Tese: Algumas considerações acerca do trabalho protegido à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Autor: Márcio Pires de Mesquita
O direito ao trabalho do adolescente, bem
como a sua contratação para o exercício de diversas
funções e sob as mais
variadas formas, vem alimentando acirradas
discussões, envolvendo questões éticas, políticas,
sociais e jurídicas, a
demandar uma criteriosa atuação
do Ministério Público, para a garantia de aplicação
dos direitos constitucionalmente
previstos à criança e ao adolescente,
bem como aqueles elencados na legislação infra-constitucional,
notadamente o
Estatuto da Criança e do Adolescente.
A proteção especial do trabalho
dos adolescentes vem disciplinada pelos artigos 7°, XXXIII e 227, §
3°, I, da Constituição
da República, que fixam em 14 anos a idade mínima para a
admissão ao mercado de trabalho, ressalvada a condição
de
aprendiz, proibindo, ainda, a realização
de trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos adolescentes entre 14 e
18 anos de
idade.
O legislador pátrio, mostrando-se
coerente com a postura de combate à exploração da
mão-de-obra infanto-juvenil,
preocupou-se sobremaneira com o direito
à profissionalização e à proteção
no trabalho, dedicando todo um capítulo do
Estatuto da Criança e do Adolescente
para a regulamentação das relações decorrentes
do exercício desse direito pelos
seus sujeitos naturais.
Dentre outros aspectos a serem observados
pelo aplicador da lei, destacou o legislador o respeito à condição
peculiar de
pessoa em desenvolvimento, bem como a capacitação
profissional adequada ao mercado de trabalho (art. 69, do ECA).
Um primeiro ponto a merecer reflexão
dentro do tema do trabalho protegido, diz respeito à correta caracterização
de
aprendizagem, entendida esta como a formação
técnico-profissional, ensejadora da contratação de
adolescentes para fins e
efeitos da legislação em vigor.
O artigo 60 do Estatuto da Criança e do Adolescente, repetindo o mandamento do artigo 7°, XXXIII, da Constituição Federal, proíbe qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz.
Segundo o artigo 62, do mesmo diploma legal,
considera-se aprendizagem a formação técnico-profissional,
ministrada
segundo as diretrizes e bases da legislação
de educação em vigor (grifos nossos).
Em 20 de dezembro de 1996 foi editada a Lei
n° 9.394, que estabeleceu as diretrizes e bases da educação,
disciplinando a
educação profissional e estabelecendo
que: "Art. 36 - O currículo do ensino médio observará
o disposto na Seção I deste
Capítulo e as seguintes diretrizes:
§ 2º - O ensino médio, atendida a formação
geral do educando, poderá prepará-lo para o
exercício de profissões técnicas.
Art. 39 - A educação profissional,
integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho,
à ciência e à tecnologia, conduz
ao permanente desenvolvimento de aptidões
para a vida produtiva.
Parágrafo Único - O aluno matriculado
ou egresso do ensino fundamental, médio e superior, bem como o trabalhador
em
geral, jovem ou adulto, contará com
a possibilidade de acesso à educação profissional.
Art. 40 - A educação profissional
será desenvolvida em articulação com o ensino regular
ou por diferentes estratégias de
educação continuada, em instituições
especializadas ou no ambiente de trabalho.
Art. 41 - O conhecimento adquirido na educação
profissional, inclusive no trabalho, poderá ser objeto de avaliação,
reconhecimento e certificação
para prosseguimento ou conclusão de estudos.
Parágrafo Único - Os diplomas
de cursos de educação profissional de nível médio,
quando registrados, terão validade
nacional.
Art. 42 - As escolas técnicas e profissionais,
além dos seus cursos regulares, oferecerão cursos especiais,
abertos à
comunidade, condicionada a matrícula
à capacidade de aproveitamento e não necessariamente ao nível
de escolaridade."
Por seu turno, a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação, foi regulamentada pelo Decreto n° 2.208,
de 17 de abril de 1997, o
qual veio a disciplinar especificamente
a educação profissional, estabelecendo que: "Art. 3°
- A educação profissional
compreende os seguintes níveis: I
- básico: destinado à qualificação, requalificação
e reprofissionalização de trabalhadores,
independente de escolaridade prévia;
II - técnico: destinado a proporcionar habilitação
profissional a alunos matriculados ou
egressos do ensino médio, devendo
ser ministrado na forma estabelecida por este Decreto; III - tecnológico:
correspondente
a cursos de nível superior na área
tecnológica, destinados a egressos do ensino médio e técnico.
Art. 4° A educação profissional
de nível básico é modalidade de educação
não-formal e duração variável, destinada a
proporcionar ao cidadão trabalhador
conhecimentos que lhe permitam reprofissionalizar-se, qualificar-se e atualizar-se
para o exercício de funções demandadas
pelo mundo do trabalho, compatíveis com a complexidade tecnológica
do trabalho, o seu grau de conhecimento técnico
e o nível de escolaridade do aluno, não estando sujeita à
regulamentação curricular.
§ 1° As instituições
federais e as instituições públicas e privadas sem
fins lucrativos, apoiadas financeiramente pelo Poder
Público, que ministram educação
profissional deverão, obrigatoriamente, oferecer cursos profissionais
de nível básico em
sua programação, abertos a
alunos das redes públicas e privadas de educação
básica, assim como a trabalhadores com
qualquer nível de escolaridade.
§ 2° Aos que concluírem os
cursos de educação profissional de nível básico
será conferido certificado de qualificação
profissional.
Consoante salientado anteriormente, pela
sistemática adotada no Estatuto da Criança e do Adolescente,
a aprendizagem,
como formação técnico-profissional,
depende de prévia regulamentação pela legislação
de diretrizes e bases da educação,
para o fim de possibilitar a contratação
de adolescentes na condição de aprendizes.
A regulamentação reclamada
pelo artigo 62 do ECA foi levada a efeito com a edição da
Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (Lei 9394/96), bem
como pelo Decreto n° 2.208, de 17 de abril de 1997, com o estabelecimento
de três níveis
distintos de educação profissional,
a saber: nível básico - destinado à qualificação,
requalificação e reprofissionalização de
trabalhadores; nível técnico
- destinado a alunos matriculados e egressos no ensino médio; e
nível tecnológico -
correspondente a curso de nível superior
na área tecnológica, destinados a egressos do ensino médio
e técnico.
Por outro lado, a própria lei de diretrizes
e bases da educação estabelece o interregno de oito anos
para a conclusão do
ensino fundamental, com início aos
sete anos de idade e término aos quatorze anos de idade.
Ora, pela sistemática adotada pelo
legislador, a formação técnico-profissional ficou
restrita à alunos egressos ou
matriculados nos níveis médio
e superior de ensino, ou seja, somente foi regulamentada a formação
técnico-profissional de
adolescentes à partir de 14 anos
de idade.
Com efeito, a ausência de regulamentação
da aprendizagem, como formação técnico-profissional,
para adolescentes entre
12 e 14 anos de idade, inviabiliza a contratação
de menores nessa faixa etária, nos expressos termos do artigo 62,
do
Estatuto da Criança e do Adolescente,
ficando a possibilidade de contratação como aprendiz condicionada
a uma nova
regulamentação da lei de diretrizes
e bases da educação.
Por outro lado, no que respeita à
contratação de adolescentes maiores de 14 anos, seja na condição
de aprendiz ou
mesmo trabalhador adolescente, algumas questões
se colocam, com vistas à propiciar uma melhor atuação
do Ministério
Público na defesa dos interesses
individuais, difusos e coletivos da Infância e da Juventude nesta
área específica de
atuação.
Num primeiro plano cumpre abordarmos a questão
da possibilidade de autorização judicial para a contratação
de
adolescentes, à luz das disposições
contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em que pesem algumas posições
em sentido contrário, temos para nós que qualquer pedido
de autorização judicial para
contratação de adolescentes
se reveste do manto da impossibilidade jurídica do pedido.
Com efeito, as hipóteses permitidas
para a contratação de adolescentes, nos termos do artigo
67 do Estatuto da Criança e
do Adolescente, são taxativas e cristalinas
e prescindem de autorização judicial para sua concretização.
Assim, toda a contratação de
adolescente, seja ele empregado, aprendiz, em regime familiar de trabalho,
aluno de escola
técnica ou assistido em entidade
governamental ou não-governamental, desde que respeitadas as vedações
impostas pela
legislação em vigor, pode
e deve ser realizada administrativamente, desnecessário o crivo
judicial.
Qualquer outra hipótese de contratação
que não se enquadre às determinações legais,
tais como o pedido de autorização
para a contratação de adolescente
para trabalho penoso, noturno, etc., por óbvio, deve ser refutada
de plano, porquanto tais vedações estão expressas
na própria Constituição Federal (art. 7°, XXXIII),
cabendo-nos, nos termos do artigo 129, da Carta Magna, zelar pelo efetivo
respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância
pública aos direitos assegurados na Constituição,
promovendo as medidas necessárias para a sua garantia.
Outro aspecto que vem gerando polêmica
dentro do tema do trabalho protegido do adolescente, diz respeito as atividades
desenvolvidas pelas guardas-mirim, círculo
de amigos do menor patrulheiro e outras entidades similares, as quais,
à guisa
de exercerem atividades filantrópicas
ou sociais, acabam por se caracterizar, na maioria dos casos, como intermediadoras
de mão-de-obra de adolescentes, sem
a contrapartida do respeito aos direitos trabalhistas a que estes fazem
jus.
Com efeito, referidas entidades oferecem
aos adolescentes, por ela denominados menores aprendizes, um programa de
atendimento que desdobra-se em duas fases
distintas, sendo a primeira voltada ao desenvolvimento teórico dos
adolescentes, mediante o ministério
de aulas, programações recreativas, teatralização
de situações reais, além de serviços
diversos de cunho psico-pedagógico
ou acompanhamento social.
Numa segunda fase do atendimento realiza-se
o "estágio educativo", no qual os adolescentes são encaminhados
a locais
previamente escolhidos, a fim de enfrentarem
situações reais de trabalho, em horário compatível
com a escola e sob a
supervisão e responsabilidade das
instituições e a orientação dos colaboradores,
cuja prioridade é o acompanhamento da
adaptação do jovem ao novo
meio.
É de ser salientado que o "estágio
educativo" descreve-se pela efetiva prestação de serviços
de natureza não eventual, sob
a dependência ou subordinação
do tomador da mão de obra e mediante o pagamento de salário,
caracterizando como
relação de trabalho.
Todavia, acobertados pela condição
de "colaboradores", os tomadores da mão de obra recebem os adolescentes
"aprendizes" para a realização
do "estágio educativo", sem respeitar-lhes os direitos trabalhistas
inerentes à relação
empregatícia, direitos esses, aliás,
garantidos pelo artigo 7°, da Constituição Federal, artigo
65, do Estatuto da Criança e do
Adolescente e artigos 402 e seguintes da
C.L.T.
Ora, não se pode admitir que, à
guisa de amenizar ou colaborar com a solução de problemas
sociais, sejam admitidos
adolescentes no mercado de trabalho, sob
o manto de um falso aprendizado, sem a contrapartida das garantias
trabalhistas que lhes são devidas.
Não pode o Ministério Público
compactuar com o desrespeito aos direitos dos adolescentes, cuja mão
de obra é
aproveitada por empresários, profissionais
liberais, Poderes Públicos e outros "colaboradores", os quais, ao
ofertarem vagas
aos adolescentes, à título
de caridade ou filantropia, subtraem-se do cumprimento das obrigações
e encargos trabalhistas.
O festejado mestre Oris de Oliveira, em comentário
ao artigo 65, do Estatuto da Criança e do Adolescente, entende que:
"O
adolescente com idade compreendida entre
os 14 e os 18 anos que preste serviços a terceiros, de modo não
eventual e
sob subordinação, poderá
ter ou não a condição de aprendiz. Nos dois casos
incidirão sobre a relação de emprego as
normas da legislação trabalhista
e previdenciária.
( . . . ) A caracterização
do adolescente que esteja na faixa etária dos 14 aos 18 anos como
aprendiz é, pois, essencial
para a determinação do salário
a que faz jus.
A definição de aprendizagem
formulada no Estatuto da Criança e do Adolescente está no
seu art. 62, enfatizando-a como
formação técnico-profissional
vinculada às diretrizes e bases da legislação da educação.
Não está excluída, portanto, a
possibilidade de regulamentação
específica, desde que respeitados os princípios da aludida
legislação." Mais adiante,
tecendo considerações acerca
do artigo 68 do mesmo diploma legal, o eminente jurista assevera que: Vê-se
claramente
que este art. 68 não regula o trabalho
que o adolescente executa na empresa como empregado comum ou como
empregado-aprendiz.
Os processos produtivos de uma empresa e
de uma escola-produção são radicalmente diferentes,
porque na empresa
visa-se aos lucros em condições
de concorrência, ao passo que na escola-produção a
preocupação fundamental é a
transmissão de uma qualificação
profissional.
Há de se ressaltar, também,
que a remuneração na empresa é uma contraprestação
obrigatória pelo serviço prestado e não
pode ter caráter aleatório.
A remuneração nas escolas-produção pode não
acontecer, embora sua inexistência enfraqueça a
possibilidade de adolescentes nela permanecerem
sem geração de renda.
É preciso ficar bem claro, todavia,
que os melhores programas sociais que encaminham corretamente os adolescentes
para
o mercado de trabalho sem sacrificar-lhes
os direitos trabalhistas e previdenciários, sem aviltamento do preço
da
mão-de-obra infanto-juvenil, preocupam-se,
também, com uma educação para o trabalho e pelo trabalho."
Para arrematar a questão, o mesmo
doutrinador assevera que: "A Portaria n° 127, de 1956, do Ministério
do Trabalho, dá
uma correta definição de aprendizagem
empresária, ou seja daquela a que o adolescente empregado se submete:
A
formação profissional metódica
de ofício (...) será como tal considerada se corresponder
a um processo educacional, com
desdobramento do ofício ou da ocupação,
em operações ordenadas de conformidade com um programa, cuja
execução se
faça sob direção de
um responsável, em ambiente adequado à aprendizagem.
Somente os ofícios passíveis
de se submeterem a uma formação metódica mais prolongada
podem ser objeto de um
contrato de aprendizagem e suas especificações
não ficam a critério subjetivo de empregador ou de empregado.
Essa é a
razão porque, no direito brasileiro
como no direito de outros países, as normas regulamentares não
só enumeram os ofícios
passíveis e não passíveis
de aprendizagem como, também, seu tempo máximo de duração,
evitando-se, assim, abusos que
se possam cometer.
O abuso mais comum consiste em rubricar como
aprendizagem o exercício de ofícios que dela não são
passíveis (estafeta,
office boy, empacotador, etc.) ou de ofícios
dela passíveis sem haver ensinamento metódico, sem que alguém,
de fato,
exerça a função de
mestre. Trata-se de um expediente para obter mão-de-obra mais barata,
como bem o assinala Jacques
Monat: O sistema "dual" de aprendizagem,
tão difundido na Alemanha, traduz-se em um índice de desemprego
juvenil
menor que em outros países. Na quase
totalidade dos países em desenvolvimento, a aprendizagem é
praticamente
assegurada no setor informal, em que é
comum que muitos aprendizes sejam contratados por temporadas longas sobretudo
para se obter mão de obra barata
(Flexibilidade na Formação, Trabajo, Revista da OIT n°
3, abril 1993, p.22). À evidência,
como salientado anteriormente, não
há como emprestar-se a rubrica de aprendizagem ao exercício
de ofícios (estafeta,
office boy, empacotador, etc.) que não
são passíveis de formação técnico-profissional,
nos exatos termos do artigo 62, do
Estatuto e do Adolescente, ou mesmo de ofícios
dela passíveis, sem o respeito aos ditames da Lei de diretrizes
e bases da
educação, regulamentada pelo
Decreto n° 2208/97.
De todo modo, seja qual for a forma de contratação
de adolescentes, mister se faz a verificação da observância
dos direitos
trabalhistas, nos termos do artigo 7°,
da Constituição Federal, artigo 65 do Estatuto da Criança
e do Adolescente e demais
artigos insertos na Consolidação
das Leis do Trabalho.
Conclusões De tudo o quanto foi exposto,
extraem-se algumas conclusões acerca da atuação do
Promotor de Justiça em
defesa do trabalho protegido do adolescente,
à luz do estatuto da criança e do adolescente:
1) Até ser editada nova regulamentação
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, contemplando a
possibilidade de
formação técnico-profissional
à adolescentes entre 12 e 14 anos de idade, fica vedada a contratação
de menores nesta faixa
etária, não obstante o permissivo
constitucional, eis que este depende de regulamentação expressa,
nos termos do artigo
62 do Estatuto da Criança e do Adolescente,
cabendo ao Ministério Público zelar para que sejam respeitados
os direitos de
menores nesta faixa etária;
2) Todo e qualquer pedido de autorização
judicial para contratação de adolescentes se reveste do manto
da impossibilidade
jurídica do pedido, nos termos do
artigo 67 do Estatuto da Criança e do Adolescente, eis que as hipóteses
legais de
contratação prescindem de
autorização judicial para sua concretização
e qualquer forma de trabalho que não se submeta
aos ditames da legislação
em vigor fere frontalmente o disposto no artigo 7°, XXXIII, da Constituição
Federal, incabível, pois, manifestação
ou suprimento jurisdicional à respeito da vontade do legislador
constituinte.
3) As atividades desenvolvidas pelas
guardas-mirim e entidades assemelhadas devem ser fiscalizadas pelo Promotor
de
Justiça, com vistas à coibir
eventuais ameaças aos direitos trabalhistas dos adolescentes atendidos,
seja por meio de
remoção de irregularidades
com adequação dos estatutos sociais e programas de atendimento
de referidas entidades, seja
através do acionamento dos órgãos
de fiscalização do trabalho para a imposição
de multas ou mesmo mediante a
instauração de procedimentos
jurisdicionais nos termos do artigo 191, do Estatuto da Criança
e do Adolescente.
4) Qualquer trabalho a ser desenvolvido por
adolescentes deve, obrigatóriamente, observar os ditames do artigo
69, do
Estatuto da Criança e do Adolescente,
notadamente quanto à capacitação profissional adequada
ao mercado de trabalho.
Márcio Pires de Mesquita Promotor
de Justiça
Infração Administrativa - ECA - Conselho Tutelar - Irregularidade
de Representação
Divino Marcos de Melo Amorim - e-mail: dmma@zaz.com.br
I - Introdução:
O legislador menorista, na elaboração
do Estatuto da Criança e do Adolescente, erigiu à condição
de infrações
administrativas as condutas descritas nos
artigos 245 a 258, do referido diploma legal especial, cominando, relativamente
à
sua infringência, multa administrativa,
diferenciada da multa fiscal e da multa criminal. Tem-se, pois, que o agente
uma vez
incorrendo na prática de conduta
considerada infração administrativa, ficará sujeito
à condenação ao pagamento de uma
multa na modalidade de pena pecuniária.
A doutrina leciona que tal multa, por advir do Direito Administrativo,
é de cunho
objetivo, independendo de dolo ou culpa
do agente.
II - Do Procedimento legal:
O diploma menorista contemplou o procedimento
para apuração das infrações administrativas
nos artigos 194 a 197, da Lei
n° 8.069/90. Legitimados foram,
ad causam, o Ministério Público, o Conselho Tutelar ou qualquer
serventuário efetivo ou
voluntário credenciado pelo respectivo
Juízo da Infância e Juventude, ex vi do art. 194, caput, do
ECA. Para a movimentação do Poder Judiciário,
in casu, os legitimados deverão interpor a denominada representação,
ou instá-lo via do auto de infração lavrado por quem
de Direito (art. 194, §§1° e 2°, ECA).
III - Irregularidade de
Representação - Inadmissibilidade:
A discussão a que se propõe
este singelo artigo é acerca da representação por
advogado do Conselho Tutelar ou de
serventuário efetivo ou do voluntário
credenciado para formular, em Juízo, a representação
e atuar, no feito, na qualidade de
parte. Superficialmente, poder-se-ia vislumbrar
que o legislador teria erigido o procedimento para imposição
de multa
administrativa, pela prática de infração
administrativa, quando iniciado por auto de infração, em
verdadeiro contencioso
administrativo, pelo fato de ter admitido
que o autuado fosse intimado pelo Conselheiro ou outro serventuário
para em dez
dias efetuar sua defesa (art. 195, I, ECA).
A permissão dada ao Conselheiro ou congênere dá a impressão
de que o autuado poderia fazer sua defesa perante o próprio Conselho
Tutelar, o que é uma falácia, pois àquele Órgão
não compete analisar tais defesas, não estando, entre suas
atribuições, conhecer e julgar peça defensiva. Por
outro turno, tem-se que, afastada a hipótese do contencioso administrativo,
a leitura da legislação indica que o legitimado - Conselho
Tutelar/serventuário - poderia representar perante a autoridade
judiciária para a instauração do procedimento contra
o autuado, contando-se o prazo de defesa do mesmo da data de intimação
constante do auto de infração, caso tenha havido tal intimação.
Entretanto, indagar-se-á se o Conselho Tutelar, mesmo via de seu
Presidente, poderia representar, em Juízo, sem advogado habilitado
e, posteriormente, na qualidade de autor, manifestar-se nos autos, na conformidade
da legislação processual civil aplicada à espécie
por determinação do art. 152, do ECA. Analisando-se os princípios
norteadores do estatuto menorista, tendo-se em vista a busca incessante
de fórmulas descomplicadas para o resguardo dos interesses e direitos
das crianças e adolescentes, tem-se que o legislador, ao que tudo
indica, preferiu optar pela possibilidade do Conselho Tutelar atuar, perante
a autoridade judiciária, de forma direta, podendo representar no
caso em comento, para que o fato,
administrativamente ilícito, fosse
logo apurado e, comprovadas as responsabilidades, os culpados sofressem
as sanções da lei. Evitar-se-ia, com tal possibilidade, o
descrédito do Judiciário e do próprio Conselho Tutelar,
bem como o crescimento da impunidade tão odiosa em nossa sociedade.
Desse modo, permitiu-se ao Conselho Tutelar, bem como ao serventuário
efetivo ou voluntários credenciados, pelo Juízo da I.J.,
que representassem perante o Juízo competente para o fim colimado
em lei, não fazendo, a legislação, menção
à obrigatoriedade de tal representação ser firmada
por advogado habilitado. Tal questão, em nossas lides forenses,
é relevante, tendo em vista que a maior parte dos Conselhos Tutelares
não têm plenas condições de funcionamento, quanto
mais contar com profissional habilitado para tal mister. O próprio
legislador, no que se refere ao agente da infração administrativa,
exige que qualquer pessoa que tenha interesse na solução
da lide relacionada com questão afeta à criança e
adolescente, poderá intervir no procedimento, através de
advogado, ex vi do art. 206, do ECA. A própria doutrina, ao analisar
a defesa do agente da infração, no procedimento em comento,
afirma que sobre a "...formalização da peça de defesa,
é importante deixar assentado que a mesma deverá ser necessariamente
subscrita por advogado, como determinado pelo art. 206 da Lei 8.069/90..."(1).
De qualquer sorte, tal questão parece ser esclarecida, com cristalina
face, pela imposição
constitucional presente no art. 133, da
Carta Magna pátria e na legislação pertinente infra-constitucional.
Tem-se, então, que
o próprio legislador menorista, talvez
atento para a impossibilidade da manifestação daqueles legitimados,
sem assistência de advogado, os excluiu de manifestação,
na qualidade de parte, na audiência de instrução e
julgamento respectiva. A legislação prevê que, uma
vez colhida a prova oral, manifestar-se-ão, sucessivamente, o Parquet
e o procurador do Requerido (art. 197, parágrafo único, Lei
8.069/90), não se fazendo menção aos demais legitimados,
caso fossem os autores da representação prefalada. O próprio
Estatuto menorista determina a aplicação aos procedimentos
regulados pelo
mesmo, subsidiariamente, das normas gerais
previstas na legislação processual pertinente. A falta de
representação, através de advogado habilitado, constitui-se
em ausência de um pressuposto processual fatal, o da representação
da parte,
impossibilitando que o legitimado resida
em Juízo, acarretando, inclusive, a extinção do feito,
sem julgamento do mérito, ex
vi do art. 269, inciso IV, do diploma processual
civil.
IV - Representação na
modalidade de comunicação às autoridades competentes
- Atenuação do
formalismo legal:
Parece-nos, contudo, que uma vez que o Conselho
Tutelar ou o serventuário ou voluntário [p.ex. comissário
de menores],
represente à autoridade judiciária
competente, sem estar representado por advogado habilitado, o Juiz deverá
receber tal
peça como comunicação
do fato infracional e, ex officio, determinar a instauração
do procedimento, o qual será regulado
pelo rito preconizado no estatuto menorista,
não sendo possível àqueles legitimados se manifestarem
nos autos, a não ser
na condição de informantes
do Juízo, na colheita de prova, sob pena de nulidade dos atos praticados.
A presente assertiva,
alvo certamente de inúmeras críticas,
poderá levar, numa análise superficial, à indagação
de que se aqueles legitimados,
não podem atuar diretamente no feito
como parte, (Continuação - Texto - f. 03)
também não poderiam, inclusive,
ofertar a representação em comento, por falta de representação.
Concessa maxima venia,
dos discordantes, vislumbra-se que tal
raciocínio, à luz da legislação processual
civil, estaria completamente acertado.
Ocorre, como dito linhas antes, o legislador
menorista, tendo em vista a relevância dos interesses e direitos
tutelados,
optou por uma atenuação do
formalismo processual, inclusive permitindo ao Juiz (art. 153, ECA), não
havendo procedimento previsto no ECA correspondente à medida judicial
a ser adotada, o poder de investigar os fatos e tomar as providências
necessárias, ex officio, pelo que os doutos ensinam que isto "...bem
revela que o Estatuto perfilhou a tendência doutrinária que
procura conferir ao juiz, cada vez mais, um papel mais ativo no processo..."(2).
Tal questão, contudo, é de alta
indagação e, certamente, merecedora
de profundas análises, sendo que o presente artigo não tem
pretensão de esgotá-la.
V - Conclusão:
Consoante análise prática do
dia-a-dia forense, estando o membro do Ministério Público,
na maior parte das vezes,
envolvido com Conselhos Tutelares - isto
nas Comarcas que realmente existem tais órgãos em funcionamento
- sem
nenhuma estrutura e, muito menos, com assistência
de advogado habilitado, o bom senso indica que deve haver orientação
aos membros daquele e, inclusive para Comissários
da Infância e Juventude, no sentido de que procedam as autuações
na
forma da lei, reformulando-se os autos de
infração, com fórmulas já expressas, retirando
destes a certidão de intimação do
infrator para que, em dez dias, apresente
ou não sua defesa. Retira-se, tal certidão, a fim de que
não haja necessidade
plena do Conselho fazer a respectiva representação
perante a autoridade judiciária e, também, para que não
haja confusão
quanto ao prazo de defesa e, em Juízo,
sejam apresentadas eventuais alegações de nulidade de tal
intimação. Uma vez
feita a autuação, por quem
de direito, sem haver a intimação prefalada, o Conselheiro
ou servidor/voluntário deve,
imediatamente, remeter a primeira via do
mesmo, com relato resumido, via ofício, à respectiva Promotoria
de Justiça (art.
136, IV, ECA) para que o Promotor de Justiça
proceda na forma dos arts. 194 e ss., do ECA., evitando-se toda a discussão
sobre a representação daquele legitimado, buscando-se, pois,
a apuração cabal dos fatos e, uma vez comprovados,
obtendo-se a punição exemplar
dos infratores, tudo para o resguardo dos interesses e direitos das crianças
e dos
adolescentes de nossa nação!
VI - Bibliografia:
1) Munir Cury e outros, in Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Malheiros Editores, 1992, p. 566;
2)Munir Cury e outros, in ob. cit.,
p. 455.
DIVINO MARCOS DE MELO AMORIM é Promotor
de Justiça da Comarca de segunda entrância de Silvânia
- Estado de Goiás - e-mail: dmma@zaz.com.br
Ação Sócio-Educativa
- Representação - Recebimento - Rejeição ou
Indeferimento da Peça
Vestibular.
I - Introdução:
O legislador infra-constitucional pátrio,
ao editar a Lei n° 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente),
erigiu a condição de ação pública à
denominada ação de representação para apuração
da prática de ato infracional, ex vi do art. 180, III combinado
com os arts. 182 e seguintes, do diploma legal especial ora mencionado.
Tal ação, de cunho nitidamente
público, foi estabelecida com o escopo
precípuo do Estado tutelar e fazer observar as regras específicas
no próprio estatuto
prefalado. A ação, ora narrada,
vem fazer face à prática de ato infracional praticado por
adolescente, ato este descrito no art. 103, do ECA, como a conduta capitulada
como crime ou contravenção penal.
II - Aplicação
Subsidiária da legislação processual pertinente:
O próprio diploma legal especial,
em comento, dita que aplicar-se-ão, subsidiariamente, aos procedimentos
estabelecidos
pelo ECA, as regras ditadas pela legislação
processual pertinente(art. 152, ECA). Entretanto, a questão que
se lança à
discussão neste humilde arrazoado,
é a possibilidade ou não do magistrado, condutor do feito,
ao ser ajuizada ação de
representação, denominada
pelos doutos como "...ação sócio-educativa pública..."
(Munir Cury e outros, in Estatuto da
Criança e do Adolescente Comentado,
Malheiros, p. 508), de receber ou não, a representação,
nos moldes da análise
pré-admissional realizada nas peças
de denúncias criminais.
III - Inexigibilidade legal de 'recebimento' da peça de Representação:
Ao nosso limitado sentir, vislumbra-se que não
existe no diploma legal especial prefalado, a figura do recebimento ou
do não
recebimento/rejeição da peça
de representação erigida à condição
de ação pelo estatuto da Criança e do Adolescente.
Aplicamos, em primeira análise, a
análise gramatical do artigo 184, caput, da Lei n° 8.069/90
(ECA), o qual reza, in verbis,
que oferecida a representação,
a autoridade judiciária designará audiência de apresentação....
Tendo em vista que é
princípio basilar da análise
jurídica do texto legal, de que não devem existir palavras
inúteis na própria lei, verifica-se que o
legislador nada asseverou sobre análise
pré-admissional da representação, determinando, de
forma cogente, que a
autoridade judiciária designe audiência
de apresentação do adolescente.
IV - Ação de Representação
- Pedido de cunho não penal - Autonomia legal:
Respeitadas as opiniões em contrário,
brilhantes diga-se de passagem, tem-se que o fundamento maior destes
entendimentos se vincula ao art. 152, supra
descrito, o qual determina a aplicação aos procedimentos
do ECA, das regras
estampadas na legislação processual
pertinente. Desta feita, utiliza-se, neste raciocínio, que a autoridade
judiciária, assim
como é feito na análise da
peça de denúncia criminal, poderia receber ou não
tal pedido, consoante a terminologia aplicada
aos procedimentos criminais. Entretanto,
concessa venia, vislumbra-se que o legislador processual penal estabeleceu
os
requisitos da denúncia ou queixa
no art. 41,do CPP., determinando, de forma cogente que tais peças
caso ocorresse um
dos fatos elencados no art. 43 e incisos
I a III, do diploma processual penal. No que se refere à ação
de representação, relembrando-se tratar de ação
nova instituída pelo ECA., nota-se que o legislador não trouxe
neste diploma legal especial norma reguladora de pré-admissão
da peça vestibular da mesma. Tanto é certo que no art. 182,
§§1° e 2°, do ECA, o legislador menorista trouxe elencados
os requisitos mínimos da representação e, de maneira
clara, ditou que esta peça independe de prova pré-constituída
da autoria e da materialidade.
Afastado restou, neste raciocínio,
o rigor formalista do processo penal, denotando que, havendo os requisitos
mínimos, a
representação ofertada deve
dar vazão à instauração da ação
pertinente, iniciando-se com a designação de audiência
de
apresentação e eventual análise
sobre internação provisória ou sua manutenção
(art. 184, caput, ECA).
V - Requisitos legais -
Peça Vestibular - Ação de Representação:
É óbvio que a peça de
representação deve conter, em seu bojo, os requisitos formais
mínimos (art. 182, §1°, ECA), bem
como estarem presentes as condições
da ação(possibilidade jurídica do pedido, legitimidade
ad causam e interesse de
agir). Entretanto, analisando-se as denominadas
condições da ação, à luz do estatuto
da Criança e do Adolescente, tem-se
que à autoridade judiciária
restou limitada, ao extremo, o campo da chamada análise pré-admissional
da representação. A
autoridade judiciária somente poderia
indeferir a peça exordial, e não rejeitar ou não recebê-la,
quando não for o pedido,
juridicamente possível, (p.ex., representação
contra ato praticado por pessoa maior de dezoito anos), ou quando não
ter, o
representante, legitimidade ad causam (representação
firmada por advogado habilitado). No que se refere ao interesse de
agir, nota-se que o legislador menorista
impediu tal análise prévia à autoridade judiciária,
pois levou tal análise, a nível de
concessão de remissão judicial,
para a audiência de apresentação do adolescente representado,
ex vi do art. 186, §1°, do
ECA.
VI - Conclusão:
Assim sendo, à autoridade judiciária
não caberia, a princípio, receber ou rejeitar/não
receber a peça de representação e sim,
regra geral, designar audiência de
apresentação e se pronunciar sobre internação
provisória e, somente em casos
excepcionalíssimos, indeferir a peça
vestibular, quando for o caso. Para acobertar tal raciocínio, relembra-se
que o legislador
menorista adotou o sistema recursal processual
civil (art. 198, ECA), sendo que, em caso de indeferimento da peça
de
representação, o recurso cabível
seria o da Apelação, o qual é o remédio idôneo
para atacar o ato de indeferimento de
petição inicial (art. 296,
CPC). Por estas maltraçadas linhas é que ouso levantar tal
questão, indicando que a atitude
indicada pela legislação menorista
vigente, à autoridade judiciária, seria, em casos excepcionais,
o indeferimento da peça
de representação e não
o seu recebimento ou não recebimento/rejeição, como
é observado nas lides forenses de nosso
Estado.
DIVINO MARCOS DE MELO AMORIM é Promotor
de Justiça da Comarca de segunda entrância de Silvânia
- Estado de Goiás - e-mail: dmma@zaz.com.br
Ação
de Representação - Cumulação de Ações
em Andamento - Conexão / Continência -
Inviabilidade - Execução de Medidas Sócio-Educativas
Diversas.
I - INTRODUÇÃO:
Praticado um ato infracional por um adolescente,
não sendo caso de remissão ministerial preconizada no Estatuto
Menorista, o Parquet oferecerá Representação
à autoridade judiciária para a apuração do
ato precitado, tudo com o escopo
de aplicar-se posteriormente a medida sócio-educativa
que demonstrar ser mais conveniente ao caso concreto (artigo 182,
caput, ECA). A ação, ora narrada,
vem fazer face à prática de ato infracional praticado por
adolescente, ato este descrito no art. 103, do ECA, como a conduta capitulada
como crime ou contravenção penal.
II - AÇÃO DE REPRESENTAÇÃO
- APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DA LEGISLAÇÃO
PROCESSUAL PERTINENTE:
A ação de Representação
de cunho eminentemente público foi criada pelo legislador para a
efetiva tutela estatal da
observâncias das regras específicas
do próprio Estatuto Menorista no que se refere à prática
de ato infracional. O próprio
diploma legal especial, em comento, dita
que aplicar-se-ão, subsidiariamente, aos procedimentos estabelecidos
pelo ECA,
as regras ditadas pela legislação
processual pertinente(art. 152, ECA). A prefalada ação foi
instituída pelo Estatuto
Menorista sem o formalismo processual penal
exacerbado pelo que em nosso humilde entender a aplicação
subsidiária
daquele modelo processualista não
deve ser adotada para o rito processual da referida ação,
utilizando-se em consequência
as regras preconizadas no diploma processual
civil. Permite-se, com tal aplicação subsidiária,
que haja um ordenamento
legal a ser aplicado nas lacunas existentes
na Lei nº 8.069/90, sendo possível analisar-se com mais profundidade
as
questões pertinentes ao ato infracional
- conduta do adolescente / ato praticado / conduta pretérita / consequências
- tudo
para que, ao final, seja aplicada medida
sócio-educativa eficaz para a recuperação daquele
ser em desenvolvimento. Ocorre
que tal entendimento não descarta
a utilização de preceitos do ordenamento processual penal
e congênere, o que
efetivamente ocorre em alguns casos e principalmente
quando tais preceitos não podem ser encontrados ou adotados via
do
diploma processual civil. A doutrina dita
que aos "...procedimentos regulados pelo Estatuto aplicam-se subsidiariamente
as
normas gerais previstas na legislação
processual civil ou penal que forem pertinentes. O Estatuto se refere em
diversas
disposições não só
à legislação processual civil e penal, como também
à legislação ordinária..."(1).
III - CUMULAÇÃO
DE AÇÕES DE REPRESENTAÇÃO EM ANDAMENTO:
A questão crucial a que se propõe
o presente artigo é o da possibilidade jurídica e conveniência
de eventual cumulação de
ações de representação
em andamento na forma da legislação vigente. A regra de competência
advém de regras judiciárias
pertinentes para a aplicação
da lei pelo Estado, visto que a composição da lide é
função pública privativa, executada via do
atributo soberano da Jurisdição.
No caso da prática de ato infracional, o legislador menorista previu
que será competente a
autoridade do local da ação
ou omissão, observadas as regras de conexão, continência
e prevenção ex vi do artigo 147, §1º, do ECA. Entretanto,
a aplicação das regras de conexão e continência
em ações de representação em andamento não
tem aplicação segundo o espírito do Estatuto da Criança
e do Adolescente. A aplicação, vislumbrada nas lides forenses,
é somente cabível na formulação de representação
pela prática de ato(s) infracional(is) praticados pelo mesmo adolescente
ou por adolescentes diversos em co-autoria ou participação.
Verifica-se, pois, que existindo mais de uma ação de representação
em andamento contra o mesmo adolescente, por atos infracionais diversos,
não se aplica a reunião de tais processos para julgamento
final unificado de tais ações ou omissões infracionais.
É da legislação processual civil que reputam-se conexas
duas ações quando lhes for comum o objeto ou a causa de pedir
ex vi do artigo 103, do Diploma Processual Civil. A doutrina leciona que
duas são as modalidades de conexão: pelo objeto comum e pela
mesma causa de pedir, sendo que "...a primeira forma de conexão,
se dá quando nas diversas lides se disputa o mesmo objeto... omissis
...A segunda forma de conexão é a que se baseia na identidade
de causa petendi que ocorre quando as várias ações
tenham por fundamento o mesmo fato jurídico..."(2). Acerca da prevenção
reza a legislação vigente que se dá quando há
explícita ocorrência de conexão ou continência
entre ações que correm em separado, considerando-se prevento
o Juízo, dentre os de mesma competência territorial, que despachou
em primeiro lugar (artigo 106, C.P.C.).
IV - INVIABILIDADE DE REUNIÃO DE AÇÕES
DE REPRESENTAÇÃO EM
ANDAMENTO:
A consequência legal para a aceitação
de conexão ou continência entre ações diversas
em andamento, propostas em
separado, é a reunião das
mesmas para que sejam decididas simultaneamente nos termos preconizados
no artigo 105, do
C.P.C. Cria-se, para fins de análise,
a hipótese de existir contra o adolescente CBF duas ações
de representação movidas
pelo Ministério Público, sendo
a primeira pela prática do ato infracional de homicídio doloso
e a segunda pela prática de ato
infracional de furto simples, verificando-se
que ambas encontram-se em andamento. Tendo em vista que, em tese, as
infrações foram praticadas
na mesma data, quase que em sequência pelo mesmo infrator, alguns
defenderiam a ocorrência
de continência por ter sido praticada,
em tese, em concurso material (artigo 77, inciso II, C.P.P.). Entretanto,
mesmo que
fosse aceita a tese de aplicação
subsidiária do diploma processual penal in casu, verificar-se-ia
que a reunião de tais ações
redundaria em ineficiência e procrastinação
jurídicas, pois não se leva em conta no julgamento final,
em ações de
representação, uma análise
subjetiva dos fatos conectada diretamente com cálculo aritmético
de 'pena', mediante os
princípios de dosimetria de pena
prevista nos diplomas penal e processual penal, assim como ocorre na ficção
jurídica do
concurso formal/material e crime continuado.
Verifica-se que não se aplicam cumulativamente medidas sócio-educativas
diversas, pois no caso indicado para o ato
infracional de homicídio doloso poder-se-ia inclusive ser aplicada
ao final a
medida sócio-educativa de internação
(art. 122, I, ECA), enquanto que no furto simples, ausente a violência
ou grave ameaça, não poderia, em tese, ser aplicada a medida
sócio-educativa de internação. A autoridade judiciária,
portanto, em uma eventual reunião de ações de representação,
com exceção somente de aplicação de medida
sócio-educativa idêntica, não poderia aplicar cumulativamente
medidas diversas, o que seria naquele procedimento inviável. Por
outro turno, caso fosse possível a unificação de ações
de representação já em andamento, verifica-se que
vários atos processuais teriam que ser repetidos, permitindo-se
a ampla defesa e o contraditório, dificultando-se de sobremaneira
a conclusão e julgamento dos fatos atribuídos ao adolescente.
V - AJUIZAMENTO DE REPRESENTAÇÃO
PELA PRÁTICA DE ATO INFRACIONAL EM
CO-AUTORIA OU PARTICIPAÇÃO:
Verifica-se, contudo, totalmente viável
o ajuizamento de Ações de Representação para
apuração de ato(s) infracional(is)
praticados em co-autoria ou com participação
de mais de um adolescente. Tal entendimento é fundado no fato de
que
havendo co-autoria ou participação
há a existência clara de conexão pela idêntica
de causa de pedir, visto que o fato jurídico - ato infracional praticado
- é o mesmo por parte dos adolescentes, sendo que suas condutas
deverão ser avaliadas ou em co-autoria ou em cooperação,
aplicando-se a cada um, ao final, as medidas sócio-educativas adequadas
individualmente.
VI - EXECUÇÃO DE MEDIDAS
SÓCIO-EDUCATIVAS APLICADAS EM AÇÕES DE
REPRESENTAÇÃO DIVERSAS:
Questão consecutária do raciocínio
supra desenvolvido é o de qual regra a ser aplicada no caso de aplicação
de medidas
sócio-educativas diversas em procedimentos
distintos. Tomando-se, ainda, o caso do adolescente CBF caso lhe fossem
aplicadas as medidas de internação
- homicídio doloso - e seis meses de prestação de
serviços à comunidade - furto
simples - indagar-se-ia como se faria a
execução de ambas. É óbvio que a medida sócio-educativa
de internação deverá ser
aplicada inicialmente, segundo suas regras
e recordando-se que a mesma não comporta prazo determinado, devendo
ser
revisada de seis em seis meses, e não
podendo exceder três anos (artigo 121, §§2º e 3º,
ECA). Neste sentido também
entende a jurisprudência que leciona
que no que se refere à medida de internação "...há
que se ressaltar, contudo, que o
art. 121, parágrafo 2º, do Estatuto
da Criança e do Adolescente, dispõe que: "A medida não
comporta prazo determinado,
devendo sua manutenção ser
reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada
seis meses"(3). A aplicação
da medida sócio-educativa de prestação
de serviços à comunidade ficará sobrestada até
o efetivo cumprimento da medida
anteriormente indicada. Caso o adolescente
CBF cumpra a medida de internação antes de completar vinte
e um anos,
poderá ser imposto o cumprimento
da medida de prestação de serviços à comunidade,
desde que antes que complete a
prefalada idade de vinte e um anos. Isto
porque não se aplica à prática de ato infracional
os prazos prescricionais dos
delitos e contravenções penais
descritos na legislação pátria. É da jurisprudência
que não se aplicam os "prazos prescricionais estabelecidos na Parte
Geral do Código Penal"(4). Por outro turno, verifica-se que a regra
geral mais condizente com o ordenamento menorista, concessa maxima venia,
é a de que executa-se inicialmente a medida sócio-educativa
mais severa aplicada, seguindo-se a aplicação da(s) outra(s)
menos severa(s) aplicadas ao mesmo adolescente. Entretanto, ao nosso sentir,
data maxima venia, talvez a única possibilidade jurídica
de aplicação cumulativa de medida sócio-educativa
seria no caso de serem aplicadas, em processos distintos, medidas de prestação
de serviços à comunidade, quando os períodos destas
poderiam ser unificados. No caso do adolescente CBF, caso este tivesse
recebido a imposição de duas medidas de prestação
de serviços à comunidade com os períodos de dois e
três meses respectivamente, nota-se que aquele poderá cumprir
o período de cinco meses de prestação de serviços
à comunidade perante o Juízo competente pela prevenção
na forma da lei.
VII - CONCLUSÃO:
Do arrazoado supra exposto, conclui-se que
existindo ações de representação diversas movidas
contra o mesmo
adolescente não há necessidade
de aplicação das regras de conexão e continência
para fins de reunião dos prefalados
processos, sob pena de ineficácia
e entrave processual que poderão inclusive procrastinar uma decisão
final adequada ao
adolescente mediante os atos praticados
e sua conduta pretérita. É necessário, entretanto,
que a ocorrência de tais
processos sejam oficialmente comunicados
em cada um dos feitos para análise final acerca das condutas do
adolescente
autor de ato infracional e da medida sócio-educativa
que restar comprovada como mais eficaz para sua recuperação.
Pode-se, entretanto, ser ajuizada Ação
de Representação pela prática de ato infracional em
co-autoria ou com participação
de mais de um adolescente na forma da lei.
Existindo a aplicação de medidas sócio-educativas
diversas, em procedimentos
autônomos, aplicam-se as medidas denominadas
mais graves em primeiro plano, seguindo-se das menos severas, havendo
unificação de períodos
somente no que se refere à medida sócio-educativa de prestação
de serviços à comunidade (artigo
117, ECA). Ressalta-se, finalmente, que
qualquer medida sócio-educativa poderá ser imposta ou executada
até que o
adolescente complete a idade de vinte e
um anos quando nenhuma daquelas medidas poderão ser impostas ou
executadas
na forma da lei, visando-se unicamente a
recuperação do indivíduo em desenvolvimento e sua
reinserção no seio social para
alcançar-se a tão almejada
paz social!!
VIII - BIBLIOGRAFIA:
1)Paulo Lúcio Nogueira, in Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Saraiva, 1991, p. 225;
2)Humberto Theodoro Júnior, in Curso de Direito Processual Civil, Volume I, 10ª ed., Forense, 1993, p. 179;
3)TJ-SC - Ac. unân. da 1ª Câm. Crim., publ. em 16.11.94 - Ap. 31.569 - Rel. Genésio Nolli;
4)TJ-PR, Ac. nº 7153, de 21.11.94,
unân., C.M., Agr. Inst. nº 94.0001469-4, Rel Des. Tadeu Costa.
Retirado de: http://www.abmp.org.br