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O “PROTECT Act” – a lei americana de proteção às crianças na Internet (parte II)

 

Demócrito Reinaldo Filho

 

 

Atualmente, tramita no Congresso Nacional uma série de projetos de lei objetivando combater a pornografia infantil digital (1), assim entendida a prática consistente na divulgação, através dos meios de comunicação (em especial a Internet), de fotografias ou qualquer demonstração visual de crianças e adolescentes engajados em ato sexual explícito. A maioria deles altera o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei n. 8.069, de 13.07.90), para incluir penalidades contra a veiculação desse tipo de conteúdo pornográfico.

            A proteção de nossas crianças é um assunto de interesse nacional e a iniciativa desses projetos por si só já merece elogios. A par das comodidades que oferece, como as facilidades da transmissão do conhecimento e de informações, a rede mundial se caracteriza pela “anonimização” e pela “universalização”, características que fazem dela um vasto campo para a prática de crimes. Protegidos pela arquitetura técnica da rede, que permite a uma pessoa (com parcos conhecimentos de telecomunicações) trafegar de forma anônima e ultrapassar as barreiras físicas do território onde está situado – ultrapassando, conseqüentemente, o raio de alcance das leis nacionais feitas para vigorar nesse mesmo território -, os criminosos sentem-se estimulados a exteriorizar seus sentimentos e suas ações nesse ambiente difuso, sobre o qual as tentativas de regulação estatal movem-se de forma bem mais lenta que no mundo físico exterior. Em particular, a rede tem sido um ambiente extremamente favorável à proliferação da pornografia e, de um modo ainda mais  sensível, tem servido como campo fértil para a disseminação da “pedofilia” (2). Os pedófilos têm se utilizado da Internet para conquistar crianças e adolescentes (em salas de chat), para trocar fotos e imagens que descrevam práticas sexuais com menores pré-púberes, para simplesmente extravasar suas (doentias) fantasias sexuais e até mesmo para difundir uma espécie de filosofia pedófila. Por sua vez, o Estado tem um interesse direto na repressão da pedofilia, quer seja ela a prática direta de um ato de abuso sexual contra menores, seja quando representa uma perpetuação ou um incentivo a esse tipo de crime – o que ocorre quando imagens de crianças molestadas sexualmente são divulgadas.

            A repressão legal, todavia, não pode desconhecer o sistema de valores e princípios constitucionais que conformam o Estado brasileiro. A nosso Constituição, em parelha com boa parte das democracias do hemisfério ocidental, consagra a liberdade de expressão (art. 5º, IV, VI, VIII e IX) como princípio fundamental da organização de nossa sociedade. Também não se pode olvidar que nem sempre uma fotografia ou imagem de criança relacionada a ato sexual resulta de um efetivo abuso; pode ser construída através de recursos computacionais gráficos ou com o uso de adultos de aparência juvenil, sem que uma criança real tenha participação nessa atividade.

Nesse sentido, talvez seria interessante voltar os olhos para a experiência alienígena nesse assunto, já que em outros países se tentou anteriormente legislar para impedir a disseminação de material de conteúdo pedófilo na Internet. Nos EUA, por exemplo, uma lei de 1996 (Child Pornography Prevention Act) (3) tentou expandir o conceito de pornografia infantil para nele incluir qualquer descrição visual que seja ou aparente ser de um menor engajado em conduta sexual explícita. A Suprema Corte invalidou a lei (no julgamento do caso Ashcroft v. Free Speech Coalition) (4), por considerar que ela dava margem à proibição de material cuja produção não utilizasse efetivamente crianças (5). A Corte recorreu ao princípio do freedom of speech, encapsulado na Emenda n. 01 da Constituição norte-americana, que inspirou e corresponde ao nosso princípio constitucional da liberdade de expressão.

            A repercussão dessa decisão não foi muito positiva entre os que estão engajados na luta contra a pedofilia na Internet, que alegaram que ela trouxe um peso excessivo para as autoridades que combatem o crime, as quais, partir dela, teriam que provar que qualquer material de pedofilia seria produto de um efetivo abuso sexual de crianças. Para elas, a decisão seria uma porta aberta para os pedófilos escaparem de condenação criminal, pois, toda vez que fossem apreendidos com esse tipo de material, bastaria alegar que fora produzido através de recursos de computação gráfica, o que seria tecnicamente muito difícil para as autoridades policiais e os promotores provarem o contrário.

            Imagens geradas por computador são difíceis de ser distinguidas de imagens reais de crianças (em situação de exploração sexual). Pode-se inclusive usar partes de uma foto tirada de uma criança para compor uma outra, dificultando, mesmo para um especialista, concluir que partes de imagens de crianças reais foram utilizadas. As imagens de pornografia infantil que circulam na Internet e que são apreendidas pelas autoridades policiais raramente são um produto original, pois em regra são retransmissões da que foi originalmente capturada em formato digital, tornando difícil, mesmo para um perito, concluir que são resultado de um efetivo ato de exploração sexual de uma criança.

            Favorecidas por essas questões técnicas, a defesa de muitos réus em processos criminais passou efetivamente a alegar que o material apreendido em suas mãos não era originado de crianças reais, insistindo que o Estado é quem deveria provar, além de qualquer dúvida, que as imagens não eram geradas por meio de computação gráfica. Segundo órgãos do Governo, o impacto da decisão da Suprema Corte sobre os processos por crimes de pedofilia foi evidente. Um significante e adverso efeito foi sentido sobre a capacidade dos órgãos da Promotoria de levar à frente os processos nesse tipo de crime. Somente os casos mais graves, onde a Promotoria tinha condições de provar com facilidade a origem do material, foram denunciados. Isso sem falar no aumento de custos em matéria de tempo, dinheiro e recursos técnicos gastos em cada investigação de pornografia infantil. Os promotores, inclusive, tiveram dificuldade de levar adiante casos onde já tinham oferecido denúncia previamente.     

O resultado prático de tudo isso é que, na grande maioria dos casos, as pessoas flagradas na posse de imagens ilícitas (de pornografia infantil) escaparam à condenação ou mesmo ao simples indiciamento. Na prática, impor aos órgãos da Promotoria o ônus de provar que a imagem de pornografia infantil apreendida com um réu não era de fato de uma criança real correspondeu a uma legalização da posse desse tipo de material.

            O que fizeram os legisladores norte-americanos diante desse quadro? Ficaram inertes? Não. Sem poder desatender a decisão da Suprema Corte e tendo que oferecer uma resposta legal apropriada ao problema da pedofilia na Internet, editaram uma nova lei. Para evitar essa grave ameaça ao poder de combate à pornografia infantil, uma nova ação legislativa foi tomada, através da edição do “PROTECT ACT(6), que criou uma sub-categoria estreitamente definida de imagens proibidas. A Lei emendou o Código dos EUA (7) para corrigir a definição de pornografia infantil (8), definindo a ilicitude “quando a descrição visual é uma imagem, imagem de computador ou gerada por computador que seja, ou que seja impossível de distinguir, de um menor engajado em conduta sexual explícita” (9) (grifo nosso). Além disso, passou a prever que a prova de não uso de crianças em material de pedofilia seria considerada uma affirmative defense, isto é, é ônus processual do réu ou incriminado (10). A lei, portanto, simplesmente transferiu o ônus da prova da (i)licitude da acusação para a defesa.      

            Essas questões de ordem técnico-jurídica são relevantes e certamente podem ser invocadas quando os nossos próprios projetos forem colocados à apreciação. A reprodução e envio por meio eletrônico de fotografias e imagens contendo cenas de sexo, explícito ou implícito, envolvendo crianças e adolescentes, é um problema de elevado interesse público e que o Estado brasileiro também tem o dever de proibir. Mas tipificar como pedofilia atividades que utilizam crianças em situações de sexo explícito não é tão simples. A experiência legislativa norte-americana pode ajudar nossos legisladores a evitar erros que os deles cometeram.

 

                                                                                                            Recife, 13.10.03.

 

Notas:

(1)      Dentre os projetos de lei que caracterizam criminalmente a pornografia infantil nas redes de comunicação de dados, podemos citar o PL 235/1999, de autoria do Dep. Dr. Hélio (PDT/TO); o PL 546/1999, de autoria do Dep. Paulo José Gouvêa (PST/RS); e o PL 631/1999, de autoria do Dep. Pedro Pedrossian (PFL-MT), todos eles apensos ao PL 4412/1998, de autoria do Dep. Luiz Carlos Hauly (PSDB/PR), que acrescenta artigos ao ECA, para dispor sobre crimes de abuso sexual contra crianças.  Ainda podem ser citados o PL 5750/2001, de autoria do Dep. Paulo Baltazar (PSB-RJ), o PL 6384/2002, de autoria da Dep. Laura Carneiro (RJ), o PL 6127/2002, de autoria da Dep. Nair Xavier Lobo (GO), e o PL 6984/2002, de autoria do Dep. Pedro Valadares (PSB/SE), todos esses apensados ao PL 5460/2001, de autoria do Senado Federal, que caracteriza como crime a produção fotográfica ou qualquer outro meio visual que utilize adolescente em cena de sexo explícito ou simulado.

(2)      O Dicionário Aurélio descreve pedofilia como a “parafilia representada por desejo forte e repetido de práticas sexuais e de fantasias sexuais com crianças pré-púberes; perversão sexual que visa a criança”.

(3)      O texto pode ser encontrado em: http://www.politechbot.com/docs/cppa.text.html

(4)      O texto dessa decisão (em formato pdf) pode ser encontrado em: http://www.supremecourtus.gov/opinions/01pdf/00-795.pdf

(5)      A Lei julgada inconstitucional definia como ilícito qualquer material que “aparente ser” de um menor envolvido em conduta sexual. A Suprema Corte entendeu que essa expressão era bastante larga, alcançando material também lícito – as fotografias que não fossem produzidas efetivamente utilizando crianças. Para os que desejam conhecer melhor os detalhes dessa decisão, sugerimos a leitura de outro artigo nosso, intitulado “A questão da pornografia infantil virtual – a Lei dos EUA que tentou combater sua difusão”, publicado no site do IBDI – Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática - www.ibdi.org.br

(6)      Nome abreviado do “Prosecutorial Remedies and Other Tools to End the Exploitation of Children Today Act of 2003”. O texto integral pode ser encontrado em: http://www.house.gov/judiciary/s151conf_002.pdf  

(7)      O subparágrafo B da Section 2256(8).

(8)      A Lei anterior (Child Pornography Prevention Act) julgada inconstitucional definia como ilícito qualquer material que “aparente ser” de um menor envolvido em conduta sexual. A Suprema Corte entendeu que essa expressão era bastante larga, alcançando material também lícito – as fotografias que não fossem produzidas efetivamente utilizando crianças. A nova lei, para ladear o empecilho criado por essa decisão, atribui o caráter de ilicitude apenas às fotos que “não possam ser distinguidas” (indistiguishable) daquelas em que se utilizem menores.  

(9)      No texto original em inglês: ‘‘such visual depiction is a digital image, computer image, or computer-generated image that is, or is indistinguishable from, that of a minor engaging in sexually explicit conduct”. A Lei define o que é “conduta sexual explícita” (sexually explicit conduct) em uma seção seguinte.

(10)  Essa alteração ocorreu na Section 2252A(c) of title 18, United States Code.

 

Disponível em: http://www.internetlegal.com.br/artigos/democrito10.zip

Acesso: 18/07/06