De como pensando que se vai
para Alemanha chega-se a Bolívia
Jairo Nicolau
Dois mistérios rondam a discussão
sobre as instituições brasileiras. O primeiro mistério
refere-se à crônica insatisfação com o desempenho
das mesmas. Sabe-se lá por que razão, as regras que regulam
a escolha de representantes, os partidos políticos e o funcionamento
do legislativo e do executivo são alvos de permanentes manifestações
de descontentamento. Editoriais, comissões, plebiscitos, emendas
constitucionais manifestam reiterada desconfiança quanto às
opções constitucionais feitas pela carta de 1988. Ao submeter
duas escolhas fundamentais (a república e o presidencialismo) a
plebiscito e permitir a revisão por maioria simples – que acabou
não ocorrendo –, a própria Constituição de
1988 talvez tenha contribuído para a criação de uma
cultura política da insatisfação institucional.
A insatisfação com o
desempenho das instituições está amparada em um diagnóstico
pessimista, que acredita que temos as piores instituições
representativas do planeta. O presidente Fernando Henrique Cardoso, em
depoimento ao Jornal do Brasil, expressou a versão do subdesenvolvimento
institucional brasileiro de maneira definitiva: –"Nossa estrutura política
está atrás de outros países. Digo isso desde que sou
senador. Nosso problema é que nosso sistema político está
atrás da sociedade. A sociedade avançou mais, mudou mais
depressa que o sistema político".
A conseqüência natural do
diagnóstico do mau desempenho institucional é a proposta
de uma vasta agenda de reforma política. Todos os aspectos do sistema
representativo brasileiro foram alvos de projetos reformistas. As regras
do presidencialismo foram modificadas (mandato de quatro anos para presidente
e possibilidade de reeleição), enquanto o sistema proporcional
que vigora nas eleições parlamentares é ameaçado
a cada legislatura pela adoção de um virtual sistema distrital
misto. Nesses últimos anos, falou-se de voto facultativo, de eleições
para suplente de senador, de correções para distorção
da representação dos estados na Câmara dos Deputados.
Aqui chegamos ao segundo de nossos
mistérios: a adoção de um sistema misto nas eleições
legislativas. Novamente, sabe-se lá por que, o distrital misto passou
a aparecer como um consenso no meio jornalístico e político
brasileiro. Talvez porque, apresentado superficialmente, ele realmente
parece comportar o melhor da representação proporcional e
da majoritária.
Na impossibilidade de discutir a natureza
do que seja o distrital misto, pois cada proposta que carrega este nome
fala de um modelo com características singulares, comento a proposta
apresentada pelo senador Sérgio Machado.
Apesar de ser freqüentemente comparado
com o sistema eleitoral da Alemanha, o projeto Machado é semelhante
ao sistema adotado na Bolívia em 1993. Na Alemanha o cálculo
para distribuição das cadeiras é feito no âmbito
nacional (o que gera alta proporcionalidade), enquanto no projeto Machado
o cálculo é realizado em cada unidade da federação.
Outra diferença importante é que na Alemanha o número
de cadeiras de cada unidade da federação na Câmara
dos Deputados não é definido previamente e depende da taxa
de comparecimento, enquanto no projeto Machado o número de representantes
por estado é fixo.
O maior adversário da adoção
de um sistema misto no Brasil é o ato de desenhar os distritos em
cada unidade da federação (distritamento); menos pelas possíveis
manipulações que porventura possam ser feitas para favorecer
determinados candidatos e mais pela incerteza que produz. O sistema representativo
brasileiro já tem um padrão de preferências razoavelmente
estabilizado em termos eleitorais: alguns partidos têm força
em determinados estados, determinados políticos têm redutos
eleitorais em certas áreas do estado. O distritamento introduzirá
uma variável abominada por qualquer político: a imprevisibilidade.
A criação de um distrito eleitoral – que envolverá
necessariamente a agregação de municípios médios
e pequenos e a divisão de megacidades – interferirá em interesses
eleitorais cristalizados. Alguns candidatos terão seus redutos diluídos
em outros maiores, alguns partidos terão seus redutos divididos
em um processo cujo resultado é imprevisível.
Gostaria de chamar a atenção
para cinco possíveis efeitos (pouco explorados) da adoção
do chamado sistema distrital misto no Brasil:
1.Complexidade do sistema. Sistemas
mistos são mais complexos e tendem a dificultar sua inteligibilidade
pelo eleitor. Na Alemanha, apesar da simplicidade da cédula, menos
da metade dos eleitores sabem a função do voto dado na lista
partidária. No Brasil, nas eleições gerais o eleitor
necessitaria fazer até oito escolhas – marca praticamente desconhecida
em outras democracias. Em um quadro de baixa escolaridade do eleitorado
e de espetaculares taxas de votos em branco e anulados, um componente que
torne a escolha eleitoral mais difícil, pode ter efeitos bastante
negativos para a legitimidade de nosso sistema representativo.
2.Distritos eleitorais justapostos.
Metade dos deputados eleitos pelo distrito e metade pela lista em cada
estado significa que o número de distritos eleitorais seria diferente
nas eleições para Câmara e para Assembléia Legislativa.
No Rio de Janeiro, por exemplo, seriam 35 distritos com cerca de 285 mil
eleitores na eleição para a Assembléia e 23 distritos
com cerca de 434 mil eleitores para a Câmara dos Deputados. Pode-se
imaginar o que isso produziria em termos de confusão para os eleitores
e para a estratégia eleitoral dos partidos candidatos.
3.Distritos com um número de
representantes muito diferenciado. Como as distorções da
representação dos estados na Câmara dos Deputados não
seriam corrigidas, o número de eleitores por distrito eleitoral
variaria intensamente. Em números das eleições de
1998: um distrito eleitoral de Roraima seria composto por cerca de 43 mil
eleitores, enquanto um distrito de São Paulo representaria 667 mil
eleitores. Dividindo um pelo outro encontramos um raio de 15,5.
4.A possibilidade de criação
de deputados com diferentes status. A eleição de deputados
por dois métodos pode estimular diferenças marcantes na atividade
legislativa. De um lado, os deputados eleitos nos distritos (com um determinado
número de votos) teriam forte incentivo para cultivar laços
com suas bases eleitorais – pode-se reforçar a tendência de
alguns parlamentares a atuarem exclusivamente como vereadores federais,
intermediários entre interesses locais e o executivo; de outro lado,
os parlamentares eleitos na lista (sem voto pessoalmente identificado)
teriam forte incentivo para cultivar laços com a vida orgânica
do partido, pois isso garantiria uma boa posição na lista
de candidatos da eleição seguinte.
5.Número excedente de cadeiras.
Como ocorre na Alemanha, o projeto Machado prevê que um partido assegurará
cadeiras a mais nas situações em que ele conquistar mais
representantes nas eleições majoritário-distritais
do que teria direito pelo cálculo proporcional. Tal mecanismo aumenta
o número total de representantes da Câmara. A principal razão
para a criação de cadeiras suplementares é o "voto
quebrado" (o eleitor vota em um partido na lista e em outro no distrito).
Como os eleitores brasileiros tradicionalmente votam em candidatos de diferentes
partidos, pode-se prever uma alta taxa de cadeiras suplementares criadas
em cada eleição.
Tentei mostrar neste breve texto que
a escolha de um sistema que aparentemente combina o melhor dos dois modelos
de representação (majoritário e proporcional), comporta
aspectos pouco explorados por seus defensores.
Pelas razões apresentadas acima,
acho que o sistema misto não é apropriado para o Brasil.
Podia terminar explorando um terceiro
mistério: por que pouco se fala sobre o aperfeiçoamento do
sistema proporcional de lista em vigor no Brasil desde 1946? Países
sem graves crises institucionais, em geral, optam por fazer ajustes marginais
no sistema representativo, ao invés de substituí-lo. Mas
esse é um mistério para outra oportunidade.
*Professor de Ciência Política
do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro - IUPERJ
Fonte: http://www.starmedia.com/politicahoje/