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O inc. I do art. 1.829 do CC: algumas interrogações
Maria Berenice Dias*
Depois
de pouco mais de dois anos de vigência do atual Código
Civil, apesar de todas as interrogações, dúvidas
e questionamentos que surgiram1 , parece que se vem
pacificando a interpretação em torno do seu mais
intrincado, pouco claro e infeliz dispositivo: o inc. I do art. 1.829
do CC. Afinal, o que quis dizer o legislador?
Recente
levantamento levado a efeito entre os doutrinadores de todo o País2
mostra que a maioria deles entende que o cônjuge sobrevivente
concorre com os herdeiros aos bens particulares do cônjuge
falecido3 . Alguns sustentam que o direito de concorrência
incide tanto sobre os bens particulares como sobre os bens comuns.4
Entre os partícipes deste rol, fico vencida, mas não
convencida. Sou a única que, teimosamente, continua
sustentando que, havendo bens particulares, o cônjuge
sobrevivente não tem direito sobre eles. O direito de
concorrência incide exclusivamente sobre os bens amealhados
durante o casamento.5
Claro que a posição
majoritária levou em conta a interpretação dos
mais renomados professores da Língua Portuguesa que se
debruçaram sobre o mal-elaborado texto e analisaram
minuciosamente os seus “salvo se”, “ou se”,
vírgulas e ponto-e-vírgulas. E, diante dos argumentos
de ordem semântica e sintática dos gramáticos, os
juristas não conseguiram chegar a outra interpretação
que não a literal. A doutrina, então, passou a afirmar
que, diante do texto da lei, não há outra saída.
Nenhuma crítica é tecida ao malfadado dispositivo.
Nenhuma voz se levanta para mostrar o caráter desarrazoado de
seu enunciado. Seguindo a orientação dos doutos, a
jurisprudência vem determinando a divisão dos bens
particulares entre herdeiros e cônjuges.6 Inclusive
quando já separado o casal há mais de um ano, foi
assegurado ao sobrevivente o direito de concorrer ao bem adquirido
pelo de cujus antes do casamento.7
Assim,
todos se curvaram ao que o legislador disse, ou ao que acharam que o
legislador quis dizer: legem habemus.
Diante do que
está posto na lei e do que vem sendo professado e ensinado,
confesso que não sei como os dedicados advogados, para
assegurar um teto à prole, vão continuar aconselhando
seus clientes a deixarem com quem vai ficar com a guarda dos filhos
(geralmente a mãe) o imóvel do casal, às vezes o
único bem amealhado durante a convivência. Às
vezes, inclusive, adquirido por herança. Porém, na
hipótese de vir a ex-mulher a casar e posteriormente a
falecer, parte do referido bem ficará, a título de
direito de concorrência, com o novo marido. Jamais voltará
aos filhos, nem quando da morte do viúvo sobrevivente. Tal bem
irá aos herdeiros dele. Assim, formar-se-á um
condomínio entre os filhos e o viúvo (e posteriormente
seus sucessores) sobre, por exemplo, o imóvel que pertenceu à
família do ex-marido. Se a solução parece ser
jurídica, é no mínimo inusitada!
Também
não sei qual será o conselho que dará o advogado
a alguém que tem filhos e patrimônio e resolve casar.
Quem não tiver o cuidado de procurar um profissional cauteloso
que elabore um intrincado pacto antenupcial e um minucioso testamento
certamente deixará os filhos em situação
bastante surpreendente. Com a morte do genitor, perderão uma
parte do patrimônio que ele havia amealhado mesmo antes do
casamento.
Em qualquer um desses singelos exemplos, por
demais freqüentes, não se pode deixar de reconhecer que a
solução preconizada pelo legislador, além de ser
contrária à vontade das partes, simplesmente gera
enriquecimento sem causa. Alguém vai ganhar bens sem que tenha
colaborado na sua formação e sem que tenha havido
manifestação de vontade nesse sentido, quer por meio de
pacto antenupcial, quer por testamento.
Não se pode
olvidar que dispõem os nubentes, antes do casamento, do
direito de estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver (CC,
art. 1.639). O silêncio é uma forma de manifestação
de vontade, pois revela que a opção é pelo
regime da comunhão parcial de bens (CC, art. 1.640). Este
regime, eleito pelo legislador para vigorar quando da omissão
dos noivos, é o mais ético, pois deixa a cada qual o
que é seu – adquirido por esforço individual, por
herança ou doação – e manda dividir o que
for amealhado em comum, partindo do pressuposto de que há
colaboração mútua na sua formação.
Tendo eles se quedado silentes, significa que desejam a
comunicação somente dos bens adquiridos durante o
casamento, ficando excluídos da comunhão os bens
particulares. Claro que essas previsões vigoram apenas quando
acaba o casamento: separação ou morte. Ou seja, antes
de casar, os noivos já estipulam como será a divisão
dos bens depois de findo o casamento. Ora, se a vontade foi
manifestada em um determinado sentido, de todo descabido que o
legislador, em sede de direito sucessório, de forma arbitrária
e desarrazoada e com afronta à vontade das partes, acabe por
gerar o enriquecimento sem causa, pois confere bens a quem não
contribuiu para sua aquisição.
Além de
tudo isso, cabe lembrar que a união estável, por força
de lei, se sujeita ao regime da comunhão parcial de bens (CC,
art. 1.725). No entanto, em sede de direito sucessório, o
regramento é diametralmente oposto e bem mais coerente do que
parece ter sido regulamentado para o casamento. Concorrendo o
companheiro sobrevivente com filhos do de cujus, sua participação
é sobre os bens adquiridos onerosamente na vigência da
união estável (CC, art. 1.790).
Esse tratamento
diferente a dois institutos que receberam da Constituição
Federal igual e especial proteção esbarra frontalmente
com o princípio da igualdade e só pode levar ao
reconhecimento da inconstitucionalidade da diferenciação.
Porém, a solução preconizada no
julgamento levado a efeito pela justiça paulista8
não pode prevalecer. Em face da existência de bens
particulares, sob a alegação de que não poderia
a companheira sobrevivente perceber mais direitos do que se casada
fosse com o de cujus, foi excluído o direito de
concorrência. Assim, para equiparar a limitação
imposta ao casamento, o Tribunal acabou afastando o direito de
concorrência expressamente assegurado à união
estável. Ora, de todo descabido fazer analogia para limitar
direitos. Quando verificada tal assimetria, para evitar afronta ao
princípio da igualdade deve-se estender o direito a quem não
foi contemplado, e não ceifá-lo de quem expressamente
foi lembrado pelo legislador.
Mas a inconstitucionalidade do
indigitado dispositivo não cessa ante esse tratamento
diferenciado. Excluir o direito de concorrência no regime da
separação obrigatória de bens e mantê-lo
no regime da separação convencional também não
tem justificativa. Igualmente afastá-lo em uma hipótese
no regime da comunhão parcial de bens – a depender da
existência ou não de bens particulares – sem fazer
qualquer referência ao regime da participação
final de aqüestos é tratamento díspar que não
resiste ao teste da constitucionalidade, pois são regimes que
não se diferenciam em seu resultado.
Portanto,
inconstitucionalidades não faltam a evidenciar a falta de
efetividade deste absurdo dispositivo legal. O fato é que
todos reconhecem que a interpretação que vem sendo dada
à lei tem sido fonte de enormes injustiças. E, quando
há afronta ao princípio da razoabilidade, não dá
para se conformar e somente suspirar à espera da reforma da
lei para, então, se começar a fazer justiça.
O
Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM,
atendendo ao seu papel institucional, já encaminhou projeto de
lei sugerindo a alteração do indigitado dispositivo
legal.9 Mas é de todos conhecida a extrema demora
do processo legislativo.
A postura passiva aguardando a
mudança da lei nunca foi a atitude de quem lida com o Direito.
Aliás, para cegamente aplicar a lei, bastaria colocar a toga
no computador! A responsabilidade pelo resultado ético da
atividade jurisdicional pertence aos operadores do Direito, que
jamais se submeteram a ser a boca da lei.
Exemplos existem e
são muitos:
- apesar da vedação legal, a
atribuição de efeito às uniões
extramatrimoniais pela jurisprudência é que levou a
Constituição Federal a inserir a união estável
como entidade familiar;
- ninguém duvida que a Súmula
37710 simplesmente alterou o regime da separação
obrigatória de bens (CC, art. 1.641);
- também
é criação pretoriana a atribuição
de efeitos jurídicos à separação de fato
em absoluta afronta ao que diz a lei que somente atribui o fim do
regime de bens à separação judicial (CC, arts.
1.575 e 1576);
- a consagração da filiação
socioafetiva e a adoção à brasileira ilustram
com perfeição a força criadora da justiça;
- a relativização da coisa julgada em sede de
investigação de paternidade é talvez a mais
recente amostra da supremacia da jurisprudência inclusive sobre
princípio de ordem constitucional.
Esses são
alguns exemplos que evidenciam a absoluta intolerância da
Justiça em conviver com situações que ensejam o
enriquecimento injustificado, ferem o senso de justiça ou
levam a resultado que infirme elementares princípios e afronte
a lógica do razoável.
É necessário
que os doutrinadores assumam a responsabilidade de mostrar o absurdo
do texto legal despertando a consciência da necessidade de se
interpretar a lei sob a ótica constitucional. A jurisprudência
só cumprirá sua finalidade interpretativa a partir do
trabalho dos juristas. Só assim haverá a possibilidade
da edição de súmula ditando a melhor leitura de
um texto legal. Aliás, esta é a função da
doutrina: alertar os operadores do Direito das conseqüências
que a singela aplicação de confuso texto legal pode
ensejar. De todo descabido cruzar os braços e aguardar a
alteração da lei.
Está na hora de a
Justiça cumprir sua missão e começar a fazer
justiça.
Esta é uma tarefa de todos nós!
Notas de rodapé convertidas
1. O vol. 29 da
Revista Brasileira de Direito de Família do IBDFAM é
todo dedicado ao tema (Porto Alegre: Síntese, abr./mai. 2005,
ano VII).
2. Trata-se de laborioso trabalho realizado por
Francisco José Cahali e atualizado por Christiano Cassetari e
assistentes da Prof. Giselda Hironaka publicado na Coletânea
Orientações Pioneiras – v. II – Família
e Sucessões no Código Civil de 2002, São Paulo:
RT.
3. Assim Christiano Cassettari, Eduardo de Oliveira
Leite, Flacio Tartuce, Giselda Hironaka, Gustavo René Nicolau,
Jorge Shiguemitsu Fujita, José Fernando Simão, Maria
Helena Marques Daneluzzi, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno,
Sebastião Amorin, Euclides da Cunha e Zeno Veloso. Francisco
José Cahali alerta que a norma contém defeito
intransponível ao trazer uma previsão inviável e
outra passível de dupla interpretação.
4.
Assim Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Inácio de Carvalho
Neto, Luiz Pauli Vieira de Carvalho, Maria Helena Diniz e Mario
Roberto Carvalho de Faria.
5. Esta posição
sustento em quatro artigos publicados no volume Conversando sobre
família, sucessões e o novo Código Civil (Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2004).
6. (TJRS – AI
70010889962 – 7ª C.Cív. – Rel. Desa. Maria
Berenice Dias – j. 1/6/2005).
7. (TJSP – AI
371.219.4/6-00 – 5ª C. D. Priv. – Rel. Des. Oldemar
Azevedo – j. 6/4/2005).
8. (TJSP – AI 336.392-4/8
– 9ª C. D. Priv. – Rel. Ruiter Oliva – j.
29/6/2004).
9. PROJETO DE LEI - Altera dispositivos do Código
Civil, dispondo sobre igualdade de direitos sucessórios entre
cônjuges e companheiros de união estável.
O
CONGRESSO NACIONAL decreta: Art. 1º Os arts. 544, 1.829, 1.830,
1.831, 1.832, 1.837, 1.838, 1.839, 1.845 e 2003 da Lei 10.406, de 10
de janeiro de 2002, passam a vigorar com a seguinte redação:
Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes
importa adiantamento do que lhes cabe por herança.
Art.
1.829. A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge
sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente; II – aos
ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente
ou com o companheiro sobrevivente; III – ao cônjuge
sobrevivente ou ao companheiro sobrevivente; IV – aos
colaterais. Parágrafo único. A concorrência
referida nos incisos I e II dar-se-á, exclusivamente, quanto
aos bens adquiridos onerosamente, durante a vigência do
casamento ou da união estável, e sobre os quais não
incida direito à meação, excluídos os
sub-rogados.
Art. 1.830. Somente é reconhecido direito
sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte
do outro, não estavam separados de fato.
Art. 1.831. Ao
cônjuge ou ao companheiro sobrevivente, qualquer que seja o
regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da
participação que lhe caiba na herança, o direito
real de habitação relativamente ao imóvel
destinado à residência da família, desde que seja
o único daquela natureza a inventariar.
Art. 1.832. Em
concorrência com os descendentes, caberá ao cônjuge
ou ao companheiro sobrevivente parte igual àquela que couber a
cada um dos herdeiros que sucederem por cabeça.
Art.
1.837. Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge
ou ao companheiro tocará um terço da herança;
caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente,
ou se maior for aquele grau.
Art. 1.838. Em falta de descendentes
e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao
cônjuge ou companheiro sobrevivente.
Art. 1.839. Se não
houver cônjuge ou companheiro sobrevivente, nas condições
estabelecidas no art. 1830, serão chamados a suceder os
colaterais até terceiro grau.
Art. 1.845. São
herdeiros necessários os descendentes e os ascendentes.
Art.
2003. A colação tem por fim igualar, na proporção
estabelecida neste Código, as legítimas dos
descendentes, obrigando também os donatários que, ao
tempo do falecimento do doador, já não possuíam
os bens doados. Parágrafo único. Se, computados os
valores das doações feitas em adiantamento de legítima,
não houver no acervo bens suficientes para igualar as
legítimas dos descendentes, os bens assim doados serão
conferidos em espécie, ou, quando deles já não
disponha o donatário, pelo seu valor ao tempo da liberalidade.
Art. 2º Revoga-se o art. 1.790 da Lei 10.406, de 10 de
janeiro de 2002.
10. Súmula 377: No regime da
separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na
constância do casamento.
*Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de
Direito de Família – IBDFAM. www.mariaberenice.com.br
DIAS, Maria Berenice. O inc. I do art. 1.829 do CC:
algumas interrogações. Jus Vigilantibus, Vitória,
19 out. 2005. Disponível em:
<http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/18057>. Acesso em: 4
jul. 2006.