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O Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei N. 8.069/90 é uma lei
aplicável do ponto de vista prático dentro do Estado brasileiro?

 

A nova legislação menorista em vigor desde 1990 veio a proteger, integralmente, a criança até
12 anos de idade e o adolescente entre 12 e 18 anos, e excepcionalmente, os menores na faixa
etária entre 18 e 21 anos, assegurando-lhes todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, que deverão ser respeitados, prioritariamente não só pela família, pela sociedade,
como também pelo Estado, sob pena de responderem pelos danos causados.

É assim que se apresenta, "a prima facie", o ECA- um primor da técnica legislativa, moderna,
digna dos países do G-7. Porém tirar do papel tal proeza e beldade legislativa e aplicar na
lúgubre realidade brasileira não é tão fácil...

A frustração tem sede principal no fato de que, embora apresentando-se com a roupagem de
"tutelar", instrumento de proteção e assistência, acaba-se logo por constar que a legislação de
menores em nada contribui para que se altere na essência a situação de indignidade vivida
pelas crianças e adolescentes brasileiros, vez que sequer os reconheceu como sujeitos dos
mais elementares direitos.

O inócuo aparelho jurídico-estatal, por seu lado, colabora para fomentar a idéia extremamente
perversa de serem os carimbados com o signo da "situação irregular" responsáveis pela sua
própria marginalidade. Partindo do pressuposto falso de que a todos indivíduos são oferecidas
iguais oportunidades de ascensão social, permite-se difundir ideologicamente o raciocínio de
ter havido na verdade opção voluntária pela vida marginal ou delinquencial. Desta forma fica
cômodo aos Poderes Públicos restringir ao campo individual e psicológico os questionamentos
acerca dos motivos da não integração social de milhões de crianças e adolescentes ou de sua
reintegração mesmo após a atuação da Justiça Especializada da Infância e Juventude e, por
essa operação, imuniza-se de críticas a estrutura social injusta imperante em nossa nação.

Lembro-me agora dos livros de JORGE AMADO e do escritor russo ANTON MAKARENKO que
ofereceram às comunidades científicas e literárias internacionais duas obras fundamentais para
o entendimento das questões referentes às crianças e adolescentes marginalizados e/ ou
infratores. MAKARENKO, consagrado educador russo, em 1933, publicou Poemas
Pedagógicos , onde narrou sua extraordinária experiência ao dirigir uma instituição correcional
para crianças e jovens considerados anti-sociais. Já em Capitães da Areia, publicado em 1937,
JORGE AMADO retratou com a precisão peculiar do romancista sensível que é, a realidade que
viviam os meninos abandonados da cidade de Salvador. Embora sob o impacto de culturas
diferentes, ambos autores mostraram que, na essência, estes grupos de garotos, brasileiros e
russos, se assemelham. O sentimento de revolta, a coragem, as fantasias relativas ao futuro
que se contrapõem ao imediatismo de suas ações são algumas das características comuns
tanto aos meninos da Bahia como aos da Colônia Gorki.

Quando encerrados em estabelecimentos correcionais, o sistema de valores em que os
menores infratores são submetidos é, inevitavelmente, mas criminoso do que o do mundo
externo, porque todos os internos cometeram algum tipo de delito. Portanto, não é
surpreendente que as atitudes favoráveis à delinqüência sejam reforçadas e os talentos e
habilidades relevantes para o crime se desenvolva ainda mais após um período de verdadeira
reclusão - este é o temido processo denominado de criminalização.

O Diploma Menorista determina sanções aos adolescentes que praticam crimes graves,
endereçando-os a colônias correcionais com fulcros de ressocialização. Quando o menor
ingressa numa escola correcional, recebe o rótulo de infrator de delinqüente ou de marginal e
sai de lá com mínimas chances de mudar de vida. A sociedade tem medo dele e, portanto, não
lhe dá oportunidades. Na instituição ele especializa-se como ladrão, porque percebe que ao ser
desligado não terá outra alternativa. A repressão imposta a ele pelo aparelho jurídico estatal
não alcança o papel retificador esperado, ao contrário, incrementa ainda mais suas habilidades
infratoras, pois ao serem institucionalizada pelas normas da lei 8.069/90, o menor perde grande
parte das potencialidades que permitiram sua competitividade com os demais cidadãos,
tornando-os alienado as regras sociais e incapaz de se adaptar a elas.

 

A dúvida que me corrói por dentro é a seguinte:

 

Como ensinar valores e normas sociais quando o sistema de valores a que os menores
infratores estão submetidos na instituição são, inevitavelmente mais criminosos que o do mundo
externo?

 

A partir da promulgação do primeiro Código de Menores, em 1927, foram criadas colônias
correcionais para reabilitação de delinqüentes e internatos para o acolhimento de menores
abandonados. Paralelamente a estas ações judiciais, desenvolveu-se, no país, uma política
filantrópica com o objetivo de dar proteção aos menores abandonados. Na fase filantrópica a
política de atendimento às crianças e adolescentes carentes era definida pelas senhoras de
políticos ou membros da elite social. Deve-se ter em mente que o incentivo á filantropia não
deve ser considerado como uma fórmula apolítica de intervenção, mas deve ser analisada
como uma estratégia deliberadamente despolitizante, pois a caridade estabelece uma relação
desigual entre as partes, deixando bem claro quem é o doador magnânimo e o recebedor
humilde.

No entanto, é preciso deixar claro, que o assistencialismo não é uma simples prestação de
socorro aos necessitados. E implica numa ação política de manutenção do status quo do
atendido pois, certamente, esta ação não tem a preocupação de alterar as condições que o
miserável vive.

Não se pode olvidar dos denominados "menores infratores", pois o ECA traz especial atenção a
tal problemática; estabelecendo programas de reinserção dos menores no convívio social e no
mercado de trabalho; mas que, todavia tais esperanças morrem na letra fria e esquecida da lei,
uma vez que a vontade política nacional fecha os olhos para tal assunto, permanecendo assim
uma estrutura arcaica, antiga e falha, pois não há operacionalização das normas menoristas em
programas de integração dos menores marginalizados ao meio social, o que significa muitas
vezes a única oportunidade de estabelecer projeto de vida digna e, através do levantamento da
auto-estima, exercitar potencial inerente dirigido à sociabilidade e cidadania dos nossos
infratores.

O professor Oscar Borgonovo no Seminário Latino-Americano dos Direitos dos Menores em
Santa Fé - Argentina no ano de 1992, afirmou repetitivas vezes que:

     "O Estatuto da Criança e do Adolescente não se definiu pela autonomia, a
     operacionalização de suas medidas é difícil mesmo (...) É uma lei de difícil aplicação."

 

 

Transformar a vontade ficta da lei (ECA) em realidade paupável chega a beirar uma "utopia", se
observarmos a nossa volta o estado de penúria e calamidade das instituições brasileiras,
eivadas de agentes corruptos e sem suficientes para mudar a vida de milhares de crianças e
adolescentes que, continuarão a pôr-se à margem do aparelho estatal.

Um dos flagrantes desrespeitos à situação dos menores está na criação de um órgão de
fundamental importância que são os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente pois
pouca atenção tiveram por parte do legislador estatutário que se resumiu a meras pinceladas
sem fixação de normas próprias.

A aplicabilidade do Estatuto, não resta dúvida, torna-se um pouco difícil, principalmente no que
pertine à política de atendimento aos menores (ECA, art.86 e ss.), pois falta compromisso dos
órgãos públicos da Administração, seja a nível municipal, estadual ou federal.

"Ultima ratio", o Estatuto da Criança e do Adolescente que, substituiu o vestuto Código de
menores traz luzes novas e progressos em relação ao diploma revogado; o ECA resgata a
qualidade de sujeito de direito inerente a todo ser humano, inclusive à criança e ao
adolescente, até então tratados como simples objetos de intervenção, com apenas um direito,
qual seja o de resignação diante das medidas aplicadas, tidas como educativas e
ressocializadoras. Há que se acreditar na possibilidade, dos menores infratores de hoje, mesmo
à mingua das medidas inócuas do Estado e da falta de estrutura dos órgãos judiciários
especializados, virem a se tornar senhores de sua própria história deixando para trás o triste
papel de vítimas das organizações elitistas e marginalizadoras.

 

 

                                                                         Henrique Mota Feitosa

                                                             O autor é Advogado OAB/PB 9973

                                                       e aluno da ESMA - Núcleo de C. Grande.
 

Retirado de: http://www.datavenia.inf.br/frame-opiniao.html