 1992:102).

  1. DIREITO= sentimento de justiça + dados da ciência empírica atual;ou
  2. DIREITO= justiça + idéia de justiça;ou
  3. DIREITO= dever ser + ser => DIREITO= dever ser
Das fórmulas expostas acima, verificamos que o direito é um fenômeno de valor, um fenômeno normativo, cujo resultado, da união entre o imperativo(DEVER SER = SENTIMENTO DE JUSTIÇA) com o indicativo(SER = IDÉIA DE JUSTIÇA), é um imperativo DEVER SER. Entretanto, o DIREITO É UM DEVER SER QUE É, porque está na realidade social, no mundo do ser, pois se ele não fosse, não existiria. O DIREITO como um fenômeno de valor é apreendido na realidade social como um conhecimento, como um indicativo que é, embora seja um dever ser.

Diz Souto "a teoria científica do direito apreende essa realidade móvel e complexa, e a apreende no plano do ser (...) mas essa apreensão será nada mais, nada menos, que o critério geral e atual do direito. Uma apreensão que significa em suma um julgamento de realidade concernente à realidade de um fenômeno de valor, ou seja, de um fenômeno de dever ser"(Souto, 1974:121).

Após a apresentação do critério científico geral e atual do jurídico, devemos esclarecer porque deve ser o dado de ciência o conhecimento informativo do direito.

Na pesquisa realizada na Alemanha, o referido autor chega à composição social de mais dois fenômenos como a moral e a equidade. Se direito é a ligação na realidade social normativa do sentimento humano de justiça com os dados da ciência empírica atual; moral é a mesma ligação desse sentimento com conhecimento metacientífico; e equidade seria essa ligação com o conhecimento das circunstâncias particulares de um caso concreto.

Assim, verificamos que o sentimento humano de justiça integra os três fenômenos citados: direito, moral e equidade, como sendo o elemento que os caracteriza como fenômenos normativos. Mas como diferenciá-los? Eles se diferenciam pela espécie de conhecimento que os informa. Nesse sentido, por que o dado de ciência é que deve informar o direito?

Em primeiro lugar, para respondermos parcialmente à pergunta, buscaremos em Lévy-Bruhl o auxílio necessário à construção que tentaremos fazer. Diz o sociólogo do direito francês: "nossa primeira tarefa consiste em definir o direito"(Lévy-Bruhl, 1988:03). Logo de saída, constatamos a importância que tem para o autor a construção do seu objeto de estudo. Quando ele aponta que a primeira tarefa consiste em definir o direito, nas entrelinhas está colocado que esse é o passo fundamental da sociologia do direito e do qual decorrem todas as demais. Em seguida, dá o sentido etimológico da palavra direito: "A palavra 'direito', em francês (como em inglês, right, em alemão, recht, em italiano, diritto, etc.), liga-se a uma metáfora na qual uma figura geométrica assumiu um sentido moral e depois jurídico: o direito é a linha reta, que se opõe à curva, ou à oblíqua, e aparenta-se às noções de retidão, de franqueza, de lealdade nas relações humanas"(Lévy-Bruhl, 1988:03).

Desta forma, como o direito liga-se metaforicamente à linha reta, às noções de retidão, qual a espécie de conhecimento que, modernamente, se caracteriza pelo menor grau de incerteza? Racionalmente, o conhecimento científico, testável por métodos e técnicas de pesquisa empírica é marcado por esse maior grau de certeza, ou se se prefere, por esse menor grau de incerteza. É com Baptista que realçamos nosso entendimento: "podemos chamar de certos os conhecimentos de acordo com a ciência empírica (...). Certo no sentido de correto, de direito, de consentâneo com a realidade verificada (...)" (grifos do autor) (Baptista, 1993: 12). Nesse sentido, se direito se liga ao que está de acordo com a linha reta, ou às noções de retidão, nada mais coerente do que se possa chamar de direito o padrão normativo que se componha substantivamente de conhecimento passível de verificação científico-empírica.

Em segundo lugar, vamos buscar uma justificativa que é o próprio Souto quem nos oferece: "se o direito tem por fim a segurança nas relações sociais, a idéia que o compõe deve ter a menor insegurança cognitiva possível e essa menor insegurança está na consonância dessa idéia com os dados da ciência atual"(Souto, 1992:101). Desta forma, se o direito visa a segurança nas relações sociais, nada mais justo do que, numa época científica e tecnológica como a nossa, o conhecimento que deve informar o direito deve ser o científico.

Com efeito, cremos que resta ainda apresentar um outro elemento, além do sentimento de justiça e dos dados da ciência atual, que é parte integrante da definição operacional do direito de Souto, o impulso de ser.

O impulso de ser é elemento infra-estrutural do sentimento de justiça, e faz parte de um postulado ético fundamental: "o postulado seria o de que o mundo e o homem devem ser(existir) e desenvolver-se(ou ser cada vez mais profundamente)". E este impulso de ser traduzido na forma tipicamente humana, "em última análise, parece nada mais ser senão o impulso de conservação individual e da espécie"(Souto, 1971:95).

A normalidade do sentimento está na harmonia deste com o que lhe é subjacente e infra-estrutural que é o impulso de ser(impulso de conservação do indivíduo e da espécie).

Assim sendo, é jurídica toda apreensão da realidade social móvel e complexa que contenha a seguinte composição: "impulso de conservação individual e da espécie e de sentimento de agradabilidade informado por idéia de acordo com a ciência empírica"(Souto, 1997:45).

Percebemos que este é um critério universal e transcultural, com base nele poderemos apreender o jurídico de maneira mais segura, em qualquer grupo social, seja ele estatal, comunitário, da favela ou não. Desta forma, certamente, existe direito fora do Estado, pois este não abarca toda realidade social normativa jurídica, assim, podemos apreendê-lo como conteúdo sem qualquer forma estatal de coercibilidade e que é chamado de direito informal(cf. Souto, 1981:118).

Outra hipótese é aventada ainda pelo autor, "o fato de nem sempre existirem dados científicos disponíveis (...) a propósito de determinado tópico. Neste particular, é claramente lamentável, do ponto de vista prático, o subdesenvolvimento das ciências humanas em geral"(Souto, 1978:98)

Na falta de dados científicos que informem o sentimento humano de justiça, como saber se determinado fenômeno social apreendido é ou não jurídico?

Informa-nos Baptista que nem sempre é possível contar com um dado científico e nesse caso duas hipóteses daí decorrem: "1) deve ser a preservação da vida; 2) para a preservação da vida é necessária coesão social"(Baptista, 1996:30).

Caso não encontremos num fenômeno social o dado científico que venha a se ligar intimamente ao sentimento do dever ser, composição esta específica do direito, mas uma idéia que seja o mais possível aproximada da racionalidade científica, estaremos diante de um fenômeno jurídico em sentido amplo. Observe-se, conforme Baptista, que se a idéia que preside o fenômeno abarcar as duas hipóteses acima citadas, certamente estaremos diante de algo que interessa ao jurídico, que favorece ao desenvolvimento do direito.

Ante às considerações anteriores, podemos passar a responder à primeira pergunta, acerca da juridicidade das adoções à brasileira. Para tanto, antes é necessário apresentar o caminho trilhado para a coleta dos dados, em seguida, os dados coligidos e sua interpretação.

2.3. Metodologia da pesquisa

A pesquisa desenvolveu-se a partir da realização de 43 entrevistas semi-estruturadas, registradas em fita-cassete, com duração de 30 minutos. Após a realização de todas as entrevistas, confeccionamos um questionário, baseado nas entrevistas, cuja finalidade foi a de facilitar a quantificação dos dados. A maioria das entrevistas foi realizada no local de trabalho das pessoas que praticaram a adoção à brasileira e em outras situações na própria residência delas. É interessante salientar que, na grande maioria dos casos, as entrevistas só foram concedidas porque garantimos não revelar os nomes dos entrevistados e das crianças adotadas à brasileira.

Chegamos até essas pessoas através da comunicação do trabalho que estávamos desenvolvendo. Como o fenômeno da adoção à brasileira é bastante disseminado, quase sempre as pessoas com quem conversávamos conheciam, pelo menos, uma pessoa que a tivesse praticado. Assim, os que colaboraram com a pesquisa entravam em contato com aqueles que haviam feito uso desta prática e perguntavam da disponibilidade deles em conceder a entrevista. E assim, foi-se desenvolvendo o trabalho. Quando a entrevista chegava ao fim, sempre perguntávamos aos entrevistados se eles conheciam outras pessoas que da mesma forma haviam adotado e, geralmente a resposta era afirmativa. Foi a partir de tal procedimento que realizamos 43 entrevistas.

2.4. Análise e interpretação dos dados

E a partir de que dados investigamos o conteúdo informativo dessas práticas adotivas à margem da lei?

A pergunta da entrevista que nos permitiu uma análise sócio-jurídica foi a seguinte: Quais as razões da adoção?

Neste quesito, as pessoas puderam responder multiplamente, isto é, puderam dizer quais as razões qua as levaram a adotar e, a maioria respondeu que mais de um fator contribuiu para aquele ato. Assim sendo, as três razões mais significativas que levaram as pessoas a adotar são respectivamente:62,79% disseram que uma das razões era o altruísmo(vontade de ajudar uma criança abandonada), 25,58% responderam que um dos fatores foi a impossibilidade de gerar, 23,25% dos entrevistados responderam que a dificuldade de gerar foi um outro fator bastante influente.

Note-se que 62,79%, ou seja, a grande maioria das pessoas agiu de maneira desinteressada, uma vez que a razão da adoção era a própria criança. A partir da citação de trechos das entrevistas poderemos tirar algumas conclusões:

"Uma menina foi colocada na porta de minha casa, com dois dias de nascida, muito debilitada, ela pesava simplesmente 1,8kg(um quilo e oitocentos gramas), muito pequenininha. Eu levei ela pro médico, o médico não queria colocar o aparelho para puxar a secreção, eu fui quem puxei com a boca, entendeu, ela não chorava, não espirrava, não fazia xixi, entendeu como é. Então eu me doei de corpo e alma a ela (...) a razão de tudo foi ela, entendeu como é. A gente não esperava, foi um negócio assim, foi uma coisa que a gente não pode decifrar"(S.M.) - Entrevistado(a).

"Quando ele chegou na minha casa já tinha passado por uma quatro casas e ninguém tinha aceitado. Ele chegou com dois dias de nascido, magrinho, doente, a mãe na hora do nascimento defecou em cima dele, e as fezes contaminaram ele, não deram banho nele. Eu levei meu filho pra minhas colegas pediatras examinarem, e elas disseram que ele estava com septcemia, e eu o acompanhei, passei noites acordada medicando ele. Eu queria era salvar a vida dele"(M.T.) - Entrevistado(a).

À luz do paradigma sócio-jurídico acima explicitado, entendemos que essas pessoas agiram baseadas numa razão legítima. Será que existe algo mais correto, mais reto do que uma pessoa pautar sua conduta no sentido de que a vida de uma outra tenha continuidade? Cremos que nem o conhecimento científico, que é o mais seguro, o mais correto, o que realmente legitima a conduta jurídica, possa contradizer ou superar algo que não necessita de prova científica para se firmar como conhecimento de conteúdo racional.

A impossibilidade de gerar aparece como a segunda razão lastreadora da adoção, cuja representatividade é de 25,58%. Nos casos estudados, a impossibilidade de gerar decorre: a) esterilidade; b) laqueadura de trompas.

Quanto à esterilidade, algumas pessoas que a alegaram tiveram a comprovoção através de exame, em outros casos as próprias pessoas se consideram estéreis por nunca terem conseguido procriar.

Já na laqueadura de trompas se verifica a ocorrência de intervenção cirúrgica, decorrendo a impossibilidade de reversão.

O terceiro fator fundamental alegado por 23,25% dos entrevistados foi a dificuldade de gerar. Algumas mulheres conseguiram engravidar, mas perderam a criança durante a gestação. Em outros casos, não chegaram a engravidar e segundo informações médicas seria necessário um longo tratamento para que a gravidez fosse possível. Entretanto, as condições financeiras não permitiram o início do tratamento. Desta forma, estas pessoas optaram por outra forma de ter filho.

3. Conclusão

Concluíndo, cabe mais uma vez reforçar que não há confundir-se o legal com o jurídico, noutros casos encontramos o jurídico fora do Ordenamento Estatal sem que este tenha sequer previsto, bem como existem outras possibilidades de encontrar o jurídico fora dos estreitos limites do Estado, mesmo quando no Ordenamento deste existe dispositivo penal proibindo condutas tidas como infração de norma penal.

Assim sendo, conforme dissemos alhures, em nossa perspectiva o que legitima o direito é a racionalidade científica, ou seja, para que tenhamos um fenômeno sócio-jurídico é necessário que o sentimento de justiça, cujo elemento subjacente é o impulso de ser, seja informado por uma idéia seguramente testada ou testável, e esta é a proveniente de conhecimento científico. Com esses elementos estaríamos diante do fenômeno jurídico em sentido estrito.

Por outro lado, ao investigarmos o fenômeno da adoção à brasileira, chegamos à conclusão de que este é fundamentalmente jurídico, embora o conhecimento que o presida não seja diretamente científico em todos os casos, e em outros o é indiretamente por conta da comunicação de idéias de acordo com pesquisas científicas apreendidas na relação interativa social, porque lastreado por idéia básica, elementar e incontrastável cientificamente, de que deve ser a preservação da vida da criança abandonada pelos pais biológicos.

Entendemos, portanto, estar presente a permanente busca de perpetuação da espécie, no caso estudado, através da adoção à brasileira. Diante da resposta científica de que elas não podiam ter filhos ou de que depende de tratamento a ser realizado, essas mulheres sentiram que deveria ser procurado um outro caminho e, em função desse sentimento/idéia agiram, praticando adoção.

E com Souto arremataríamos: "deve ser tudo que for favorável à subsistência e ao desenvolvimento do indivíduo humano e da espécie humana; deve ser sobretudo a subsistência e o desenvolvimento do indivíduo humano e da espécie humana. Por conseguinte, devem ser o individual e o grupal, que propiciem a aproximação, a coesão, a integração, a união humana, não devem ser o individual e o grupal que atuem no sentido do distanciamento mental e social de homens entre si"(Souto, 1997:45)
 
 
 

Referências Bibliográficas

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