® BuscaLegis.ccj.ufsc.br
O BRASIL PODE
(Agop Kayayan - Representante do UNICEF no Brasil)
-
No que diz respeito à promoção e defesa dos Direitos
da Criança, o Brasil foi o primeiro país da América
Latina - e um dos primeiros do mundo - a "acertar o passo" da sua legislação
com o que há de melhor na normativa internacional.
-
De fato, o artigo 227 da Constituição Federal e o Estatuto
da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) supera de vez o desgastado
modelo da doutrina da situação irregular substituindo-o pelo
enfoque de proteção integral, concepção sustentadora
da Convenção Internacional dos Direitos da Criança,
aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989.
-
O mais notável nesse processo de mudança foi que ele não
resultou, como é frequente acontecer nesses casos, do trabalho isolado
de um seleto grupo de especialistas. Ao contrário, tanto o dispositivo
constitucional como a lei que o regulamenta foram produzidos no seio de
um extraordinário processo de mobilização ética,
social e política, que envolveu representantes do mundo jurídico,
das políticas públicas e do movimento social.
-
A implementação de um novo ordenado jurídico - nunca
é demais repetir - longe de ser uma corrida de cem metros rasos,
assemelha-se muito mais a uma maratona, isto é, trata-se de um processo
lento, laborioso e difícil.
-
Tirar o Estatuto do papel é uma operação que, além
de implicar mudanças no panorama legal dos Estados e Municípios,
requer também um corajoso e amplo reordenamento institucional dos
organismos que atuam na área.
-
Este processo necessita, também, de um esforço concentrado
e continuado de capacitação de todo o pessoal dirigente,
técnico e auxiliar envolvido diretamente no atendimento à
população infanto-juvenil, a fim de implantar práticas
novas.
-
Não há como negar que já se fez muita coisa. O Conselho
Nacional e quase todos os Estaduais já estão funcionando.
-
Cerca de dois mil municípios implantaram ou já iniciaram
a implantação de seus Conselhos de Direitos. Este é
um processo inédito de mobilização em favor da criança.
Nunca uma lei organizou tantas pessoas, em tantos lugares diferentes, em
defesa de uma mesma causa.
-
Os avanços, porém, não se resumem ao plano da mobilização.
A mortalidade infantil vem sendo enfrentada com seriedade e competência
em vários estados do Brasil. Na educação, há
estados e municípios traduzindo, em termos práticos, o direito
à educação como ingresso, regresso, sucesso e permanência
de todas as crianças na escola. No campo da proteção,
a criatividade institucional e comunitária de estados, municípios
e ONGs tem gerado um expressivo elenco de programas voltados para a idéia
de "educação o dia inteiro, sem que isso signifique escola
o dia inteiro".
-
Finalmente, no que diz respeito ao judiciário, hoje já podemos
apontar juízes, promotores e advogados capazes de enfrentar o problema
da delinqüência juvenil com severidade e justiça sem,
no entanto, abrir mão das garantias próprias do estado democrático
de direito.
-
Contudo, ainda resta muito por fazer. Principalmente no campo das políticas
sociais básicas: educação, saúde e profissionalização.
As culturas política, administrativa e técnica do passado
continuam barrando os avanços dos Conselhos. A burocracia, o corporativismo,
o clientelismo e o fisiologismo seguem obstaculizando os anseios de participação
e de transparência que o novo direito da infância e da juventude
pressupõe e requer.
-
Em meio a tantos obstáculos, entretanto, surgem, aqui e ali, sinais
que nos autorizam a olhar com esperança para o futuro. A mobilização
social em favor da criança, a cada dia se aprofunda e amplia em
todo o país. O Pacto pela Infância, por sua vez, é
a demostração cabal da capacidade da criança de servir
de base para a edificação de consensos em uma sociedade democrática.
As forças nele aglutinadas colocaram, de fato, os direitos da população
infanto-juvenil acima de qualquer outro bem ou interesse, pondo de lado
as divergências e antagonismos que os separam em outros planos da
vida nacional.
-
É inevitável, porém, que algumas vozes se ergam pregando
o retrocesso. São pessoas e grupos que ainda não acreditam
que o Brasil seja capaz de conviver com os avanços mais recentes
no campo dos direitos da criança. Advogam, por isso mesmo, o retorno
ao panorama legal anterior à redemocratização.
-
Para esses segmentos, o mais importante é lembrar que, se é
verdade que existe no Brasil hoje uma enorme distância entre a lei
e a realidade, o melhor caminho para diminuir esse hiato entre o país-legal
e o país-real não é piorar a lei, mas melhorar a realidade,
para que ela se aproxime cada vez mais do que dispõe a legislação.
-
As dificuldades de uma conjuntura adversa não podem justificar um
retrocesso histórico nas conquistas do estado democrático
de direito em favor da infância e da juventude. A hora é de
trabalho, luta e esperança. Vamos tirar o Estatuto do papel e trazê-lo
para o dia a dia das nossas comunidades. O Brasil é capaz. O Brasil
pode.