1 – Sendo um convicto apoiante da candidatura do Conselheiro Armando
Leandro ao cargo de Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura,
pensei não escrever qualquer crónica nesta edição do "Justiça e
Cidadania", uma vez que – porque, pelos motivos que adiante enunciarei,
reputo essa eleição marcada para o próximo 19 de Fevereiro como um marco
essencial para o futuro do sistema judiciário – nunca poderia escrever este
mês sobre um qualquer outro facto ou sobre uma qualquer outra matéria que não
a eleição dos Juízes de carreira que irão nos próximos três anos fazer parte
desse Conselho (CSM).
Os motivos dessa minha (passada) intenção derivavam do muito respeito que
tenho por esta publicação e por todas as pessoas que tanto se esforçam para
que o "Justiça e Cidadania" continue a manter um tão bom nível de
qualidade no que respeita aos conteúdos que nele são editados.
Porém, tendo-me sido referido que, mesmo com esse tema, a minha colaboração
continuava a ser bem vinda – e estando assegurado o "princípio do
contraditório" com a publicação de um texto de um ferrenho apoiante do
Conselheiro Noronha do Nascimento e que é, ao mesmo tempo, dirigente do
"Sindicato dos Juízes" (denominação que aceitam com uma alegria que
só me dá arrepios) – eis-me aqui, porventura um pouco panfletário e mais
emotivo do que habitualmente procuro ser nestes meus escritos.
2 – Quando me tornei Juiz, essencialmente por pura motivação ideológica,
aproximei-me e procurei integrar-me num dos grupos que convivia no seio da
Corporação a que tinha passado a pertencer (aos que possam ficar
surpreendidos com esta minha afirmação pergunto se a sociedade portuguesa é
plural como poderiam esperar que essa diversidade não se manifestasse no seio
dos Juízes que são cidadãos e cidadãs como os demais ?).
No outro lado, o que facilitou a minha escolha, campeavam noções e modelos de
Juiz que se traduziam em expressões, para mim abomináveis, como, entre
outras, "a nossa profissão é um sacerdócio" e "dos juízes (com
letra minúscula, como convém) quer-se que trabalhem e não que dêem
trabalho". Essas expressões e os conceitos que a elas estavam
subjacentes (notoriamente herdados dos tempos anteriores a 25 de Abril de
1974), traduziam-se em comportamentos que apontavam para uma hierarquização
dos Juízes em tudo semelhante à definida para a Magistratura do MºPº – mas ao
arrepio e em absoluta contradição com os textos constitucionais e
legislativos que definiam já então o estatuto dos Juízes como titulares de um
poder de soberania autónomo e independente.
O que, repito, era para mim intolerável.
E, tanto quanto me foi possível, participei activamente nas actividades
promovidas por esse grupo – grupo esse que, paulatinamente, foi conquistando
os lugares institucionais de representação e de controle da Corporação. Muito
modestamente, isso também aconteceu com a minha colaboração.
Todavia, à medida que a minha percepção quer do funcionamento do sistema
judiciário quer das regras de comportamento vigentes no seio da Judicatura se
foi tornando mais clara, comecei – nos lugares próprios, como soi dizer-se
(ou seja, em reuniões privadas e em assembleias da Associação Sindical dos
Juízes) – a apresentar as opiniões que tinha sobre a matéria e a propor
alterações quanto ao status quo desses dois sistemas que estão, para o mal e
para o bem, indissoluvelmente ligados.
Para minha grande surpresa, comecei a notar não tanto resistências a essas
propostas (o que seria para mim normal porque reformar a sério é
provavelmente mais difícil do que organizar um golpe de Estado), mas atitudes
que julgava que teriam sido eliminadas com o afastamento do outro grupo dos
lugares de dominação da Corporação e que para mim não se coadunavam nem se
coadunam com o modelo de Juiz que entretanto se havia consolidado no meu espírito.
Ou com o modelo de Democracia em que quero viver e que se encontra consagrado
no texto da Constituição da República.
Experimentei então (em 1993), embora não dirigida à minha concreta pessoa, os
efeitos de uma baixa campanha de calúnias como a que está a ser feita contra
a lista encabeçada pelo Conselheiro Armando Leandro (campanha esta que
começou logo que a ideia de apresentar uma lista de oposição ao grupo
dirigente da Corporação surgiu na cabeça de vários Juízes, nem todos com o
mesmo percurso ideológico e de exercício de funções no seio da Judicatura) –
boataria essa que por vergonha aqui não reproduzo.
(Já agora, numa pequena nota marginal, gostaria de declarar que não sei se
alguma vez algum boato foi contra mim lançado e se dele não tenho conhecimento
apenas porque as pessoas com quem convivo (boateiros e os outros) têm receio
das minhas muito prováveis violentas respostas – o meu único verdadeiro
património é a minha honra – ou se realmente, mais não seja até agora, por
qualquer privilégio do destino escapei à maledicência.)
Com esse tipo de "respostas" pretende-se, no fundo, evitar que os
Juízes confrontem os verdadeiros problemas que hoje explodiram nas suas mãos
e nas vidas de todos os cidadãos do país, incluindo os cidadãos e cidadãs que
são Juízes – e já antes se colocavam (aqueles que eu só notei no princípio da
década de 90, sei-o agora, deveriam ter começado a ser discutidos, pelo
menos, a partir de 1985) e é porque não o foram que chegámos todos a este
quase buraco negro paralisante que é actualmente a Justiça em Portugal –
evitar que estes se apercebam que é possível, em Portugal, neste terceiro
milénio, ser verdadeiros titulares de um poder de soberania do Estado (em vez
de assalariados mais ou menos acarneirados como muitos querem que sejamos) e
prestar aos nossos concidadãos, de quem somos também representantes, uma
verdadeira e boa justiça realizada em tempo útil.
Pretende-se manter sobre os Juízes um controlo antidemocrático e manter o
controlo de uma "máquina" que pode, assim, ser usada até para a
satisfação de interesses meramente pessoais ou de um pequeno grupo.
Ironicamente, passados quase 15 anos, porque não foi, no essencial, alterada
a estrutura do "aparelho" do CSM (nomeadamente no que respeita ao
serviço da Inspecção), pessoas que tanto lutaram pelo afastamento dos membros
do tal outro grupo a que inicialmente me referi, estão a comportar-se como
eles.
E se o velho conceito do Juiz humilde e deferente (venerando e obrigado) foi,
felizmente, erradicado, a verdade é que esse grupo que actualmente controla
os Juízes impediu – essa é a conclusão a que me vi forçado a chegar a partir
de tudo o que vivi e conheci nestes últimos anos – o desenvolvimento de um
novo modelo de Juiz democrático e de uma nova concepção do sistema judiciário,
que o adapte à satisfação das necessidades e dos direitos de cada concreto
cidadão desta nossa Comunidade e que o mantenha em condições de,
permanentemente, se adaptar às novas condições e necessidades sociais, às
mudanças, que inevitavelmente surgirão pelo simples passar dos tempos.
Sem um tal sistema judiciário, é verdadeiramente o sistema democrático que
está em perigo (veja-se o que recentemente aconteceu com a eleição
presidencial nos Estados Unidos da América).
Por isso a eleição de 19 de Fevereiro é tão importante (a de 14 de Janeiro
também o foi e, porventura, foi-o ainda mais – mas esta marcará, para o bem e
para o mal, toda a transformação que o sistema judiciário irá ter, ou seja,
será determinante na evolução que esse sistema vai necessariamente sofrer).
3 – Dado o actual estado da Corporação Judicial, seria desonesto da minha
parte prometer aqui ou na campanha em que estou a participar (e só a
descrição do modo como essas campanhas se realizam poderia servir de tema
para um destes meus escritos – digo aqui apenas que rio para não chorar) que,
mesmo em caso de vitória do Conselheiro Armando Leandro, tudo vai ser
diferente a partir de 20 de Fevereiro.
E, pese embora os meus inúmeros defeitos, desonesto é algo que não sou.
Mas sem essa vitória tudo se tornará ainda mais difícil, porque o papel do
Conselheiro Vice-Presidente do CSM é ou pode ser estruturante, como
provavelmente mais nenhum (mas depende da pessoa que o ocupa), na definição
do futuro da Judicatura e do funcionamento do sistema judiciário. Até porque
a dita Associação Sindical dos Juízes é aquilo que todos os Juízes sabem.
Seja-me permitido um novo aparte.
No ano passado comecei por participar activamente num movimento para
renovação dessa Associação – aliás, Sindicato – e tive um papel de alguma
relevância nos seus primeiros passos.
Cedo me apercebi que alguns desses democratas não passavam de meras más
fotocópias do Conselheiro Noronha do Nascimento.
Ora, mal por mal, prefiro o original que é uma pessoa que tem qualidades que
esses seus discípulos nunca terão por mais que se esforcem. E desse modelo
que o Conselheiro Noronha do Nascimento personifica só quero distância.
Não fiquei, portanto, surpreendido quando vi essas pessoas a convergir com
aqueles que ainda ontem eram uns seus tão cabeludos inimigos. E só por pudor
não conto aqui pormenores da reunião em que por três ou quatro votos – num
universo de menos de 20 pessoas – essa convergência foi decidida, reunião
essa à qual não estive presente mas que me foi relatada por várias pessoas
que nela, agoniadas, participaram e cujos relatos são absolutamente
fidedignos como esses convergentes democratas bem sabem.
Até por isso, é útil uma boa barrela. Espero que isso seja perceptível para a
maioria dos membros da Corporação a que pertenço. Ou mais ainda anseio que
isso aconteça.
No dia 19 de Fevereiro, os Juízes têm nas suas mãos bem mais do que apenas o
seu destino.
Que imagem quererão os Juízes dar a si próprios e de si próprios?
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