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ENTRAVES POLÍTICOS À ATUAÇÃO DA JUSTIÇA ELEITORAL BRASILEIRA NO COMBATE AO ABUSO DE PODER ECONÔMICO



Considerações sobre a legislação eleitoral e a (não) consolidação da democracia representativa no Brasil

Eloise Moreira Campos Monteiro
Servidora do TRE-AC
Mestre em Direito pela UNISINOS – São Leopoldo - RS
Doutoranda em Ciência Política pelo IUPERJ -RJ
e-mail: emonteiro@iuperj.br

            Quando criada a Justiça Eleitoral no Brasil, em 1932, sua atribuição principal era o combate às fraudes, tão comuns na República Velha. Durante o período do Estado Novo (1937-1945), foi retirada do cenário e só voltou em 1946, inserida na Constituição daquele ano. A preocupação principal era criar mecanismos que evitassem as fraudes, que consistiam principalmente na adulteração de cédulas e urnas, votos de "cabresto" e contagens viciadas de votos.
            Com o advento do voto eletrônico, em 1996, e, recentemente, a utilização de urnas eletrônicas em todos os municípios brasileiros, uma conquista da nossa Justiça Eleitoral, diminuiu-se consideravelmente a possibilidade de ocorrência desse tipo de fraude que, hoje, pode-se dizer, foi substituído por um outro, mais refinado e difícil de combater: o abuso do poder econômico. A Constituição Federal confia o combate a esse abuso à Justiça Eleitoral, que, no entanto, não tem conseguido pleno êxito no cumprimento da tarefa.
            Um dos principais motivos para essa dificuldade em investigar e punir os responsáveis pelo abuso de poder econômico nas eleições, coibindo assim essa prática, está na forma como são criadas as leis eleitorais em nosso país. São características da legislação eleitoral o enfraquecimento dos partidos, com a ênfase ao individualismo dos candidatos e a preocupação em dificultar o trabalho de investigação e repressão ao abuso do poder econômico. Prova da instituição forçada desta dificuldade está no exígüo tempo à disposição da Justiça Eleitoral para análise das contas, escassez de sanções e ausência de publicidade das contas político-partidárias e de financiadores. Outra barreira imposta à ação judiciária eleitoral, relacionada à crise da democracia representativa, consiste na cultura fortemente disseminada de impunidade quanto a crimes políticos aliada à cumplicidade criada entre os membros dos Poderes Legislativo e Executivo para proteção mútua.
            A falta de neutralidade na votação das leis que regulam a vida política de um país não é "privilégio" do nosso país. Herbert Alexander observa, ao comentar a reforma política dos Estados Unidos, que não há neutralidade nas reformas pois, quando as regras do jogo são mudadas, vantagens também mudam. Por este motivo, as leis eleitorais freqüentemente são usadas como instrumentos para atingir determinados objetivos políticos.
            Podemos dizer que a forma de atuar do Poder Legislativo tem retardado a consolidação da democracia representativa brasileira. Procuramos analisar como se dá essa interferência do Poder Legislativo na atuação da Justiça Eleitoral quanto ao controle das finanças de campanha.
            Conforme Guillermo O’Donnel, a escassez de instituições realmente democráticas e o estilo de governo praticado em países como o Brasil caracterizam uma democracia "delegativa", numa situação em que, "mesmo não havendo ameaças iminentes de regresso ao autoritarismo, é difícil avançar para a consolidação institucional da democracia". Apesar da inserção de mecanismos que podem levar a uma democracia, como eleições gerais, diretas e periódicas, "elas não atestam sua efetivação nem sua estabilidade". A consolidação depende de vários fatores e, dentre eles, está o fortalecimento das instituições democráticas, que incluem os partidos políticos, o Congresso e o Judiciário. O fortalecimento do Judiciário, por sua vez, depende do sucesso do regime democrático, dentre outros fatores. Leis que enfraquecem os partidos, fortalecem as elites, dificultam investigações contra o abuso de poder econômico e tiram a necessária publicidade dos atos relacionados ao poder aliam-se aos problemas inerentes enfrentados pelo Poder Judiciário brasileiro em geral, que se depara com uma crise de proporções gigantescas, relacionada com a própria crise do Estado, envolvido pelo discurso neoliberal que prega o Estado mínimo, confunde as barreiras entre o público e o privado e impede a separação entre poder político e poder econômico.
            Os problemas enfrentados pelo Judiciário brasileiro, que passa por uma crise de grandes proporções, já se disse, não podem ser justificados somente pelos problemas inerentes à falta de consolidação da democracia. No caso da Justiça Eleitoral, no entanto, a ausência de uma democracia consolidada influi com mais intensidade, o que se deve ao papel regulador dessa justiça perante os atos relacionados ao poder, aos partidos políticos, candidatos e eleições.
            Apesar de terem sido editadas tantas normas relativas às eleições, pouca coisa tem sido mudada desde a constitucionalização dos partidos políticos no Brasil, em 1946. Já em 1955, Ruy Bloem comentava a existência, no Código Eleitoral brasileiro, de dispositivos "sorrateiros e diabólicos, num sistema político em que precisamente o personalismo deveria desaparecer para dar lugar apenas às correntes de opinião arregimentadas em partidos".
            Detalhes são acrescentados ou retirados, de forma a privilegiar os políticos que já estão no poder, ou pelo menos com o fim de não os prejudicar. Temos assim uma legislação de cunho elitista e personalista, uma vez que, repita-se, há o constante enfraquecimento dos partidos e engrandecimento dos candidatos, individualmente. Criar mecanismos que autorizem, disfarçadamente, a vitória nas urnas pelo uso do poder econômico e que, ao mesmo tempo, dissociem os candidatos de seus partidos é uma forma clara de preservação de uma democracia elitista em detrimento da democracia representativa.
            Por outro lado, os aspectos políticos que envolvem o processo legislativo levam à criação de normas eleitorais de difícil cumprimento. Dentre as dificuldades, está o tempo exíguo à disposição dos servidores do Controle Interno dos Tribunais para a análise das prestações de contas: estas podem ser entregues até o trigésimo dia após o primeiro turno ou após o segundo turno, se o candidato o estiver disputando. A Resolução TSE n. 20.506, de 18/11/99, que estabeleceu o Calendário Eleitoral para as eleições municipais de 2000, estipula, com base na Lei n. 9.504/97, que o prazo para envio das prestações de contas encerra-se no dia 31 de outubro, para os candidatos não concorrentes ao segundo turno, e dia 28 de novembro, para os que concorreram nos dois turnos. A publicação das decisões que julgaram as contas de todos os candidatos deve ser feita até o dia 11 de dezembro, ou seja, oito dias antes da diplomação. Os servidores que analisarão as contas de candidatos do Brasil inteiro terão, assim, aproximadamente vinte dias úteis para cumprir a tarefa - na verdade, um desafio!
            A grandeza e beleza de nossa democracia tem presença constante nos discursos públicos dos políticos brasileiros. Temos problemas, mas temos uma democracia, dizem. Repetem, insistentemente, que é preciso fortalecer os partidos políticos e moralizar a competição eleitoral. Reformas e mais reformas constitucionais se sucedem, mas tudo fica como está. Isso pode ser observado a partir de uma análise minuciosa da reforma política que se está preconizando para o Brasil, cuja comissão foi presidida pelo Senador Humberto Lucena, eleito pelo mesmo partido do atual Presidente da República. Uma Comissão Temporária Interna foi instalada, no Senado, em 21 de junho de 1995, com o objetivo de estudar tal reforma. A última reunião da comissão deu-se em 11 de novembro de 1998, portanto, três anos e cinco meses depois. A comissão tinha como objetivo "realizar um amplo debate com a finalidade de propor um modelo de legislação político-partidária permanente, estabelecendo uma agenda básica de discussão".
            O relatório contém discussões e propostas de emendas sobre o sistema eleitoral, fidelidade partidária, partido nacional e desempenho eleitoral, domicílio eleitoral e filiação partidária, duração do mandato de senador, datas de posse, voto facultativo, divulgação de pesquisas eleitorais, imunidade parlamentar, número de vereadores, limite de gastos do legislativo municipal, suplentes de senadores, financiamento de campanhas e cláusula de desempenho.
            Chama atenção a observação feita, no início do relatório, de que a Comissão diagnosticou que o principal problema é a fragilidade da vida partidária brasileira:

            A introdução do Relatório salienta que todas as proposições ali presentes "fundam-se no princípio (...) da importância do fortalecimento dos partidos políticos como pressuposto indispensável da irreversibilidade do estado de direito".
            Porém, analisando as propostas de reforma, podemos perceber que não é bem o que será alcançado. As principais mudanças almejadas com a reforma são a instituição do sistema distrital misto para as eleições para a Câmara dos Deputados; a vedação de coligação partidária nas eleições legislativas (proposta de emenda número 42, de 1998); a previsão de perda do cargo nas hipóteses do ocupante de cargo eletivo deixar o partido sob cuja legenda foi eleito (somente no Legislativo) ou cometer violação grave de disciplina partidária caracterizada pela desobediência às decisões aprovadas em convenção (membro do Legislativo ou chefe do Executivo, proposta número 44/98); a adoção do voto facultativo (proposta número 39/98); a diminuição do tempo do mandato dos Senadores de 8 (oito) para 6 (seis) anos; a perda do direito ao acesso gratuito ao rádio e à televisão para os partidos que não tenham caráter nacional, ou seja, os partidos precisarão obter, pelo menos, cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com o mínimo de dois por cento do total de cada um deles (projeto de Lei do Senado para alteração dos artigos 41 e 48 da Lei Orgânica dos Partidos Políticos – 9.096/95).
            Quanto ao financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais, fala-se, no relatório, em "necessidade de afastar o abuso de poder econômico nas eleições e garantir a isonomia na competição". No entanto, pretende-se aprovar uma lei que garanta a desigualdade entre os competidores, objetivo que será alcançado com a instituição do financiamento exclusivamente público na proporção das bancadas dos partidos.
            A publicidade dos atos do poder "representa o verdadeiro momento da reviravolta na transformação do estado moderno, que passa de estado absoluto a estado de direito". A lei, no entanto, ordena que seja publicada apenas a "decisão que julgar as contas de todos os candidatos, eleitos ou não" (art. 30, § 1º, da Lei n. 9.504/97). Não há publicação de dados importantes das prestações de contas, como os nomes de quem financiou as campanhas, valor total de gastos ou de arrecadação. Portanto, além de ser prerrogativa dos partidos e do Ministério Público a denúncia de irregularidades no financiamento, não há publicidade das contas. Os processos ficam à disposição para consultas na Justiça Eleitoral, mas não são levados a público os nomes de quem pagou a campanha de seus candidatos. Na verdade, o eleitor não toma ciência, oficialmente, nem mesmo do resultado final do julgamento das contas, pois somente é feita uma publicação nos diários oficiais, distantes da grande maioria da população.
            A obrigatoriedade de divulgação pública ao menos dos nomes dos doadores seria uma forma de diminuir a avalanche de recursos recebidos e facilitar a fiscalização por parte da Justiça Eleitoral, como acontece no Canadá. A lei eleitoral do Canadá (Canada Elections Act), que teve sua última alteração, no que se refere a financiamento, em 1974, estabelece limites de gastos e, ao mesmo tempo, obriga a publicação de sumários com contribuições e gastos dos candidatos em jornais diários do País, em cada circunscrição eleitoral. Além disso, a Comissão Eleitoral do Canadá mantém divulgação na internet dos detalhes completos das contribuições e gastos correspondentes a todos os 1.672 candidatos da última eleição geral (1997), assim como as declarações financeiras anuais dos partidos políticos registrados.
            Apesar de contar com uma democracia completamente distante da realidade brasileira, em todos os seus aspectos, inclusive sócio-econômicos, o Canadá oferece uma preciosa lição no que se refere ao controle das contas por meio da publicidade, que poderia, sem restrições, ser aplicada no Brasil.
            A cada lei editada, maior a abertura dada à ação dos partidos e candidatos na escalada rumo ao poder. Sanções resumidas a multas são a prova maior desse fato, já que a aplicação de penas pecuniárias para quem o dinheiro não significa problema maior não pode surtir efeito. Na mesma proporção em que sanções são abrandadas ou retiradas, aumenta a cumplicidade entre os políticos, já eleitos ou não; uma espécie de "contrato de camaradas" onde é falta grave denunciar os "colegas".
            A cumplicidade entre os políticos muitas vezes torna letra morta o disposto na legislação eleitoral brasileira. Um dos episódios mais marcantes que ilustra muito bem esse fato aconteceu envolvendo o Senador Humberto Lucena (PMDB-PB). Ficou o acontecimento registrado pela imprensa como "Escândalo da Gráfica do Senado". Utilizar a gráfica do Senado, ou de "qualquer repartição, federal, estadual, municipal, autarquia, fundação do Estado, sociedade de economia mista, entidade mantida ou subvencionada pelo poder público, ou que realiza contrato com este, inclusive o respectivo prédio e suas dependências" para confecção de material de propaganda é crime, conforme o art. 377 do Código Eleitoral, e a pena está cominada no artigo 346 do mesmo diploma legal: "detenção de até 6 (seis) meses e pagamento de 30 (trinta) a 60 (sessenta) dias-multa". O que ocorreu, porém, com o Senador Humberto Lucena não chegou perto de sanção alguma. O Presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou, sem vetos, a Lei 9.985, de 7.2.95, anistiando o parlamentar.
            Antes do escândalo da gráfica do Senado, o Brasil assistiu a uma novela denominada "o escândalo da pasta cor-de-rosa". Estariam escondidas nessa pasta listas de candidatos supostamente beneficiados irregularmente pelo Banco Econômico, na campanha de 1990. Esse acontecimento "mostra cabalmente o potencial explosivo de uma prática em que a lei é burlada. Ou, no dizer de um deputado, de uma situação em que ninguém pode atirar a primeira pedra, porque todos, sem exceção, têm telhado de vidro".
            Há um excesso de prescrições legais quanto às verbas eleitoreiras, em comparação com o número de sanções. Existem limites para doação, limites para gasto, prazo para entrega de prestação de contas, formulários-modelo a serem preenchidos, obrigação de manter a documentação em arquivo durante determinado período, prazos para registro de candidatos e comitês financeiros. As sanções, em sua maioria, no caso de desobediência a essas regras, são meramente administrativas, como aplicação de multas, atraso na diplomação de candidatos eleitos e suspensão de repasse das cotas do Fundo Partidário ao partido. A única exceção dá-se quando as contas de algum candidato são julgadas irregulares; neste caso, haverá processo criminal eleitoral para apuração de abuso de poder econômico.
            O partido que descumprir as normas fixadas na Lei 9.504/97, no que se refere à arrecadação e aplicação de recursos financeiros, perderá o direito de receber a cota correspondente do Fundo Partidário durante todo o ano seguinte. O candidato infrator poderá responder por abuso do poder econômico, o que pode levar à impugnação ou cassação do mandato e, ainda, poderá tornar-se inelegível nas três eleições seguintes.
            Os casos previstos na lei que poderiam ensejar a penalidade máxima, ou seja, suspensão das cotas do Fundo Partidário aos partidos e processo por abuso de poder econômico para os candidatos, seriam os de recebimento de valores oriundos de entidades estrangeiras, públicas ou ligadas ao poder público e sindicatos ou, ainda, qualquer ato que retire a característica igualitária do pleito. Este ato pode estar ligado à captação de sufrágios (crime do artigo 299 do Código Eleitoral, que corresponde à compra de votos). Caso fique provado que o partido recebeu ou está recebendo recursos financeiros de procedência estrangeira, seu registro civil e estatuto poderão ser cancelados pelo Tribunal Superior Eleitoral, após o trânsito em julgado da decisão. Essa é a previsão inserida no artigo 28, inciso I, da Lei 9.096/95 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos).
            Quando registra os candidatos, deve o partido informar o limite máximo de gastos que poderá efetuar por candidatura. Os gastos acima do teto estabelecido pelo partido sujeitam o candidato a pena de multa, de cinco a dez vezes a quantia que gastou em excesso. Esta infração está relacionada com a previsão do artigo 18 da Lei n. 9.504/97. O limite, na verdade, é fictício, uma vez que o partido pode informar o valor máximo que entender. Pode multiplicar a previsão inicial por dez, por vinte, e assim nunca será problema se o candidato acabar gastando mais do que o previsto inicialmente.
            A Lei n. 9.100/95, que vigorou para as eleições municipais de 1996, estabelecia punições mais severas para o candidato que gastasse recursos acima do valor estabelecido pelo partido ou coligação para aplicação em campanha eleitoral: "detenção de um a três meses e multa de 4.000 a 12.000 UFIR ou de valor igual ao excesso verificado, caso seja superior ao máximo aqui previsto". A multa ficaria, se a lei ainda estivesse em vigor em 2000, entre R$ 4.258,00 (quatro mil duzentos e cinqüenta e oito reais) e R$ 12.774,00 (doze mil setecentos e setenta e quatro reais). Este fato estava previsto no título "Dos Crimes Eleitorais", ou seja, não era mera infração administrativa, como a lei atual determina, mas crime eleitoral. Além disso, havia previsão para detenção, e não simplesmente multa (apesar de duvidosa a aplicação da pena de prisão nesses crimes).
            Também é infração administrativa doar recursos que ultrapassem o limite legal (10% dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição para pessoas físicas e 2% do faturamento bruto do ano anterior para as pessoas jurídicas), e a sanção é pecuniária: multa de cinco a dez vezes a quantia em excesso (art. 23, § 3o, da Lei 9.504/97). Essa regra vale para pessoas físicas e jurídicas e, ainda, para o candidato que esteja utilizando recursos próprios na campanha (como se ele mesmo doasse a sua própria campanha).
            Além da multa, as pessoas jurídicas que ultrapassarem o limite fixado estarão sujeitas à proibição de participar de licitações públicas e de celebrar contratos com o Poder Público pelo período de 05 (cinco) anos. Essa pena é determinada pela Justiça Eleitoral, em processo no qual deve ser assegurada ampla defesa.
            As prestações de contas podem ser julgadas irregulares se estiverem desobedecendo ao estabelecido na lei atual. Essa irregularidade, porém, não pode ser por questões formais ou materiais. Deve ser por questão de fato, ou seja, receber limites acima do permitido, gastar acima do declarado ou receber recursos de pessoas desautorizadas pela lei (como sindicatos e entidades estrangeiras). Na maioria das vezes, porém, o fato de ter recebido ou gasto acima do limite não está consignado na prestação de contas, terá que ser apurado pela Justiça Eleitoral, além do exame das contas. Se for encontrada alguma irregularidade, não será aceita a prestação, e o partido poderá, além de não receber as quotas do Fundo Partidário enquanto perdurar o julgamento, ter seu registro e estatuto cancelados pelo Tribunal Superior Eleitoral, após o trânsito em julgado da decisão que assim reconhecer. O mesmo ocorrerá se o partido não apresentar as contas.
            Mesmo com a aplicação da sanção, a legislação não tem impacto sobre os políticos, que continuam agindo da mesma forma, já que a sanção é branda, chegando, no máximo, a pagamento de multa ou suspensão temporária dos direitos políticos. Passado esse período, volta-se ao cenário político, sem problemas legais.
            É o caso do ex-presidente Fernando Collor, que, após ser julgado inapto a se candidatar e a exercer cargo eletivo por oito anos (Resolução n. 101/92, do Senado Federal), pretende voltar ao cenário político brasileiro nas eleições de 2002. Inclusive, já está fazendo reuniões políticas com esse fim: "já está em campanha aberta para voltar à Presidência da República, embora continue com seus direitos políticos suspensos até o ano 2000 (...) A festa de anivesário do ex-presidente tinha clima eleitoral e 600 camisas foram distribuídas com o nome Collor bordado no peito e medalhas douradas com a efígie delle". Até a placa do carro do casal Collor faz referências a sua volta à arena política com as letras MUP, que teriam o significado "Mais Uma (vez) Presidente".
            Outro exemplo ocorreu durante a última campanha presidencial (1998) e envolveu o Ministro da Previdência Social, Waldeck Ornélas. Em matéria intitulada "O crime compensa", publicada no jornal Folha de São Paulo de 29/08/98, o jornalista Fernando Rodrigues comentou o ocorrido na campanha eleitoral de 1998, em que foram enviadas 17.600.000 (dezessete milhões e seiscentas mil) cartas para os segurados do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) que traziam um texto defendendo a reforma da Previdência, todas assinadas pelo ministro. Tratava-se de propaganda eleitoral disfarçada, e o Tribunal Superior Eleitoral condenou o Ministro ao pagamento de multa no valor de R$ 19.200,00 (dezenove mil e duzentos reais). Indagava o jornalista: "É ou não é um caso típico em que valeu a pena correr o risco? Foram R$ 4,9 milhões por apenas R$ 19,2 mil (isto) na hipótese de o STF confirmar a multa. (...) O pecadilho de Ornélas nos remete a um problema maior. Uma espécie de escudo invisível – como o do comercial da pasta de dente – parece separar a população da realidade do país. Absurdos acontecem. Todos vêem. Mas tudo é consentido, tolerado".
            A impunidade consentida traz cada vez maior certeza na ineficiência das normas, o que acarreta uma "descrença e desconfiança generalizada, abarcando, inclusive, pessoas e instituições cuja destinação é a preservação das normas (polícia, Judiciário)". No caso do abuso do poder econômico não punido de forma eficaz, a situação torna-se mais comprometedora para a confiança na Justiça, uma vez que os fatos relacionados ao abuso são públicos, ligados a pessoas públicas e amplamente noticiados. Forma-se, assim, um círculo vicioso: a Justiça não consegue coibir os abusos, cria-se a descrença generalizada nas leis e no Judiciário e aumenta a prática abusiva (causada pela certeza de que os outros também cometerão abusos), o que dificulta ainda mais a ação da Justiça. Por outro lado, a freqüente impunidade dos crimes ligados ao poder político prejudica as condições de reprodução do próprio sistema democrático.
            Numa visão neoliberal, há quem defenda a total desregulamentação das finanças de campanha, alegando que deve a política funcionar como a economia capitalista e que é impossível tal controle por parte de leis. Acreditamos, no entanto, ser necessário, para a consolidação da democracia no Estado de Direito, um controle eficaz das verbas de campanha, que tire do cenário político o fenômeno do "abuso de poder econômico" e os grandes favorecimentos aos grupos econômicos e empresariais financiadores. O direito de participar do processo eleitoral como candidato é um direito político que faz parte dos direitos e garantias fundamentais expostos na Constituição Federal. Liberar o uso dos recursos econômicos nas campanhas para deixar que o mercado regule significa negar qualquer possibilidade de participação política (no sentido de concorrer aos cargos públicos) às classes mais baixas.
            A discussão sobre a regulação ou não das verbas políticas vai além de uma escolha simples que leve em conta funcionalidades, conveniências ou adaptabilidades. Ela é influenciada e, em grande parte, determinada pelas políticas inseridas no discurso da globalização, que nos levam a uma sociedade, na verdade, neofeudal, com ausência de dissociação entre esfera privada e esfera pública, poderio econômico e poderio político. A não-interferência estatal, parte do discurso do neoliberalismo, deve ser afastada.
            O dinheiro político relaciona-se diretamente com as técnicas de convencimento dos eleitores e, portanto, com a cidadania. A existência de tantos cidadãos "apolíticos" e desinteressados, contaminados por uma forte apatia, não se deve somente às condições socio-econômicas precárias em que vivem. A visão que possuem de democracia e de política deturpa-se cada vez mais, tanto por causa dos maus governantes quanto pelos escândalos que envolvem as campanhas, arenas onde se digladiam incansavelmente os candidatos.

 

CIDADANIA PARTICIPATIVA, É POSSÍVEL NA AMÉRICA LATINA?

[voz universitária] [artigos jurídicos]

            Nesta parte da América Latina, carregamos todos a pesada herança da "década perdida", dos anos 80, marcada pela crise da dívida externa, problemas de infra-estrutura econômica que estão longe de serem solucionados e assim, o atraso da educação continua sendo o mais grave problema estrutural do desenvolvimento, especialmente a educação política para a cidadania participativa.
            Os adolescentes deste final de século recebem, dão ou absorvem uma espécie de educação para o futuro que já é presente: a educação dos sentidos. Aceitam a educação técnica mais que a familiar. Não têm medo de situações sociais apontadas como complexas devido à carência de recursos públicos. O poder de autoridade é contestável sem nenhuma justificativa aparente. Normas, valores, regras coletivas e metas sociais têm pesos variados e tendentes a não serem exercidos senão pela vontade particular. Praticam transgressões sem problemas de consciência. Apreciam atitudes marginais e acolhem movimentos politizados das minorias sem grandes questionamentos. Sendo uma geração de pouca leituras, é, no entanto, voltada para qualquer tipo de impacto visual. Usa a inteligência o tempo todo e experimenta tudo, mesmo o que for mais difícil. A irregularidade é o desafio. Não se atém a limites entre o biológico e o tecnológico, a máquina sendo a principal parceira espiritual. Impele tudo até o limite. Carente de amplas perspectivas políticas, a nova geração não se motiva pela crise de representação de grupos de referência e assim o controle social se torna um problema a mais e de êxito imprevisível. Os direitos políticos estão ligados à formação do Estado e a ele cabe garantir aos cidadãos uma situação de certeza. É preciso, pois, colocar em evidência o indivíduo como ser social, que embora não viva mais num contexto preciso de fronteiras geográficas, precisa aclarar ou ser aclarado (particularmente para o cidadão mais jovem), sobre quais os modelos de desenvolvimento político, econômico, social e cultural que predominam no mundo em geral e no seu em particular. Mas se tanto já vem sendo feito por que não se vê resultados no diálogo aberto e franco com os jovens cidadãos?
            A comunicação entre cidadão e Estado tem sido dificultada pela falta do estabelecimento de um tipo de linguagem adequada à mobilização geral e especialmente à dos adolescentes. Sabemos, todos nós, pais, políticos e educadores, que existe o problema. Falta-nos, todavia, solução.
            O voto tradicional tem levado, dos pais aos filhos, à desconfiança quanto a possíveis fraudes e manipulação dos resultados da apuração na contagem das cédulas. Questionava-se e muito que a sua vontade, como eleitor, de eleger aquele que escolheu, na verdade nunca prevalecia. Diante disto, o Brasil Eleitoral posicionou-se rapidamente e adotou o modelo do voto informatizado, através do uso da urna eletrônica. Os sistemas de segurança das urnas têm tornado a vontade do eleitor uma realidade concreta e quase inquestionável. Mas ainda o esforço da Justiça Eleitoral, sozinha, foi pouco.
            No sentido de ampliar os debates sobre temas de interesse para organismos eleitorais e políticos, uma pequena ONG, sociedade civil sem fins lucrativos - Instituto Brasileiro Museu do Futuro - em agosto do ano de 1999 obteve o apoio do Tribunal Superior Eleitoral e dos 26 Tribunais Regionais Eleitorais para realizar o I Congresso Internacional de Direito Eleitoral e Partidário - Forum Mundial, terminando por reunir representantes de 22 países. Obteve-se também o apoio da ONU e dos 3 maiores Institutos e Fundações que tratam e orientam sobre matéria eleitoral e política no mundo: IFES (USA), IIDH-CAPEL (Costa Rica) e IDEA (Suécia).
            No grande balcão de troca de informações entre os sistemas e modelos adotados nos países representados naquele Forum Mundial, um dos temas levantados foi o da ampliação das campanhas de educação cívico-eleitoral. Ali, naquele Forum, foram apontadas falhas, paliativos, possibilidades de soluções.
            Era preciso ampliar o número de eleitores para garantir a democracia e, não somente ampliar como fortalecer as atividades cívico-eleitorais dos eleitores conscientes. Porque a abstenção dos votantes tem sido alta no mundo todo, porque o desinteresse político demonstrado pelo jovem eleitor, seus pais ou irmãos menores continua em escala crescente, era preciso buscar medidas que visassem desviar da fragilidade os sistemas já implantados e que mal ou bem consolidam a representatividade política. O sistema político-eleitoral é bom no Brasil, o problema é outro: ausência de ética e caráter, de valores morais no âmbito político-público. A corrupção e os desmandos hoje vistos nas televisões não têm sido pauta de reflexões entre os cidadãos de todas as idades, mas isto sim, tem levado à desmotivação na escolha de novos representantes do povo.
            O voto informatizado, ao lado da votação tradicional por meio das cédulas oficiais já elegeu no Brasil Presidente da República, Governadores, Senadores, Deputados Federais, Deputados Estaduais e Prefeitos, num processo muito bem organizado e que registrou um índice de apenas 6% de falhas técnicas no modelo eletrônico implantado em 1994, falhas estas reduzidas para aproximadamente 3% nas eleições de 98. Está portanto, o Brasil, hoje, plenamente capacitado para exportar a técnica para outras nações e organismos eleitorais. As falhas estão em outro lugar e não na fórmula aplicada para as eleições. Mas a Justiça Eleitoral continua tentando melhorar. Falta-lhe, agora, ampliar e referendar campanhas de educação cívico-eleitorais, por que não? - lado a lado com os Institutos e Fundações criadas pelos Partidos Políticos, com as Cortes e Comissões Eleitorais de outros países, com organismos internacionais mais experientes. Não deveria fazê-las sozinha...
            Os novos programas sobre educação cívica, nas escolas e em algumas faculdades, buscam oferecer elementos para que o estudante melhore seu conhecimento como um ser por si mesmo e de sua sociedade. Para que melhor compreenda os vínculos entre direitos e deveres. Para que se reconheça com capacidade de livremente traçar suas próprias metas. Para que construa uma convicção profunda de respeito à igualdade de todos perante a lei. Para saber que um dia poderá vir a modificar as leis vigentes e, então, melhorá-las. Os valores estudados no âmbito estudantil têm no entanto a falha de não se traduzirem em convicções, atitudes, ações.
            Analisar, comparar, investigar o passado e os futuros desafios a enfrentar, dialogar sobre o papel que podem os jovens vir a desempenhar, assumir enfim o papel de que são cidadãos em potencial e que deles e de seus votos vai depender o futuro desta nação brasileira, este é o papel a ser feito por oficinas de capacitação cívico-eleitorais, com a ajuda dos organismos eleitorais e políticos de cada país. É preciso interessar particularmente às crianças e aos jovens na política, dar-lhes noções mais exatas dos serviços públicos eleitorais (pois são também o sustento da vida comunitária), lembrando sempre que participar se aprende... participando. Para isto, a arte e os pincéis podem reforçar o saber.
            A educação cívico-eleitoral é um dos temas a ser discutido em novo encontro internacional: FORO INTERAMERICANO DE INSTITUCIONES ELECTORALES Y POLÍTICAS - no Hotel Maria do Mar, em Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, Brasil, entre 27 e 29 de abril do ano 2000. Na Presidência e Vice-Presidência Compartilhadas, Argentina, Uruguay, Paraguay , Bolívia e Brasil. Entre os Convidados Especiais, Suécia, Angola, Moçambique, e um destaque para representantes da OEA, ONU, IFES, BID. Proferindo a Conferência de Abertura, o Ministro Néri da Silveira, Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, que, durante o I Forum Mundial , em 1999, havia dito claramente: "A educação para a democracia não pode ser obra, apenas, das campanhas eleitorais. Iniciada no lar, continuada na escola, desenvolvida no quotidiano das leituras e das informações, a cultura política levará o cidadão ao Partido, à candidatura, ao sufrágio consciente e livre."
            Portanto, senhores, garanto: a cidadania participativa é possível, sim, em toda a América Latina. Basta querer.
            **** Noely Manfredini é paranaenses, tem 15 livros publicados , foi Coordenadora Geral do I Forum Mundial Eleitoral e Partidário e novamente Coordenadora Geral no Foro Interamericano de Instituciones Electorales y Políticas).

 

CONVERSÃO DA PENA RESTRITIVA DE DIREITOS EM PRIVATIVA DE LIBERDADE - POSSIBILIDADE

[voz universitária] [artigos jurídicos]

            Assunto muito polêmico e ainda não solucionado, enfrentado atualmente pelos doutrinadores, pela jurisprudência e, principalmente, pelos aplicadores do direito no dia a dia forense, diz respeito das conseqüências do descumprimento injustificado da proposta de transação penal, de que trata o artigo 77 e seguintes da Lei n.º 9.099/95.
            E, diante da aparente lacuna da Lei 9.099/95, surgiu vários posicionamentos conflitantes a respeito da possibilidade ou não da conversão da pena acordada, em privativa de liberdade, o que despertou-nos o tirocínio jurídico sobre a questão.

TRANSAÇÃO PENAL

            Em análise ao artigo 76 da Lei 9.099/95, a Escola Paulista do Ministério Público formulou, sobre o instituto da transação penal, o seguinte conceito: "A transação penal é instituto jurídico novo, que atribui ao Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública, a faculdade dela dispor, desde que atendidas as condições previstas na Lei, propondo ao autor da infração de menor potencial ofensivo a aplicação, sem denúncia e instauração de processo, de pena não privativa de liberdade".
         Não obstante esse posicionamento, algumas considerações devem ser observadas a respeito da faculdade do Ministério público de dela dispor. O instituto da transação penal trata-se de direito subjetivo do infrator, pois estando presentes os requisitos exigidos pela lei, só este pode dele dispor, aceitando ou não a proposta transacional.
            Seguindo esse entendimento, escreve Nereu José Giacomolli que "não é faculdade do Ministério Público, mas direito público subjetivo do acusado". (Juizados Especiais Criminais – Ed. Livraria do Advogado, pag. 100).
            Assim, a faculdade da qual o Ministério Público dispõe, encontra-se regrada na lei, estabelecendo requisitos para o seu oferecimento, não ficando ao livre arbítrio do representante do Ministério Público propor ou não a transação.
            Reforçando este entendimento, temos a posição de Ada Pellegrini Grinover, juntamente com outros ilustres juristas, que escreve:

            "A primeira leitura do artigo,em sua interpretação meramente literal, sugere tratar-se de pura faculdade do acusador, que poderá preferir não transacionar, ainda que presentes as condições do § 2º do dispositivo.
            E essa leitura se coadunaria com a linha de pensamento que vê a discricionariedade regulada como forma de prestigiar a autonomia das vontades e o consenso nas infrações penais de menor potencial ofensivo.
            No entanto, permitir ao Ministério Público (ou ao acusador privado) que deixe de formular a proposta de transação penal, na hipótese de presença dos requisitos do § 2º do art. 76, poderia redundar em odiosa discriminação, a ferir o princípio da isonomia e a reaproximar a atuação do acusador que assim se pautasse ao princípio de oportunidade pura, que não foi acolhido pela lei.
            Pensamos, portanto, que o ‘poderá’ em questão não indica mera faculdade, mas um poder-dever, a ser exercido pelo acusador em todas as hipóteses em que não se configurem as condições do § 2º do dispositivo". (Juizados Especiais Criminais, Ed. Revista dos Tribunais, 3ª Edição, pag. 140).
            Não obstante a este entendimento, não entendemos como um poder-dever do Ministério Público, mas sim como uma faculdade regrada, pois o instituto da transação penal encontra-se estabelecido em lei, pois estando presentes os requisitos que autorizam a propositura da transação, fica o parquet obrigado a oferecer a proposta, não podendo se omitir.
            O saudoso escritor Julio Fabbrini Mirabete acrescenta que:
            "Essa iniciativa, decorrente do princípio da oportunidade da propositura da ação penal, é hipótese de discricionariedade limitada, ou regrada, ou regulada, cabendo ao Ministério Público a atuação discricionária de fazer a proposta, nos casos em que a lei o permite, de exercitar o direito subjetivo de punir do Estado com a aplicação de pena não privativa de liberdade nas infrações penais de menor potencial ofensivo sem denúncia e instauração de processo. Essa discricionariedade é a atribuição pelo ordenamento jurídico de uma margem de escolha ao Ministério Público, que poderá deixar de exigir a prestação jurisdicional para a concretização do ius puniendi do Estado. Trata-se de opção válida por estar adequada à legalidade, no denominado espaço de conflito, referente à criminalidade grave". (Juizados Especiais Criminais, Ed. Atlas, 2º ed., pág. 81).
            Diante dessas considerações, definimos o instituto da transação penal como sendo instituto jurídico que concede ao Ministério Público a faculdade regrada de propor, nos delitos de menor potencial ofensivo, a aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, desde que satisfeitos os requisitos exigidos pela lei, ao infrator, o qual tem a faculdade de aceitar, cumprindo o acordo e extinguindo a punibilidade sem gerar antecedentes criminais, exceto para o caso de nova transação, e caso não cumprindo a proposta transacional, esta será executada na forma da lei (art. 86 da Lei n.º 9.099/95).

TRANSAÇÃO PENAL E SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA - NATUREZA JURÍDICA

            Na doutrina, existem várias divergências sobre a natureza jurídica da transação penal. Para alguns, o instituto da transação penal inserido na Lei 9.099/95, antecede o processo, tratando-se de medida despenalizadora, oferecendo ao infrator a oportunidade de transacionar acerca da pena recebida, possibilitando um deslinde rápido ao procedimento, sem reconhecimento de culpa, vale dizer, sem que a decisão homologatória da transação penal possa ser utilizada como título executivo no juízo cível, a fim de se obter um ressarcimento dos danos eventualmente sofridos.
            O que merece um comentário mais precisado, é exatamente tratar-se ou não o instituto de "vantagem" concedida ao infrator de "livrar-se do processo", independentemente da sua inocência. Seguindo a opinião do ilustre jurista Maurício Alves Duarte, incrível acreditar que alguém, convencido da sua inocência, aceite, sem o due process of law, onde existe o contraditório, ampla defesa e a produção de provas, a aplicação imediata de pena não privativa de liberdade ou multa, apenas para "livrar-se do processo", assim, pagando o que não cometeu, ou sequer teve participação.
            Seguindo esse entendimento, estaríamos diante da verdadeira ditadura do processo, ou seja "ou se submete à pena ou serás processado".
            Portando, o referido instituto veio, sem dúvida, com o escopo de desobstruir o Poder Judiciário, mas não deixando de ser uma medida de aplicação de pena, como erroneamente sustentam alguns escritores, pois a transação penal consiste na prestação de serviço à comunidade ou no pagamento de multa, que segundo o art. 44 do Código Penal, tratam-se de penas restritivas de direito. Sendo assim, a transação penal não deixa de ser uma modalidade de pena, ou como queiram alguns, medida despenalizadora, pois a aceitação da proposta, apenas não minora os efeitos de uma possível condenação, mas também, retira a condição de pena.
            Noutro vértice a sentença homologatória possui natureza jurídica definitiva, pois, aceitando a proposta, o infrator implicitamente assume a culpa, fazendo com que essa sentença tenha força de sentença imprópria, pondo-se, desde já, fim ao processo com julgamento do mérito, restando apenas, ser executada.
            Álvaro Luiz Torrens, ilustre Promotor de Justiça da comarca de Toledo - PR, como bem ressaltou, em suas razões de Recurso Extraordinário, nos autos n.º 033/99 que "por mais que se venha a negar que a sentença homologatória da transação penal tenha caráter condenatório impróprio, deve se ter em mente que o artigo 76, caput, da Lei n.º 9.099/95 trata de aplicação imediata de pena".

CONVERSÃO

            O ponto crucial que ensejou a presente pesquisa, está exatamente no caso do descumprimento injustificado das condições estabelecidas na sentença penal. Alguns juristas entendem que a próxima medida a ser tomada seria exatamente o oferecimento de denúncia por parte do representante do parquet.
            Em posicionamento diverso, no qual situamos, o próximo passo a ser tomado, diante do não cumprimento injustificado das condições propostas, é exatamente executar a medida já aceita e homologado, convertendo-a em pena privativa de liberdade.
            A resistência por parte daqueles que acham inviável a conversão se ampara em algumas considerações, analisadas a seguir.
            1-) Pena restritiva de direito fruto da transação penal - mesmo se tratando de pena restritiva de direito, originária de aceitação da proposta transacional, não deixa de ser uma garantia fundamental para quem age com culpabilidade, pois com a transação aceita e homologada pelo infrator, terá ele todas as garantias fundamentais, previstas em lei;
            2-) Do devido processo legal - a forma ou o procedimento é emanado da própria lei à apuração das condutas de menor potencial ofensivo, por respeito ao princípio do devido processo legal. Afirmar que não se está observando o devido processo legal no caso de conversão de pena restritiva de direito em pena privativa de liberdade é negar vigência ao artigo 98, I da Constituição Federal, pois é estabelecida para o infrator a possibilidade de acatamento, ou não, da proposta de transação penal;
            3-) Do contraditório e ampla defesa - aceitar ou não a proposta é exercer o contraditório e a ampla defesa, posto que se está a assumir culpa e a renunciar ou desistir de outras garantias constitucionais ou técnica de defesa, aceitar a proposta configura uma boa tática de defesa, porque evita a clausura moral da sentença e os drásticos efeitos que ela acarreta;
            4-) Da impunidade - a conversão servirá para afastar a impunidade, pois esta tem sido a sensação do apenado. Caso não for aplicada, seria preciso buscar o jus puniendi através do processo comum, o qual fatalmente ficará suspenso indefinidamente (CPP., art. 366). Punição incerta ou tardia, mais parece ser castigo ou impunidade;
            5-) Das normas inerentes ao Estado Democrático de Direito - nos casos que ensejam a conversão, respeita-se totalmente as normas pertinentes ao Estado Democrático de Direito, não só normas adequadas, como também arraizadas no regime jurídico vigente;
            6-) Da simples conversão - na verdade a conversão que se pretende quando do descumprimento das condições, não trata-se de simples conversão, mas sim, de medida amparada em nosso ordenamento jurídico, pois com a aceitação da proposta, por mais que se tente resistir, a homologação da transação é uma condenação, pois há uma aplicação imediata de pena restritiva de direito, conforme artigo 76 da Lei n.º 9.099/95.
            O pouco descaso por parte daqueles que movimentam a máquina jurisdicional, aceitando, e posteriormente não cumprindo o que foi estabelecido pela sentença homologatória, sem dúvida, é mostra de verdadeiro descaso, não só para com a ação da Justiça, mas também, para com os instrumentos de sua aplicação legal.
            Toda a movimentação do Poder Judiciário, para que estabeleça condições, homologue, e com a inércia injustificada do infrator no cumprimento do que foi estabelecido, para posteriormente, fazer com que o Ministério Público ofereça denúncia, é posição totalmente contrária ao que está positivado em nosso ordenamento jurídico, pois toda a providência jurisdicional penal aplicada até então (oferecimento – aceitação – e homologação), tornou-se ineficaz, e afronta, sem sombra de dúvida, o critério da celeridade, estampado nos arts. 2º e 62 da Lei 9.099/95.
            O desafio dos infratores apenados, por conseguinte, não gera a sensação de impunidade apenas neles e nos demais infratores, e sim, gera em toda a sociedade, um péssimo costume e com certeza, mau exemplo à imagem da Justiça, difamando ou depondo contra os bons resultados até então conquistados com o advento da Lei 9.099/95. Dessarte, acaba criando um descrédito até mesmo para com a própria austeridade do Poder Judiciário.
            A conversão defendida nesse trabalho atuaria como autêntica profilaxia, fazendo com que os infratores cessem seus comportamentos dispersivos e insubordinados. Perderiam eles sua arrogância e senso de desafio e, além disso - o mais importante, daria bom exemplo a eventuais inadimplentes e serviria de verdadeira medida de prevenção geral.
            Os infratores punidos, pelo menos, fazeriam com que se curvassem diante do mais e, quem sabe, até fugiria de outras atividades delinqüenciais, inclinando-se novamente para o bem. Não sendo punidos pelo delito menor, para o qual a pena foi transacionada, irão se sentir destemidos impunes, e, certamente, não hesitarão em praticar delito maior e mais grave.
            Acerca da conversão, a matéria está pacificando-se entre os autores que escrevem sobre o assunto. Dentre eles, Júlio Fabrini Mirabete ensina que: "Mesmo no silêncio da Lei n.º 9.099/95, a pena restritiva de direitos aplicada no Juizado Especial, quer por condenação, quer por transação, pode ser convertida em pena privativa de liberdade. Aplicam-se os arts. 45 do Código Penal e 181 da Lei de Execução Penal..." (In Juizados Especiais Criminais, Atlas, 2ª ed., 1997, pg. 133).
            O posicionamento é corretíssimo, salvo quanto à observação de que a Lei 9.099/95 é silente acerca do assunto. A bem da verdade a referida lei não silenciou, muito pelo contrário, contemplou de modo expresso e cogente que:
           Artigo 86. "A execução das penas privativas de liberdade e restritivas de direitos, ou de multa cumulada com estas, será processada perante o órgão competente, nos termos da lei". Grifamos.
            A Lei 9.099/95, não contemplou expressamente a maneira ou critério de conversão da pena restritiva de direito em pena privativa de liberdade, todavia, delegou taxativamente essa atribuição ao órgão competente, nos termos da lei. Disso emerge-se saber qual seria este órgão competente? Não é preciso muito esforço de pesquisa para responder a dita indagação. O Juízo da Execução, nos termos da Lei 7.210/84, como órgão integrante do Poder Judiciário, sem sombra de dúvida, é o órgão competente.
            Ao recomendar que a execução das penas se dê nos termos da lei, resta concluir-se que os artigos 44, do Código Penal, com a redação dada pela Lei n.º 9.714/98, e art. 181, da Lei 7.210/84 são os únicos que tratam da matéria de pena de prestação de serviços à comunidade, pena esta, como já visto, é modalidade de pena restritiva de direito, portanto, sendo os únicos aplicáveis à espécie, ora abordada.
            Novamente utilizando-se da bem elaborada obra de Ada Pellegrini Grinover, em parceria com outros renomados juristas, o seu posicionamento não diverge, escrevendo que:
            "Dúvida poderia surgir quanto à possibilidade de a pena restritiva resultante de transação na fase preliminar poder ser convertida em pena privativa, em virtude de o art. 5º, LIV, da Constituição Federal, afirmar 'ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal'.
            Mas essa conversão é admissível porque foi a própria Constituição Federal que, no art. 98, I, em norma especial e por isso preponderante sobre a de caráter geral, admitiu expressamente a transação..."
E, acrescenta que: "Nem se diga que essa conversão infringiria o princípio da legalidade, por não estar prevista na Lei 9.099 a conversão da pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade. A previsão legal existe na Lei de Execuções Penais, à qual o legislador se refere no art. 86" (In Juizados Especiais Criminais, Comentários à Lei 9.099 de 26.09.1995, Ed. RT, 1996, 1º ed., pg. 173).
            Dissertando sobre o tema, escreve Luiz Flávio Gomes, in Suspensão condicional do processo, Ed. Revista dos Tribunais, 1º ed., 1995, págs. 139/142, que:
            "O Ministério Público, diante de uma infração de menor potencial ofensivo, nos termos do art. 76, poderá propor a aplicação imediata de pena alternativa. Em lugar de lutar pela aplicação de pena (de prisão ou de multa integral), conta com via alternativa. No instante em que propõe essa via alternativa, está renunciando à via normal. A base de tudo é o princípio da oportunidade regrada. Regrada porque o órgão acusatório só pode atuar dentro das margens legais, fixadas e, ademais, tudo conta com controle judicial (v. art. 76, § 3º)
            Conformidade penal e processual. Nos dois institutos sub examine a lei requer a conformidade (anuência, aquiescência, aceitação) do autor do fato. A diferença reside no seguinte: no juizado criminal dá-se a denominada conformidade penal e processual, isto é, o interessado não só está abrindo mão de alguns direitos e garantias fundamentais, senão também está conforme a aplicação imediata de uma sanção alternativa anglo-saxônico, isto é, o autor do fato, no instante em que aceita a aplicação imediata de pena alternativa, está assumindo culpa (mesmo porque nulla poena sine culpa). Não se trata do plea bargaining que tem por base o princípio da oportunidade pura e faculta transação muito mais ampla. A transação no juizado (assim como na suspensão do processo) tem limite, está regrada.
            Mas está presente a não estigmatização derivada do processo e da sentença penal condenatória. É que essa condenação é imprópria (não gera reincidência, maus antecedentes, rol dos culpados etc.).
            Natureza do ato jurisdicional. O ato jurisdicional que defere a transação no juizado criminal é uma verdadeira sentença (v. art. 76, § 5º). Dela cabe apelação. E é condenatória, porém, imprópria, porque não gera seus efeitos naturais (reincidência, rol dos culpados, antecedentes, execução civil etc.), embora seja suficiente para criar o estatus de culpado, nos termos do artigo 5º, LVII da CF.
            A situação é mais complicada no juizado criminal (hipótese de aplicação imediata de pena alternativa em que a aceitação implica culpa). Mas mesmo assim, tampouco há violação ao princípio constitucional da presunção de inocência. Temos que nos valer, aqui, da doutrina da Corte Constitucional espanhola, que em 04.10.89, decidiu: "A conformidade (anuência, aceitação, transação) alcança, por si só, a entidade suficiente para destruir o direito à presunção de inocência", desde que manifestada de forma livre, consciente, inequívoca, em presença de defensor (v. Puente Segura, 1994. p. 114, nota 04). A transação, ademais, é estratégia de defesa (integra a ampla defesa de que fala a Constituição) e deita suas raízes na autonomia da vontade. Tudo se celebra, urge enfatizar, dentro do devido processo legal. Embora a transação implique o recuo ou a renúncia de algumas garantias, é inegável que ela mesma está cercada de garantias. Por isso que é constitucionalmente válida, independentemente da invocação do disposto no art. 98, I (que é taxativo).
         Em artigo publicado na Revista dos Tribunais, em seu volume 740, pág. 469 - Dos Juizados Especiais Criminais: Reflexões Atuais, o Procurador de Justiça Jaques de Camargo Penteado, traz as seguintes lições:
            "...não se pode, pois, negar ao Juiz o direito-dever de liminarmente, confrontar os fatos constantes da investigação prévia com a narrativa da peça vestibular. Sem controle que tal, teria o Ministério Público o inadmissível arbítrio de, carente qualquer interesse socialmente defensável, sujeitar inocentes aos transtornos, sacrifícios e azares da ação penal" (Franceschini, J.L. V. Azevedo. Jurisprudência Criminal do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, 1º ed. São Paulo: Universidade de Direito. 1975, v. 2º, p. 419).
            E conclui:
            "Imagine-se a insegurança generalizada se um simples requerimento ou proposta desprovidos de peças de informação que os amparassem pudessem submeter o cidadão ao foro penal. Nem mesmo a celeridade almejada justificaria a recepção de inicial ou discussão de proposta de transação sem base em provas razoáveis do fato e de seu autor". E, copia: "Sem que o fumus boni iuris ampare a imputação, dando-lhe os contornos de imputação razoável, pela existência de justa causa, ou pretensão viável, a denúncia ou queixa não pode ser recebida. Claro que o Juiz não realiza esse controle inicial de modo pleno, como no caso da pronúncia, uma vez que vai decidir segundo o estado do processo, dispondo quase que só de elementos informativos. O que lhe cumpre, portanto, é verificar se, com os dados colhidos na informatio delicti ou procedimento preliminar, possibilidade existirá, a final, de sentença condenatória". (Marques, José Frederico. Tratado de Direito Processual Penal. 1ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, v. 2°., p. 74.). No mesmo sentido doutrinadores acatados. (Espíndola Filho, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Edição histórica, 1ª. ed. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976, v. 1°. , p. 202. Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo Penal. 5ª ed. Bauru: Jalovi, 1979, v. 1°. , p. 202. FRAGOSO, Heleno Cláudio, Jurisprudência Criminal. 3ª ed. São Paulo: José Bushatsky, 1979, v. 1º., p. 430).
            Socorremos uma vez mais aos ensinamentos de Ada Pellegrini que, sobre a natureza jurídica da homologação da transação penal, sustenta que: "Trata-se de sentença nem condenatória nem absolutória, mas simplesmente de sentença homologatória de transação penal, com eficácia de título executivo. É exatamente o que ocorre no campo civil: a homologação da transação não indica acolhimento nem desacolhimento do pedido do autor, mas sentença que, homologando a vontade das partes, constitui título executivo judicial (art. 584, III, CPC)" (Juizados Especiais Criminais, Ed. RT, p. 134).
            Afrânio da Silva Jardim, por sua vez, acertadamente, afirma que: "...o Ministério Público, ao oferecer proposta de aplicação de pena não privativa de liberdade, está exercendo a ação penal, ainda que de maneira informal" (Os Princípios da Obrigatoriedade e da Indisponibilidade nos Juizados Especiais Criminais, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 04(48):04, nov. de 1996).
            Também Marino Pazzaglini Filho ensina que:
            "...Sendo assim, a natureza jurídica da sentença homologatória da transação penal é condenatória. Primeiramente, declara a situação do autor do fato, torna certo o que era incerto. Mas além de declarar, cria uma situação nova para as partes envolvidas, ou seja, cria uma situação jurídica que até então não existia. E ainda impõe uma sanção penal ao autor, que deve ser executada.
            A sentença homologatória tem efeitos dentro e fora do procedimento, isto é, tem efeitos processuais e materiais, produz efeitos ex nunc, para o futuro. Encerra o procedimento e faz coisa julgada formal e material, impedindo novo questionamento sobre os fatos"
(Juizado Especial Criminal - 2ª ed., Ed. Atlas, 1997, p. 57).
            A proposta do Promotor de Justiça para aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, aceita pelo autor da infração e por seu defensor, e homologada judicialmente, tem natureza de sanção penal em sentido estrito. Portanto, há de se buscar, como razoável critério de interpretação, alguma forma de equiparação da proposta à denúncia, como meio de se assegurar uma forma especialíssima de procedimento legal e o conseqüente resguardo do due process of law.
            A conversão, portanto, é juridicamente possível de aplicação, a luz do que dispõe o art. 44, § 4º do Código Penal (já o previa o antigo art. 45), combinado com o artigo 181, da Lei 7.210/84, ambos combinados com o artigo 86, da Lei n.º 9.099/95, amparado pelo artigo 98 da Magna Carta.
            Os Tribunais Estaduais, de toda parte, vêm decidindo, corretamente, pelo cabimento da conversão postulada. Veja-se:
            "JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS - Proposta e aceitação de aplicação de pena restritiva de direito - Descumprimento pelo infrator - Conversão em pena privativa de liberdade - Admissibilidade - Inteligência do art. 181 da Lei 7.210/84 - Inaplicabilidade da Lei 9.268/96 - Voto vencido.
            Ementa da Redação: A pena restritiva de direito, decorrente de proposta e aceitação pelo infrator, perante o Juizado Especial Criminal, pode ser convertida em privativa de liberdade quando ocorrer o seu descumprimento injustificado, consoante o art. 181 da Lei 7.210/84, não se aplicando, ao caso, a Lei 9.268/95, que proíbe a conversão da pena de multa em pena privativa de liberdade" (HC 97.00186 - j. 1º.10.97 - Rel. Des. Dimas Fonseca - TJRO, in RT 749/738-41).
            "A decisão que homologa a transação penal, proposta pelo Ministério Público e aceita pela paciente, tem natureza de sentença e, assim, só poderá ser alterada por decisão de recurso competente.
            Tendo as partes desistido do recurso legal, a r. sentença fez coisa julgada.
            "Se o paciente não pagou a multa imposta, estamos diante de execução da r. sentença, mas nunca hipótese de outra denúncia, ainda mais no mesmo processo"
(TACrimSP - HC 314.726/9 - São Paulo - Rel. Juiz Salvador D'Andrea, j. 20.11.97, v.u. - Apud RT 756/585).
            "TRANSAÇÃO PENAL - Homologação por sentença - Acordo não cumprido pelo autor do fato - Promoção de execução pelo Ministério Público - Admissibilidade.
            A sentença homologatória de transação penal, realizada nos termos do art. 76 da Lei 9.099/95, tem eficácia de título executivo. Por isso, não cumprindo o acordo pelo autor do fato, só resta ao Ministério Público executá-lo através de ação própria, sendo incabível o oferecimento de denúncia para a instauração de ação penal" (TACrimSP - HC 322.106/4 - 11ª Câm. - Rel. Juiz Xavier de Aquino, j. 25.05.98 - in RT 756/583-5).
            "Se o paciente não pagou a multa imposta, estamos diante de execução da r. sentença, mas nunca hipótese de outra denúncia, ainda mais no mesmo processo" (TACrimSP - HC 314.726/9 - São Paulo - Rel. Juiz Salvador D'Andrea, j. 20.11.97, v.u.).
            A Turma Recursal do Juizado Especial Criminal do Distrito Federal, no processo n.º 73/98, decidiu:
            "PROCESSO PENAL - TRANSAÇÃO - PENA RESTRITIVA DE DIREITOS - NÃO CUMPRIMENTO. Realizada transação penal entre o Autor do fato e o Ministério Público, sendo aplicada pena restritiva de direitos consistente na prestação de serviços gerais à comunidade, desde que não cumprida, pode ser convertida em pena de detenção. Abolida foi apenas a conversão da multa não paga em pena privativa de liberdade, quando se remete o apenado ao processo executivo civil" (Acórdão 105951, j. 14.04.98 - Rel. Juiz HAYDEVALDA SAMPAIO, DJDF 15.06.98, p. 103 - in RT 755/674).
            Extrai-se do contexto desta veneranda decisão Colegiada, a posição da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal, do seguinte teor:
            "...uma vez descumprida injustificadamente a pena restritiva de direitos aplicada, a conversão deverá ser feita para pena privativa de liberdade. Cabe ressaltar que segundo assentada jurisprudência é vedado ao magistrado inovar a transação já homologada e receber denúncia formulada contra o autor do fato" (Apud Processo n.º 1041183/5 - DJE 12.3.97, part. II, p. 331).
            O entendimento mais recente do STJ é no mesmo sentido:
            "Transação Penal/Lei 9099/95, art. 76-Distinção quanto à SUSPENSÃO DO PROCESSO - Descumprimento de PENA ALTERNATIVA - Conversão em PENA RESTRITIVA DE LIBERDADE - Admissibilidade. Criminal. Juizado Especial Criminal. Transação. Pena Alternativa. Descumprimento. Conversão em penal restritiva de liberdade. Legitimidade. 1. A transação penal prevista no artigo 76, da Lei n.º 9099/95, distingiu-se da suspensão do processo (artigo 89), porquanto, na primeira hipótese faz-se mister a efetiva concordância quanto a pena alternativa a ser fixada e, na segunda, há apenas uma proposta do parquet no sentido de o acusado submeter-se não a uma pena, mas ao cumprimento de algumas condições. Deste modo, a sentença homologatória da transação tem, também, caráter condenatório impróprio (não gera reincidência, nem pesa como maus antecedentes, no caso de outra superveniente de infração), abrindo ensejo a um processo autônomo de execução, que pode - legitimamente - desaguar na conversão em pena restritiva de liberdade, sem mau trato ao princípio do devido processo legal. É que o acusado, ao transacionar renúncia a alguns direitos perfeitamente disponíveis, pois, de forma livre e consciente, aceitou a proposta, ipso facto, a culpa. 2. Recurso de habeas corpus improvido (STJ - HC 8198 - Goiânia - 6ª T. - Rel: Min. Fernando Gonçalves - j. em 08.06.99 - DJU I, 01.07.99. pág. 211). No mesmo sentido o STJ, Resp 172.891 - SP - 6ª T. DJU 02.08.1999 (Apud Revista Jurídica - 263 - SET/99).
            A Constituição Federal, como visto, oferece parâmetro para a medida postulada (CF, art. 98, I), porque foi através dela que se criou um novo procedimento para as infrações de menor potencial ofensivo, ou seja, foi a própria Carta Política quem estabeleceu o norte para o novo tipo do devido processo legal.
            Dizer que a conversão refoge do devido processo legal é olhar apenas para um lado da moeda, pois quando o apenado cumpre a pena proposta e aceita, também estaria "pagando" uma pena sem o clássico e tradicional devido processo legal (denúncia, defesa, instrução, sentença, etc.).
            Não parece lógico e sensato aceitar o novo procedimento quando há adimplemento pelo apenado, como sendo alicerce do devido processo legal, e, a contra-senso, não aceitá-lo no caso de inadimplência injustificada do infrator.
            Negar que o procedimento da execução autônoma da transação penal reveste-se do devido processo legal, é argumento que nega vigência às disposições cogentes do art. 98 da Magna Carta, do art. 181, da LEP e do art. 44, § 4º (antigo art. 45, II). Além do mais, fácil contrapor-se a esse argumento ressaltando-se que quando o apenado aceita a transação penal e a cumpre, ele também está a receber uma pena (acordada, aceita e homologada) sem denúncia, sem ampla defesa ou contraditório, sem instrução processual e sem sentença condenatória, só que neste caso ninguém cogita da falta de observância do devido processo legal. É irrito que um argumento tenha valor para uma determinada situação, e para outra similar não. Significa o mesmo que não se atentar para o outro lado da moeda.
            O Promotor de Justiça da Comarca de Silvânia - GO, em artigo publicado na Internet, salienta que:
            "...a execução da pena transacionada é questão de ordem pública, a qual poderá ficar totalmente prejudicada pela inviabilidade de sua aplicação e posterior execução de tal transação penal, incentivando a impunidade e o incremento da prática da infração de menor potencial ofensivo, pelo que não podemos autorizar, absurdamente, a impunidade daqueles que desprezam as instituições desta Pátria, principalmente a Justiça".
            O adimplemento dos acordos (transação penal) firmados perante os Juizados Especiais Criminais é altíssimo. Em várias comarcas do Estado do Panará, o percentual chega a superar 90% (noventa por cento); o sucesso é acima dos 80% (oitenta por cento) em Curitiba e porque não no país todo.
            Assim, para os poucos casos de inadimplência, peculiar dos infratores reticentes ao respeito da ordem jurídica e democrática, por questão, às vezes, de crasso desprezo e ignomínia para com a ação da própria Justiça, quase que em patente desafio à autoridade do Poder Judiciário, a possibilidade da conversão, ora defendida, serviria para aniquilar qualquer sensação de impunidade e, mais do que isso, a conversão representaria o sucesso total da inovadora da Lei 9.099/95 que tantos benefícios e avanço trouxe, conseqüentemente, esse sucesso atingiria a casa dos 100% (cem por cento) de pleno êxito e eficiência.
            De outra parte, na quase totalidade dos casos de inadimplência, a não conversão implicaria gritante impunidade. Basta ecoar nos ouvidos dos infratores que o descumprimento da pena acordada não lhes traz qualquer conseqüência jurídica mais séria, o percentual de inadimplência certamente se elevará e, com o passar dos anos, poderá até chegar a nível que torne inviável o espírito, sentido e alcance da lei inovadora. É o risco de se voltar à moda antiga, estigmatizado pelas agruras do "velho" processo penal, para solucionar fatos que a lei considera de menor significância jurídica ou, na linguagem da lei, de menor potencialidade ofensiva.
            Não se pode, pois, negar vigência aos dispositivos reguladores da matéria (CF, art. 98; LEP, art. 181 c/c. CP, art. 44, §4º, e Lei 9.099/95, art. 86). Lutar pela aplicabilidade da conversão significa lutar contra a impunidade que poderia resultar extreme em muitos casos, significa lutar pelo sucesso total da lei que rege o Juizado Especial Criminal.
            Na maioria dos casos, a inadimplência se deve pelo fato do apenado haver desaparecido do distrito da culpa. Muitas vezes o "sumiço" se deve porque tem contas a acertar com a Polícia ou com a Justiça. Daí, preferível que se aplique a conversão e se aguarde eventual execução da ordem de prisão em seu desfavor, quando, dependendo da situação concreta de cada caso ou da justificativa que fosse apresentada pelo apenado, até que poderia cogitar-se do restabelecimento do benefício, do que "inovar" a sentença homologada, oferecendo denúncia que, uma vez recebida, ficaria relegada ao esquecimento nas prateleiras empoeiradas das escrivaninhas criminais das comarcas do Brasil, por força do que dispõe o art. 366, do CPP.
            Nem se pretenda dizer que caberia ordem de prisão em tais hipóteses, com arrimo na parte final do art. 366, com a conjugação do art. 312, ambos do CPP, porque as infrações de menor potencial ofensivo (Lei n.º 9.099/95, art. 61), às quais admite-se a transação penal (art. 76), nem sempre estariam sujeitas à prisão preventiva, por vedação expressa do art. 313, do CPP que, trata dos pressupostos de admissibilidade da prisão cautelar.
            As hipóteses de aplicação da transação penal, geralmente são de contravenções penais, cuja pena cominada é de prisão simples. Logo, não caberia a prisão preventiva de que trata o art. 366 e 312, da lei adjetiva penal, porque não se enquadraria em nenhuma das vertentes insculpidas no art. 313, da mesma lei de rito.
            E mostra-se digno indagar sobre qual tem sido o progresso ou benefício social com a aplicação do vigente art. 366 do CPP, nas infrações em que se tem como descartada a possibilidade jurídica de decretação da prisão preventiva (CPP., art. 313)? Não há intuito aqui de se tecer nenhuma crítica a esta nova diretriz adjetiva penal, mas não se pode negar que no exemplo em referência, inviabilizada a busca coativa do infrator (CPP., art. 313), só o seu comparecimento voluntário é que poderia ensejar o prosseguimento do processo suspenso. Porém, ledo absurdo ou crença pueril, pois se não "apareceu" para cumprir a pena acordada, que conseqüência alguma lhe trazia, dificilmente aparecerá para sujeitar-se às agruras do processo tradicional, ficando sob a mira de uma sentença penal condenatória.
            Conclui-se, portanto, que a conversão ora defendida é totalmente possível e encontra-se amparada pela lei, de conseqüência, não fere os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Ademais a própria Lei 9.099/95, em seu artigo 86 contempla a maneira como que a pena deva ser executada e o artigo 92 admite a aplicação do Código Penal e Processo Penal. Caso fôssemos interpretar de modo diverso, estaríamos negando a vigência de diversos dispositivos legais, inclusive o artigo 98, I, da Constituição Federal.

Marcelo Marcos Cardoso, estudante do quinto ano de direito da Universidade Paranaense, estagiário do Ministério Público do Estado do Paraná, na 1ª Promotoria de Justiça de Guaíra, E-mail: make@f1net.com.br

 

 

REFORMA DO JUDICIÁRIO – OBSERVAÇÕES TARDIAS SOBRE O NEPOTISMO

[voz universitária] [artigos jurídicos]

            O assunto de maior destaque nestes últimos dias tem sido o escândalo referente às irregularidades envolvendo o Prefeito de São Paulo, Celso Pitta, em acusações promovidas pela sua esposa, Nicéa Pitta, em primeira exposição na tevê em 10.3.00 e até então assunto principal nos meios de comunicação na imprensa televisionada e escrita.

            Porém, outros assuntos tão ou mais importantes, cuja divulgação tem sido ofuscada pela questão referida, com maior impacto perante a opinião pública, são a rejeição do item do nepotismo referente à reforma do Judiciário em votação na Câmara dos Deputados, em 15.3.00, a aprovação em 1º turno nesta mesma Casa da Lei da Mordaça (Observação: vetada a aplicação para membros do Ministério Público em 22.3.00, após três adiamentos pela base governista temendo o veto) e a aprovação do DRU – Desvinculação de Receitas da União, em 2o turno pelo Senado, em 15.3.00. Pode-se até arriscar em dizer que os parlamentares aproveitaram o escândalo do "Caso Pitta" e conseqüente distração das atenções públicas para essas questões para votar conforme interesses estes itens da reforma do Judiciário.

            Não é exagero afirmar que a questão da reforma do Judiciário é mais importante que o Caso Pitta, se se pensar que se a lei da mordaça estivesse hoje vigente, informações do Ministério Público e Judiciário sobre a questão não poderiam ter sido veiculadas. Sobre esta e inúmeras outras acusações existentes.

            No presente texto, será tratada a questão do Nepotismo, ainda que tardiamente, já que rejeitado em 15.3.00 em votação na Câmara.

            Por questões que parecem óbvias, parece desnecessário se argumentar a legitimidade do nepotismo, sendo evidente a ilegitimidade deste instituto no sistema jurídico atual. No entanto, por se ver na imprensa declarações de parlamentares e opiniões em artigos que são verdadeiras aberrações, é que se entende a necessidade de uma análise mais ou menos minuciosa do assunto.

            O tópico do projeto de reforma do Judiciário que trata do nepotismo dispõe que é proibida a contratação de parentes para cargos de confiança, de livre nomeação pelos titulares, disposição que teria aplicação nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Tal disposição atingiria 186 Deputados Federais, perfazendo um total de 315 parentes contratados. Durante a tramitação da votação, tentou-se amenizar o dispositivo para a autorização de contratação de até dois parentes para ocupar tais cargos, sendo que tal medida atingiria somente 24 dos 186 Deputados, correspondendo a 40 parentes num total de 315, que seriam os que possuiriam mais de dois familiares (Fonte: Folha de São Paulo, 8.2.00). A contratação de parentes custa anualmente para a Câmara um total de 9,6 milhões.

            São declarações como as seguintes que demonstraram a distorção existente na concepção de cargos públicos verificada entre os parlamentares:

"Sou pelo nepotismo. E quero dizer ao Brasil inteiro que não sou hipócrita". "Quero dizer que empregarei os meus parentes enquanto puder. Se eu puder amparar minha família toda, eu a ampararei, mas também não desprezarei os demais." (Themístocles Sampaio, PMDB-PI) (Folha de São Paulo, 8.2.00).

"Eu gosto da minha família e quero que ela esteja ao meu lado. Vou ser vigiado por quem não é meu parente?" (Themístocles Sampaio, PMDB-PI) (Folha de São Paulo, 16.3.00).

"Elas são preparadas, competentes e podem me ajudar. Se pedir emprego para elas a um empresário ou ao governo, vou ficar com o rabo preso" (Gerson Peres, PPB-PA) (Folha de São Paulo, 8.2.00).

"A maioria dos deputados justificou o nepotismo, que a lei não proíbe, dizendo que precisa de reforço de renda familiar, de funcionários de confiança ou de apoio em seus redutos eleitorais" (Folha de São Paulo, 8.2.00).

                De maneira que tratam a questão, verifica-se uma distorção na conceituação de cargos públicos que fazem, a idéia de que são proprietários dos cargos que dispõem para livre nomeação, talvez baseada nesta qualidade dos cargos de confiança. Deve-se ressaltar que são de livre nomeação, mas ainda objetivando o interesse público, i.e., devem ter por critérios de escolha candidatos que possuem preparo técnico para exercer as atribuições inerentes a estes.

                Ao contrário de declaração de Themístocles Sampaio, PMDB-PI, tais cargos não foram criados para "criar um ambiente familiar no local de trabalho" de deputado, que são tão agentes públicos quanto qualquer outro servidor público, nem se verifica tal instituto em Direito Administrativo. E o Parlamentar não pode nem "sair pedindo cargo para parentes", conforme Gerson Peres, PPB-PA, e nem utilizar da sua posição para garantir ocupação a familiares, violando expressamente o princípio de imparcialidade da Administração Pública. Independente de legislação expressa, o nepotismo é inconstitucional por expressa violação deste princípio.

                Não é nem um pouco rigorosa a posição de proibição de ocupação de tais cargos por parentes. Apesar de ser disposição desfavorável a familiares, que por tal qualidade estariam nessa hipótese em posição prejudicada na escolha para ocupação quanto aos demais "concorrentes" sem vínculo pessoal com tais agentes públicos, tal medida não é estranha na ordem jurídica como um todo, uma vez que é embasada, em situações análogas, na presunção absoluta, jure et de jure, de parcialidade, com prejuízo para pessoa com vínculo familiar.

                A primeira hipótese que pode ser citada é verificada na área processual, através dos institutos de impedimento e suspeição. Especialmente na primeira, verifica-se uma presunção absoluta de parcialidade em atos envolvendo relações familiares (violando o princípio de imparcialidade na Administração Pública), não admitindo qualquer prova em contrário. Prejuízo para parentes, mas justificável pelo interesse público envolvido (prioritária ao interesse particular).

            Outra hipótese verificada é em Direito Eleitoral, disposto no art. 1o, § 3o da Lei Complementar 64/90, Lei de Inelegibilidade:

"Art. 1o (...). § 3o São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos 6 (seis) meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição."

                Neste caso, procurando-se evitar favorecimento presumido a familiar no processo eleitoral por titular de cargo eletivo, e o uso da máquina estatal visando este fim, instaurou-se tal proibição, também aplicável a presunção jure et de jure de favorecimento. Aplica-se também aqui os mesmos argumentos da hipótese anterior.

                A Lei de Inelegibilidade (LC 64/90) é baseada em parte considerável em presunção de parcialidade em afinidades pessoais obtidas em relações humanas em função de situações particulares (familiares, e até profissionais, como no art. 1o, III, LC 64/90).

                Cargos de confiança, referente a gabinete e assessoria, foram criados visando proporcionar as melhores condições para que o titular (deputado, no caso) cumpra com as atribuições inerentes ao cargo que ocupa. Em tese, a nomeação para o assessoramento deveria ser definida sob os critérios de competência, preparação, confiança, e outras qualificações imparciais, para o exercício dos deveres do cargo, pois, argumentando em termos práticos, um Deputado - que cumpra com suas responsabilidades - não deve se preocupar com aspectos como digitação de documentos, pesquisas que servirão de orientação para decisões, etc.

                Apesar de não se poder mais fazer nada quanto à questão, já que vetado em votação na Câmara, é necessário que os profissionais do meio jurídico atentem para os demais itens do projeto de reforma do Judiciário, de terrível prejuízo ao Poder desde sua concepção íntima e natureza, e ainda aos esforços de defesa do País.

                O Brasil talvez tenha perdido uma boa oportunidade de iniciar uma moralização na máquina estatal através das vias normativas, além da verificada atualmente pelas vias judiciais (ações contra atos administrativos ímprobos), considerando que grande parcela das nomeações para tais cargos públicos são feitos sob o critério do nepotismo, em todas as esferas administrativas (federal, estadual e municipal).

                É hora de se colocar freios de modo sério e definitivo neste governo – Executivo e Legislativo – e suas ações destrutivas de direitos conquistados em décadas de esforços, sacrifícios e até mortes. Resistir a e impedir as reformas do Judiciário, administrativas, previdenciárias, tributárias, constitucionais e demais. E pelo lado dos estudantes e profissionais do Direito, é uma questão de dever a defesa do Direito e da Justiça, e do País, como agentes do Direito que são.

                Rio Branco-Acre, 23 de Março de 2000.

                F. Lima.
                Bal. em Direito - UFAC

 

 

CONVOCAÇÃO DOS ESTUDANTES, PROFISSIONAIS DO DIREITO E DEMAIS CIDADÃOS VISANDO RESISTÊNCIA À REFORMA DO JUDICIÁRIO

[voz universitária] [artigos jurídicos]

            Prezados Estudantes e Profissionais do Direito, e demais Cidadãos.

            Venho, por meio desta, expor informações a respeito da Reforma do Judiciário, e tentar convencê-los a, juntos, formarmos um movimento de resistência a este projeto antidemocrático e de imensuráveis prejuízos a todo o Povo Brasileiro – o que nos inclui – e a este País.

            Em resumo ao material que segue a esta mensagem inicial, a Reforma do Judiciário tem como pontos mais polêmicos a Lei da Mordaça, a Súmula Vinculante, a Argüição de Relevância, a extinção dos Tribunais do Trabalho e Militares, dentre outros.

            Comecemos pelo seu tópico mais polêmico: a Lei da Mordaça.

            Apesar de não divulgado como deveria na imprensa televisiva, hoje verifica-se uma enorme onda de ações judiciais contra o alto escalão dos Poderes, principalmente por atos de improbidade no exercício da administração, como Ministros, Deputados Federais, Senadores, Governadores, Prefeitos, Deputados Estaduais, Ex-Presidentes do Banco Central, etc. (v. relação exemplificativa abaixo). Ações que não costumavam ser verificadas através da história deste País, onde a regra é a impunidade para este grupo de indivíduos, quando são estes os atos mais prejudiciais ao interesse público, em prejuízo imensurável e até irreversível.

            Divulgadas informações sobre inquéritos e denúncias referentes a estas ações através da imprensa escrita, principalmente, indo a conhecimento da população, a opinião pública tem grande peso sob tais ações contra representantes públicos, na medida em que exige providências e fiscaliza as atividades jurisdicionais do Poder Judiciário, em exercício normal de direitos universais, evitando-se, dessa maneira, o destino que normalmente levavam estas ações: arquivamento, ou os "embargos de gaveta", ou os "recursos de armário". Ou por qualquer meio processual mal empregado ou inidôneo para garantir a impunidade.

            Hoje, se se verifica a impunidade para tais infratores, é mais por questão de fato, i.e., não há punição, por impedimentos da vida concreta (em regra, de cunho político). A lei da mordaça é um artifício de direito que dificultará em muito a conclusão dessas ações, na medida em que neutralizará o seu acompanhamento e fiscalização por parte do povo. É um estorvo ao livre exercício dos direitos de fiscalização das ações judiciais. I.e., ficará muito mais viável a um juiz ímprobo o "esquecimento" dessas ações e conseqüente prescrição e arquivamento, ou qualquer outro meio processual à impunidade do réu.

            Considerando que o cidadão "comum" não tem condições de acompanhar diariamente o Diário Oficial para obter conhecimento destas ações, quando este mal consegue dar conta dos problemas do dia-a-dia de sobrevivência.

            A lei da mordaça fere expressamente os princípios constitucionais de liberdade de informação e imprensa e de publicidade dos atos processuais.

            Há pouco tempo (21.1.00), um tesoureiro de partido na Alemanha, por ser alvo de denúncias de improbidade no exercício de suas funções, suicidou-se. Como diz Clóvis Rossi em artigo "na Alemanha, escândalo dá suicídio; no Brasil, dá lei do silêncio" (Folha de São Paulo, 21.1.00). Apenas a Alemanha é citada para contraste das mentalidades dos agentes públicos deste país e o respeito que têm no trato da coisa pública.

            Os argumentos usados para dar alguma legitimidade a esta lei é a proteção da imagem e moral dos suspeitos, e garantir a veracidade das informações divulgadas ao público, enquanto que não havendo trânsito em julgado são apenas hipóteses. Ora, qualquer mácula à moral é retirada com a absolvição final – se for o caso – e, contrapondo-se os interesses envolvidos – publicidade das ações e liberdade de informação (direito público) e danos morais (direito individual) -, prevalece o direito público. Ainda, a legislação atual prevê medidas para punição do uso de informação enganosa com má-fé – inclusive reparação por danos morais.

            Tanto é evidente os interesses envolvidos que nunca ninguém se preocupou em proteger a imagem de suspeitos de pequenos furtos e roubos, divulgadas diariamente nas páginas policiais da imprensa escrita.

            Ministros do Supremo Tribunal Federal – STF assumiram publicamente posição contrária à lei da mordaça: ""A sociedade tem interesse em acompanhar (o andamento de inquéritos e processos). Como servidores públicos, devemos prestar contas a ela. O ordenamento jurídico atual já prevê punição por eventuais excessos", Marco Aurélio de Mello, vice-presidente do STF. O ex-presidente do STF Celso de Mello também condena a regra do silêncio. Segundo Mello, ela fere o princípio constitucional da publicidade, pelo qual a sociedade tem o direito de obter informações das autoridades públicas. Também é contrário o Presidente do Supremo, Marco Aurélio de Mello." (Folha de São Paulo, 21.1.00). "De acordo com Flávia Piovesan, professora de direito constitucional da PUC-SP, a iniciativa de proibir as manifestações sobre processos surgiu após o Ministério Público passar a investigar sistematicamente as denúncias contra deputados e senadores. "O objetivo dessa medida é reduzir o impacto da atuação do Ministério Público em relação às autoridades políticas". O procurador-geral do Estado, Luiz Antonio Guimarães Marrey, concorda. "É um mecanismo de defesa dos parlamentares.". Marrey afirma que a emenda constitucional é "contrária ao interesse público" e sustenta que a população tem o direito de saber sobre as investigações em curso." (Folha de São Paulo, 21.1.00).

Relação Exemplificativa de Representantes Públicos (Federais) Alvo de Ação Judicial

Agente Público

Cargo

Partido/UF

Acusação

iz Estevão

Senador

PMDB-DF

Crime eleitoral (apresentação de documento falso à JE); desvio de recursos; mentido à CPI.

Francisco Lopes

Ex-Presid. Banco Central

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Peculato.

Rafael Greca

Atual Ministro do Esportes e Turismo

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Improbidade administrativa.

Wanderley Martins

Deputado federal.

PDT-RJ

Envolvimento em tráfico de armas e drogas.

Geraldo Quintão

Ministro indicado da Defesa

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Uso dos aviões da FAB para fins particulares.

Hildebrando Pascoal

Deputado federal

PFL-AC

CPI do Narcotráfico

Silas Câmara

Deputado federal

PTB-AM

CPI do Narcotráfico

Augusto Farias

Deputado federal

PPB-AL

CPI do Narcotráfico

Paulo Marinho (PFL-MA)

Deputado federal

PFL-MA

Desvio de cerca de R$ 1 milhão do município de Caxias

            Outro tópico polêmico e de prejuízo gigantesco, que compromete a própria definição e natureza do Poder Judiciário, e sua razão de ser, é a Súmula Vinculante, quando atinge diretamente a Independência do Judiciário, ou, mais tecnicamente, os princípios do livre convencimento do juiz, da independência e harmonia dos três Poderes, dentre outros.

            Este dispositivo dispõe que os tribunais inferiores serão obrigados a seguir as decisões dos tribunais de instâncias superiores. Excetuando os tribunais especiais (Tribunais Superiores do Trabalho, Eleitoral e Militar), os tribunais superiores concentram-se em dois: STF e STJ. I.e., os tribunais de todo o país serão obrigados a seguir decisões desses dois tribunais superiores. Mais grave ainda se enxerga a situação se se considerar que os Ministros desses dois tribunais são escolhidos e nomeados pelo Presidente da República e Congresso. Em última análise, o chefe-maior do Executivo e os Senadores teriam o controle das decisões de todo o Poder Judiciário. Como se não bastasse a situação atual de o Presidente concentrar em mãos o total poder de legislar, através das medidas provisórias, sendo seu uso atual evidentemente inconstitucional. É o fim do Poder Judiciário na sua concepção mais íntima: a independência e equilíbrio dos três Poderes.

            Então, todo o Poder Judiciário apenas obedecerá ordens desses representantes, passará a ser apenas cúmplice das decisões deles, servirá apenas para contribuir para escamotear uma falsa legitimidade do Estado e seus poderes.

            Se tal tópico tem por fundamento a agilidade dos processos nos tribunais, mas refere-se restritamente a questões constitucionais e ao Supremo, fica descaradamente explícita a má-fé deste dispositivo, quando a grande concentração das ações judiciais está nas áreas cível e penal. E, "coincidentemente", os assuntos constitucionais tratados pelo STF convergem às reformas administrativas, tributárias, previdenciárias propostas pelo atual Presidente.

            Por essas razões e outras é que os aplicadores do Direito não podem permitir que tais reformas sejam concretizadas. Temos que proteger a identidade, autonomia e independência dos profissionais do Direito e do Poder Judiciário, impedindo que se concretize uma realidade em que estes profissionais passem a ser apenas cumpridores de ordens, como qualquer sistema de informática, que apenas segue os comandos impostos, para poder decidir conforme sua convicção e razão e valores morais e poder julgar todos os cidadãos igualmente, e não apenas condenar justo os que mais precisam de Justiça.

            É querer e exigir demais que a população reaja a este esforço de esfacelamento do País, pois se nós, cidadãos conscientes, de certa formação intelectual, mais ou menos estáveis economicamente, não o fazemos, quanto mais o cidadão que não tem garantido nem o pão de cada dia. Dessa maneira, fica evidente que até o futuro do país realmente depende de nós.

            A importância de se priorizar o impedimento da aprovação dessa reforma é que todo o esforço posterior é inócuo, sem efeito: estudar-se para concurso, na consciência de que no exercício da atribuição os indivíduos mais nocivos são na prática impuníveis, especializar-se no conhecimento jurídico consciente que apenas a parcela mais desamparada pelo Estado será alvo dos seus esforços, ou que você não mais poderá decidir mais conforme sua consciência e princípios morais.

            Você que está hesitante em apoiar, deve estar pensando ainda que o seu apoio individual ou não à resistência dos profissionais do Direito, não terá influência. Não esqueça que um apoio não é único, a tendência é multiplicar-se. E você está disposto a correr o risco, sacrificar a Independência do Judiciário e a própria existência deste em benefício do seu conforto momentâneo?

            Temos que exercitar nosso direito de Cidadania, conscientizar-nos de que o Estado Brasileiro é formado por nós. E não é necessário que cada um de nós larguemos todas nossas atividades do dia-a-dia para isso, basta a dedicação de algumas horas. E, como citado, não podemos esperar nem exigir reação da grande massa, estando então a salvação de certos direitos fundamentais a qualquer ser humano a nós, privilegiados, e mais ainda, por sermos os maiores conhecedores desses direitos.

            Se escolhemos o Direito por vocação, porque acreditamos nele, então é nosso dever defendê-lo mais do que qualquer outro cidadão ou profissional.

            Concluindo com frases de Celso Antônio Bandeira de Mello, ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal e estudioso de Direito Constitucional (em Caros Amigos, Out/99):

            "Nem que fique só eu defendendo certas idéias, é preciso deter o processo de destruição do Brasil, não prosseguir o processo de pauperização do brasileiro. Mesmo que eu seja o último e único, vou continuar."

            "Logo, qual foi a obra desse governo (FHC)? (...) teve uma obra para a qual não tem havido tanta atenção, foi uma obra normativa. Ele está desmontando aos poucos as linhas mestras da Constituição brasileira através das reformas. E está desmontando o sistema normativo infraconstitucional para ajustar o Estado brasileiro a uma concepção de Estado diferente daquela que estava na Constituição de 1988, e que ainda está na Constituição."

            "Temos de mudar a cultura, mudar a consciência, mudar a educação. Temos de pegar por baixo, para poder haver uma transformação de mentalidade. Quando uma pessoa escreve o que o Fábio Comparato escreve de vez em quando na Folha (de São Paulo), que eu escrevo, e outros, parecendo coisas escandalosas, coisas atrevidas, é mero exercício da cidadania. Quando pessoas movem ação popular, como muitos de nós movemos no caso da Vale do Rio Doce, aquilo causa uma reação natural, dizendo: "Mas como? Mas que absurdo". Não, quanto mais ações populares existirem, maior demonstração de consciência de cidadania. O exercício da cidadania é malvisto, é como se fosse a inversão da ordem natural das coisas."

            "Mas os escândalos se banalizaram, assim como a miséria e a fome se banalizaram, eles se banalizaram, já não impressionam mais."

            "Desde Pedro Álvares Cabral até hoje, não creio que alguém tenha feito tão mal ao país como esse homem."

            Defendamos a profissão e os valores que escolhemos. Não deixemos que destruam tudo o que acreditamos e nosso País e nosso futuro.

            Rio Branco-Acre, Fevereiro de 2000.

            F. Lima
            Bal. em Direito - UFAC





Artigo retirado de: http://yaco.ufac.br/direito/evidencia.htm