- Márcio Nuno Rabat
Nos dias que correm, a expressão
"reforma política" dirige-se a objetos razoavelmente bem definidos.
Em termos gerais, discute-se a forma em que serão utilizados os
mecanismos eleitorais e partidários para a constituição
de um regime político representativo. Em termos menos gerais, distinguem-se
três grandes núcleos de questões (obviamente interligadas):
1º) sistema eleitoral, tendo por eixo a contraposição
entre proporcionalistas e distritalistas; 2º) organização
partidária, com ênfase para o número, tamanho e coesão
dos partidos; 3º) modo de constituição do governo, em
que subsistem resquícios da discussão entre presidencialistas
e parlamentaristas. Minha intenção é propor algumas
considerações prévias, de caráter geral (I),
para à luz delas lançar algumas idéias sobre a situação
atual do país (II), na expectativa de novos boletins para discutir
tópicos específicos com algum detalhe. I
Uma idéia está no
ponto de partida desta reflexão: dadas as condições
objetivas e subjetivas para que uma aparelhagem institucional fundada em
eleições e partidos livres resulte em um regime de representação
política, as várias fórmulas de estruturação
dos sistemas eleitorais conhecidas - ou outras que possam resultar de sua
combinação, ou de inovações pontuais, desde
que excluídas adaptações sucessivas para atender a
interesses específicos - mostram-se todas potencialmente capazes
de gerar governos representativos e eficazes, dentro dos limites estruturais
que lhes são próprios. Este ponto é importante para
desdramatizar a discussão e evitar estigmas. Por maiores que sejam
as divergências de formulação que apresentem, dificilmente
se poderia estabelecer uma gradação de valor entre os sistemas
de representação holandês, inglês, suíço
ou estadunidense, seja no que toca à legitimidade, seja no que toca
à eficiência administrativa e governativa.
Por outro lado, é inegável
a importância da imbricação entre os sistemas eleitorais
e partidários e as experiências políticas particulares
dos países. Essa imbricação tem um duplo sentido.
Não só a fórmula institucional surgida em cada país
decorre, em parte, de sua história particular, e funciona de acordo
com o contexto em que se insere, como ganha em eficiência à
medida em que as forças políticas e o eleitorado aprendem
a lidar com ela. Daí tiramos duas lições importantes:
a primeira é que as fórmulas institucionais não são
imediatamente transplantáveis, pois decorrem de histórias
particulares e, mesmo se copiadas, funcionarão algo diferentemente
em cada contexto; a segunda é que o bom funcionamento do regime
representativo depende de alguma estabilidade das regras eleitorais, para
que o eleitorado e as forças políticas aprendam a expressar-se
adequadamente por via delas.
Às considerações
precedentes soma-se a percepção difusa de que o regime representativo
encontra-se em crise (de crescimento, espera-se). Acredito que os sistemas
políticos se burocratizaram, mostrando-se incapazes de instrumentalizar
a participação popular no sentido de um saudável desenvolvimento
social. O problema não reside apenas na frustração
das expectativas dos eleitorados, mas também na alocação
ineficiente de recursos que resulta da descolagem entre o governo e a base
social. Trata-se de fenômeno que se manifesta um pouco por todo o
mundo, sendo difícil distinguir, em cada sistema eleitoral e partidário,
entre o que aponta no sentido da superação da crise e o que
trava tal superação.
Em resumo, não me parece
correto supor que o sistema eleitoral e partidário brasileiro esteja
por definição na retaguarda da experiência internacional.
Penso que nossa tarefa é analisá-lo cuidadosamente, evitar
que se perca a experiência adquirida pelos analistas, pelos políticos
e pelo eleitorado e adaptá-lo pontualmente quando indispensável.
Ademais, acredito que a flexibilidade do sistema brasileiro pode trazer
lições importantes para os países que se debatem com
certo esgotamento de seus regimes de representação. II
Começo por excluir a contraposição
entre presidencialismo e parlamentarismo do debate sobre a situação
atual e o futuro desejável da institucionalidade política
do país. Além dos problemas jurídicos referentes ao
estatuto constitucional da recente decisão plebiscitária
sobre a matéria, a discussão é deseducativa por sugerir
desapreço para com a decisão do eleitorado - elemento fundamental
do regime representativo - e por induzir à desatenção
para com a tarefa de aprender a lidar com o sistema existente.
Quanto ao sistema eleitoral e à
organização partidária, me limitarei a um esquema
de interpretação do seu momento e dinâmica. O país
está vivendo o processo de constituição de um regime
que permita a articulação político-eleitoral diretamente
a partir das posições sociais. Será esse processo
de articulação sócio-política o vetor determinante
da constituição do sistema partidário adequado ao
novo momento - como, aliás, foi mostrado abundantemente pela experiência
internacional. Para que tal aconteça, a única reforma política
verdadeiramente indispensável consiste na adesão contínua,
por parte das forças sociais, ao mecanismo eleitoral de formação
de governo, respeitando-se intransigentemente as decisões das urnas.
Quanto à eventual intervenção
do legislador sobre o processo social de formação de partidos
e consolidação do regime representativo, penso que ela deverá
atentar para algumas determinações estruturais. A primeira
diz respeito à dimensão do país e sua diversidade
social e regional. Querer eliminar tal diversidade do espectro partidário,
pela redução do número de partidos, nos colocaria
entre duas alternativas indesejáveis: ou os poucos partidos restantes
reforçariam sua vocação de frentes partidárias,
escondendo sob manto único posições as mais diversas,
ou seriam dominados por lideranças centralizadas, que lhes imporiam
uma uniformidade simplificadora, tornando as transformações
sociais pouco acessíveis ao plano político, por vedar-lhes
o caminho da organização partidária.
Em segundo lugar, é preciso
ter em conta que o presidencialismo não exige total coesão
partidária para a formação do governo. Devemos aproveitar-nos
dessa vantagem estrutural do presidencialismo, pois ela permite o funcionamento
eficiente de um sistema eleitoral que não privilegie coesões
partidárias fictícias, nem a predominância artificial
das decisões partidárias centralizadas - fontes possíveis
de distorções do regime representativo e de parte de seu
relativo esgotamento atual.
Não nos apressemos com intervenções
legais que poderão mostrar-se, no médio prazo, não
só desnecessárias como perniciosas. Enquanto a dinâmica
social vai agindo a favor de uma melhor estruturação do sistema
partidário brasileiro, a organização legal-institucional
do regime representativo, após pouquíssimo tempo de atuação
livre, nos dá provas repetidas de estar à altura das exigências
do momento. Talvez uma certa idealização do que acontece
em outros países nos impeça de perceber esse fato.
Fonte: http://www.tba.com.br/pages/brito/caderno1/sistelei.htm