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Marco Antonio
Corrêa Monteiro*
Resumo: A democracia representativa, por meio dos partidos, é a fórmula que se
mostrou mais adequada, ao menos até o momento, para conciliar os mais diversos
interesses em uma vontade geral. Dada esta realidade, mostra-se necessário o
aprofundamento nos estudos do sistema eleitoral-partidário, principalmente em
seus efeitos perversos, para que se possa combatê-los, fortalecendo-se a
democracia partidária. A corrupção política, em geral, e a corrupção eleitoral,
em específico, somente podem ser efetivamente combatidas em uma democracia em
que o exercício do poder apresente-se visível e transparente à opinião pública,
abastecida esta de valores éticos com os quais será confrontado o exercício do
poder político. Estas são condições sem as quais não se pode falar em
democracia material.
Palavras-chave: Partido político; corrupção eleitoral; democracia; valores éticos.
Introdução.
Ao menos até o
momento, não se vislumbrou outro meio possível – ou tão eficiente quanto,
apesar de todos os seus problemas – para a operacionalização da democracia
representativa que não através dos partidos políticos.
O sistema
eleitoral-partidário e suas degenerações, dentre elas o fenômeno da corrupção,
merecem uma maior atenção, dadas as suas implicações sociais. Na lição de Raul
Machado Horta [01], "a corrupção é uma conseqüência, cuja causa
primeira reside na ruptura de valores, operada no domínio da conduta humana. A
autonomia da Política, no seu desvinculamento da Ética e da Religião, conduziu,
em seu longo percurso histórico, ao enfraquecimento da consciência ética, que
as formas de organização política aprofundaram, promovendo a separação entre a
Ética e a Política".
O presente
trabalho tem por escopo analisar a relação existente entre os partidos
políticos e o fenômeno da corrupção eleitoral, bem como as implicações desta
relação com o regime democrático. Para tanto, dividiu-se este trabalho em três
pontos.
O primeiro
abordará o tema dos partidos políticos, apresentando, inicialmente, a distinção
entre estes e os agrupamentos "pré-partidários", bem como a alteração
que se deu em sua estrutura e em seu funcionamento. Tais alterações, como se
verá, permitiram a ocorrência das denominadas "patologias
partidárias", quais sejam, a tendência oligárquica de sua estrutura
interna, a personalização e a espetacularização no exercício do poder político,
inclusive, e principalmente, a corrupção no processo eleitoral. A seguir, em um
segundo momento, pretende-se analisar, mais detidamente, o fenômeno da
corrupção no processo eleitoral, seu conceito, os momentos e as maneiras pelas
quais ele se apresenta no panorama eleitoral-partidário na atualidade.
Em um terceiro
momento, busca-se abordar o tratamento constitucional ao fenômeno da corrupção
eleitoral. E, aqui, pretende-se analisar tanto os dispositivos repressivos à
corrupção eleitoral quanto os preventivos, que, em geral, têm seu âmbito de
aplicação no exercício do poder político que não deve ser utilizado no sentido
de garantir a sua "reaquisição".
Por fim, será a
patologia da corrupção eleitoral colocada frente aos princípios democráticos,
momento no qual se pretenderá vislumbrar possíveis rumos de compatibilidade e
de fortalecimento da consciência ética [02].
1. Os partidos políticos e a sua degeneração.
Os partidos
políticos, em seu sentido moderno, têm suas origens no desenrolar do século
XVIII, não sendo própria a denominação para agrupamentos anteriores a este
momento histórico, tais como os que se encontravam em Atenas ou em Roma.
É a advertência de
Maurice Duverger [03]: "A analogia das palavras não deve levar
a confusões. Chamam-se igualmente ‘partidos’ as facções que dividiam as
Repúblicas antigas, os clãs que se agrupavam em torno de um condottiere na
Itália da Renascença, os clubes onde se reuniam os deputados das assembléias
revolucionárias, os comitês que preparavam as eleições censitárias das
assembléias revolucionárias, bem como as vastas manifestações populares que
enquadram a opinião pública nas democracias modernas. Essa identidade nominal
justifica-se por um lado, pois traduz certo parentesco profundo: todas essas
instituições não desempenham o mesmo papel, que é o de conquistar do poder
político e exercê-lo? Porém se vê, apesar de tudo, que não se trata da mesma
coisa".
O partido
político, neste sentido atual, pressupõe uma organização teórica e prática e
pressupõe igualmente a existência de um mecanismo, de um instrumento de ação
inexistentes no quadro inorgânico, fluido e descontínuo destes agrupamentos
"pré-partidários" [04]. Surge o partido estritamente
ligado ao conceito moderno de democracia, a denominada democracia
representativa, que, segundo célebre lição de Montesquieu [05],
funda-se na impossibilidade de todos os cidadãos de determinado Estado
"discutirem as questões públicas", seja em razão da quantidade de
legitimados para tanto, seja em razão da complexidade das matérias em debate, e
na possibilidade destes mesmos cidadãos indicarem dentre as pessoas de seu
convívio aquele ou aqueles que poderiam sobre as questões se manifestar.
Trata-se da representação, instrumento engendrado para viabilizar a democracia
e que passou a ser tomada como indispensável a ela [06]; "na
engenharia da democracia constitucional, restou incontroverso que às
assembléias parlamentares foi assegurado lugar como instrumento indispensável
ao arranjo da representação política da sociedade" [07]. E, por
meio da representação política, o processo eleitoral alcança sua legitimidade
na medida em que espelha com perfeição as expectativas da comunidade social
[08]. É o processo por meio do qual legitima-se a decisão do indivíduo, o
representante, acolhendo-a como decisão de todo o grupo, os representados
[09].
Para esta finalidade
surgiram, pois, os partidos políticos: representar os mais diversos interesses
sociais, multiplicados com a ampliação do sufrágio, no exercício do poder
político, apresentando-se aos cidadãos-eleitores ideologicamente organizados,
por meio de um programa partidário bem definido, que os distinguisse entre si.
Os partidos, no
entanto, com o passar dos tempos, estruturaram-se de maneira particular,
aparelhando-se no intuito de alcançar a um determinado fim: o exercício do
poder. Para tanto, passaram a contam os partidos com uma estrutura complexa,
composta por elementos de base e de articulação geral, com membros dos mais
diversos graus de participação e com dirigentes que, dentro deles, tomam as
decisões fundamentais, confundindo-se, por vezes, com o próprio partido,
ocasionando o fenômeno, adiante comentado, da personalização do poder político.
Adiantou-se, aqui, alguns aspectos a serem ainda tratados com mais vagar tão
somente para apresentar um fato: a complexidade partidária atual o distingue dos
seus antecessores tanto no aspecto estrutural quanto finalístico. E este novo
arcabouço partidário acaba por desembocar em sua burocratização, com todos os
deméritos deste processo: "Em toda burocracia observa-se a caça aos
empregos, a mania das promoções, a servilidade obsequiosa diante dos superiores
e uma atitude arrogante para com os subordinados (...). Pode-se dizer que
quanto mais uma burocracia se distingue por seu zelo, pelo sentimento do dever
e pelo devotamento à causa que representa, mais ela se mostra pequena,
estreita, rígida e antiliberal" [10].
Se, por um lado,
os partidos políticos em seu sentido atual não se igualam aos agrupamentos
"pré-partidários", por outro lado também não compartilham mais dos
mesmos princípios, formas de atuação e objetivos dos primeiros partidos
propriamente ditos. É neste sentido que Robert Michels [11], em uma
análise talvez deveras realista, denomina os partidos democráticos modernos
como "partidos militantes": "O partido moderno é uma organização
de combate no sentido político do termo e, como tal, deve ajustar-se às leis da
tática". Organização de combate para a conquista do exercício do poder e,
acrescente-se, se possível, a sua manutenção.
Dessarte, da sua
estrutura inicialmente simples, voltada para o agrupamento organizado em torno
de um programa de governo determinado, no intuito de representar os mais
diversos interesses sociais na tomada das decisões político-administrativas,
desenvolveram-se os partidos políticos de maneira a apresentarem-se, na
atualidade, de maneira inflada e burocratizada, em sua estrutura, e com o
objetivo de conquista do exercício do poder político.
Surgem, pois, da
prática eleitoral-partidária, na denominação de Monica Herman Salem Caggiano
[12], determinados "fatores poluentes", que são "práticas
contaminadoras que se inserem no seguimento da patologia eleitoral,
configurando um quadro de anormalidade e excepcionalidade que, a seu turno, é
merecedor de tratamento apropriado, com vistas ao saneamento do processo
eleitoral, a sua preservação como operação apta a indigitar os governantes e
momento de participação – pelo voto – dos cidadãos no polo diretivo dos
negócios públicos".
Um primeiro fator
poluente, de nítida implicação no processo de degeneração partidária, diz
respeito à representação dentro dos próprios partidos políticos. Elival da
Silva Ramos [13], ao tratar da representação política no sistema
democrático, sustenta que "registrou-se, desde cedo, na sociologia dos
partidos políticos, a tendência acentuadamente oligárquica que domina as suas
estruturas internas".
A ocorrência deste
fenômeno da oligarquização da estrutura interna dos partidos políticos,
independente de sua ideologia, somada ao monopólio dos partidos para as
candidaturas, que, se não previsto em legislação, acaba acontecendo na prática
dada a quantia vultosa que se deve investir em uma campanha eleitoral para que
esta tenha uma mínima possibilidade de se sagrar vencedora, acarreta, por
conseqüência, uma oligarquização da própria democracia. É esta, aliás, uma das "promessas
não cumpridas" pela democracia, conforme salienta Norberto Bobbio: a
persistência das oligarquias [14].
Este fator se
manifesta, na prática, pela eleição interna dos candidatos dos partidos para a
disputa, por um lado, dos cargos monocráticos do Executivo [15], em
qualquer dos entes da Federação, vez que cada partido deve lançar apenas um
nome, conjugado com outro para o cargo de vice, ou apoiar apenas um nome de
outro partido [16], e, por outro lado, dos cargos para o
Legislativo, levando-se em conta as bases territoriais, para que não se dividam
os votos entre dois ou mais candidatos, elegendo-se algum outro nome, ainda que
do partido, mas de outra base, que tenha mais votos dentro da lista.
Toda esta disputa
interna, somada à maneira pela qual são distribuídos o tempo dos candidatos nas
propagandas pelos meios de comunicação de massa e os recursos de campanha, que,
por vezes, beneficia este ou aquele candidato, só vem a agravar a apontada
tendência partidária. Efeito direto desta patologia é, por óbvio, a
impossibilidade de elegibilidade, com chances reais de sucesso, de todo e
qualquer cidadão.
Nas palavras de
Maurice Duverger [17], "a direção dos partidos tende
naturalmente a assumir uma forma oligárquica. Uma verdadeira ‘classe de chefes’
ali se constitui, uma casta mais ou menos fechada, um ‘círculo interior’ de
difícil acesso (...). O regime eleitoral do Estado parece ter certa influência
sobre o caráter oligárquico das direções partidárias e da formação dos
‘círculos interiores’. Na medida em que nenhum candidato tem possibilidade de
ser eleitos sem a concordância dos comitês do partido, seus dirigentes
desempenham papel essencial na seleção dos futuros deputados, que são
designados pelo ‘círculo interior’".
Esta mesma
tendência é apontada por Robert Michels [18], que, após afirmar que,
entre os cidadãos dotados de direitos políticos, o número dos que realmente se
interessam pelos assuntos públicos é insignificante, sustenta que "na vida
dos partidos democráticos podem-se observar os indícios de uma indiferença
política semelhante. Apenas uma minoria, e por vezes minoria insignificante,
toma parte nas decisões do partido. As resoluções da maior relevância, tomadas
em nome do partido mais rigorosamente democrático, isto é, do partido
socialista, o são, quase sempre, por um punhado de membros".
Um segundo fator
poluente, igualmente degenerativo do sistema eleitoral-partidário, se praticado
abusivamente, denomina a doutrina de personalização do exercício do poder
político, do que decorre a sua espetacularização.
O fenômeno da
personalização da política decorre com uma certa naturalidade da natureza
humana que se vê no exercício do poder político. Muito bem identificou a
questão Robert Michels [19], ao afirmar que "a consciência do
poder provoca sempre, naquele que o detém, a vaidade de se julgar um grande
homem. O desejo de dominar, para o bem ou para o mal, está adormecida no fundo
de toda alma humana. Trata-se de um ensinamento elementar da psicologia. A
consciência de seu valor pessoal e da necessidade que têm os homens de serem
guiados e dirigidos, estimula no chefe o sentimento de superioridade e de
convicção de que é indispensável. Quem quer que tenha conseguido alcançar o
poder procurará, regra geral, consolidá-lo e ampliá-lo, multiplicar as defesas
em torno de sua posição, a fim de torná-la inatacável e de subtraí-la ao
controle da massa".
É, pois, como já
afirmado, fenômeno que decorre da natureza humana e que se apresenta com uma
certa naturalidade no sistema eleitoral-partidário dadas as possibilidades de
influência na vida alheia que se tem no exercício do poder político. Por essa
razão são seus efeitos mais facilmente identificados no exercício de cargos
monocráticos do Executivo, por excelência, palco de decisão de políticas
públicas, que, em regra, fazem-se sentir diretamente na vida de um número muito
amplo de indivíduos, ou melhor, cidadãos-eleitores. Se, por um lado, a
personalização do exercício do poder político não é um mal em si, por outro
lado, o seu uso abusivo é pernicioso ao jogo democrático, na medida em que
tenderá este exercício ao atendimento de interesses de um determinado grupo, ou
até ao atendimento de interesses individuais.
É, assim, nesse
contexto, que assumem papel relevantíssimo no sistema eleitoral-partidário os meios
de comunicação em massa. Responsáveis pela formação de um consenso popular
[20], podem estes meios servir como relevante municiador tanto nas nos
períodos de campanha eleitoral quanto ao longo do exercício do poder político.
Não há informação que não possam ser difundidas, e em escala mundial até, em
poucos minutos; e ela pode significar tanto o sucesso quanto o desastre de
qualquer campanha ou mandato político. É a espetacularização da política.
Milhares de pessoas assistem a episódios, em tempo real, que vão desde um
debate entre os presidenciáveis, passando pela votação da cassação, pela
Câmara, de um deputado acusado de decoro parlamentar, até a briga entre um
prefeito e seu desafeto em uma determinada padaria do Município. E mais, tudo o
que passou na televisão ou foi ouvido no rádio é verdadeiro, é fato; a força
simbólica que guarda esse fenômeno é monstruosa, se se permite um termo pouco
jurídico. Mas o fato é que os meios de comunicação investigam, acusam e julgam
um indivíduo em poucos minutos, ao arrepio dos direitos fundamentais previstos
na Constituição.
Sintetiza a
questão Maurice Duverger [21], nos seguintes termos: "A
personalização do poder confunde-se às vezes com uma verdadeira divinização do
poder. Encontra-se assim uma das mais antigas formas de autoridade, a dos
monarcas-deus. Isso se verifica nos partidos fascistas; igualmente nos partidos
comunistas em relação a Stalin. O chefe é onisciente, onipotente, infalível,
infinitamente bom e sábio: toda palavra que sai da sua boca constitui verdade;
toda vontade que dele emana é a lei do partido. As técnicas modernas da
propaganda permitem-lhe uma onipresença extraordinária: sua voz penetra em toda
parte graças ao rádio.
Dessarte, podem
servir os meios de comunicação de massa para os mais diversos intentos,
potencializando, inclusive, o fenômeno da personalização do exercício do poder
político. Trata-se, assim, de fenômenos socias que ocorrem naturalmente no
sistema eleitoral-partidário, mas que, dadas as conseqüências de seu uso
abusivo, merecem atenção, cuidando-se para que sejam sempre respeitados os
direitos fundamentais. Muito interessante é a expressão parodiada por Robert
Michels [22]: "Não existe, talvez, nenhum chefe de partido que
não pense e não aja e, se tiver temperamento forte e caráter leal, que não
expresse como, digamos, o Rei Sol: ‘Le parti c’est moi’".
Por fim, pode-se
apontar como fenômeno degenerativo do sistema eleitoral-partidário a corrupção,
que, em última análise, liga-se profundamente aos apontados anteriormente, como
se verá. Para este, objeto do presente estudo, dedicam-se as linhas a seguir.
2. O fenômeno da corrupção eleitoral.
É neste contexto
apresentado que se apresenta o fenômeno da corrupção [23]. Não que
ele tenha surgido tão somente neste momento histórico; a doutrina narra
episódios de corrupção eleitoral de longa data. Dessarte, Manoel Martins de
Figueiredo Ferraz descreve como se dava a corrupção eleitoral em Roma, bem como
quais foram as respostas dadas pelo direito romano ao fenômeno. Segundo o
romanista, as leges de ambitus
relacionavam-se "com o comportamento ou atos ilícitos dos que visavam as
honras ou as magistraturas romanas, objeto de eleições" [24].
Segue o autor indicando que, no ano 358 a.C., o tribuno da plebe C. Petélio
conseguiu aprovar plebiscito conhecido como Lex Poetelia de ambitu, que proibia se solicitassem votos nas
reuniões públicas ou nos mercados [25]. Interessantes igualmente
outras medidas adotadas à época, narradas por Manoel Ferraz [26],
para conter a compra de votos: havia prescrições contra o costume de banquetear
eleitores, não podendo o candidato ter à mesa mais de nove candidatos e nem
valer-se de terceiros para festividades que lhes possam conferir vantagens
eleitorais.
Não diferem deste
ensinamento Raul Machado Horta [27] e Manoel Gonçalves Ferreira
Filho [28], para quem o fenômeno da corrupção é registrado desde a
Antigüidade, acrescentando que, nos dias que correm, não é ele um fenômeno
exclusivamente brasileiro: "o mesmo se passa noutros (países), inclusive
nos mais desenvolvidos: Japão, Holanda, França, Estados Unidos, URSS etc. E
isto a ponto de provocar reuniões internacionais, como o 5º Congresso Mundial
sobre a Corrupção, em Amsterdam, na Holanda, em março passado".
Luca Mezzetti,
quando esteve no Brasil, por ocasião do 10º Encontro Nacional de Direito
Constitucional, que tratou do regime democrático e da questão da corrupção
política, apresentou um panorama europeu de combate à corrupção; medidas
legislativas e não legislativas estão sendo e ainda serão tomadas nos mais
diversos países europeus para a luta contra esta patologia eleitoral. São os
caso, v.g., da Alemanha em que
existem, em alguns de seus Länder,
as "Seções anti-corrupção", e da França, com o "Serviço central
de prevenção da corrupção", criado em 1993 [29].
A corrupção, pois,
não é recente e nem fenômeno exclusivo brasileiro. Sobre a sua essência, afirma
Manoel Gonçalves Ferreira Filho [30] que "sempre foi ela vista
como um mal. E um mal gravíssimo, que solapa os alicerces do Estado e ameaça a
sociedade. Assemelha-se à podridão do fruto. É o que assinala a etimologia do
termo. Corruptio, em latim, é a
explosão do âmago de um fruto, em razão da sua podridão interna".
"Assim, – continua o constitucionalista – o que se encara como corrupção
não é apenas uma falta, grave sem dúvida, mas que não transcende a pessoa que a
comete. É uma falta que perverte, e por isso, ameaça o regime, porque solapa os
seus fundamentos".
Na política, a
corrupção "está associada à persecução de objetivos privados em detrimento
do interesse geral" [31], observa Elival da Silva Ramos.
Tomam-se decisões políticas levando-se em conta interesses de grupos ou até
mesmo interesses particulares, dando-lhes roupagem de interesse público. Mas
esta utilização do exercício do poder político para a obtenção de vantagens
pessoais, em geral, vantagens pecuniárias, em típico desvio de poder, não é a
única forma de manifestação dão fenômeno da corrupção. O fenômeno da corrupção
pode se manifestar igualmente de modo a utilizar-se de meios ilícitos para o
alcance de fins lícitos. Distingue as situações Manoel Gonçalves Ferreira Filho
[32]:
"Ninguém
contestará, no entanto, ser corrupção todo ato que envolver uma retribuição material – essencialmente
de dinheiro – o instrumento ou móvel da conduta indevida.
"Assim, há
corrupção, seja quando se usa desse recurso para a obtenção do poder, seja
quando se utiliza do poder para lograr proveito financeiro. Num caso, o
dinheiro – usa-se o nome – é meio ilícito para fim lícito, no segundo é o
objetivo ilícito de uma conduta".
A segunda forma de
corrupção, pontada por Ferreira Filho, é mais "comum" na prática
eleitoral-partidária, estando presente diuturnamente nos meios difusores de
informação. Mas esta, por óbvio, pressupõe o exercício do poder político por
parte daquele que pretende angariar vantagens indevidas, em típico desvio de
poder. É a esta prática que se referiu Elival da Silva Ramos, em trecho
anteriormente mencionado.
Mas é na primeira
ordem de manifestações corruptivas que se enquadra a corrupção eleitoral. Sim,
porque a finalidade do processo eleitoral é a apuração da vontade geral,
manifestada pelo voto, indicativa de determinado ou determinados candidatos
para o loteamento de determinado ou determinados cargos públicos. A sua
finalidade é, em suma, legitimar a aquisição do poder político. A corrupção no
processo eleitoral acaba sendo a utilização de meios ilícitos, tais como compra
de votos e fraude na sua contabilização, para o alcance de um fim lícito, que é
a aquisição do poder político.
Atentou-se a esta
patologia Mônica Herman Salem Caggiano [33] ao apontar que
"muitos e variados são os fatores atuantes no sentido de produzir
ingerências na livre manifestação das opções políticas. Fatores que, quando
acionados à margem das linhas da legalidade e da moralidade, quando manipulados
de molde a produzir desvios na exteriorização das preferências
político-eleitorais, ingressam na esfera patológica dominada pela corrupção,
onde emerge, como terreno facilmente impregnável, o campo do financiamento das
campanhas político-eleitorais".
De fato, muitas
são as maneiras de desvirtuamento da livre manifestação das opções políticas,
e, se, por um lado, ninguém negará que a compra de votos ou o denominado voto
de "cabresto" são manifestações deste fenômeno e devem ser
combatidos, por outro não fica tão claro o enquadramento quando se trata, por
exemplo, do financiamento partidário, quando, por óbvio, este não é, pelo
ordenamento vigente, exclusivamente público. Pode-se argumentar que, com os
vultosos financiamentos partidários, abusa-se do poder econômico, procedendo-se
à compra desenfreada de votos, entre outros. A afirmativa é correta, mas, aqui,
a conduta ilícita é a compra de votos em si, não o financiamento [34].
A resposta para esta sorte de problemas decorrentes do financiamento eleitoral
está no controle dos gastos de campanha, evitando-se os "gastos não
contabilizados", última moda em matéria eleitoral-partidária; para tanto
deve haver transparência no quanto se recebe, no quanto e em que se gasta.
Parece simples, mas, infelizmente, não é.
Outro aspecto
importante e igualmente preocupante do financiamento partidário diz respeito à
vinculação que passa a existir entre o partido, cujos membros eventualmente
passam a exercer o poder político, e o financiador de sua campanha. É mais uma
vez Mônica Herman Salem Caggiano [35] quem chama a atenção para a
"maciça intervenção financeira dos ‘lobbies’ nas campanhas
político-partidárias", e este apoio será cobrado, futuramente, quando do
exercício do poder político, que atenderá, por vezes, aos interesses desses
grupos, em detrimento do interesse geral. Mas, ainda assim, o financiamento, em
si, não é ilícito; ilícito é o desvio de poder ulteriormente praticado. Em
razão dessas peculiaridades é que se torna tão difícil o combate à corrupção
eleitoral nessas hipóteses.
Por fim, outro
momento em que se percebe grande ocorrência do fenômeno da corrupção eleitoral
é o do próprio exercício do poder político: ocupantes de cargos públicos que se
utilizam desta situação privilegiada com relação aos demais candidatos para se
manterem no poder, que pode ser tanto no mesmo cargo quanto em outro qualquer;
é o uso da própria "máquina" para nela se manter. Trata-se de
situação peculiar, em que se confundem a corrupção no processo eleitoral com a
corrupção no exercício do poder.
São estas
situações, apresentadas em linhas gerais, em que a ética, de uma maneira ou de
outra, é deixada de lado, rompendo-se valores os quais cabe ao direito
resguardar. Ensina Cezar Saldanha Souza Junior que "o direito é essa
verdadeira atividade de sopesar o político e o ético. Descobrir qual é aquele
mínimo ético que a sociedade precisa, naquele momento histórico, para preservar
sua convivência e tornar esse mínimo ético obrigatório politicamente. Que papel
fundamental! É o direito que confere à política verdadeiro sentido de fim do
humano. Sem a ética, a política seria uma política torta; é o direito que
endireita a política. É o direito que coloca a política no caminho do bem, do
humano, do justo. Justo que nós vamos descobrir na sociedade por meio da razão
prática, pelo juiz, pelo legislador".
Nesse sentido,
aponta a doutrina constitucionalista serem as regras que tratam da aquisição e exercício
do poder materialmente constitucionais [36]; assim, é próprio que se
encontrem regras constitucionais que visem a coibir o fenômeno da corrupção
tanto no processo eleitoral – aquisição – quanto no próprio exercício do poder
político. E, no que diz respeito ao processo eleitoral, as precauções
constitucionais contra a corrupção estão presentes expressamente no art. 14 da
Constituição, dentre as quais algumas serão rapidamente apontadas.
Já em seu caput, prevê o texto constitucional o
voto secreto. Este é, sem dúvida, uma das mais importantes manifestações da
liberdade de opção política. Na opinião de Manoel Gonçalves Ferreira Filho
[37], "a experiência demonstrou que somente em segredo o cidadão
comum pode seguir a própria consciência na determinação de quem há de merecer o
seu voto. Se é indiscutível que mesmo com o sigilo obrigatório as consciências
muitas vezes são violentadas, sem ele não há, na prática, verdadeira liberdade
de voto".
Neste mesmo
artigo, em seu §6º, há dispositivo que obriga a renúncia de mandato para o
Presidente, o Governador de Estado ou do Distrito Federal e o Prefeito que
pretender concorrer a outro cargo seis meses antes do pleito. Busca-se, assim,
evitar o uso do poder político com o propósito de nele se manter. O mesmo objetiva
o §7º seguinte, que determina inelegíveis, no território de jurisdição do
titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou
por adoção, do Presidente, de Governador e de Prefeito ou de quem os haja
substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de
mandato eletivo e candidato à reeleição.
Vale uma última
menção à possibilidade de impugnação de mandato eletivo perante a Justiça
Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação em razão de abuso de
poder econômico, corrupção ou fraude no processo eleitoral.
Conclusão: os partidos políticos, a corrupção eleitoral e a democracia –
retomada dos valores éticos.
A democracia
representativa, por meio dos partidos, é a fórmula que se mostrou mais adequada,
ao menos até o momento, para conciliar os mais diversos interesses em uma
vontade geral. Dada esta realidade, mostra-se necessário o aprofundamento nos
estudos do sistema eleitoral-partidário, principalmente em seus efeitos
perversos, para que se possa combatê-los, fortalecendo-se a democracia
partidária.
Aponta Norberto
Bobbio uma série de "promessas não cumpridas" pelo regime
democrático, algumas delas intimamente ligadas aos partidos e à corrupção que
por meio deles toma forma. São elas "a sobrevivência do poder
invisível", "a permanência das oligarquias", "a supressão
dos corpos intermediários", "a revanche da representação dos
interesses", "a participação interrompida, o cidadão não
educado". "Todas são situações a partir das quais não se pode falar
precisamente de ‘degeneração’ da democracia, mas sim de adaptação natural dos
princípios abstratos à realidade ou de inevitável contaminação da teoria quando
forçada a submeter-se às exigências da prática. Todas, menos uma: a
sobrevivência (e a robusta consistência) de um poder invisível ao lado ou sob
(ou mesmo sobre) o poder visível, como acontece por exemplo na Itália. Pode-se
definir a democracia das maneiras as mais diversas, mas não existe definição
que possa deixar de incluir em seus conotativos a visibilidade ou transparência
do poder" [38].
Esta visibilidade
ou transparência do poder pode ser melhor percebida nos governos de âmbito
local. Afirma Elival da Silva Ramos [39] que a descentralização
política é instrumento institucional que "muito pode auxiliar na prevenção
à corrupção, à medida que aproxima os governantes dos governados, tornando mais
simples e direto o controle da implementação das políticas públicas". São
nestes focos de exercício do poder políticos que deveriam ser tomadas as decisões
que digam mais de perto aos interesses dos indivíduos. São nos governos
municipais que se tem maiores possibilidades de contato direto com os que
exercem esse poder.
Agora, mais uma
vez na lição de Norberto Bobbio [40], estes "cidadãos
ativos" devem estar informados de alguns ideais, valores éticos, enfim. O
primeiro deles é o ideal da tolerância, pois, "se hoje existe uma ameaça à
paz mundial, esta vem ainda uma vez do fanatismo, ou seja, da crença cega na
própria verdade e na força capaz de impô-la". O segundo ideal seria o da
não-violência. O terceiro é o da renovação gradual da sociedade, pelo qual o
livre debate de idéias permite mudanças conscientes e conciliatórias das
mentalidades – são as "revoluções silenciosas". Por fim, o ideal da
irmandade, a fraternidade ou solidariedade da Revolução Francesa.
A corrupção
política, em geral, e a corrupção eleitoral, em específico, somente podem ser
efetivamente combatidas em uma democracia em que o exercício do poder
apresente-se visível e transparente à opinião pública, abastecida esta de
valores éticos com os quais será confrontado o exercício do poder político.
Estas são condições sem as quais não se pode falar em democracia material.
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Notas
01 Improbidade, p.121.
02 Por exclusão,
dada a complexidade do tema, há os possíveis rumos de incompatibilidade entre
democracia e partidos políticos, com um conseqüente enfraquecimento da
consciência ética, mas estas conclusões deixamos para os menos otimistas.
03 Os partidos, p.19.
04 Cf. Afonso Arinos
de Melo Franco, História e teoria,
p.12.
05 Do espírito das leis, Livro 11º,
Capítulo VI.
06 Cf. Elival da
Silva Ramos, Representação,
p.7.
07 Cf. Auro Augusto
Caliman, Mandato, p.30.
08 Cf. Monica Herman
Salem Caggiano, Legalidade,
p.131.
09 Cf. Norberto
Bobbio, O futuro, p.18.
10 Cf. Robert
Michels, Os partidos, p.105 e
s..
11 Os partidos, p.21 e ss..
12 Legalidade, p.132.
13 Representação e democracia, p.10.
14 O futuro, p.26.
15 No caso
brasileiro, as eleições para o Senado poderiam ser melhor enquadradas nesta
primeira linha, dadas as suas peculiaridades.
16 Não tendo mais
relevância a "afinação" ideológica entre ambos, dados os
acontecimentos recentes...
17 Os partidos, p.188.
18 Os partidos, p.27.
19 Os partidos, p.116.
20 Superficial, sim,
pois muda ao sabor dos ventos, mas, por vezes, determinantes nos esporádicos
episódios de manifestação direta da vontade popular, tais como as eleições,
referendos, etc..
21 Os partidos, p.218 e s..
22 Os partidos, p.130.
23 Maurice Duverger,
Os partidos, pp.22 e s.,
apresenta aspecto interessante da corrupção no desenvolvimento dos grupos
parlamentares britânicos, tendo ela "ocupado lugar assaz importante"
nesse processo. Sustenta o autor, ainda que com uma certa precaução, "a
importância que esses fenômenos de corrupção assumem numa certa fase do
desenvolvimento democrático, como meio de o Governo resistir a uma pressão
crescente das assembléias (...)".
24 A corrupção, p.37.
25 A corrupção, pp.38 e s..
26 A corrupção, p.40.
27 Improbidade, p.122 e ss.
28 A corrupção como fenômeno, p.1; o
texto se refere, provavelmente, a março de 1991, ano de publicação do artigo.
29 Consolidamento, p.33 e ss..
30 Corrupção e democracia, p.213 e s..
31 Ética e política, p.88.
32 Corrupção e democracia, p.214.
33 Legalidade, p.136.
34 Os votos podem
ser comprados, inclusive, com recursos de financiamento público, e nesse caso
não se falaria que o financiamento público é corrupto.
Parece ser esta a
idéia de Monica Herman Salem Caggiano, que, ao tratar sobre o tema, em sua obra
Finanças partidárias,
apresenta, em uma primeira parte, um estudo sobre a captação dos recursos para
a campanha, atentando-se apenas às formas adotadas pelos mais diversos
ordenamentos para tanto, e é na segunda parte de seu trabalho, ao tratar dos
gastos, ou seja, da aplicação dos recursos angariados, que se preocupa a autora
com a sua fiscalização, chamando a atenção para o "tratamento legal
conferido à questão, ainda no intuito de coibir que a irregular utilização do
dinheiro e os abusos a que se conduz o incontido desejo de galgar os degraus do
poder possam solapar as bases da democracia" (p.92).
35 Finanças partidárias, p.44 e s..
36 Cf. Manoel
Gonçalves Ferreira Filho, Curso,
p.11.
37 Comentários, p.120.
38 O futuro, p.10.
39 Ética e política, p.94.
40 O futuro, p.39.
* Defensor público do Estado de São Paulo,
mestrando em Direito do Estado pela USP, especialista em Direito Constitucional
pela ESDC, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Escola
Superior de Direito Constitucional, membro da Comissão Cultural do Instituto
"Pimenta Bueno" - Associação Brasileira dos Constitucionalistas.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10927&p=1
Acesso em: 14 out.
2008.