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SOCIALISMO E LIBERALISMO 
- José Guilherme Merquior -

 

(Esta aula foi escrita em 1987 para os cursos do PL, tendo o autor feito pequenas alterações no ano seguinte. É publicada neste capítulo sem atualização, tal como foi deixada por José Guilherme Merquior.)

- SOCIALISMO E DEMOCRACIA -

O socialismo, em suas origens intelectuais, não era uma teoria política e sim uma teoria econômica. Mais precisamente, uma teoria que procurava reorganizar a sociedade industrial. Os primeiros ideólogos socialistas — os que Engels chamou de "socialistas utópicos" — simplesmente não cogitavam de instituições políticas.

O socialismo só se politizou com Marx, que fundiu a crítica do liberalismo econômico com a tradição revolucionária e igualitária do comunismo.

Marx nunca valorizou os direitos civis (de expressão, profissão, associação, etc.). Ao contrário, chegou mesmo a condená-los, vendo neles mero instrumento de exploração de classe. O socialismo marxista, e muito especialmente o praticado pelos regimes comunistas, sempre refletiu esse menosprezo pelos direitos civis.

Em Lenin, a indiferença de Marx para com a liberdade civil torna-se verdadeira hostilidade aos direitos civis e políticos. Hoje, ninguém mais duvida de que nos regimes comunistas, ninguém consegue, ou tenta, tornar compatíveis socialismo e democracia.

Para tornar compatíveis socialismo e democracia, o socialismo precisa renunciar ao dirigismo econômico, à dominação de toda economia pelo Estado. Isso foi o que fez a social-democracia, desde suas primeiras experiências na Escandinávia. Compreenderam que o dirigismo político provoca ineficiência e despotismo, já que concentra todas as grandes decisões econômicas nas mãos dos que já tem o comando político. Essa autonomia na esfera socialista nunca foi admitida pelos marxistas, embora Trotsky tenha observado que, após o crescimento industrial, a qualidade da produção está fora do alcance do controle burocrático da economia.

- SOCIAL-DEMOCRACIA -

Kolakowski baseia sua concepção da social-democracia em alguns valores e regras gerais que se podem resumir assim:

1) Adesão aos princípios democráticos e constitucionais da sociedade aberta;

2) Busca da igualdade, por meio do "Estado protetor", que atenda às necessidades elementares da população, cuide da velhice e da doença e promova, em clima de liberdade, a igualdade de oportunidades;

3) Orientação oficial da economia;

4) Reconhecimento da impossibilidade de tornar inteiramente compatíveis o necessário planejamento e a desejável autonomia.

A social-democracia foi perdendo terreno para o moderno liberalismo, entre outras razões, em conseqüência da revolta no mundo atual contra o estatismo econômico. Por outro lado, a recessão econômica e o desemprego em vários países europeus fizeram com que os social-democratas se afastassem de suas bases sindicalistas.

Na Inglaterra, por exemplo, a vitória de Margareth Thatcher foi em grande parte conseqüência da rebelião do operariado contra a política austera e estatizante dos social-democratas. Na prática, os social-democratas eram forçados à negociação entre empresários e trabalhadores, o que representava o reconhecimento dos interesses do capital, traindo suas origens social-marxistas.

- RENASCIMENTO DOS LIBERALISMOS -

"Um conservador", disse Irving Kristol, "não passa de um liberal assaltado pela realidade". Na realidade, não é bem assim. A palavra liberal serve hoje para cobrir diferentes comportamentos e pensamentos políticos.

Em outros tempos, o liberalismo estava na defensiva porque os injustos regimes liberais eram comparados com o ideal socialista de liberdade e de justiça. Mas, depois da Segunda Guerra Mundial, quando o socialismo de Stalin foi implantado autoritariamente, as mazelas da realidade socialista foram ficando mais visíveis. O liberalismo passou à ofensiva na produção teórica das universidades e dos pensadores porque o socialismo está longe de ter as mãos limpas e o coração leve.

Lembra Dahrendorf que o liberal raramente precisa envergonhar-se das realidades criadas em seu nome. Ou, quando precisa, resta-lhe o consolo de verificar que seus adversários de esquerda possuem mais esqueletos dentro do armário.

A sociedade moderna, tecnificada e consumista, não requer apenas justiça: exige também eficiência; e a eficiência, por sua vez, implica liberdade econômica.

O neoliberalismo de Hayek tem marcado muitos pontos na denúncia do estatismo econômico, por exemplo, quando se refere à grande expansão de empresas estatais.

É irrealista, no entanto, quando pensa que o Estado pode deixar de dirigir as finanças ou planejar a economia. Importante é que ele não a controle. No seu famoso livro O Caminho da Servidão, Hayek levantou a tese de que o envolvimento do Estado na sociedade e na economia, mesmo por intervenções isoladas, redundaria, a longo prazo, em totalitarismo. No entanto, depois de quase cinqüenta anos, desde a guerra mundial, vemos que Hayek se enganou. No Ocidente e no Japão, a ação do Estado ajudou a evitar o totalitarismo. O Estado, às vezes assistencial, contribuiu de modo decisivo para neutralizar movimentos políticos socialistas autoritários.

No Brasil, temos, ao mesmo tempo, Estado demais e Estado de menos. Demais na economia, onde o Estado emperra, desperdiça, onera e atravanca. De menos, no plano social, onde são gritantes e inadmissíveis tantas carências em matéria de saúde, educação e moradia. Por isso há muitas vezes um diálogo de surdos: de um lado liberais se esquecem, ao condenar a ação do Estado, de ressalvar nossas tremendas necessidades no campo assistencial; de outro, os que se dizem defensores "do social" condenam todas as posições liberais.

- O MODERNO LIBERALISMO SOCIAL -

O moderno liberalismo social, doutrina do PL, não deve querer dizer apenas menos Estado; quer dizer sobretudo mais liberdade. E o Estado contido pode ser um poderoso instrumento para promover liberdade para todos.

Keynes, que tanto transformou o liberalismo econômico, recusou-se a aceitar tanto a opção leninista (sacrificar a democracia para acabar com o capitalismo) quanto a fascista (sacrificar a democracia para salvar o capitalismo). Mas alguns liberais são frios em matéria de fervor democrático. Hayek, por exemplo, chegou a imaginar alternativas que atuassem na base de princípios liberais. Para o neoliberalismo de direita, a liberdade econômica, além de necessária, é suficiente.

Nosso melhor liberalismo não deve ter um permanente pavor do Estado; deve sim — e com crescente vigor — buscar a limitação da ação do Estado a seus objetivos reais. Este é o liberalismo social que o PL defende.

Liberalismo com preocupações sociais é a única doutrina política atual que leva profundamente a sério o ideal democrático no sentido rigoroso da palavra, de governo do povo. Os socialismos de Estado dizem ser democráticos, mas ninguém se atreveria a dizer que praticaram a democracia como forma de governo. A democracia liberal social é realmente democracia, variando apenas no grau do seu teor democrático. O argumento liberal não precisa fugir à realidade; mas o antiliberalismo socialista só consegue basear-se no idealismo e em promessas sempre refeitas e adiadas de um paraíso de liberdade.

- LIBERDADE E IGUALDADE -

A verdadeira democracia liberal tem duas paixões — as paixões de Rousseau: liberdade e igualdade.

Por volta de 1850 ou 60, entendia-se a igualdade de acordo com os méritos de cada um. Já definira Rui Barbosa que a verdadeira igualdade consistia em aquinhoar-se desigualmente a cada um, na proporção em que se desigualam. De lá pra cá, tende a prevalecer uma visão "igualitária" de igualdade. Todos são iguais.

Ao mesmo tempo, a liberdade ganha uma versão libertária que tem a anarquia no seu horizonte natural.

Esse é o maior desafio que o liberalismo tem e terá de enfrentar. Do socialismo, o liberalismo só precisa temer a força, não o poder de convencer, pois ele está muito desgastado. Todavia, em nossas sociedades cada vez mais permissivas e reivindicatórias, o liberalismo não está completamente a salvo da perversão interna de seu próprio ânimo: o velho nobre espírito de igualdade.

 Retirado de http://www.pl.org.br/culturapl/3cap4.htm