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ENTRAVES POLÍTICOS À ATUAÇÃO DA JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA NO COMBATE AO ABUSO DE PODER ECONÔMICO
Considerações
sobre a legislação eleitoral e a (não)
consolidação da democracia representativa no Brasil
Eloise Moreira Campos
Monteiro
Servidora do TRE-AC
Mestre em Direito pela UNISINOS
São Leopoldo - RS
Doutoranda em Ciência Política
pelo IUPERJ -RJ
e-mail: emonteiro@iuperj.br
Quando criada a Justiça Eleitoral no Brasil, em 1932,
sua atribuição principal era o combate às
fraudes, tão comuns na República Velha. Durante o
período do Estado Novo (1937-1945), foi retirada do cenário
e só voltou em 1946, inserida na Constituição
daquele ano. A preocupação principal era criar
mecanismos que evitassem as fraudes, que consistiam principalmente na
adulteração de cédulas e urnas, votos de
"cabresto" e contagens viciadas de votos.
Com o advento do voto eletrônico, em 1996, e,
recentemente, a utilização de urnas eletrônicas
em todos os municípios brasileiros, uma conquista da nossa
Justiça Eleitoral, diminuiu-se consideravelmente a
possibilidade de ocorrência desse tipo de fraude que, hoje,
pode-se dizer, foi substituído por um outro, mais refinado e
difícil de combater: o abuso do poder econômico. A
Constituição Federal confia o combate a esse abuso à
Justiça Eleitoral, que, no entanto, não tem conseguido
pleno êxito no cumprimento da tarefa.
Um dos principais motivos para essa dificuldade em investigar
e punir os responsáveis pelo abuso de poder econômico
nas eleições, coibindo assim essa prática, está
na forma como são criadas as leis eleitorais em nosso país.
São características da legislação
eleitoral o enfraquecimento dos partidos, com a ênfase ao
individualismo dos candidatos e a preocupação em
dificultar o trabalho de investigação e repressão
ao abuso do poder econômico. Prova da instituição
forçada desta dificuldade está no exígüo
tempo à disposição da Justiça Eleitoral
para análise das contas, escassez de sanções e
ausência de publicidade das contas político-partidárias
e de financiadores. Outra barreira imposta à ação
judiciária eleitoral, relacionada à crise da democracia
representativa, consiste na cultura fortemente disseminada de
impunidade quanto a crimes políticos aliada à
cumplicidade criada entre os membros dos Poderes Legislativo e
Executivo para proteção mútua.
A falta de neutralidade na votação das leis que
regulam a vida política de um país não é
"privilégio" do nosso país. Herbert Alexander
observa, ao comentar a reforma política dos Estados Unidos,
que não há neutralidade nas reformas pois, quando as
regras do jogo são mudadas, vantagens também mudam. Por
este motivo, as leis eleitorais freqüentemente são usadas
como instrumentos para atingir determinados objetivos políticos.
Podemos dizer que a forma de atuar do Poder Legislativo tem
retardado a consolidação da democracia representativa
brasileira. Procuramos analisar como se dá essa interferência
do Poder Legislativo na atuação da Justiça
Eleitoral quanto ao controle das finanças de campanha.
Conforme Guillermo ODonnel, a escassez de instituições
realmente democráticas e o estilo de governo praticado em
países como o Brasil caracterizam uma democracia "delegativa",
numa situação em que, "mesmo não havendo
ameaças iminentes de regresso ao autoritarismo, é
difícil avançar para a consolidação
institucional da democracia". Apesar da inserção
de mecanismos que podem levar a uma democracia, como eleições
gerais, diretas e periódicas, "elas não atestam
sua efetivação nem sua estabilidade". A
consolidação depende de vários fatores e, dentre
eles, está o fortalecimento das instituições
democráticas, que incluem os partidos políticos, o
Congresso e o Judiciário. O fortalecimento do Judiciário,
por sua vez, depende do sucesso do regime democrático, dentre
outros fatores. Leis que enfraquecem os partidos, fortalecem as
elites, dificultam investigações contra o abuso de
poder econômico e tiram a necessária publicidade dos
atos relacionados ao poder aliam-se aos problemas inerentes
enfrentados pelo Poder Judiciário brasileiro em geral, que se
depara com uma crise de proporções gigantescas,
relacionada com a própria crise do Estado, envolvido pelo
discurso neoliberal que prega o Estado mínimo, confunde as
barreiras entre o público e o privado e impede a separação
entre poder político e poder econômico.
Os problemas enfrentados pelo Judiciário brasileiro,
que passa por uma crise de grandes proporções, já
se disse, não podem ser justificados somente pelos problemas
inerentes à falta de consolidação da democracia.
No caso da Justiça Eleitoral, no entanto, a ausência de
uma democracia consolidada influi com mais intensidade, o que se deve
ao papel regulador dessa justiça perante os atos relacionados
ao poder, aos partidos políticos, candidatos e eleições.
Apesar de terem sido editadas tantas normas relativas às
eleições, pouca coisa tem sido mudada desde a
constitucionalização dos partidos políticos no
Brasil, em 1946. Já em 1955, Ruy Bloem comentava a existência,
no Código Eleitoral brasileiro, de dispositivos "sorrateiros
e diabólicos, num sistema político em que precisamente
o personalismo deveria desaparecer para dar lugar apenas às
correntes de opinião arregimentadas em partidos".
Detalhes são acrescentados ou retirados, de forma a
privilegiar os políticos que já estão no poder,
ou pelo menos com o fim de não os prejudicar. Temos assim uma
legislação de cunho elitista e personalista, uma vez
que, repita-se, há o constante enfraquecimento dos partidos e
engrandecimento dos candidatos, individualmente. Criar mecanismos que
autorizem, disfarçadamente, a vitória nas urnas pelo
uso do poder econômico e que, ao mesmo tempo, dissociem os
candidatos de seus partidos é uma forma clara de preservação
de uma democracia elitista em detrimento da democracia
representativa.
Por outro lado, os aspectos políticos que envolvem o
processo legislativo levam à criação de normas
eleitorais de difícil cumprimento. Dentre as dificuldades,
está o tempo exíguo à disposição
dos servidores do Controle Interno dos Tribunais para a análise
das prestações de contas: estas podem ser entregues até
o trigésimo dia após o primeiro turno ou após o
segundo turno, se o candidato o estiver disputando. A Resolução
TSE n. 20.506, de 18/11/99, que estabeleceu o Calendário
Eleitoral para as eleições municipais de 2000,
estipula, com base na Lei n. 9.504/97, que o prazo para envio das
prestações de contas encerra-se no dia 31 de outubro,
para os candidatos não concorrentes ao segundo turno, e dia 28
de novembro, para os que concorreram nos dois turnos. A publicação
das decisões que julgaram as contas de todos os candidatos
deve ser feita até o dia 11 de dezembro, ou seja, oito dias
antes da diplomação. Os servidores que analisarão
as contas de candidatos do Brasil inteiro terão, assim,
aproximadamente vinte dias úteis para cumprir a tarefa - na
verdade, um desafio!
A grandeza e beleza de nossa democracia tem presença
constante nos discursos públicos dos políticos
brasileiros. Temos problemas, mas temos uma democracia, dizem.
Repetem, insistentemente, que é preciso fortalecer os partidos
políticos e moralizar a competição eleitoral.
Reformas e mais reformas constitucionais se sucedem, mas tudo fica
como está. Isso pode ser observado a partir de uma análise
minuciosa da reforma política que se está preconizando
para o Brasil, cuja comissão foi presidida pelo Senador
Humberto Lucena, eleito pelo mesmo partido do atual Presidente da
República. Uma Comissão Temporária Interna foi
instalada, no Senado, em 21 de junho de 1995, com o objetivo de
estudar tal reforma. A última reunião da comissão
deu-se em 11 de novembro de 1998, portanto, três anos e cinco
meses depois. A comissão tinha como objetivo "realizar um
amplo debate com a finalidade de propor um modelo de legislação
político-partidária permanente, estabelecendo uma
agenda básica de discussão".
O relatório contém discussões e propostas
de emendas sobre o sistema eleitoral, fidelidade partidária,
partido nacional e desempenho eleitoral, domicílio eleitoral e
filiação partidária, duração do
mandato de senador, datas de posse, voto facultativo, divulgação
de pesquisas eleitorais, imunidade parlamentar, número de
vereadores, limite de gastos do legislativo municipal, suplentes de
senadores, financiamento de campanhas e cláusula de
desempenho.
Chama atenção a observação feita,
no início do relatório, de que a Comissão
diagnosticou que o principal problema é a fragilidade da vida
partidária brasileira:
"A nossa legislação tem conduzido, sempre, ao enfraquecimento dos partidos políticos e ao reforço da atuação individual. Isso pode ser verificado a partir do nosso sistema eleitoral, proporcional com listas abertas, que, conforme asseverou o Ministro Jobim, além do Brasil, só é praticado na Finlândia. Tal sistema incentiva a disputa no seio dos partidos, dificultando, sobremaneira, a coesão partidária".
A introdução do Relatório salienta que
todas as proposições ali presentes "fundam-se no
princípio (...) da importância do fortalecimento dos
partidos políticos como pressuposto indispensável da
irreversibilidade do estado de direito".
Porém, analisando as propostas de reforma, podemos
perceber que não é bem o que será alcançado.
As principais mudanças almejadas com a reforma são a
instituição do sistema distrital misto para as eleições
para a Câmara dos Deputados; a vedação de
coligação partidária nas eleições
legislativas (proposta de emenda número 42, de 1998); a
previsão de perda do cargo nas hipóteses do ocupante de
cargo eletivo deixar o partido sob cuja legenda foi eleito (somente
no Legislativo) ou cometer violação grave de disciplina
partidária caracterizada pela desobediência às
decisões aprovadas em convenção (membro do
Legislativo ou chefe do Executivo, proposta número 44/98); a
adoção do voto facultativo (proposta número
39/98); a diminuição do tempo do mandato dos Senadores
de 8 (oito) para 6 (seis) anos; a perda do direito ao acesso gratuito
ao rádio e à televisão para os partidos que não
tenham caráter nacional, ou seja, os partidos precisarão
obter, pelo menos, cinco por cento dos votos apurados, não
computados os brancos e nulos, distribuídos em, pelo menos, um
terço dos Estados, com o mínimo de dois por cento do
total de cada um deles (projeto de Lei do Senado para alteração
dos artigos 41 e 48 da Lei Orgânica dos Partidos Políticos
9.096/95).
Quanto ao financiamento dos partidos e das campanhas
eleitorais, fala-se, no relatório, em "necessidade de
afastar o abuso de poder econômico nas eleições e
garantir a isonomia na competição". No entanto,
pretende-se aprovar uma lei que garanta a desigualdade entre os
competidores, objetivo que será alcançado com a
instituição do financiamento exclusivamente público
na proporção das bancadas dos partidos.
A publicidade dos atos do poder "representa o verdadeiro
momento da reviravolta na transformação do estado
moderno, que passa de estado absoluto a estado de direito". A
lei, no entanto, ordena que seja publicada apenas a "decisão
que julgar as contas de todos os candidatos, eleitos ou não"
(art. 30, § 1º, da Lei n. 9.504/97). Não há
publicação de dados importantes das prestações
de contas, como os nomes de quem financiou as campanhas, valor total
de gastos ou de arrecadação. Portanto, além de
ser prerrogativa dos partidos e do Ministério Público a
denúncia de irregularidades no financiamento, não há
publicidade das contas. Os processos ficam à disposição
para consultas na Justiça Eleitoral, mas não são
levados a público os nomes de quem pagou a campanha de seus
candidatos. Na verdade, o eleitor não toma ciência,
oficialmente, nem mesmo do resultado final do julgamento das contas,
pois somente é feita uma publicação nos diários
oficiais, distantes da grande maioria da população.
A obrigatoriedade de divulgação pública
ao menos dos nomes dos doadores seria uma forma de diminuir a
avalanche de recursos recebidos e facilitar a fiscalização
por parte da Justiça Eleitoral, como acontece no Canadá.
A lei eleitoral do Canadá (Canada Elections Act), que
teve sua última alteração, no que se refere a
financiamento, em 1974, estabelece limites de gastos e, ao mesmo
tempo, obriga a publicação de sumários com
contribuições e gastos dos candidatos em jornais
diários do País, em cada circunscrição
eleitoral. Além disso, a Comissão Eleitoral do Canadá
mantém divulgação na internet dos
detalhes completos das contribuições e gastos
correspondentes a todos os 1.672 candidatos da última eleição
geral (1997), assim como as declarações financeiras
anuais dos partidos políticos registrados.
Apesar de contar com uma democracia completamente distante da
realidade brasileira, em todos os seus aspectos, inclusive
sócio-econômicos, o Canadá oferece uma preciosa
lição no que se refere ao controle das contas por meio
da publicidade, que poderia, sem restrições, ser
aplicada no Brasil.
A cada lei editada, maior a abertura dada à ação
dos partidos e candidatos na escalada rumo ao poder. Sanções
resumidas a multas são a prova maior desse fato, já que
a aplicação de penas pecuniárias para quem o
dinheiro não significa problema maior não pode surtir
efeito. Na mesma proporção em que sanções
são abrandadas ou retiradas, aumenta a cumplicidade entre os
políticos, já eleitos ou não; uma espécie
de "contrato de camaradas" onde é falta grave
denunciar os "colegas".
A cumplicidade entre os políticos muitas vezes torna
letra morta o disposto na legislação eleitoral
brasileira. Um dos episódios mais marcantes que ilustra muito
bem esse fato aconteceu envolvendo o Senador Humberto Lucena
(PMDB-PB). Ficou o acontecimento registrado pela imprensa como
"Escândalo da Gráfica do Senado". Utilizar a
gráfica do Senado, ou de "qualquer repartição,
federal, estadual, municipal, autarquia, fundação do
Estado, sociedade de economia mista, entidade mantida ou
subvencionada pelo poder público, ou que realiza contrato com
este, inclusive o respectivo prédio e suas dependências"
para confecção de material de propaganda é
crime, conforme o art. 377 do Código Eleitoral, e a pena está
cominada no artigo 346 do mesmo diploma legal: "detenção
de até 6 (seis) meses e pagamento de 30 (trinta) a 60
(sessenta) dias-multa". O que ocorreu, porém, com o
Senador Humberto Lucena não chegou perto de sanção
alguma. O Presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou, sem vetos,
a Lei 9.985, de 7.2.95, anistiando o parlamentar.
Antes do escândalo da gráfica do Senado, o Brasil
assistiu a uma novela denominada "o escândalo da pasta
cor-de-rosa". Estariam escondidas nessa pasta listas de
candidatos supostamente beneficiados irregularmente pelo Banco
Econômico, na campanha de 1990. Esse acontecimento "mostra
cabalmente o potencial explosivo de uma prática em que a lei é
burlada. Ou, no dizer de um deputado, de uma situação
em que ninguém pode atirar a primeira pedra, porque todos, sem
exceção, têm telhado de vidro".
Há um excesso de prescrições legais
quanto às verbas eleitoreiras, em comparação com
o número de sanções. Existem limites para
doação, limites para gasto, prazo para entrega de
prestação de contas, formulários-modelo a serem
preenchidos, obrigação de manter a documentação
em arquivo durante determinado período, prazos para registro
de candidatos e comitês financeiros. As sanções,
em sua maioria, no caso de desobediência a essas regras, são
meramente administrativas, como aplicação de multas,
atraso na diplomação de candidatos eleitos e suspensão
de repasse das cotas do Fundo Partidário ao partido. A única
exceção dá-se quando as contas de algum
candidato são julgadas irregulares; neste caso, haverá
processo criminal eleitoral para apuração de abuso de
poder econômico.
O partido que descumprir as normas fixadas na Lei 9.504/97, no
que se refere à arrecadação e aplicação
de recursos financeiros, perderá o direito de receber a cota
correspondente do Fundo Partidário durante todo o ano
seguinte. O candidato infrator poderá responder por abuso do
poder econômico, o que pode levar à impugnação
ou cassação do mandato e, ainda, poderá
tornar-se inelegível nas três eleições
seguintes.
Os casos previstos na lei que poderiam ensejar a penalidade
máxima, ou seja, suspensão das cotas do Fundo
Partidário aos partidos e processo por abuso de poder
econômico para os candidatos, seriam os de recebimento de
valores oriundos de entidades estrangeiras, públicas ou
ligadas ao poder público e sindicatos ou, ainda, qualquer ato
que retire a característica igualitária do pleito. Este
ato pode estar ligado à captação de sufrágios
(crime do artigo 299 do Código Eleitoral, que corresponde à
compra de votos). Caso fique provado que o partido recebeu ou está
recebendo recursos financeiros de procedência estrangeira, seu
registro civil e estatuto poderão ser cancelados pelo Tribunal
Superior Eleitoral, após o trânsito em julgado da
decisão. Essa é a previsão inserida no artigo
28, inciso I, da Lei 9.096/95 (Lei Orgânica dos Partidos
Políticos).
Quando registra os candidatos, deve o partido informar o
limite máximo de gastos que poderá efetuar por
candidatura. Os gastos acima do teto estabelecido pelo partido
sujeitam o candidato a pena de multa, de cinco a dez vezes a quantia
que gastou em excesso. Esta infração está
relacionada com a previsão do artigo 18 da Lei n. 9.504/97. O
limite, na verdade, é fictício, uma vez que o partido
pode informar o valor máximo que entender. Pode multiplicar a
previsão inicial por dez, por vinte, e assim nunca será
problema se o candidato acabar gastando mais do que o previsto
inicialmente.
A Lei n. 9.100/95, que vigorou para as eleições
municipais de 1996, estabelecia punições mais severas
para o candidato que gastasse recursos acima do valor estabelecido
pelo partido ou coligação para aplicação
em campanha eleitoral: "detenção de um a três
meses e multa de 4.000 a 12.000 UFIR ou de valor igual ao excesso
verificado, caso seja superior ao máximo aqui previsto".
A multa ficaria, se a lei ainda estivesse em vigor em 2000, entre R$
4.258,00 (quatro mil duzentos e cinqüenta e oito reais) e R$
12.774,00 (doze mil setecentos e setenta e quatro reais). Este fato
estava previsto no título "Dos Crimes Eleitorais",
ou seja, não era mera infração administrativa,
como a lei atual determina, mas crime eleitoral. Além disso,
havia previsão para detenção, e não
simplesmente multa (apesar de duvidosa a aplicação da
pena de prisão nesses crimes).
Também é infração administrativa
doar recursos que ultrapassem o limite legal (10% dos rendimentos
brutos auferidos no ano anterior à eleição para
pessoas físicas e 2% do faturamento bruto do ano anterior para
as pessoas jurídicas), e a sanção é
pecuniária: multa de cinco a dez vezes a quantia em excesso
(art. 23, § 3o, da Lei 9.504/97). Essa regra vale
para pessoas físicas e jurídicas e, ainda, para o
candidato que esteja utilizando recursos próprios na campanha
(como se ele mesmo doasse a sua própria campanha).
Além da multa, as pessoas jurídicas que
ultrapassarem o limite fixado estarão sujeitas à
proibição de participar de licitações
públicas e de celebrar contratos com o Poder Público
pelo período de 05 (cinco) anos. Essa pena é
determinada pela Justiça Eleitoral, em processo no qual deve
ser assegurada ampla defesa.
As prestações de contas podem ser julgadas
irregulares se estiverem desobedecendo ao estabelecido na lei atual.
Essa irregularidade, porém, não pode ser por questões
formais ou materiais. Deve ser por questão de fato, ou seja,
receber limites acima do permitido, gastar acima do declarado ou
receber recursos de pessoas desautorizadas pela lei (como sindicatos
e entidades estrangeiras). Na maioria das vezes, porém, o fato
de ter recebido ou gasto acima do limite não está
consignado na prestação de contas, terá que ser
apurado pela Justiça Eleitoral, além do exame das
contas. Se for encontrada alguma irregularidade, não será
aceita a prestação, e o partido poderá, além
de não receber as quotas do Fundo Partidário enquanto
perdurar o julgamento, ter seu registro e estatuto cancelados pelo
Tribunal Superior Eleitoral, após o trânsito em julgado
da decisão que assim reconhecer. O mesmo ocorrerá se o
partido não apresentar as contas.
Mesmo com a aplicação da sanção, a
legislação não tem impacto sobre os políticos,
que continuam agindo da mesma forma, já que a sanção
é branda, chegando, no máximo, a pagamento de multa ou
suspensão temporária dos direitos políticos.
Passado esse período, volta-se ao cenário político,
sem problemas legais.
É o caso do ex-presidente Fernando Collor, que, após
ser julgado inapto a se candidatar e a exercer cargo eletivo por oito
anos (Resolução n. 101/92, do Senado Federal), pretende
voltar ao cenário político brasileiro nas eleições
de 2002. Inclusive, já está fazendo reuniões
políticas com esse fim: "já está em
campanha aberta para voltar à Presidência da República,
embora continue com seus direitos políticos suspensos até
o ano 2000 (...) A festa de anivesário do ex-presidente tinha
clima eleitoral e 600 camisas foram distribuídas com o nome
Collor bordado no peito e medalhas douradas com a efígie
delle". Até a placa do carro do casal Collor faz
referências a sua volta à arena política com as
letras MUP, que teriam o significado "Mais Uma (vez)
Presidente".
Outro exemplo ocorreu durante a última campanha
presidencial (1998) e envolveu o Ministro da Previdência
Social, Waldeck Ornélas. Em matéria intitulada "O
crime compensa", publicada no jornal Folha de São
Paulo de 29/08/98, o jornalista Fernando Rodrigues comentou o
ocorrido na campanha eleitoral de 1998, em que foram enviadas
17.600.000 (dezessete milhões e seiscentas mil) cartas para os
segurados do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) que
traziam um texto defendendo a reforma da Previdência, todas
assinadas pelo ministro. Tratava-se de propaganda eleitoral
disfarçada, e o Tribunal Superior Eleitoral condenou o
Ministro ao pagamento de multa no valor de R$ 19.200,00 (dezenove mil
e duzentos reais). Indagava o jornalista: "É ou não
é um caso típico em que valeu a pena correr o risco?
Foram R$ 4,9 milhões por apenas R$ 19,2 mil (isto) na hipótese
de o STF confirmar a multa. (...) O pecadilho de Ornélas nos
remete a um problema maior. Uma espécie de escudo invisível
como o do comercial da pasta de dente parece separar a
população da realidade do país. Absurdos
acontecem. Todos vêem. Mas tudo é consentido, tolerado".
A impunidade consentida traz cada vez maior certeza na
ineficiência das normas, o que acarreta uma "descrença
e desconfiança generalizada, abarcando, inclusive, pessoas e
instituições cuja destinação é a
preservação das normas (polícia, Judiciário)".
No caso do abuso do poder econômico não punido de forma
eficaz, a situação torna-se mais comprometedora para a
confiança na Justiça, uma vez que os fatos relacionados
ao abuso são públicos, ligados a pessoas públicas
e amplamente noticiados. Forma-se, assim, um círculo vicioso:
a Justiça não consegue coibir os abusos, cria-se a
descrença generalizada nas leis e no Judiciário e
aumenta a prática abusiva (causada pela certeza de que os
outros também cometerão abusos), o que dificulta ainda
mais a ação da Justiça. Por outro lado, a
freqüente impunidade dos crimes ligados ao poder político
prejudica as condições de reprodução do
próprio sistema democrático.
Numa visão neoliberal, há quem defenda a total
desregulamentação das finanças de campanha,
alegando que deve a política funcionar como a economia
capitalista e que é impossível tal controle por parte
de leis. Acreditamos, no entanto, ser necessário, para a
consolidação da democracia no Estado de Direito, um
controle eficaz das verbas de campanha, que tire do cenário
político o fenômeno do "abuso de poder econômico"
e os grandes favorecimentos aos grupos econômicos e
empresariais financiadores. O direito de participar do processo
eleitoral como candidato é um direito político que faz
parte dos direitos e garantias fundamentais expostos na Constituição
Federal. Liberar o uso dos recursos econômicos nas campanhas
para deixar que o mercado regule significa negar qualquer
possibilidade de participação política (no
sentido de concorrer aos cargos públicos) às classes
mais baixas.
A discussão sobre a regulação ou não
das verbas políticas vai além de uma escolha simples
que leve em conta funcionalidades, conveniências ou
adaptabilidades. Ela é influenciada e, em grande parte,
determinada pelas políticas inseridas no discurso da
globalização, que nos levam a uma sociedade, na
verdade, neofeudal, com ausência de dissociação
entre esfera privada e esfera pública, poderio econômico
e poderio político. A não-interferência estatal,
parte do discurso do neoliberalismo, deve ser afastada.
O dinheiro político relaciona-se diretamente com as
técnicas de convencimento dos eleitores e, portanto, com a
cidadania. A existência de tantos cidadãos "apolíticos"
e desinteressados, contaminados por uma forte apatia, não se
deve somente às condições socio-econômicas
precárias em que vivem. A visão que possuem de
democracia e de política deturpa-se cada vez mais, tanto por
causa dos maus governantes quanto pelos escândalos que envolvem
as campanhas, arenas onde se digladiam incansavelmente os candidatos.
CIDADANIA PARTICIPATIVA, É POSSÍVEL NA AMÉRICA LATINA?
[voz universitária] [artigos jurídicos]
Nesta parte da América Latina, carregamos todos a pesada
herança da "década perdida", dos anos 80,
marcada pela crise da dívida externa, problemas de
infra-estrutura econômica que estão longe de serem
solucionados e assim, o atraso da educação continua
sendo o mais grave problema estrutural do desenvolvimento,
especialmente a educação política para a
cidadania participativa.
Os adolescentes deste final de século recebem, dão ou
absorvem uma espécie de educação para o futuro
que já é presente: a educação dos
sentidos. Aceitam a educação técnica mais que a
familiar. Não têm medo de situações
sociais apontadas como complexas devido à carência de
recursos públicos. O poder de autoridade é contestável
sem nenhuma justificativa aparente. Normas, valores, regras coletivas
e metas sociais têm pesos variados e tendentes a não
serem exercidos senão pela vontade particular. Praticam
transgressões sem problemas de consciência. Apreciam
atitudes marginais e acolhem movimentos politizados das minorias sem
grandes questionamentos. Sendo uma geração de pouca
leituras, é, no entanto, voltada para qualquer tipo de impacto
visual. Usa a inteligência o tempo todo e experimenta tudo,
mesmo o que for mais difícil. A irregularidade é o
desafio. Não se atém a limites entre o biológico
e o tecnológico, a máquina sendo a principal parceira
espiritual. Impele tudo até o limite. Carente de amplas
perspectivas políticas, a nova geração não
se motiva pela crise de representação de grupos de
referência e assim o controle social se torna um problema a
mais e de êxito imprevisível. Os direitos políticos
estão ligados à formação do Estado e a
ele cabe garantir aos cidadãos uma situação de
certeza. É preciso, pois, colocar em evidência o
indivíduo como ser social, que embora não viva mais num
contexto preciso de fronteiras geográficas, precisa aclarar ou
ser aclarado (particularmente para o cidadão mais jovem),
sobre quais os modelos de desenvolvimento político, econômico,
social e cultural que predominam no mundo em geral e no seu em
particular. Mas se tanto já vem sendo feito por que não
se vê resultados no diálogo aberto e franco com os
jovens cidadãos?
A comunicação entre cidadão e Estado tem sido
dificultada pela falta do estabelecimento de um tipo de linguagem
adequada à mobilização geral e especialmente à
dos adolescentes. Sabemos, todos nós, pais, políticos e
educadores, que existe o problema. Falta-nos, todavia, solução.
O voto tradicional tem levado, dos pais aos filhos, à
desconfiança quanto a possíveis fraudes e manipulação
dos resultados da apuração na contagem das cédulas.
Questionava-se e muito que a sua vontade, como eleitor, de eleger
aquele que escolheu, na verdade nunca prevalecia. Diante disto, o
Brasil Eleitoral posicionou-se rapidamente e adotou o modelo do voto
informatizado, através do uso da urna eletrônica. Os
sistemas de segurança das urnas têm tornado a vontade do
eleitor uma realidade concreta e quase inquestionável. Mas
ainda o esforço da Justiça Eleitoral, sozinha, foi
pouco.
No sentido de ampliar os debates sobre temas de interesse para
organismos eleitorais e políticos, uma pequena ONG, sociedade
civil sem fins lucrativos - Instituto Brasileiro Museu do Futuro - em
agosto do ano de 1999 obteve o apoio do Tribunal Superior Eleitoral e
dos 26 Tribunais Regionais Eleitorais para realizar o I Congresso
Internacional de Direito Eleitoral e Partidário - Forum
Mundial, terminando por reunir representantes de 22 países.
Obteve-se também o apoio da ONU e dos 3 maiores Institutos e
Fundações que tratam e orientam sobre matéria
eleitoral e política no mundo: IFES (USA), IIDH-CAPEL (Costa
Rica) e IDEA (Suécia).
No grande balcão de troca de informações entre
os sistemas e modelos adotados nos países representados
naquele Forum Mundial, um dos temas levantados foi o da ampliação
das campanhas de educação cívico-eleitoral. Ali,
naquele Forum, foram apontadas falhas, paliativos, possibilidades de
soluções.
Era preciso ampliar o número de eleitores para garantir a
democracia e, não somente ampliar como fortalecer as
atividades cívico-eleitorais dos eleitores conscientes. Porque
a abstenção dos votantes tem sido alta no mundo todo,
porque o desinteresse político demonstrado pelo jovem eleitor,
seus pais ou irmãos menores continua em escala crescente, era
preciso buscar medidas que visassem desviar da fragilidade os
sistemas já implantados e que mal ou bem consolidam a
representatividade política. O sistema político-eleitoral
é bom no Brasil, o problema é outro: ausência de
ética e caráter, de valores morais no âmbito
político-público. A corrupção e os
desmandos hoje vistos nas televisões não têm sido
pauta de reflexões entre os cidadãos de todas as
idades, mas isto sim, tem levado à desmotivação
na escolha de novos representantes do povo.
O voto informatizado, ao lado da votação tradicional
por meio das cédulas oficiais já elegeu no Brasil
Presidente da República, Governadores, Senadores, Deputados
Federais, Deputados Estaduais e Prefeitos, num processo muito bem
organizado e que registrou um índice de apenas 6% de falhas
técnicas no modelo eletrônico implantado em 1994, falhas
estas reduzidas para aproximadamente 3% nas eleições de
98. Está portanto, o Brasil, hoje, plenamente capacitado para
exportar a técnica para outras nações e
organismos eleitorais. As falhas estão em outro lugar e não
na fórmula aplicada para as eleições. Mas a
Justiça Eleitoral continua tentando melhorar. Falta-lhe,
agora, ampliar e referendar campanhas de educação
cívico-eleitorais, por que não? - lado a lado com os
Institutos e Fundações criadas pelos Partidos
Políticos, com as Cortes e Comissões Eleitorais de
outros países, com organismos internacionais mais experientes.
Não deveria fazê-las sozinha...
Os novos programas sobre educação cívica, nas
escolas e em algumas faculdades, buscam oferecer elementos para que o
estudante melhore seu conhecimento como um ser por si mesmo e de sua
sociedade. Para que melhor compreenda os vínculos entre
direitos e deveres. Para que se reconheça com capacidade de
livremente traçar suas próprias metas. Para que
construa uma convicção profunda de respeito à
igualdade de todos perante a lei. Para saber que um dia poderá
vir a modificar as leis vigentes e, então, melhorá-las.
Os valores estudados no âmbito estudantil têm no entanto
a falha de não se traduzirem em convicções,
atitudes, ações.
Analisar, comparar, investigar o passado e os futuros desafios a
enfrentar, dialogar sobre o papel que podem os jovens vir a
desempenhar, assumir enfim o papel de que são cidadãos
em potencial e que deles e de seus votos vai depender o futuro desta
nação brasileira, este é o papel a ser feito por
oficinas de capacitação cívico-eleitorais, com a
ajuda dos organismos eleitorais e políticos de cada país.
É preciso interessar particularmente às crianças
e aos jovens na política, dar-lhes noções mais
exatas dos serviços públicos eleitorais (pois são
também o sustento da vida comunitária), lembrando
sempre que participar se aprende... participando. Para isto, a arte e
os pincéis podem reforçar o saber.
A educação cívico-eleitoral é um dos
temas a ser discutido em novo encontro internacional: FORO
INTERAMERICANO DE INSTITUCIONES ELECTORALES Y POLÍTICAS - no
Hotel Maria do Mar, em Florianópolis, capital do Estado de
Santa Catarina, Brasil, entre 27 e 29 de abril do ano 2000. Na
Presidência e Vice-Presidência Compartilhadas, Argentina,
Uruguay, Paraguay , Bolívia e Brasil. Entre os Convidados
Especiais, Suécia, Angola, Moçambique, e um destaque
para representantes da OEA, ONU, IFES, BID. Proferindo a Conferência
de Abertura, o Ministro Néri da Silveira, Presidente do
Tribunal Superior Eleitoral, que, durante o I Forum Mundial , em
1999, havia dito claramente: "A educação para a
democracia não pode ser obra, apenas, das campanhas
eleitorais. Iniciada no lar, continuada na escola, desenvolvida no
quotidiano das leituras e das informações, a cultura
política levará o cidadão ao Partido, à
candidatura, ao sufrágio consciente e livre."
Portanto, senhores, garanto: a cidadania participativa é
possível, sim, em toda a América Latina. Basta querer.
**** Noely Manfredini é paranaenses, tem 15 livros publicados
, foi Coordenadora Geral do I Forum Mundial Eleitoral e Partidário
e novamente Coordenadora Geral no Foro Interamericano de
Instituciones Electorales y Políticas).
CONVERSÃO DA PENA RESTRITIVA DE DIREITOS EM PRIVATIVA DE LIBERDADE - POSSIBILIDADE
[voz universitária] [artigos jurídicos]
Assunto muito polêmico e ainda não solucionado,
enfrentado atualmente pelos doutrinadores, pela jurisprudência
e, principalmente, pelos aplicadores do direito no dia a dia forense,
diz respeito das conseqüências do descumprimento
injustificado da proposta de transação penal, de que
trata o artigo 77 e seguintes da Lei n.º 9.099/95.
E, diante da aparente lacuna da Lei 9.099/95, surgiu vários
posicionamentos conflitantes a respeito da possibilidade ou não
da conversão da pena acordada, em privativa de liberdade, o
que despertou-nos o tirocínio jurídico sobre a questão.
TRANSAÇÃO PENAL
Em análise ao artigo 76 da Lei 9.099/95, a Escola Paulista do
Ministério Público formulou, sobre o instituto da
transação penal, o seguinte conceito: "A
transação penal é instituto jurídico
novo, que atribui ao Ministério Público, titular
exclusivo da ação penal pública, a faculdade
dela dispor, desde que atendidas as condições previstas
na Lei, propondo ao autor da infração de menor
potencial ofensivo a aplicação, sem denúncia e
instauração de processo, de pena não privativa
de liberdade".
Não
obstante esse posicionamento, algumas considerações
devem ser observadas a respeito da faculdade do Ministério
público de dela dispor. O instituto da transação
penal trata-se de direito subjetivo do infrator, pois estando
presentes os requisitos exigidos pela lei, só este pode dele
dispor, aceitando ou não a proposta transacional.
Seguindo esse entendimento, escreve Nereu José Giacomolli que
"não é faculdade do Ministério Público,
mas direito público subjetivo do acusado". (Juizados
Especiais Criminais Ed. Livraria do Advogado, pag.
100).
Assim, a faculdade da qual o Ministério Público
dispõe, encontra-se regrada na lei, estabelecendo requisitos
para o seu oferecimento, não ficando ao livre arbítrio
do representante do Ministério Público propor ou não
a transação.
Reforçando este entendimento, temos a posição de
Ada Pellegrini Grinover, juntamente com outros ilustres juristas, que
escreve:
"A primeira leitura do artigo,em sua interpretação
meramente literal, sugere tratar-se de pura faculdade do acusador,
que poderá preferir não transacionar, ainda que
presentes as condições do § 2º do
dispositivo.
E essa leitura se coadunaria com a linha de pensamento que vê a
discricionariedade regulada como forma de prestigiar a autonomia das
vontades e o consenso nas infrações penais de menor
potencial ofensivo.
No entanto, permitir ao Ministério Público (ou ao
acusador privado) que deixe de formular a proposta de transação
penal, na hipótese de presença dos requisitos do §
2º do art. 76, poderia redundar em odiosa discriminação,
a ferir o princípio da isonomia e a reaproximar a atuação
do acusador que assim se pautasse ao princípio de oportunidade
pura, que não foi acolhido pela lei.
Pensamos, portanto, que o poderá em questão
não indica mera faculdade, mas um poder-dever, a ser exercido
pelo acusador em todas as hipóteses em que não se
configurem as condições do § 2º do
dispositivo". (Juizados Especiais Criminais, Ed. Revista dos
Tribunais, 3ª Edição, pag. 140).
Não obstante a este entendimento, não entendemos como
um poder-dever do Ministério Público, mas sim como uma
faculdade regrada, pois o instituto da transação penal
encontra-se estabelecido em lei, pois estando presentes os requisitos
que autorizam a propositura da transação, fica o
parquet obrigado a oferecer a proposta, não podendo se
omitir.
O saudoso escritor Julio Fabbrini Mirabete acrescenta
que:
"Essa iniciativa, decorrente do princípio da oportunidade
da propositura da ação penal, é hipótese
de discricionariedade limitada, ou regrada, ou regulada, cabendo ao
Ministério Público a atuação
discricionária de fazer a proposta, nos casos em que a lei o
permite, de exercitar o direito subjetivo de punir do Estado com a
aplicação de pena não privativa de liberdade nas
infrações penais de menor potencial ofensivo sem
denúncia e instauração de processo. Essa
discricionariedade é a atribuição pelo
ordenamento jurídico de uma margem de escolha ao Ministério
Público, que poderá deixar de exigir a prestação
jurisdicional para a concretização do ius puniendi do
Estado. Trata-se de opção válida por estar
adequada à legalidade, no denominado espaço de
conflito, referente à criminalidade grave". (Juizados
Especiais Criminais, Ed. Atlas, 2º ed., pág.
81).
Diante dessas considerações, definimos o instituto da
transação penal como sendo instituto jurídico
que concede ao Ministério Público a faculdade regrada
de propor, nos delitos de menor potencial ofensivo, a aplicação
imediata de pena não privativa de liberdade, desde que
satisfeitos os requisitos exigidos pela lei, ao infrator, o qual tem
a faculdade de aceitar, cumprindo o acordo e extinguindo a
punibilidade sem gerar antecedentes criminais, exceto para o caso de
nova transação, e caso não cumprindo a proposta
transacional, esta será executada na forma da lei (art. 86 da
Lei n.º 9.099/95).
TRANSAÇÃO PENAL E SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA - NATUREZA JURÍDICA
Na doutrina, existem várias divergências sobre a
natureza jurídica da transação penal. Para
alguns, o instituto da transação penal inserido na Lei
9.099/95, antecede o processo, tratando-se de medida despenalizadora,
oferecendo ao infrator a oportunidade de transacionar acerca da pena
recebida, possibilitando um deslinde rápido ao procedimento,
sem reconhecimento de culpa, vale dizer, sem que a decisão
homologatória da transação penal possa ser
utilizada como título executivo no juízo cível,
a fim de se obter um ressarcimento dos danos eventualmente
sofridos.
O que merece um comentário mais precisado, é exatamente
tratar-se ou não o instituto de "vantagem" concedida
ao infrator de "livrar-se do processo", independentemente
da sua inocência. Seguindo a opinião do ilustre jurista
Maurício Alves Duarte, incrível acreditar que alguém,
convencido da sua inocência, aceite, sem o due process of
law, onde existe o contraditório, ampla defesa e a
produção de provas, a aplicação imediata
de pena não privativa de liberdade ou multa, apenas para
"livrar-se do processo", assim, pagando o que não
cometeu, ou sequer teve participação.
Seguindo esse entendimento, estaríamos diante da verdadeira
ditadura do processo, ou seja "ou se submete à pena ou
serás processado".
Portando, o referido instituto veio, sem dúvida, com o escopo
de desobstruir o Poder Judiciário, mas não deixando de
ser uma medida de aplicação de pena, como erroneamente
sustentam alguns escritores, pois a transação penal
consiste na prestação de serviço à
comunidade ou no pagamento de multa, que segundo o art. 44 do Código
Penal, tratam-se de penas restritivas de direito. Sendo assim, a
transação penal não deixa de ser uma modalidade
de pena, ou como queiram alguns, medida despenalizadora, pois
a aceitação da proposta, apenas não minora os
efeitos de uma possível condenação, mas também,
retira a condição de pena.
Noutro vértice a sentença homologatória possui
natureza jurídica definitiva, pois, aceitando a proposta, o
infrator implicitamente assume a culpa, fazendo com que essa sentença
tenha força de sentença imprópria, pondo-se,
desde já, fim ao processo com julgamento do mérito,
restando apenas, ser executada.
Álvaro Luiz Torrens, ilustre Promotor de Justiça da
comarca de Toledo - PR, como bem ressaltou, em suas razões de
Recurso Extraordinário, nos autos n.º 033/99 que "por
mais que se venha a negar que a sentença homologatória
da transação penal tenha caráter condenatório
impróprio, deve se ter em mente que o artigo 76, caput, da Lei
n.º 9.099/95 trata de aplicação imediata de
pena".
CONVERSÃO
O ponto crucial que ensejou a presente pesquisa, está
exatamente no caso do descumprimento injustificado das condições
estabelecidas na sentença penal. Alguns juristas entendem que
a próxima medida a ser tomada seria exatamente o oferecimento
de denúncia por parte do representante do parquet.
Em posicionamento diverso, no qual situamos, o próximo passo a
ser tomado, diante do não cumprimento injustificado das
condições propostas, é exatamente executar a
medida já aceita e homologado, convertendo-a em pena privativa
de liberdade.
A resistência por parte daqueles que acham inviável a
conversão se ampara em algumas considerações,
analisadas a seguir.
1-) Pena restritiva de direito fruto da transação
penal - mesmo se tratando de pena restritiva de direito,
originária de aceitação da proposta
transacional, não deixa de ser uma garantia fundamental para
quem age com culpabilidade, pois com a transação aceita
e homologada pelo infrator, terá ele todas as garantias
fundamentais, previstas em lei;
2-) Do devido processo legal - a forma ou o procedimento é
emanado da própria lei à apuração das
condutas de menor potencial ofensivo, por respeito ao princípio
do devido processo legal. Afirmar que não se está
observando o devido processo legal no caso de conversão de
pena restritiva de direito em pena privativa de liberdade é
negar vigência ao artigo 98, I da Constituição
Federal, pois é estabelecida para o infrator a possibilidade
de acatamento, ou não, da proposta de transação
penal;
3-) Do contraditório e ampla defesa - aceitar ou não
a proposta é exercer o contraditório e a ampla defesa,
posto que se está a assumir culpa e a renunciar ou desistir de
outras garantias constitucionais ou técnica de defesa, aceitar
a proposta configura uma boa tática de defesa, porque evita a
clausura moral da sentença e os drásticos efeitos que
ela acarreta;
4-) Da impunidade - a conversão servirá para
afastar a impunidade, pois esta tem sido a sensação do
apenado. Caso não for aplicada, seria preciso buscar o jus
puniendi através do processo comum, o qual fatalmente
ficará suspenso indefinidamente (CPP., art. 366). Punição
incerta ou tardia, mais parece ser castigo ou impunidade;
5-) Das normas inerentes ao Estado Democrático de Direito
- nos casos que ensejam a conversão, respeita-se totalmente as
normas pertinentes ao Estado Democrático de Direito, não
só normas adequadas, como também arraizadas no regime
jurídico vigente;
6-) Da simples conversão - na verdade a conversão
que se pretende quando do descumprimento das condições,
não trata-se de simples conversão, mas sim, de medida
amparada em nosso ordenamento jurídico, pois com a aceitação
da proposta, por mais que se tente resistir, a homologação
da transação é uma condenação,
pois há uma aplicação imediata de pena
restritiva de direito, conforme artigo 76 da Lei n.º
9.099/95.
O pouco descaso por parte daqueles que movimentam a máquina
jurisdicional, aceitando, e posteriormente não cumprindo o que
foi estabelecido pela sentença homologatória, sem
dúvida, é mostra de verdadeiro descaso, não só
para com a ação da Justiça, mas também,
para com os instrumentos de sua aplicação
legal.
Toda a movimentação do Poder Judiciário, para
que estabeleça condições, homologue, e com a
inércia injustificada do infrator no cumprimento do que foi
estabelecido, para posteriormente, fazer com que o Ministério
Público ofereça denúncia, é posição
totalmente contrária ao que está positivado em nosso
ordenamento jurídico, pois toda a providência
jurisdicional penal aplicada até então (oferecimento
aceitação e homologação),
tornou-se ineficaz, e afronta, sem sombra de dúvida, o
critério da celeridade, estampado nos arts. 2º e 62 da
Lei 9.099/95.
O desafio dos infratores apenados, por conseguinte, não gera a
sensação de impunidade apenas neles e nos demais
infratores, e sim, gera em toda a sociedade, um péssimo
costume e com certeza, mau exemplo à imagem da Justiça,
difamando ou depondo contra os bons resultados até então
conquistados com o advento da Lei 9.099/95. Dessarte, acaba criando
um descrédito até mesmo para com a própria
austeridade do Poder Judiciário.
A conversão defendida nesse trabalho atuaria como autêntica
profilaxia, fazendo com que os infratores cessem seus comportamentos
dispersivos e insubordinados. Perderiam eles sua arrogância e
senso de desafio e, além disso - o mais importante,
daria bom exemplo a eventuais inadimplentes e serviria de verdadeira
medida de prevenção geral.
Os infratores punidos, pelo menos, fazeriam com que se curvassem
diante do mais e, quem sabe, até fugiria de outras atividades
delinqüenciais, inclinando-se novamente para o bem. Não
sendo punidos pelo delito menor, para o qual a pena foi
transacionada, irão se sentir destemidos impunes, e,
certamente, não hesitarão em praticar delito maior e
mais grave.
Acerca da conversão, a matéria está
pacificando-se entre os autores que escrevem sobre o assunto. Dentre
eles, Júlio Fabrini Mirabete ensina que: "Mesmo no
silêncio da Lei n.º 9.099/95, a pena restritiva de
direitos aplicada no Juizado Especial, quer por condenação,
quer por transação, pode ser convertida em pena
privativa de liberdade. Aplicam-se os arts. 45 do Código Penal
e 181 da Lei de Execução Penal..." (In
Juizados Especiais Criminais, Atlas, 2ª ed., 1997, pg.
133).
O posicionamento é corretíssimo, salvo quanto à
observação de que a Lei 9.099/95 é silente
acerca do assunto. A bem da verdade a referida lei não
silenciou, muito pelo contrário, contemplou de modo expresso e
cogente que:
Artigo 86. "A execução das penas privativas de
liberdade e restritivas de direitos, ou de multa cumulada com estas,
será processada perante o órgão competente,
nos termos da lei". Grifamos.
A Lei 9.099/95, não contemplou expressamente a maneira ou
critério de conversão da pena restritiva de direito em
pena privativa de liberdade, todavia, delegou taxativamente essa
atribuição ao órgão competente, nos
termos da lei. Disso emerge-se saber qual seria este órgão
competente? Não é preciso muito esforço de
pesquisa para responder a dita indagação. O Juízo
da Execução, nos termos da Lei 7.210/84, como órgão
integrante do Poder Judiciário, sem sombra de dúvida, é
o órgão competente.
Ao recomendar que a execução das penas se dê nos
termos da lei, resta concluir-se que os artigos 44, do Código
Penal, com a redação dada pela Lei n.º 9.714/98, e
art. 181, da Lei 7.210/84 são os únicos que tratam da
matéria de pena de prestação de serviços
à comunidade, pena esta, como já visto, é
modalidade de pena restritiva de direito, portanto, sendo os únicos
aplicáveis à espécie, ora abordada.
Novamente utilizando-se da bem elaborada obra de Ada Pellegrini
Grinover, em parceria com outros renomados juristas, o seu
posicionamento não diverge, escrevendo que:
"Dúvida poderia surgir quanto à possibilidade de a
pena restritiva resultante de transação na fase
preliminar poder ser convertida em pena privativa, em virtude de o
art. 5º, LIV, da Constituição Federal, afirmar
'ninguém será privado da liberdade sem o devido
processo legal'.
Mas essa conversão é admissível porque foi a
própria Constituição Federal que, no art. 98, I,
em norma especial e por isso preponderante sobre a de caráter
geral, admitiu expressamente a transação..." E,
acrescenta que: "Nem se diga que essa conversão
infringiria o princípio da legalidade, por não estar
prevista na Lei 9.099 a conversão da pena restritiva de
direitos em pena privativa de liberdade. A previsão legal
existe na Lei de Execuções Penais, à qual o
legislador se refere no art. 86" (In Juizados
Especiais Criminais, Comentários à Lei 9.099 de
26.09.1995, Ed. RT, 1996, 1º ed., pg. 173).
Dissertando sobre o tema, escreve Luiz Flávio Gomes, in
Suspensão condicional do processo, Ed. Revista dos Tribunais,
1º ed., 1995, págs. 139/142, que:
"O Ministério Público, diante de uma infração
de menor potencial ofensivo, nos termos do art. 76, poderá
propor a aplicação imediata de pena alternativa. Em
lugar de lutar pela aplicação de pena (de prisão
ou de multa integral), conta com via alternativa. No instante em que
propõe essa via alternativa, está renunciando à
via normal. A base de tudo é o princípio da
oportunidade regrada. Regrada porque o órgão acusatório
só pode atuar dentro das margens legais, fixadas e, ademais,
tudo conta com controle judicial (v. art. 76, § 3º)
Conformidade penal e processual. Nos dois institutos sub examine a
lei requer a conformidade (anuência, aquiescência,
aceitação) do autor do fato. A diferença reside
no seguinte: no juizado criminal dá-se a denominada
conformidade penal e processual, isto é, o interessado não
só está abrindo mão de alguns direitos e
garantias fundamentais, senão também está
conforme a aplicação imediata de uma sanção
alternativa anglo-saxônico, isto é, o autor do fato, no
instante em que aceita a aplicação imediata de pena
alternativa, está assumindo culpa (mesmo porque nulla poena
sine culpa). Não se trata do plea bargaining que tem por base
o princípio da oportunidade pura e faculta transação
muito mais ampla. A transação no juizado (assim como na
suspensão do processo) tem limite, está
regrada.
Mas está presente a não estigmatização
derivada do processo e da sentença penal condenatória.
É que essa condenação é imprópria
(não gera reincidência, maus antecedentes, rol dos
culpados etc.).
Natureza do ato jurisdicional. O ato jurisdicional que defere a
transação no juizado criminal é uma verdadeira
sentença (v. art. 76, § 5º). Dela cabe apelação.
E é condenatória, porém, imprópria,
porque não gera seus efeitos naturais (reincidência, rol
dos culpados, antecedentes, execução civil etc.),
embora seja suficiente para criar o estatus de culpado, nos termos do
artigo 5º, LVII da CF.
A situação é mais complicada no juizado criminal
(hipótese de aplicação imediata de pena
alternativa em que a aceitação implica culpa). Mas
mesmo assim, tampouco há violação ao princípio
constitucional da presunção de inocência. Temos
que nos valer, aqui, da doutrina da Corte Constitucional espanhola,
que em 04.10.89, decidiu: "A conformidade (anuência,
aceitação, transação) alcança, por
si só, a entidade suficiente para destruir o direito à
presunção de inocência", desde que
manifestada de forma livre, consciente, inequívoca, em
presença de defensor (v. Puente Segura, 1994. p. 114, nota
04). A transação, ademais, é estratégia
de defesa (integra a ampla defesa de que fala a Constituição)
e deita suas raízes na autonomia da vontade. Tudo se celebra,
urge enfatizar, dentro do devido processo legal. Embora a transação
implique o recuo ou a renúncia de algumas garantias, é
inegável que ela mesma está cercada de garantias. Por
isso que é constitucionalmente válida,
independentemente da invocação do disposto no art. 98,
I (que é taxativo).
Em artigo publicado na Revista dos Tribunais, em seu volume 740, pág.
469 - Dos Juizados Especiais Criminais: Reflexões Atuais, o
Procurador de Justiça Jaques de Camargo Penteado, traz as
seguintes lições:
"...não se pode, pois, negar ao Juiz o direito-dever de
liminarmente, confrontar os fatos constantes da investigação
prévia com a narrativa da peça vestibular. Sem controle
que tal, teria o Ministério Público o inadmissível
arbítrio de, carente qualquer interesse socialmente
defensável, sujeitar inocentes aos transtornos, sacrifícios
e azares da ação penal" (Franceschini, J.L. V.
Azevedo. Jurisprudência Criminal do Tribunal de Alçada
Criminal de São Paulo, 1º ed. São Paulo:
Universidade de Direito. 1975, v. 2º, p. 419).
E conclui:
"Imagine-se a insegurança generalizada se um simples
requerimento ou proposta desprovidos de peças de informação
que os amparassem pudessem submeter o cidadão ao foro penal.
Nem mesmo a celeridade almejada justificaria a recepção
de inicial ou discussão de proposta de transação
sem base em provas razoáveis do fato e de seu autor". E,
copia: "Sem que o fumus boni iuris ampare a imputação,
dando-lhe os contornos de imputação razoável,
pela existência de justa causa, ou pretensão viável,
a denúncia ou queixa não pode ser recebida. Claro que o
Juiz não realiza esse controle inicial de modo pleno, como no
caso da pronúncia, uma vez que vai decidir segundo o estado do
processo, dispondo quase que só de elementos informativos. O
que lhe cumpre, portanto, é verificar se, com os dados
colhidos na informatio delicti ou procedimento preliminar,
possibilidade existirá, a final, de sentença
condenatória". (Marques, José Frederico.
Tratado de Direito Processual Penal. 1ª. ed. São Paulo:
Saraiva, 1980, v. 2°., p. 74.). No mesmo sentido doutrinadores
acatados. (Espíndola Filho, Eduardo. Código de Processo
Penal Brasileiro Anotado. Edição histórica, 1ª.
ed. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976, v. 1°. , p. 202. Tourinho
Filho, Fernando da Costa. Processo Penal. 5ª ed. Bauru: Jalovi,
1979, v. 1°. , p. 202. FRAGOSO, Heleno Cláudio,
Jurisprudência Criminal. 3ª ed. São Paulo: José
Bushatsky, 1979, v. 1º., p. 430).
Socorremos uma vez mais aos ensinamentos de Ada Pellegrini que, sobre
a natureza jurídica da homologação da transação
penal, sustenta que: "Trata-se de sentença nem
condenatória nem absolutória, mas simplesmente de
sentença homologatória de transação
penal, com eficácia de título executivo. É
exatamente o que ocorre no campo civil: a homologação
da transação não indica acolhimento nem
desacolhimento do pedido do autor, mas sentença que,
homologando a vontade das partes, constitui título executivo
judicial (art. 584, III, CPC)" (Juizados Especiais
Criminais, Ed. RT, p. 134).
Afrânio da Silva Jardim, por sua vez, acertadamente, afirma
que: "...o Ministério Público, ao oferecer
proposta de aplicação de pena não privativa de
liberdade, está exercendo a ação penal, ainda
que de maneira informal" (Os Princípios da
Obrigatoriedade e da Indisponibilidade nos Juizados Especiais
Criminais, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais 04(48):04, nov. de 1996).
Também Marino Pazzaglini Filho ensina que:
"...Sendo assim, a natureza jurídica da sentença
homologatória da transação penal é
condenatória. Primeiramente, declara a situação
do autor do fato, torna certo o que era incerto. Mas além de
declarar, cria uma situação nova para as partes
envolvidas, ou seja, cria uma situação jurídica
que até então não existia. E ainda impõe
uma sanção penal ao autor, que deve ser
executada.
A sentença homologatória tem efeitos dentro e fora do
procedimento, isto é, tem efeitos processuais e materiais,
produz efeitos ex nunc, para o futuro. Encerra o procedimento e faz
coisa julgada formal e material, impedindo novo questionamento sobre
os fatos" (Juizado Especial Criminal - 2ª ed., Ed.
Atlas, 1997, p. 57).
A proposta do Promotor de Justiça para aplicação
imediata de pena não privativa de liberdade, aceita pelo autor
da infração e por seu defensor, e homologada
judicialmente, tem natureza de sanção penal em sentido
estrito. Portanto, há de se buscar, como razoável
critério de interpretação, alguma forma de
equiparação da proposta à denúncia, como
meio de se assegurar uma forma especialíssima de procedimento
legal e o conseqüente resguardo do due process of law.
A conversão, portanto, é juridicamente possível
de aplicação, a luz do que dispõe o art. 44, §
4º do Código Penal (já o previa o antigo art. 45),
combinado com o artigo 181, da Lei 7.210/84, ambos combinados com o
artigo 86, da Lei n.º 9.099/95, amparado pelo artigo 98 da Magna
Carta.
Os Tribunais Estaduais, de toda parte, vêm decidindo,
corretamente, pelo cabimento da conversão postulada.
Veja-se:
"JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS - Proposta e aceitação
de aplicação de pena restritiva de direito -
Descumprimento pelo infrator - Conversão em pena privativa de
liberdade - Admissibilidade - Inteligência do art. 181 da Lei
7.210/84 - Inaplicabilidade da Lei 9.268/96 - Voto
vencido.
Ementa da Redação: A pena restritiva de direito,
decorrente de proposta e aceitação pelo infrator,
perante o Juizado Especial Criminal, pode ser convertida em privativa
de liberdade quando ocorrer o seu descumprimento injustificado,
consoante o art. 181 da Lei 7.210/84, não se aplicando, ao
caso, a Lei 9.268/95, que proíbe a conversão da pena de
multa em pena privativa de liberdade" (HC 97.00186 - j.
1º.10.97 - Rel. Des. Dimas Fonseca - TJRO, in RT
749/738-41).
"A decisão que homologa a transação penal,
proposta pelo Ministério Público e aceita pela
paciente, tem natureza de sentença e, assim, só poderá
ser alterada por decisão de recurso competente.
Tendo as partes desistido do recurso legal, a r. sentença fez
coisa julgada.
"Se o paciente não pagou a multa imposta, estamos diante
de execução da r. sentença, mas nunca hipótese
de outra denúncia, ainda mais no mesmo processo"
(TACrimSP - HC 314.726/9 - São Paulo - Rel. Juiz Salvador
D'Andrea, j. 20.11.97, v.u. - Apud RT 756/585).
"TRANSAÇÃO PENAL - Homologação por
sentença - Acordo não cumprido pelo autor do fato -
Promoção de execução pelo Ministério
Público - Admissibilidade.
A sentença homologatória de transação
penal, realizada nos termos do art. 76 da Lei 9.099/95, tem eficácia
de título executivo. Por isso, não cumprindo o acordo
pelo autor do fato, só resta ao Ministério Público
executá-lo através de ação própria,
sendo incabível o oferecimento de denúncia para a
instauração de ação penal" (TACrimSP
- HC 322.106/4 - 11ª Câm. - Rel. Juiz Xavier de Aquino, j.
25.05.98 - in RT 756/583-5).
"Se o paciente não pagou a multa imposta, estamos diante
de execução da r. sentença, mas nunca hipótese
de outra denúncia, ainda mais no mesmo processo"
(TACrimSP - HC 314.726/9 - São Paulo - Rel. Juiz Salvador
D'Andrea, j. 20.11.97, v.u.).
A Turma Recursal do Juizado Especial Criminal do Distrito Federal, no
processo n.º 73/98, decidiu:
"PROCESSO PENAL - TRANSAÇÃO - PENA RESTRITIVA DE
DIREITOS - NÃO CUMPRIMENTO. Realizada transação
penal entre o Autor do fato e o Ministério Público,
sendo aplicada pena restritiva de direitos consistente na prestação
de serviços gerais à comunidade, desde que não
cumprida, pode ser convertida em pena de detenção.
Abolida foi apenas a conversão da multa não paga em
pena privativa de liberdade, quando se remete o apenado ao processo
executivo civil" (Acórdão 105951, j. 14.04.98
- Rel. Juiz HAYDEVALDA SAMPAIO, DJDF 15.06.98, p. 103 - in RT
755/674).
Extrai-se do contexto desta veneranda decisão Colegiada, a
posição da jurisprudência do Egrégio
Tribunal de Justiça do Distrito Federal, do seguinte teor:
"...uma
vez descumprida injustificadamente a pena restritiva de direitos
aplicada, a conversão deverá ser feita para pena
privativa de liberdade. Cabe ressaltar que segundo assentada
jurisprudência é vedado ao magistrado inovar a transação
já homologada e receber denúncia formulada contra o
autor do fato" (Apud Processo n.º 1041183/5 -
DJE 12.3.97, part. II, p. 331).
O entendimento mais recente do STJ é no mesmo
sentido:
"Transação Penal/Lei 9099/95, art. 76-Distinção
quanto à SUSPENSÃO DO PROCESSO - Descumprimento de PENA
ALTERNATIVA - Conversão em PENA RESTRITIVA DE LIBERDADE -
Admissibilidade. Criminal. Juizado Especial Criminal. Transação.
Pena Alternativa. Descumprimento. Conversão em penal
restritiva de liberdade. Legitimidade. 1. A transação
penal prevista no artigo 76, da Lei n.º 9099/95, distingiu-se da
suspensão do processo (artigo 89), porquanto, na primeira
hipótese faz-se mister a efetiva concordância quanto a
pena alternativa a ser fixada e, na segunda, há apenas uma
proposta do parquet no sentido de o acusado submeter-se não a
uma pena, mas ao cumprimento de algumas condições.
Deste modo, a sentença homologatória da transação
tem, também, caráter condenatório impróprio
(não gera reincidência, nem pesa como maus antecedentes,
no caso de outra superveniente de infração), abrindo
ensejo a um processo autônomo de execução, que
pode - legitimamente - desaguar na conversão em pena
restritiva de liberdade, sem mau trato ao princípio do devido
processo legal. É que o acusado, ao transacionar renúncia
a alguns direitos perfeitamente disponíveis, pois, de forma
livre e consciente, aceitou a proposta, ipso facto, a culpa. 2.
Recurso de habeas corpus improvido (STJ - HC 8198 - Goiânia
- 6ª T. - Rel: Min. Fernando Gonçalves - j. em 08.06.99 -
DJU I, 01.07.99. pág. 211). No mesmo sentido o STJ, Resp
172.891 - SP - 6ª T. DJU 02.08.1999 (Apud Revista
Jurídica - 263 - SET/99).
A Constituição Federal, como visto, oferece parâmetro
para a medida postulada (CF, art. 98, I), porque foi através
dela que se criou um novo procedimento para as infrações
de menor potencial ofensivo, ou seja, foi a própria Carta
Política quem estabeleceu o norte para o novo tipo do devido
processo legal.
Dizer que a conversão refoge do devido processo legal é
olhar apenas para um lado da moeda, pois quando o apenado cumpre a
pena proposta e aceita, também estaria "pagando" uma
pena sem o clássico e tradicional devido processo legal
(denúncia, defesa, instrução, sentença,
etc.).
Não parece lógico e sensato aceitar o novo procedimento
quando há adimplemento pelo apenado, como sendo alicerce do
devido processo legal, e, a contra-senso, não aceitá-lo
no caso de inadimplência injustificada do infrator.
Negar que o procedimento da execução autônoma da
transação penal reveste-se do devido processo legal, é
argumento que nega vigência às disposições
cogentes do art. 98 da Magna Carta, do art. 181, da LEP e do art. 44,
§ 4º (antigo art. 45, II). Além do mais, fácil
contrapor-se a esse argumento ressaltando-se que quando o apenado
aceita a transação penal e a cumpre, ele também
está a receber uma pena (acordada, aceita e homologada) sem
denúncia, sem ampla defesa ou contraditório, sem
instrução processual e sem sentença
condenatória, só que neste caso ninguém cogita
da falta de observância do devido processo legal. É
irrito que um argumento tenha valor para uma determinada situação,
e para outra similar não. Significa o mesmo que não se
atentar para o outro lado da moeda.
O Promotor de Justiça da Comarca de Silvânia - GO, em
artigo publicado na Internet, salienta que:
"...a execução da pena transacionada é
questão de ordem pública, a qual poderá ficar
totalmente prejudicada pela inviabilidade de sua aplicação
e posterior execução de tal transação
penal, incentivando a impunidade e o incremento da prática da
infração de menor potencial ofensivo, pelo que não
podemos autorizar, absurdamente, a impunidade daqueles que desprezam
as instituições desta Pátria, principalmente a
Justiça".
O adimplemento dos acordos (transação penal) firmados
perante os Juizados Especiais Criminais é altíssimo. Em
várias comarcas do Estado do Panará, o percentual chega
a superar 90% (noventa por cento); o sucesso é acima dos 80%
(oitenta por cento) em Curitiba e porque não no país
todo.
Assim, para os poucos casos de inadimplência, peculiar dos
infratores reticentes ao respeito da ordem jurídica e
democrática, por questão, às vezes, de crasso
desprezo e ignomínia para com a ação da própria
Justiça, quase que em patente desafio à autoridade do
Poder Judiciário, a possibilidade da conversão, ora
defendida, serviria para aniquilar qualquer sensação de
impunidade e, mais do que isso, a conversão representaria o
sucesso total da inovadora da Lei 9.099/95 que tantos benefícios
e avanço trouxe, conseqüentemente, esse sucesso atingiria
a casa dos 100% (cem por cento) de pleno êxito e
eficiência.
De outra parte, na quase totalidade dos casos de inadimplência,
a não conversão implicaria gritante impunidade. Basta
ecoar nos ouvidos dos infratores que o descumprimento da pena
acordada não lhes traz qualquer conseqüência
jurídica mais séria, o percentual de inadimplência
certamente se elevará e, com o passar dos anos, poderá
até chegar a nível que torne inviável o
espírito, sentido e alcance da lei inovadora. É o risco
de se voltar à moda antiga, estigmatizado pelas agruras do
"velho" processo penal, para solucionar fatos que a lei
considera de menor significância jurídica ou, na
linguagem da lei, de menor potencialidade ofensiva.
Não se pode, pois, negar vigência aos dispositivos
reguladores da matéria (CF, art. 98; LEP, art. 181 c/c. CP,
art. 44, §4º, e Lei 9.099/95, art. 86). Lutar pela
aplicabilidade da conversão significa lutar contra a
impunidade que poderia resultar extreme em muitos casos, significa
lutar pelo sucesso total da lei que rege o Juizado Especial Criminal.
Na maioria dos casos, a inadimplência se deve pelo fato do
apenado haver desaparecido do distrito da culpa. Muitas vezes o
"sumiço" se deve porque tem contas a acertar com a
Polícia ou com a Justiça. Daí, preferível
que se aplique a conversão e se aguarde eventual execução
da ordem de prisão em seu desfavor, quando, dependendo da
situação concreta de cada caso ou da justificativa que
fosse apresentada pelo apenado, até que poderia cogitar-se do
restabelecimento do benefício, do que "inovar" a
sentença homologada, oferecendo denúncia que, uma vez
recebida, ficaria relegada ao esquecimento nas prateleiras
empoeiradas das escrivaninhas criminais das comarcas do Brasil, por
força do que dispõe o art. 366, do CPP.
Nem se pretenda dizer que caberia ordem de prisão em tais
hipóteses, com arrimo na parte final do art. 366, com a
conjugação do art. 312, ambos do CPP, porque as
infrações de menor potencial ofensivo (Lei n.º
9.099/95, art. 61), às quais admite-se a transação
penal (art. 76), nem sempre estariam sujeitas à prisão
preventiva, por vedação expressa do art. 313, do CPP
que, trata dos pressupostos de admissibilidade da prisão
cautelar.
As hipóteses de aplicação da transação
penal, geralmente são de contravenções penais,
cuja pena cominada é de prisão simples. Logo, não
caberia a prisão preventiva de que trata o art. 366 e 312, da
lei adjetiva penal, porque não se enquadraria em nenhuma das
vertentes insculpidas no art. 313, da mesma lei de rito.
E mostra-se digno indagar sobre qual tem sido o progresso ou
benefício social com a aplicação do vigente art.
366 do CPP, nas infrações em que se tem como descartada
a possibilidade jurídica de decretação da prisão
preventiva (CPP., art. 313)? Não há intuito aqui de se
tecer nenhuma crítica a esta nova diretriz adjetiva penal, mas
não se pode negar que no exemplo em referência,
inviabilizada a busca coativa do infrator (CPP., art. 313), só
o seu comparecimento voluntário é que poderia ensejar o
prosseguimento do processo suspenso. Porém, ledo absurdo ou
crença pueril, pois se não "apareceu" para
cumprir a pena acordada, que conseqüência alguma lhe
trazia, dificilmente aparecerá para sujeitar-se às
agruras do processo tradicional, ficando sob a mira de uma sentença
penal condenatória.
Conclui-se, portanto, que a conversão ora defendida é
totalmente possível e encontra-se amparada pela lei, de
conseqüência, não fere os princípios
constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do
contraditório. Ademais a própria Lei 9.099/95, em seu
artigo 86 contempla a maneira como que a pena deva ser executada e o
artigo 92 admite a aplicação do Código Penal e
Processo Penal. Caso fôssemos interpretar de modo diverso,
estaríamos negando a vigência de diversos dispositivos
legais, inclusive o artigo 98, I, da Constituição
Federal.
Marcelo Marcos Cardoso, estudante do quinto ano de direito da Universidade Paranaense, estagiário do Ministério Público do Estado do Paraná, na 1ª Promotoria de Justiça de Guaíra, E-mail: make@f1net.com.br
REFORMA DO JUDICIÁRIO OBSERVAÇÕES TARDIAS SOBRE O NEPOTISMO
[voz universitária] [artigos jurídicos]
O assunto de maior destaque nestes últimos dias tem sido o escândalo referente às irregularidades envolvendo o Prefeito de São Paulo, Celso Pitta, em acusações promovidas pela sua esposa, Nicéa Pitta, em primeira exposição na tevê em 10.3.00 e até então assunto principal nos meios de comunicação na imprensa televisionada e escrita.
Porém, outros assuntos tão ou mais importantes, cuja divulgação tem sido ofuscada pela questão referida, com maior impacto perante a opinião pública, são a rejeição do item do nepotismo referente à reforma do Judiciário em votação na Câmara dos Deputados, em 15.3.00, a aprovação em 1º turno nesta mesma Casa da Lei da Mordaça (Observação: vetada a aplicação para membros do Ministério Público em 22.3.00, após três adiamentos pela base governista temendo o veto) e a aprovação do DRU Desvinculação de Receitas da União, em 2o turno pelo Senado, em 15.3.00. Pode-se até arriscar em dizer que os parlamentares aproveitaram o escândalo do "Caso Pitta" e conseqüente distração das atenções públicas para essas questões para votar conforme interesses estes itens da reforma do Judiciário.
Não é exagero afirmar que a questão da reforma do Judiciário é mais importante que o Caso Pitta, se se pensar que se a lei da mordaça estivesse hoje vigente, informações do Ministério Público e Judiciário sobre a questão não poderiam ter sido veiculadas. Sobre esta e inúmeras outras acusações existentes.
No presente texto, será tratada a questão do Nepotismo, ainda que tardiamente, já que rejeitado em 15.3.00 em votação na Câmara.
Por questões que parecem óbvias, parece desnecessário se argumentar a legitimidade do nepotismo, sendo evidente a ilegitimidade deste instituto no sistema jurídico atual. No entanto, por se ver na imprensa declarações de parlamentares e opiniões em artigos que são verdadeiras aberrações, é que se entende a necessidade de uma análise mais ou menos minuciosa do assunto.
O tópico do projeto de reforma do Judiciário que trata do nepotismo dispõe que é proibida a contratação de parentes para cargos de confiança, de livre nomeação pelos titulares, disposição que teria aplicação nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Tal disposição atingiria 186 Deputados Federais, perfazendo um total de 315 parentes contratados. Durante a tramitação da votação, tentou-se amenizar o dispositivo para a autorização de contratação de até dois parentes para ocupar tais cargos, sendo que tal medida atingiria somente 24 dos 186 Deputados, correspondendo a 40 parentes num total de 315, que seriam os que possuiriam mais de dois familiares (Fonte: Folha de São Paulo, 8.2.00). A contratação de parentes custa anualmente para a Câmara um total de 9,6 milhões.
São declarações como as seguintes que demonstraram a distorção existente na concepção de cargos públicos verificada entre os parlamentares:
"Sou pelo nepotismo. E quero dizer ao Brasil inteiro que não sou hipócrita". "Quero dizer que empregarei os meus parentes enquanto puder. Se eu puder amparar minha família toda, eu a ampararei, mas também não desprezarei os demais." (Themístocles Sampaio, PMDB-PI) (Folha de São Paulo, 8.2.00).
"Eu gosto da minha família e quero que ela esteja ao meu lado. Vou ser vigiado por quem não é meu parente?" (Themístocles Sampaio, PMDB-PI) (Folha de São Paulo, 16.3.00).
"Elas são preparadas, competentes e podem me ajudar. Se pedir emprego para elas a um empresário ou ao governo, vou ficar com o rabo preso" (Gerson Peres, PPB-PA) (Folha de São Paulo, 8.2.00).
"A maioria dos deputados justificou o nepotismo, que a lei não proíbe, dizendo que precisa de reforço de renda familiar, de funcionários de confiança ou de apoio em seus redutos eleitorais" (Folha de São Paulo, 8.2.00).
De maneira que tratam a questão, verifica-se uma distorção na conceituação de cargos públicos que fazem, a idéia de que são proprietários dos cargos que dispõem para livre nomeação, talvez baseada nesta qualidade dos cargos de confiança. Deve-se ressaltar que são de livre nomeação, mas ainda objetivando o interesse público, i.e., devem ter por critérios de escolha candidatos que possuem preparo técnico para exercer as atribuições inerentes a estes.
Ao contrário de declaração de Themístocles Sampaio, PMDB-PI, tais cargos não foram criados para "criar um ambiente familiar no local de trabalho" de deputado, que são tão agentes públicos quanto qualquer outro servidor público, nem se verifica tal instituto em Direito Administrativo. E o Parlamentar não pode nem "sair pedindo cargo para parentes", conforme Gerson Peres, PPB-PA, e nem utilizar da sua posição para garantir ocupação a familiares, violando expressamente o princípio de imparcialidade da Administração Pública. Independente de legislação expressa, o nepotismo é inconstitucional por expressa violação deste princípio.
Não é nem um pouco rigorosa a posição de proibição de ocupação de tais cargos por parentes. Apesar de ser disposição desfavorável a familiares, que por tal qualidade estariam nessa hipótese em posição prejudicada na escolha para ocupação quanto aos demais "concorrentes" sem vínculo pessoal com tais agentes públicos, tal medida não é estranha na ordem jurídica como um todo, uma vez que é embasada, em situações análogas, na presunção absoluta, jure et de jure, de parcialidade, com prejuízo para pessoa com vínculo familiar.
A primeira hipótese que pode ser citada é verificada na área processual, através dos institutos de impedimento e suspeição. Especialmente na primeira, verifica-se uma presunção absoluta de parcialidade em atos envolvendo relações familiares (violando o princípio de imparcialidade na Administração Pública), não admitindo qualquer prova em contrário. Prejuízo para parentes, mas justificável pelo interesse público envolvido (prioritária ao interesse particular).
Outra hipótese verificada é em Direito Eleitoral, disposto no art. 1o, § 3o da Lei Complementar 64/90, Lei de Inelegibilidade:
"Art. 1o (...). § 3o São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos 6 (seis) meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição."
Neste caso, procurando-se evitar favorecimento presumido a familiar no processo eleitoral por titular de cargo eletivo, e o uso da máquina estatal visando este fim, instaurou-se tal proibição, também aplicável a presunção jure et de jure de favorecimento. Aplica-se também aqui os mesmos argumentos da hipótese anterior.
A Lei de Inelegibilidade (LC 64/90) é baseada em parte considerável em presunção de parcialidade em afinidades pessoais obtidas em relações humanas em função de situações particulares (familiares, e até profissionais, como no art. 1o, III, LC 64/90).
Cargos de confiança, referente a gabinete e assessoria, foram criados visando proporcionar as melhores condições para que o titular (deputado, no caso) cumpra com as atribuições inerentes ao cargo que ocupa. Em tese, a nomeação para o assessoramento deveria ser definida sob os critérios de competência, preparação, confiança, e outras qualificações imparciais, para o exercício dos deveres do cargo, pois, argumentando em termos práticos, um Deputado - que cumpra com suas responsabilidades - não deve se preocupar com aspectos como digitação de documentos, pesquisas que servirão de orientação para decisões, etc.
Apesar de não se poder mais fazer nada quanto à questão, já que vetado em votação na Câmara, é necessário que os profissionais do meio jurídico atentem para os demais itens do projeto de reforma do Judiciário, de terrível prejuízo ao Poder desde sua concepção íntima e natureza, e ainda aos esforços de defesa do País.
O Brasil talvez tenha perdido uma boa oportunidade de iniciar uma moralização na máquina estatal através das vias normativas, além da verificada atualmente pelas vias judiciais (ações contra atos administrativos ímprobos), considerando que grande parcela das nomeações para tais cargos públicos são feitos sob o critério do nepotismo, em todas as esferas administrativas (federal, estadual e municipal).
É hora de se colocar freios de modo sério e definitivo neste governo Executivo e Legislativo e suas ações destrutivas de direitos conquistados em décadas de esforços, sacrifícios e até mortes. Resistir a e impedir as reformas do Judiciário, administrativas, previdenciárias, tributárias, constitucionais e demais. E pelo lado dos estudantes e profissionais do Direito, é uma questão de dever a defesa do Direito e da Justiça, e do País, como agentes do Direito que são.
Rio Branco-Acre, 23 de Março de 2000.
F. Lima.
Bal. em Direito - UFAC
CONVOCAÇÃO DOS ESTUDANTES, PROFISSIONAIS DO DIREITO E DEMAIS CIDADÃOS VISANDO RESISTÊNCIA À REFORMA DO JUDICIÁRIO
[voz universitária] [artigos jurídicos]
Prezados Estudantes e Profissionais do Direito, e demais Cidadãos.
Venho, por meio desta, expor informações a respeito da Reforma do Judiciário, e tentar convencê-los a, juntos, formarmos um movimento de resistência a este projeto antidemocrático e de imensuráveis prejuízos a todo o Povo Brasileiro o que nos inclui e a este País.
Em resumo ao material que segue a esta mensagem inicial, a Reforma do Judiciário tem como pontos mais polêmicos a Lei da Mordaça, a Súmula Vinculante, a Argüição de Relevância, a extinção dos Tribunais do Trabalho e Militares, dentre outros.
Comecemos pelo seu tópico mais polêmico: a Lei da Mordaça.
Apesar de não divulgado como deveria na imprensa televisiva, hoje verifica-se uma enorme onda de ações judiciais contra o alto escalão dos Poderes, principalmente por atos de improbidade no exercício da administração, como Ministros, Deputados Federais, Senadores, Governadores, Prefeitos, Deputados Estaduais, Ex-Presidentes do Banco Central, etc. (v. relação exemplificativa abaixo). Ações que não costumavam ser verificadas através da história deste País, onde a regra é a impunidade para este grupo de indivíduos, quando são estes os atos mais prejudiciais ao interesse público, em prejuízo imensurável e até irreversível.
Divulgadas informações sobre inquéritos e denúncias referentes a estas ações através da imprensa escrita, principalmente, indo a conhecimento da população, a opinião pública tem grande peso sob tais ações contra representantes públicos, na medida em que exige providências e fiscaliza as atividades jurisdicionais do Poder Judiciário, em exercício normal de direitos universais, evitando-se, dessa maneira, o destino que normalmente levavam estas ações: arquivamento, ou os "embargos de gaveta", ou os "recursos de armário". Ou por qualquer meio processual mal empregado ou inidôneo para garantir a impunidade.
Hoje, se se verifica a impunidade para tais infratores, é mais por questão de fato, i.e., não há punição, por impedimentos da vida concreta (em regra, de cunho político). A lei da mordaça é um artifício de direito que dificultará em muito a conclusão dessas ações, na medida em que neutralizará o seu acompanhamento e fiscalização por parte do povo. É um estorvo ao livre exercício dos direitos de fiscalização das ações judiciais. I.e., ficará muito mais viável a um juiz ímprobo o "esquecimento" dessas ações e conseqüente prescrição e arquivamento, ou qualquer outro meio processual à impunidade do réu.
Considerando que o cidadão "comum" não tem condições de acompanhar diariamente o Diário Oficial para obter conhecimento destas ações, quando este mal consegue dar conta dos problemas do dia-a-dia de sobrevivência.
A lei da mordaça fere expressamente os princípios constitucionais de liberdade de informação e imprensa e de publicidade dos atos processuais.
Há pouco tempo (21.1.00), um tesoureiro de partido na Alemanha, por ser alvo de denúncias de improbidade no exercício de suas funções, suicidou-se. Como diz Clóvis Rossi em artigo "na Alemanha, escândalo dá suicídio; no Brasil, dá lei do silêncio" (Folha de São Paulo, 21.1.00). Apenas a Alemanha é citada para contraste das mentalidades dos agentes públicos deste país e o respeito que têm no trato da coisa pública.
Os argumentos usados para dar alguma legitimidade a esta lei é a proteção da imagem e moral dos suspeitos, e garantir a veracidade das informações divulgadas ao público, enquanto que não havendo trânsito em julgado são apenas hipóteses. Ora, qualquer mácula à moral é retirada com a absolvição final se for o caso e, contrapondo-se os interesses envolvidos publicidade das ações e liberdade de informação (direito público) e danos morais (direito individual) -, prevalece o direito público. Ainda, a legislação atual prevê medidas para punição do uso de informação enganosa com má-fé inclusive reparação por danos morais.
Tanto é evidente os interesses envolvidos que nunca ninguém se preocupou em proteger a imagem de suspeitos de pequenos furtos e roubos, divulgadas diariamente nas páginas policiais da imprensa escrita.
Ministros do Supremo Tribunal Federal STF assumiram publicamente posição contrária à lei da mordaça: ""A sociedade tem interesse em acompanhar (o andamento de inquéritos e processos). Como servidores públicos, devemos prestar contas a ela. O ordenamento jurídico atual já prevê punição por eventuais excessos", Marco Aurélio de Mello, vice-presidente do STF. O ex-presidente do STF Celso de Mello também condena a regra do silêncio. Segundo Mello, ela fere o princípio constitucional da publicidade, pelo qual a sociedade tem o direito de obter informações das autoridades públicas. Também é contrário o Presidente do Supremo, Marco Aurélio de Mello." (Folha de São Paulo, 21.1.00). "De acordo com Flávia Piovesan, professora de direito constitucional da PUC-SP, a iniciativa de proibir as manifestações sobre processos surgiu após o Ministério Público passar a investigar sistematicamente as denúncias contra deputados e senadores. "O objetivo dessa medida é reduzir o impacto da atuação do Ministério Público em relação às autoridades políticas". O procurador-geral do Estado, Luiz Antonio Guimarães Marrey, concorda. "É um mecanismo de defesa dos parlamentares.". Marrey afirma que a emenda constitucional é "contrária ao interesse público" e sustenta que a população tem o direito de saber sobre as investigações em curso." (Folha de São Paulo, 21.1.00).
Relação Exemplificativa de Representantes Públicos (Federais) Alvo de Ação Judicial
Agente Público |
Cargo |
Partido/UF |
Acusação |
iz Estevão |
Senador |
PMDB-DF |
Crime eleitoral (apresentação de documento falso à JE); desvio de recursos; mentido à CPI. |
Francisco Lopes |
Ex-Presid. Banco Central |
--- |
Peculato. |
Rafael Greca |
Atual Ministro do Esportes e Turismo |
--- |
Improbidade administrativa. |
Wanderley Martins |
Deputado federal. |
PDT-RJ |
Envolvimento em tráfico de armas e drogas. |
Geraldo Quintão |
Ministro indicado da Defesa |
--- |
Uso dos aviões da FAB para fins particulares. |
Hildebrando Pascoal |
Deputado federal |
PFL-AC |
CPI do Narcotráfico |
Silas Câmara |
Deputado federal |
PTB-AM |
CPI do Narcotráfico |
Augusto Farias |
Deputado federal |
PPB-AL |
CPI do Narcotráfico |
Paulo Marinho (PFL-MA) |
Deputado federal |
PFL-MA |
Desvio de cerca de R$ 1 milhão do município de Caxias |
Outro tópico polêmico e de prejuízo gigantesco, que compromete a própria definição e natureza do Poder Judiciário, e sua razão de ser, é a Súmula Vinculante, quando atinge diretamente a Independência do Judiciário, ou, mais tecnicamente, os princípios do livre convencimento do juiz, da independência e harmonia dos três Poderes, dentre outros.
Este dispositivo dispõe que os tribunais inferiores serão obrigados a seguir as decisões dos tribunais de instâncias superiores. Excetuando os tribunais especiais (Tribunais Superiores do Trabalho, Eleitoral e Militar), os tribunais superiores concentram-se em dois: STF e STJ. I.e., os tribunais de todo o país serão obrigados a seguir decisões desses dois tribunais superiores. Mais grave ainda se enxerga a situação se se considerar que os Ministros desses dois tribunais são escolhidos e nomeados pelo Presidente da República e Congresso. Em última análise, o chefe-maior do Executivo e os Senadores teriam o controle das decisões de todo o Poder Judiciário. Como se não bastasse a situação atual de o Presidente concentrar em mãos o total poder de legislar, através das medidas provisórias, sendo seu uso atual evidentemente inconstitucional. É o fim do Poder Judiciário na sua concepção mais íntima: a independência e equilíbrio dos três Poderes.
Então, todo o Poder Judiciário apenas obedecerá ordens desses representantes, passará a ser apenas cúmplice das decisões deles, servirá apenas para contribuir para escamotear uma falsa legitimidade do Estado e seus poderes.
Se tal tópico tem por fundamento a agilidade dos processos nos tribunais, mas refere-se restritamente a questões constitucionais e ao Supremo, fica descaradamente explícita a má-fé deste dispositivo, quando a grande concentração das ações judiciais está nas áreas cível e penal. E, "coincidentemente", os assuntos constitucionais tratados pelo STF convergem às reformas administrativas, tributárias, previdenciárias propostas pelo atual Presidente.
Por essas razões e outras é que os aplicadores do Direito não podem permitir que tais reformas sejam concretizadas. Temos que proteger a identidade, autonomia e independência dos profissionais do Direito e do Poder Judiciário, impedindo que se concretize uma realidade em que estes profissionais passem a ser apenas cumpridores de ordens, como qualquer sistema de informática, que apenas segue os comandos impostos, para poder decidir conforme sua convicção e razão e valores morais e poder julgar todos os cidadãos igualmente, e não apenas condenar justo os que mais precisam de Justiça.
É querer e exigir demais que a população reaja a este esforço de esfacelamento do País, pois se nós, cidadãos conscientes, de certa formação intelectual, mais ou menos estáveis economicamente, não o fazemos, quanto mais o cidadão que não tem garantido nem o pão de cada dia. Dessa maneira, fica evidente que até o futuro do país realmente depende de nós.
A importância de se priorizar o impedimento da aprovação dessa reforma é que todo o esforço posterior é inócuo, sem efeito: estudar-se para concurso, na consciência de que no exercício da atribuição os indivíduos mais nocivos são na prática impuníveis, especializar-se no conhecimento jurídico consciente que apenas a parcela mais desamparada pelo Estado será alvo dos seus esforços, ou que você não mais poderá decidir mais conforme sua consciência e princípios morais.
Você que está hesitante em apoiar, deve estar pensando ainda que o seu apoio individual ou não à resistência dos profissionais do Direito, não terá influência. Não esqueça que um apoio não é único, a tendência é multiplicar-se. E você está disposto a correr o risco, sacrificar a Independência do Judiciário e a própria existência deste em benefício do seu conforto momentâneo?
Temos que exercitar nosso direito de Cidadania, conscientizar-nos de que o Estado Brasileiro é formado por nós. E não é necessário que cada um de nós larguemos todas nossas atividades do dia-a-dia para isso, basta a dedicação de algumas horas. E, como citado, não podemos esperar nem exigir reação da grande massa, estando então a salvação de certos direitos fundamentais a qualquer ser humano a nós, privilegiados, e mais ainda, por sermos os maiores conhecedores desses direitos.
Se escolhemos o Direito por vocação, porque acreditamos nele, então é nosso dever defendê-lo mais do que qualquer outro cidadão ou profissional.
Concluindo com frases de Celso Antônio Bandeira de Mello, ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal e estudioso de Direito Constitucional (em Caros Amigos, Out/99):
"Nem que fique só eu defendendo certas idéias, é preciso deter o processo de destruição do Brasil, não prosseguir o processo de pauperização do brasileiro. Mesmo que eu seja o último e único, vou continuar."
"Logo, qual foi a obra desse governo (FHC)? (...) teve uma obra para a qual não tem havido tanta atenção, foi uma obra normativa. Ele está desmontando aos poucos as linhas mestras da Constituição brasileira através das reformas. E está desmontando o sistema normativo infraconstitucional para ajustar o Estado brasileiro a uma concepção de Estado diferente daquela que estava na Constituição de 1988, e que ainda está na Constituição."
"Temos de mudar a cultura, mudar a consciência, mudar a educação. Temos de pegar por baixo, para poder haver uma transformação de mentalidade. Quando uma pessoa escreve o que o Fábio Comparato escreve de vez em quando na Folha (de São Paulo), que eu escrevo, e outros, parecendo coisas escandalosas, coisas atrevidas, é mero exercício da cidadania. Quando pessoas movem ação popular, como muitos de nós movemos no caso da Vale do Rio Doce, aquilo causa uma reação natural, dizendo: "Mas como? Mas que absurdo". Não, quanto mais ações populares existirem, maior demonstração de consciência de cidadania. O exercício da cidadania é malvisto, é como se fosse a inversão da ordem natural das coisas."
"Mas os escândalos se banalizaram, assim como a miséria e a fome se banalizaram, eles se banalizaram, já não impressionam mais."
"Desde Pedro Álvares Cabral até hoje, não creio que alguém tenha feito tão mal ao país como esse homem."
Defendamos a profissão e os valores que escolhemos. Não deixemos que destruam tudo o que acreditamos e nosso País e nosso futuro.
Rio Branco-Acre, Fevereiro de 2000.
F. Lima
Bal. em Direito - UFAC
Artigo retirado de: http://yaco.ufac.br/direito/evidencia.htm