UM NOVO DIREITO
Edson Sêda
Nós, pessoas,
vivemos num mundo que se descortina à nossa volta
através
de dois fenômenos básicos, fundamentais, perceptíveis
por
nossos sentidos,
o que nos torna testemunhas sensoriais da história.
São os
fenômenos da permanência e da mudança das coisas.
Tudo muda ao
nosso redor, mesmo imperceptivelmente, mas nessa
contínua
transformação, certas situações sempre permanecem.
Ou
vice-versa. Entretanto,
devido ao tipo de educação que recebemos, e
que necessariamente
repassamos para nossos filhos, somos treinados
a "ver,, sempre
o que é mais estável e que se "conserva" no
entremeio das
mudanças. Somos conservadores.
A criança
que se transforma em adolescente e este em adulto; a
maturidade que
vai se transmudando em velhice; o arbusto que se faz
árvore;
o hoje que se faz ontem; a ignorância que se faz saber; a
miséria
que se faz riqueza; a iniqüidade que se faz justiça!
Somente o "saber
ver" integral (captar a permanência na mudança e
esta na conservação
da natureza) cultivado pelos sábios e pelos
cientistas (por
aqueles mais que por estes) nos permite fazer justiça a
nós mesmos
como observadores e ao ambiente que nos rodeia como
observado.
A experiência
nos diz que a sabedoria e a ciência só são por nós
conquistadas
através de aproximações sucessivas da verdade, ao
longo da história
da vida da pessoa e da sociedade.
E nesse contexto
que situo, na mesmice da realidade brasileira dos
últimos
anos, a construção de um novo Direito, o Direito da Criança
e
do Adolescente.
Estimuladas na sua percepção, basicamente pelas
mazelas que testemunham
ao seu entorno, as pessoas—mesmo os
cientistas, ao
que me conste!—não lograram captar o surgimento do
novo fenômeno
jurídico, entre o que se conserva e o que se renova
em nossas relações
sociais.
Aliás,
o mundo jurídico é fundamentalmente visto entre nós
como o
compartimento
em que se imobilizam ou se movem apenas juizes,
promotores, advogados
e burocratas. Mas todos eles, juizes,
promotores, advogados
e burocratas, ao estudarem na universidade
para adquirir
algum tipo de saber jurídico, foram devidamente
informados de
que o mundo jurídico é um mundo feito de fatos
sociais—que conservam
ou inovam relações sociais—em cuja
sucessão
podemos testemunhar a presença de "normas" de conduta,
donde a existência
de uma ciência, a ciência do Direito, que se ocupa
de estudar a
natureza e as características dessas "normas".
Notar bem: não
é a "ciência" do Direito que "cria" o mundo normativo
do Direito; são
as pessoas interagindo que criam essas normas.
Andam confundindo
por aí essas duas ordens de coisas; coisa do
bacharelismo
brasileiro.
É claro
que por serem educativamente "conservadores"—no sentido
acima exposto—esses
profissionais do Direito acabam por só perceber
o que se conserva
no ''compartimento" social em que militam, donde
praticarem suas
"reflexões" exclusivamente acerca do que captam ao
seu redor. Conseqüência:
os textos jurídicos de que dispomos falam
de um complicado
mundo burocratizado como sendo todo o âmbito
do "Direito".
Mas o verdadeiro mundo desse "Direito" é o mundo das
relações
sociais que envolvem essa burocracia, a condicionam e dela
recebem condicionamentos
que "evidentemente, interferem no
mundo integral
das relações jurídicas. E aí que vamos encontrar
a
gênese
do novo Direito.
Tendo o autor
destas linhas militado ao longo de trinta anos (a partir
de 1960) no mundo
das relações sociais brasileiras que envolvem o
abandono, o abuso,
a violência, a crueldade e a opressão de crianças
e adolescentes
e dessa perspectiva tirado algum conhecimento e
desse conhecimento
extraído princípios úteis para a compreensão
do
novo Direito
há pouco referido, este autor se sente na obrigação
de
dar seu testemunho,
para contribuir com o processo de mudança
social deste
País. Trata-se de um esforço para superar o que de
"conservador"
o autor traz em si e se abrir para o que todo ser
humano é
dotado de potencialmente transformador.
A oportunidade
se oferece agora através deste conjunto de
publicações
patrocinadas pelo Centro Brasileiro para a Infância e a
Adolescência
sob os benéficos influxos orientadores do Professor
Antônio
Carlos Gomes da Costa.
Os textos aqui
reunidos cobrem os últimos 18 anos e foram
selecionados
a partir de dois critérios: serem documentos
comprobatórios
das transformações que levaram à criação
do novo
Direito e serem
testemunho das percepções que há muito tempo se
tinham da realidade
envolvente e que hoje são plenamente
adequadas para
o dinamizarmos.
Possa a leitura
desse material mostrar aos novos companheiros que a
causa a que aderiram
na época da Constituinte e da formulação do
Estatuto da Criança
e do Adolescente era a causa de muitos de nós
que, ao longo
das décadas, construíram (e/ou testemunharam) o novo
no permeio das
antigas práticas que nos envolviam e nos continham
com sua vocação
de se repetir compulsoriamente.
Foram selecionados
sete textos assim distribuídos: três produzidos
antes da Constituição
de 1988 e do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Em ordem cronológica:
O primeiro, analisando
as relações da juventude com o sistema
econômico,
utilizado como suporte aos cursos que o autor dava no
CEDEP—Centro
de Estudos e Desenvolvimento do Pessoal da antiga
FUNABEM, texto
que reflete, em 1973, o esforço pelo abandono do
paradigma da
"menoridade" em favor de uma concepção integral do
jovem como construtor
e beneficiário do sistema social em que vive
(no caso, a vertente
da produção e do consumo de bens desse mesmo
sistema).
O segundo, também,
como o primeiro, agora retirado dos arquivos da
biblioteca do
antigo CEDEP, expondo—no limiar da vigência do antigo
Código
de Menores em 1979—que a então novíssima legislação
não
dava ao Brasil
uma lei para a infância e a adolescência, mas apenas
uma lei para
''menores,,; o texto traçava a diferença entre ambas, do
que decorria
a necessidade de uma nova compreensão do que fosse o
estado de ''menoridade,,,
diante das práticas e da ciência da
pedagogia moderna.
O terceiro é
o estudo elaborado por uma equipe de que o autor era o
coordenador,
como Diretor que era da DENTEC—Diretoria de Estudos
e Normas Técnicas
da FUNABEM. Esse texto, fruto de um estudo
levado a efeito
com profundidade no então sistema de atendimento
ao ''menor,,
de conduta anti-social (FUNABEM/FEBEMs) marcou
definitivamente
todos os pontos de estrangulamento de um sistema
que aprofundava
o problema em vez de contribuir para resolvê-lo, o
que foi agravado
com a lei (Código de Menores) que entrou em vigor
logo em seguida
(o estudo foi feito entre 1978 e maio de 1979). Esse
texto foi a base
sobre a qual o autor iniciou, na época, transformações
metodológicas
e conceituais no atendimento a crianças e
adolescentes
do antigo Centro Piloto da FUNABEM, de que era diretor.
(O autor não
quer relatar aqui o que lhe aconteceu por essa ousadia,
porque este não
é o relato das suas emoções (J.L. Borges), mas da
construção
do novo Direito da Criança e do Adolescente.)
Dos quatro textos
produzidos após a edição das normas constitucional
e estatutária
do novo Direito, um é um conjunto de respostas a
objeções
que se levantavam quando da discussão pública do projeto
do novo Estatuto;
outro, contém a síntese explicativa desse Estatuto;
outro ainda expõe
idéias sobre a participação da população
na
manutenção
do Direito enquanto fato social de ampla magnitude; e
finalmente o
último trata da concepção do novo Direito. Nesta edição
não foi
seguida a ordem cronológica.
Nenhum desses
textos tem objetivo acadêmico mas, apenas,
orientador para
os construtores do Direito, de qualquer Direito ou
especificamente
do da Criança e do Adolescente—ou seja: os
cidadãos
do País— compreenderem que é a conduta de cada um e de
todos nós
que torna factuais as normas que regem nosso destino
coletivo na sociedade.
Pode-se perceber,
assim, que nós permanecemos como pessoas, a
sociedade permanece
como vivência coletiva, mas as regras do jogo
social variam
no tempo. No Brasil, a exigência de pessoas
esclarecidas
por novas práticas sociais, reiterada ao longo dos anos,
construiu um
fato coletivo novo, que foi a mudança das formas através
das quais sociedade
e Estado evoluíram para um novo patamar
normativo. Hoje
se pode exigir, pois, com mais força, o cumprimento
da norma adequada.
É fundamental
percebermos que isso não se iniciou às vésperas da
Constituinte
de 1987, ou durante ela; nem ocorreu, pós-Constituição
de
1988, quando
da elaboração do novo Estatuto. Houve um fato social
global que se
protraiu no tempo ao longo de pelo menos três
décadas—
digamos, após a Declaração dos Direitos da Criança
de
1959—cujos partícipes
distribuíam-se em todas as classes sociais, seja
na esfera não-governamental,
seja no seio das próprias instituições
governamentais.
Embora cada cidadão que com ela colaborou
trouxesse consigo
suas preferências partidárias, essa foi uma causa
que evoluiu de
forma suprapartidária e transideológica.
E claro que houve
setores importantes que não entenderam esse
processo, levando-se
ou não em conta o autoritarismo pós-1964;
exemplo disso
são os autores do Código de Menores que, vinte. anos
após a
Declaração de 1959, produziram uma lei que fazia o Estado
intervir onde
ele mesmo falhava, agravando o problema e ainda
comprometendo
o Poder Judiciário que passava a adotar (em 1979!) o
lamentável
processo inquisitório, quando já se propugnava há
muito
por um Direito
que respeitasse direitos e uma magistratura que os
garantisse!!
Uma palavra final:
o autor nunca conseguiu entender como poderia
existir um Direito
do Menor, quando todos sabemos que há tantas
menoridades quantas
são as maioridades criadas pela lei.
A menoridade
civil é uma convenção que surge quando a Lei estipula
a idade para
se ser maior. A menoridade penal passa a existir quando
a Lei estabelece
a idade para se ser responsável criminalmente. A
maioridade trabalhista
surge quando se estabelece com que idade o
sujeito é
maior sob o ponto de vista da lei que rege as relações entre
empregado e empregador.
As menoridades daí decorrentes são
convenções
subsidiárias da maioridade a partir das quais elas
existem. Há
tantos Direitos de menores quantas são as maioridades
convencionais.
Não pode haver um conjunto único de princípios para
reger essas menoridades
como um todo harmonioso e consistente em
si mesmo.
O chamado Direito do
Menor sempre foi um conjunto de equívocos
conceituais.
Tanto é que para sua existência, seus hierarcas aboliram
os princípios
gerais de Direito, fazendo dos Juizados de Menores no
Brasil repartições
públicas que funcionavam como um corpo estranho
no contexto do
Poder Judiciário, onde o Juiz legislava, perseguia os
fatos, acusava,
defendia, decidia e fiscalizava suas próprias
decisões!!!
Com a sistematização
do novo Direito da Criança e do Adolescente
aplicam-se plenamente
os princípios gerais de Direito, ajustando-se o
conceito de Justiça
Pública aos seus elementos essenciais e
colocando-se
as relações indivíduo/sociedade/Estado no devido lugar.
Agora, sim, o
Poder Judiciário é árbitro acima e independente das
partes. Agora
o Brasil atinge a maioridade jurídica no campo em que
a Justiça,
tendo sido parte interessada no processo de intervenção do
Estado sobre
a sociedade era, de fato, menor.
Retirado de: http://200.248.123.130/CGI-BIN/om_isapi.dll?clientID=53122&infobase=grupo3.nfo&softpage=Browse_Frame_Pg42