CAP. I - O SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO - 1979(82)/1990.
Não se pode compreender o SPB 79(82)/90 sem situá-lo no contexto da fase final do regime autoritário de 64, tendo sido sua criação uma conseqüência e parte da estratégia de distensão do próprio regime.
O golpe militar de 1964 teve sua articulação coordenada por três forças políticas que já haviam marcado sua posição no processo político na década de 50: o capital multinacional associado ao nacional, o capital de Estado e os militares1.
A crise política que levou o país à ruptura de sua primeira experiência democrática, iniciada com o fim do Estado Novo, em 1945, possibilitou que, em 1965, as forças golpistas após as prisões, expurgos e IPM's2 viessem, com o Ato Institucional Nº 2, extinguir todos os partidos que haviam florescido durante o período de 19453.
Encerrava-se assim o primeiro ciclo de uma experiência multipartidária efetiva onde a marca principal foi o surgimento de partidos com abrangência nacional e perfis ideológicos distintos, acompanhando o desenvolvimento urbano-industrial ocorrido na década de 50.
Entretanto, as forças golpistas que haviam articulado a derrubada do governo João Goulart não eram fruto de uma ação política extemporânea, puramente movida pela emoção do momento. Pelo contrário, eram resultado de uma competente articulação político-ideológica movida pela Ideologia da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, cujo principal pólo irradiador era a ESG -Escola Superior de Guerra-, que, com o apoio do capital multinacional, do capital nacional, associado ao estrangeiro, e com a participação do governo norte-americano, através da CIA, conseguiram construir oportunidades sobre o aparente clima de caos político-social, favorecendo a queda do governo João Goulart4.
A Ideologia de Segurança Nacional foi transplantada para o Brasil após a 2ª Guerra Mundial, quando vários oficiais superiores foram treinados no National War College (centro de treinamento do alto escalão do exército norte-americano). O objetivo principal desta ideologia era garantir metas de segurança para implantar uma geo-política para todo o Cone Sul do Continente Americano, capaz de bloquear o perigo expansionista do comunismo internacional.
A Ideologia da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento representava uma completa weltanschauung que tinha como meta criar condições para, através do fortalecimento do Estado, construir um modelo de desenvolvimento econômico extremamente favorável à entrada do capital estrangeiro, pretendendo implantar uma infra-estrutura capaz de transformar o país em uma potência econômica. Para que isto pudesse ocorrer, era necessário manter sob controle o crescimento dos movimentos sociais organizados que, cada vez mais, ocupavam espaços no cenário político5, criando um clima político-social de grande instabilidade, ameaçando os interesses da classe dominante nacional.
Com o objetivo de tornar o país um ambiente viável e atraente ao desenvolvimento do capital, foram tomadas decisões radicais no sentido de controlar a classe trabalhadora. Foi instituído, logo após o golpe de 64, o FGTS6, o qual tinha como objetivo substituir a figura da estabilidade por tempo de serviço, tornando mais flexível para o empresário a relação com a classe trabalhadora. Foi também criado o aparelho repressivo, composto pelos SNI e órgãos de informação das Forças Armadas como o DOI-CODI, no Exército, cujo objetivo era garantir de forma eficiente o bloqueio e/ou a eliminação de qualquer força "contra- revolucionária" que exercesse pressão ou ameaçasse o Estado de Segurança Nacional.
Com o recrudescimento do regime, instituiu-se a figura do "inimigo interno", passando a ser potencialmente suspeito todo e qualquer cidadão.
Como o golpe militar conseguiu obter apoio de grande parte da população, principalmente da classe média - esta se sentia ameaçada de perder seus privilégios diante das "reformas de base"7- , e como não se tratava apenas de um golpe circunstancial, e sim de uma planejada estratégia de ação com objetivos de dominação política de longo prazo, as forças que articularam o golpe perceberam que, mantendo o congresso funcionando, uma vez que já havia sido efetuada a "Operação Limpeza", cassando deputados, governadores e funcionários civis graduados que serviram ao governo deposto, poderiam obter legitimidade junto à população. A legitimação era uma preocupação dos militares, principalmente porque a destituição de João Goulart havia sido, segundo os golpistas , para garantir a "normalidade democrática".
Com o Ato Institucional Nº 1. já ficavam evidentes os objetivos de longo prazo. Citamos trechos do AI 1:
Com um objetivo tão amplo, caracterizava-se a intenção de uma longa permanência dos militares no poder. Diferentemente de outras experiências intervencionistas já ocorridas, nas quais os militares sempre devolviam o poder aos civis, aquela iria se prolongar por longos 21 anos.
Garantidos pelos resultados da "Operação Limpeza", e com total controle de todo o poder político, os militares decidem preservar a Constituição de 1946, com todas as ressalvas contidas no AI Nº 1, decidindo manter o Congresso, já "devidamente" mutilado, funcionando:
Assim, por decreto, o governo instituiu em 26 de outubro de 1965, o Ato Institucional Nº 2, cujos objetivos eram controlar o Congresso Nacional, através de um maior fortalecimento do poder executivo, cercear o poder judiciário e controlar os mecanismos de representação política.
Quanto a este último objetivo, em seu Artigo Nº 18, o AI-2 extinguiu todos os partidos políticos existentes, estabelecendo rígidas normas para a criação de novos partidos.
Assim, com o Ato Institucional Nº 2, foram criados dois partidos: a ARENA - Aliança Renovadora Nacional e o MDB - Movimento Democrático Brasileiro. No primeiro estava todo o conjunto de forças que haviam apoiado a ruptura do sistema democrático; e no segundo, o que havia restado da oposição ao regime autoritário.
Estava criado um simulacro de sistema partidário para dar características de normalização ao regime militar. O MDB tem como única estratégia de oposição tentar utilizar os espaços, cada vez mais reduzidos, para atuar como pólo de questionamento ao estado de exceção.
Através de decretos-lei impostos pelo poder executivo, era praticamente impossível para a oposição atuar com chances concretas de ameaçar a estabilidade dos militares. A Lei da inelegibilidade, o decurso de prazo e outros mecanismos casuísticos e autoritários deixavam claro que o regime autoritário conduziria o processo político com o controle milimétrico da situação.
Entretanto, a sociedade civil, através dos movimentos estudantis, organizações sindicais, Igreja progressista, conseguia exercer, com demonstrações de rua, pressão em favor do fim do regime de exceção e sua política econômica profundamente anti-social. Foi em março de 1968, com a morte do estudante secundarista Edson Luís, numa demonstração estudantil no Rio de Janeiro, que houve demonstrações de massa com proporções de rebelião social.
Em abril do mesmo ano, houve a ocupação da Fábrica Belgo-Mineira, por parte dos operários, mantendo como reféns seus diretores. A pressão da sociedade civil começava a preocupar o regime militar. Foi, entretanto, com a criação da Frente Ampla, abrangente movimento de oposição, que contava inclusive com a participação de políticos que haviam dado apoio ao golpe, como Carlos Lacerda, e dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, que os militares decidiram "endurecer".
Foi decretado o Ato
Institucional Nº 510,
em 13 de dezembro de 1968, criando condições de absoluto
controle sobre todo o processo político, favorecendo a mais ampla
utilização do aparato repressivo do Estado de Segurança
Nacional.
Estava criado, assim,
o Estado hobbesiano, o super-leviatã, mencionado por Golbery, ainda
na década de 50, em seu livro "Geopolítica do Brasil".(GOLBERY;1981)
O recrudescimento do regime militar projetou uma situação onde o espaço político para a oposição fora quase totalmente reduzido, empurrando setores da oposição para o recurso da luta armada. Foi o período mais negro de toda a história do regime autoritário de 64. Sucederam-se atentados, seqüestros de membros do corpo diplomático e assaltos a bancos para financiar operações terroristas por parte de tais setores. Em contrapartida, o regime militar atuou com mão de ferro, conseguindo estancar o processo da luta armada apenas em 1974.
Foi nas eleições de 1973, onde seria escolhido pelo voto indireto o presidente da República, que o MDB, apresentando uma anticandidatura, - isto porque o Congresso Nacional totalmente manietado, apenas iria referendar o nome do novo general para o exercício da Presidência -, começou a exercer o papel de efetivo partido de oposição, servindo como elemento aglutinador de todos os segmentos da sociedade civil interessados em pressionar o governo pelo fim do regime autoritário.
Assim, entidades da sociedade civil, tais como a Igreja, a OAB -Ordem dos Advogados do Brasil - e a ABI - Associação Brasileira de Imprensa- passaram a, articuladamente, exercer pressão contra o governo dentro do espaço da política formal permitido.
Esta atuação do único partido de oposição ao regime militar se repetiria de forma cada vez mais aprofundada nas eleições de 1974, 1976, 1978 e 1982 (este ano já como o PMDB). Com as eleições para senadores, deputados federais e deputados estaduais, em 1974, o MDB, pela primeira vez, obtém mais votos que a ARENA, tomando de surpresa os setores governistas, que imaginavam que, com a política do "milagre econômico", a população estaria menos inquieta. Foi um erro de avaliação, pois as eleições de 197411foram consideradas como um plebiscito: as pessoas votaram mais "contra" o governo do que na oposição.
O governo reagiria implantando mecanismos de cerceamento à ação política, como a Lei Falcão, que proibia que durante os períodos pré-eleitorais, os candidatos se utilizassem dos meios de comunicação. Era apenas permitida a exposição da fotografia e a breve leitura do currículo dos mesmos.
Entretanto, apesar de todos os controles, o MDB continuava crescendo eleitoralmente. Nas eleições municipais de 1976, a ARENA obteve cerca de 35% dos votos, enquanto o MDB teve 30%. Considerando que toda a máquina administrativa federal e estadual havia sido colocada à disposição da ARENA para a compra de votos e utilização de velhas práticas clientelistas, tais conquistas da oposição democrática se tornavam ainda mais valorizadas.
O SNI12indicara ao governo do General Geisel que se não fosse tomada nenhuma providência, a oposição poderia, em curto espaço de tempo, obter a maioria no Congresso, transformando-se em um sério fator de desestabilização dos interesses do regime autoritário. Assim, após fechar o Congresso Nacional, em abril de 1977, o presidente Geisel decreta a Emenda Constitucional Nº8, que altera os critérios das eleições, com o objetivo explícito de bloquear o avanço eleitoral do MDB. Essa emenda ficou conhecida como o "Pacote de Abril".
Apresentamos abaixo o resumo das principais medidas desse mecanismo autoritário, cujo objetivo era garantir, de forma excusa, a maioria no congresso:
1.) O Artigo 13 tornava permanente as eleições indiretas dos governadores de Estados. |
2.) O Artigo 39 da Constituição foi alterado, de modo a determinar o número de cadeiras de cada Estado na Câmara dos Deputados não (como anteriormente) em proporção ao número de eleitores registrados no Estado, mas em proporção à sua população total.(...) A nova lei aumentava a representação dos Estados pobres do Norte e do Nordeste, onde os índices de analfabetismo são muito altos e onde a ARENA era mais forte devido à prática clientelista. |
3.) O Pacote de Abril alterou as disposições de renovação do Senado. Nas eleições para substituição de dois terços dos membros, no entanto, somente uma de cada duas cadeiras disponíveis seria preenchida por voto popular direto; a outra seria ocupada por senador eleito indiretamente, segundo os mesmos procedimentos e pelo mesmo colégio eleitoral encarregado de escolher os governadores de Estados.(...) Os senadores eleitos pela via indireta passaram a ser conhecidos popularmente como "senadores biônicos". |
4.) Outra modificação foi a redução do colégio eleitoral que escolheria o Presidente da República, diminuindo o número de delegados das Assembléias Estaduais. |
5.)Redução da exigência da maioria de dois terços do Congresso Nacional para a maioria absoluta, facilitando a aprovação de emendas constitucionais, sem correr o risco da oposição bloquear sua aprovação. |
6.)Finalmente, uma importante cláusula do Pacote de Abril estendia as restrições da Lei Falcão sobre o uso da televisão e do rádio das eleições municipais às estaduais e federais. O silêncio seria imposto em todas as eleições, negando-se à oposição a oportunidade de debater e criticar as políticas do Estado. |
(citado in MOREIRA ALVES;1984:p.195,195)
Com o cerceamento imposto pelo governo, impedindo o acesso aos meios de comunicação, o partido viu-se forçado a fortalecer seus vínculos com os movimentos de base13. Estas organizações se destacavam pela luta em defesa dos direitos humanos, liberdade política, organização sindical e pela mobilização dos setores marginalizados da estrutura sócio-econômica.
Foi a grande contrapartida, inesperada pelo governo, em decorrência do "Pacote de Abril". O MDB tornava-se um partido que perpassava os mais diversos segmentos da sociedade, das mais distintas posições ideológicas aos movimentos sociais de base. Entretanto, apesar de ter obtido maior quantidade de votos para o Senado, graças ao dispositivo de senador eleito pela via indireta, a ARENA garantiu maioria naquela casa legislativa. Com relação à Câmara dos Deputados, apesar do MDB ter obtido um crescimento significativo, não conseguiu suplantar o partido do governo.
Apesar da ocorrência de diversas eleições - excluindo sempre eleições para o cargo de governador -, o aparato repressivo continuava atuando firmemente, sobretudo, contra a classe trabalhadora, que começava a dar sinais de reorganização com o surgimento de novas lideranças.
Em decorrência da ação repressiva por parte da facção da "linha dura" do governo, são assassinados, sob tortura, o jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975; e o metalúrgico Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976, ambos nas dependência do DOI-CODI do II - Exército. Uma onda de indignação varre o país e o governo Geisel passa por grande crise interna, que foi solucionada com a destituição do cargo de Comandante do II Exército, do general Ednardo D'Ávila de Mello.
Em 1978, o poder judiciário dava sinais de independência com o ganho da causa impetrada pela viúva de Vladimir Herzog, responsabilizando o governo federal pelo assassinato do seu marido. Esta ação viria a surtir efeito multiplicador dentro da estrutura do Poder Judiciário, favorecendo a luta de todas as entidades civis engajadas na redemocratização e pela defesa dos direitos humanos. Entidades como a OAB, ABI e CNBB aumentam seu poder de pressão, reivindicando a extinção dos mecanismos de exceção e a volta do habeas corpus e da liberdade de imprensa.
É, ainda, em 1978 que o governo Geisel, através de negociações com as lideranças da oposição, envia ao congresso um pacote de reformas contidos na Emenda Constitucional Nº 11. Isto significava, na prática, o fim do AI 5, que foi substituído por outros mecanismos mais brandos de controle político e social.
Com o fim do governo Geisel, estava concluído o primeiro ciclo da "distensão" política, tendo sido preparado o terreno para dar continuidade ao distensionamento político, com o governo do seu sucessor, o General João Figueiredo. Este, que seria o último dos generais a governar o país, estabeleceu como meta uma maior liberalização do regime autoritário, com vistas à transição para a democracia. Este objetivo foi chamado de política de "abertura".
Importante destacar que, por mais negociações que o governo estabelecesse com setores da elite da oposição, em nenhum momento se viu ameaçado. Pelo contrário, muito bem apoiado em seu aparato repressivo, o governo não hesita em agir com firmeza, reprimindo principalmente os movimentos reinvidicatórios da classe trabalhadora. Citamos texto de Maria Helena Moreira Alves (MOREIRA ALVES;1984) o qual resume bem este período político:
Foi este movimento sindical, sobretudo o localizado no maior centro industrial do país - São Paulo - que iria detonar o mais importante impacto questionador ao regime militar. Com as greves de 1978, 197914 e 1980, o movimento sindical paralisa a nação e mostra que o Estado de Segurança Nacional tinha também seus limites. Articulados em uma eficiente e descentralizada estrutura organizacional, o movimento sindical foi capaz de continuar deflagrando as greves até mesmo quando se encontravam presos os seus principais líderes.
Ressalte-se que as reivindicações da classe trabalhadora ultrapassavam as questões meramente de interesses de classe. Na pauta de reivindicações, havia desde conquistas salariais e direito de maior autonomia e organização dos sindicatos, até o fim do regime de exceção, exigindo eleições diretas para todos os níveis, liberdade de imprensa, anistia política e defesa dos direitos humanos.
A relação entre a sociedade civil e o Estado autoritário, estava caminhando para uma situação de perigoso descontrole social. O General Golbery, principal ideólogo da Doutrina de Segurança Nacional, passa a defender uma estratégia de descompressão, decentralizando o poder executivo e aumentando a liberalização política. Uma das principais preocupações dos estrategistas políticos do regime autoritário era a natureza bipolar - do ponto de vista partidário - do conflito entre governo e oposição, esta materializada pelo MDB, que cada vez mais contava com expressivo apoio da população, como vinham demonstrando as sucessivas eleições.
As eleições ocorridas no período assumiam, cada vez mais, o aspecto de eleições plebiscitárias sobre o posicionamento do eleitorado em relação ao governo. Com apenas dois partidos, essa bipolarização criava um ambiente favorável para se ampliarem as tensões político-sociais, desgastando ainda mais o governo. O MDB , apesar de nele conviverem as mais diferentes correntes ideológicas, para o eleitorado era sempre o partido símbolo da oposição. A solução identificada pelo General Golbery, cujo objetivo era enfraquecer os oposicionistas, protegendo o Estado e sua estratégia de liberalização, foi instituir o multipartidarismo, causando um estilhaçamento no sistema de oposições.
Assim foi que, em 1979, duas importantes leis foram decretadas por parte do governo. A primeira foi a Lei de Anistia Política15, bandeira das oposições desde o AI-1, e que vinha sendo motivo de fortes pressões por parte de todos os setores da sociedade. O governo Figueiredo conseguiu, após intensas negociações com a elite da oposição e com os setores da linha-dura das forças armadas, chegar a uma proposta de anistia parcial, mas que representava um grande passo para a redemocratização. A anistia possibilitou o retorno ao cenário político de importantes líderes que haviam sido cassados e exilados a partir de 1964. A segunda foi a "Nova Lei Orgânica dos Partidos Políticos"16. Com ela extinguiam-se a ARENA e o MDB, sob forte protesto dos militantes da oposição, e se estabeleciam novas regras para a criação de outros partidos.
Vale ressaltar
que a base jurídica que deu suporte ao sistema partidário
surgido em 1979 não foi resultado de pressão política
da oposição. Talvez, com o processo de liberalização
política, isto até viesse a acontecer , mas o que
se seguiu foi uma estratégia de fragmentação daoposição
por parte do governo autoritário, que, pelas informações
que o SNI detinha, sabia que o MDB obteria a maioria no Congresso Nacional
nas próximas eleições.
Veja-se abaixo esclarecedor
texto sobre a estratégia do governo nesta fase da vida política
nacional:
A ARENA havia seguido sua trajetória apoiando e dando suporte aos atos do regime autoritário. Quanto ao MDB, que logo de início não detinha a confiança das forças democráticas (estas deflagraram campanhas do voto nulo até antes das eleições de 1974, numa demonstração de desconfiança sobre o sistema bipartidário artificialmente criado pelo AI-2), foi se transformando, à medida que interagia contra os diversos governos militares que ocuparam o poder de 1964 a 1984 , em único espaço disponível legal para a oposição atuar contra o regime autoritário. Assim, na medida em que o Estado de Segurança Nacional foi agredindo a sociedade brasileira com a brutalidade do seu aparato repressivo, setores como a Igreja Católica, a ABI e a OAB, entre outros foram se aglutinando em torno do MDB, convergindo todos os esforços contra o Estado de exceção.
Uma interessante análise está na tese de Maria Helena Moreira Alves (MOREIRA ALVES;1984), a qual aborda a relação entre o Estado de Segurança Nacional, gerido pelos militares, e a oposição, sob a ótica de uma relação dialética que conseguiu, em certos aspectos, moldar a forma repressiva de dominação política aplicada contra as lideranças da sociedade civil. A reação da sociedade civil, por sua vez, retroalimentava o sistema para definir novos espaços de maneira a conduzir à consolidação do super leviatã, que era o Estado de Segurança Nacional17.
Assim, do papel de legitimador do novo regime, o sistema partidário criado pelo Estado em 1966, passou a garantir o funcionamento de um partido de oposição, o MDB, o qual foi evoluindo até assumir funções de principal órgão canalizador de toda a insatisfação e questionamento da sociedade civil contra o regime autoritário.
O MDB, devido ao fato do simulacro de sistema partidário ser bipartidário, adquiriu características de frente partidária, abrigando militantes dos mais variados perfis ideológicos, inclusive facções que representavam partidos como o PCB, por exemplo. Suas principais plataformas políticas sempre foram o fim do Regime de Exceção, e a defesa dos direitos humanos, denunciando, sempre que podia, a arbitrariedade do sistema repressivo.
Com esta apresentação
de como se deu o funcionamento do regime autoritário na sociedade
brasileira, entre 1964 e 1984, em sua relação com os partidos
políticos, objetivou-se construir uma visão panorâmica
do ambiente histórico onde ocorreu o ressurgimento do multipartidarismo
no Brasil, objeto de investigação desta pesquisa. No próximo
item será abordado o SPB pós-79, sob a ótica predominante
do conceito de transição de regimes autoritários para
a democracia.
1.2- O SISTEMA
PARTIDÁRIO BRASILEIRO 1979(82)/90 E A TRANSIÇÃO PARA
A DEMOCRACIA.
Investigar o SPB durante o período de 1982 a 1990, exige, necessariamente, que seja contextualizado o ambiente político em que ocorreram os eventos eleitorais da época. Este ambiente se destaca efetivamente pelo clima de transição para a democracia. Não se pode abstrair da análise eleitoral o forte impacto que representou para todo o eleitorado, o fato da nação estar passando, ainda, por um lento e gradual processo de transição de um regime autoritário para a democracia.
É de grande utilidade para a compreensão do objeto da pesquisa apresentar algumas abordagens sobre os processos de transição democrática, elaborados por cientistas políticos em estudos de política comparada. Desta forma, analisar-se-ão em seguida , sob três enfoques distintos, algumas características do processo de transição democrática de um regime autoritário.
1.2.1 - O Processo de Transição sob a Ótica das Relações Internacionais.
É no importante trabalho realizado sobre o assunto, coordenado por Guilhermo O'Donnel, intitulado "Transitions from Authoritarian Rule: Comparative Perspectives" (O'DONNEL et alli;1986), onde se encontra importante manancial empírico-teórico para se compreender os principais mecanismos e interesses em jogo que ocorrem durante períodos de transição de regimes autoritários para governos democráticos.
Em "International Aspects of Democratization", ensaio de Laurence Whitehead (WHITEHEAD in O'DONNEL et alli;1986) sobre as estratégias das grandes potências européias e dos Estados Unidos com vistas a influenciar os países periféricos no processo de democratização, são apresentados três pontos gerais que têm regido as relações internacionais entre os países de economia central e as nações periféricas ou dependentes:
" The
point here is not to debate the relative merits of these rival viewpoints,
but to emphasize that, when the leading liberal capitalist governments
attempt to promote Democracy internationally, it is the first variant (private
ownership and anti-Communism) that meets with their strongest approval,
and that is seen to pose the least threat to their real interests. Although
the second variant (social rights and economic equality) may also secure
some International support, it will be more contested, there will be more
scope for misunderstanding and backsliding, and the assistance provided
will be weak and more erratic." ( WHITEHEAD in O'Donnel et alli:p.8;1986)
2º) Um
outro importante ponto observado, de forma geral, diz respeito aos aspectos
internos dos países em vias de transição para a democracia.
Observa-se a necessidade
de se fazer uma clara distinção entre o conceito de "liberalização"
de um regime autoritário para uma completa democratização.
No cenário
internacional, desde 1945, os grupos minoritários que detêm
o poder político dos países periféricos têm
encontrado grandes vantagens em aparentar um interesse e afinidade pela
democracia, quase sempre com o intuito de preservar seus interesses de
grupo e garantir simpatias das agências externas. Para preservar
os interesses políticos desses grupos minoritários, estes
sempre têm oferecido, em troca de apoio internacional, uma limitada
liberalização, alegando que se fossem mais adiante poderiam
sofrer uma desestabilização.
Este enfoque demonstra
como o suporte internacional pode ser manipulado pelas forças políticas
que estão engajadas no processo de transição. Apesar
de reconhecer que agências internacionais, como a Internacional
Socialista e Mundo Cristão Democrático,
não
são facilmente enganadas, o ponto preponderante desta análise
é que as forças internas dos países de periferia que
se dizem engajados no processo de transição para a democracia
não podem ser classificadas de forma homogênea.
O que predomina
tipicamente é o jogo de alianças, nem sempre compostas por
forças democráticas, as quais se lançam numa incerta
transição e lutam entre si pelo apoio externo com o objetivo
de controlar o processo de transição na direção
mais vantajosa para seus interesses de grupo.
3º) Observa-se,
em regra geral, uma contraditória soma de interesses por parte das
nações periféricas em relação às
nações do centro.
Os países
que tentam promover a redemocratização além de suas
fronteiras são todos relativamente estáveis do ponto de vista
político, ricos e predominantemente sociedades capitalistas liberais.
Já os países que lutam pela transição para
a democracia são menos ricos, menos estáveis, e são
todos considerados economias periféricas ou dependentes das sociedades
capitalistas.
Todas esses nações
periféricas aspiram poder acompanhar ou alcançar níveis
de desenvolvimento similares aos países de centro. Entretanto, para
se atingir tais níveis, são necessários, principalmente
do ponto de vista material, grandes sacrifícios no presente, o que
viabilizaria um futuro promissor. Necessitam de unidade nacional e disciplina
social. Estas demandas favorecem a introdução de regimes
autoritários, enfraquecendo os governos democráticos, que
são caracterizados pela indisciplina, desunião e atendimento
de interesses de curto prazo.
Este dilema é bem apresentado neste trecho de Whithead:
"...the countries of this capitalist core transmit two somewhat contraditory impulses to the societies on their periphery. International support for efforts at Redemocratization is only the most visible part of one of these dual impulses. The full story of the relationship is more complex and more ambiguous. This sketchy interpretation may help to account for one crucial characteristic that many of the peripheral countries seem to share, namely, the tendency to alternate between authoritarian and democratic forms of government without becoming irreversibly committed to one or the other. ( WHITEHEAD in O'DONNEL et alli;p.10;1986)
Finaliza Whitehead com a importante constatação de que as tentativas internacionais em favor da transição para a democracia nos países periféricos, quando em tempo de paz (ou seja, excluam-se as experiências ocorridas imediatamente após a guerra de 1945), as pressões internacionais têm sempre desempenhado um papel secundário diante das forças políticas locais.
Outro aspecto relevante é a posição geopolítica do país, ocorrendo muitas vezes que, mesmo tendo uma nação alcançado internamente todas as condições para efetuar a transição, devido à sua proximidade geográfica a uma grande potência, ou pela situação que esta representa dentro da estratégia geopolítica de uma região, torna-se difícil que esta transição venha a acontecer, pois poderia desestabiliazar uma potência vizinha mais poderosa.
Ironiza o autor, afirmando que tanto os EUA como a Europa Central, apesar do aparente esforço pela redemocratização dos países de periferia, usam o conceito de democracia de forma bastante maleável, podendo até mesmo identificar que um país aliado, embora não-democrático, pode não ser visto como uma ameaça aos seus valores internos, e sim como de vital interesse do ponto de vista da segurança internacional dessa grande potência.
1.2.2 - A Transição e as Estratégias Políticas Internas.
Adam Przeworski, em seu estudo que aborda questões internas dos países que tentam efetuar sua transição para a democracia, intitulado "Some Problems in the Study of the Transitions to Democracy" (PRZEWORSKI in O'DONNEL et alli; 1986), questiona, através da teoria do jogos, algumas concepções clássicas sobre como um regime autoritário perde sua força, propondo um interessante modelo para se predizer o movimento dos principais atores políticos envolvidos nos processos de transição.
Seu principal objetivo é tentar esclarecer alguns pontos sobre a importante questão: identificar quais as condições de transformação efetiva de regimes autoritários para regimes democráticos.
Inicialmente, Przeworski analisa algumas limitações existentes em certas metodologias utilizadas em pesquisas com vistas a identificar relações causais entre a infra-estrutura sócio-econômica e as condições democratizantes em uma sociedade. Classifica estas como investigações macro-orientadas, alegando que tais estudos tendem a enfatizar condições objetivas, em sua grande maioria econômicas e sociais, deixando de lado a dinâmica política de curto prazo. Apesar de reconhecer que tais abordagens possuem seus atrativos, admite serem de pouca utilidade para explicar o problema que ele tenta investigar, uma vez que não especifica como um sociedade passa de um estado (autoritário) para outro (democrático).
Przeworski analisa os quatros principais fatores amplamente aceitos pela comunidade científica como causadores dos colapsos dos regimes autoritários. São eles:
2º) O regime tem, por uma razão ou outra (sendo uma das possíveis razões o fator citado no item anterior), perdido sua legitimidade, e, desde que nenhum regime pode perdurar sem legitimidade (suporte, aquiescência, consenso), ele se desintegra.
3º) Conflitos dentro do Bloco Dominante, particularmente entre os militares, por uma razão ou outra, uma das quais pode ser o fator descrito no item anterior. Não podendo mais se reconciliar internamente, algumas "facções" dominantes decidem apelar para apoio de grupos externos. Desta forma, o Bloco Dominante se desintegra como Bloco.
4º) Pressões
de nações democráticas no sentido de "dar uma face
democrática ao regime autoritário". Tais pressões
forçam o regime a assumir compromissos liberalizantes. Um dos mecanismos
pode ser através do descrito no terceiro item.
Com um arguto pensamento, o autor desmonta a teoria da "perda de legitimidade" como principal condição para um regime autoritário entrar em colapso. Assim, após uma bem fundamentada argumentação sobre essa teoria, que vai desde a crítica à visão weberiana sobre como os sistemas de dominação se estabelecem e mantêm sua legitimidade até teorias mais recentes sobre este conceito, Przeworski desloca a atenção do problema , não para o fato de um regime ter ou não ter legitimidade, e sim para a existência de condições alternativas viáveis para o indivíduo comum poder tomar decisões e se viabilizar politicamente nesta nova alternativa.
Por outro lado, se um regime sofre perda de legitimidade, mas não existe nenhum regime alternativo, acessível, ou seja, nenhuma possibilidade coerente e politicamente organizada, nenhum colapso acontecerá.
Abaixo, segue-se esclarecedor texto do autor sobre o conceito teórico de legitimidade como um consenso organizado:
Tentando compreender como tais alternativas se transformam em alternativas politicamente organizadas, o autor vai enfocar as questões centrais da dinâmica política de uma transição democrática, basicamente fundamentando sua explicação em dois pontos distintos:
b) A postura estratégica de tais agentes políticos. Estas são apresentadas pelo autor através de um processo de escolhas racionais, as quais guiam o comportamento de todos os agentes políticos. Reconhece que todo o processo de transição sofre de uma importante volatilidade onde as alianças são extremamente débeis e grupos particulares bem como indivíduos centrais (lideranças políticas) podem algumas vezes deslocar suas posições em 180 graus.
Sobre tais dificuldades,
afirma o autor:
O argumento central é o de que toda e qualquer decisão individual ou de grupo está fortemente condicionada ao que os outros atores vão decidir, tanto os que detêm o poder como os que fazem oposição ao regime.
Nesta perspectiva de tomada de decisão versuso risco que se corre, supondo que "k" seja o número efetivo de atores políticos necessários e suficientes para ocasionar uma bem sucedida mudança no sentido da liberalização de um regime autoritário, apresentam-se as seguintes alternativas em termos de estratégia desses agentes políticos:
b) Se o ator político A se move na direção de (k-1) e outros também se movem chegando a "K", ele faz parte do movimento vitorioso, podendo esperar ser recompensado de forma apropriada.
c) Se A não se move e poucos se movem, não conseguindo chegar à situação "K", A permanecerá no lado do poder e será beneficiado com isto.
d) Se A não se move, e, entretanto, os outros se movem ultrapassando "K", A estará novamente do lado perdedor.
1.2.3 - Tipologia
das Transições Democráticas.
Alfred Stepan, em seu trabalho "Paths toward Redemocratization: Theoretical and Comparative Considerations" (STEPAN in O'DONNEL et alli;1986), faz uma extensa classificação dos caminhos percorridos pelas nações que experimentaram processos de transição para a (re)democratização.
Distingue, inicialmente,
as experiências históricas das transições ocorridas
em tempo de guerra das verificadas em tempo de paz.
Para o primeiro
grupo, mesmo reconhecendo que tal tipologia não é fixa e
invariante em relação ao tempo, consegue identificar três
diferentes categorias de transição:
2) Reformulação
interna.
Nesta categoria,
a redemocratização ocorre também depois que o conquistador
foi derrotado, predominantemente, por forças externas. Entretanto,
foram as circunstâncias internas a causa do colapso do regime democrático
preexistente. Ou, por outro lado, o regime anterior é considerado
culpado por ter possibilitado a conquista.
3) Instalação
de um sistema de monitoração externa.
Neste item estão
os casos nos quais as potências democráticas destroem um regime
autoritário e desempenham o principal papel na formulação
e instalação de um regime democrático.
4A) O grupo que iniciou o processo de liberalização é empurrado por lideranças políticas civis.
4B) Os militares-como-governo.
Nesta sub-categoria,
o que, prioritariamente, guia a deflagração do fim de um
regime são as ações de líderes individuais
dentro do governo militar.
4C) Os militares-como-instituição.
Neste caso, a motivação
inicial para se terminar um regime autoritário deriva de fatores
corporativos dos militares-como-instituição.
Estes agentes (militares-como-instituição)
podem agir tanto contra os militares-como-governo como contra lideranças
políticas civis.
6) Um pacto de partidos desempenha ações para o fim do regime.
7) Revolta violenta organizada e coordenada por partidos democráticos reformistas.
8) Governo
revolucionário liderado por marxistas.
1.2.4 - A Contextualização da Transição no Brasil Pós-79.
Se, no início
do período em estudo, as eleições transcorreram em
um ambiente onde as condições para a consolidação
de um regime democrático apresentavam evidências de que iria
ocorrer, pairavam sobre a sociedade a inquietação e o receio
de um retrocesso político, fruto de duas décadas de regime
autoritário.
E não era
sem fundamento esta preocupação, pois, se utilizarmos o quadro
de Alfred Stepan (Item 1.2.3 -Tipologia das Transições
Democráticas), onde o caso da transição brasileira,
que começou com a política de distensão do governo
Geisel, em 1973, fechando uma primeira etapa com a eleição
indireta de um civil - Tancredo Neves20-
em 1984, tendo concluído o ciclo da transição com
as eleições diretas, em 1989, para a Presidência da
República, é identificada como uma transição
do 4º tipo a qual é iniciada dentro do grupo do regime autoritário,
com várias restrições à liberalização
que o modelo apresenta.
No caso brasileiro,
até o último momento do regime autoritário, todos
os passos foram estrategicamente controlados pelos detentores do poder
no sentido de garantir suas prerrogativas.
Citamos como exemplo
a extinção do bipartidarismo, que já não interessava
ao regime, uma vez que a perda da sua legitimidade era evidente. Beneficiou-se
no bipartidarismo o MDB, partido da oposição que, cada vez
mais, se consolidava como símbolo de questionamento ao regime militar.
As eleições assumiam um caráter plebiscitário,
votando-se contra o governo ou a favor, sendo que desde as eleições
de 1974, a imensa maioria da população, principalmente nos
grandes centros urbanos, vinha demonstrando evidentes sinais de repulsa
ao regime.
Outro exemplo foi a tática de intimidação, com soldados do Exército nas ruas de Brasília, utilizada para bloquear a aprovação da "Emenda Dante de Oliveira" que restabelecia as eleições diretas para a Presidência da República. Contrariamente à vontade explícita da população21, o Congresso não aprovou tal emenda e estabeleceu que o pleito para presidente, o qual iria eleger o substituto do último general, seria realizado por um colégio eleitoral composto pelos membros do Congresso Nacional.
Destacam-se também as sistemáticas alterações na legislação eleitoral, beneficiando sempre o partido que dava apoio ao regime. Merece, ainda, registro a situação de impasse político surgido na votação sobre a duração do mandato do Presidente da República durante a elaboração da nova Carta Constitucional.
A Assembléia
Nacional Constituinte havia sido eleita em 1986 com o objetivo de construir
uma nova base jurídica para viabilizar a democracia emergente. A
oposição, de acordo com a vontade popular, defendia um mandato
de quatro anos. O governo José Sarney, pressionado pelos militares,
conseguiu reverter a votação, garantindo um mandato de cinco
anos, o que adiaria em mais um ano a efetiva conclusão do ciclo
da transição, com eleições livres e diretas
para presidente.
Voltando ao modelo
(4º tipo) de transição classificado por Stepan, observam-se
três principais forças restritivas à consolidação
de uma democracia efetiva, a saber:
2ª) Uma segunda ameaça à consolidação da democracia é que as forças que apoiaram o regime autoritário, e por ele foram beneficiadas, possam construir regras formais ou informais que venham a controlar o processo político de maneira tal que seus interesses centrais, mesmo no contexto de um regime democrático, sejam preservados, produzindo, em conseqüência, uma democracia limitada.
3ª) O
terceiro fator restritivo, identificado pelo autor como sendo o mais freqüente
neste tipo de transição, é o fato do aparelho de repressão
do regime autoritário poder tentar manter suas prerrogativas intactas.
Quanto ao terceiro fator restritivo, já constatou-se a sua materialização desde a aprovação da Lei de Anistia Política, que beneficiou também os torturadores, braço cruel da fase mais negra do regime. Outro fato importante foi a não alteração, durante a elaboração da Constituição, do papel institucional das Forças Armadas22.
Aplicando o modelo de Przeworski, podem ser analisadas algumas das movimentações estratégicas dos atores políticos envolvidos na transição. Um caso típico foi o comportamento do grupo político que criou o PFL-Partido da Frente Liberal-, composto por membros egressos da ARENA/PDS, partido que deu sustentação ao governo durante todo o período do regime militar. Criado no momento ex-ante as eleições de 1984, o PFL conseguiu viabilizar-se através de uma aliança com as forças moderadas de oposição do PMDB, contribuindo com o término do regime autoritário que ele mesmo havia apoiado no poder. Este caso é a situação onde o ator político percebe que não mover-se pode ser perigoso, pois assumiria todas as conseqüências de ficar no lado do perdedor. Assim, o PFL faz seu movimento, juntamente com as forças de oposição, para viabilizar a chegada ao ponto "K", definido como o número necessário e suficiente para que uma bem sucedida transição venha a ocorrer.
Percebe-se, entretanto, que, mesmo com a existência de tais fatores restritivos, as condições de encerramento do ciclo da transição foram se cristalizando lentamente ao longo da década de 80. O surgimento e a consolidação do SPB 79(82)-90, pode ser visto como a principal forma material dessa cristalização, caracterizando as eleições ocorridas no período como momentos demarcadores de ultrapassagem de etapas no sentido da transição para a democracia.
Descrevemos no quadro abaixo uma sinopse das eleições ocorridas durante o período desta pesquisa:
ANO | CATEGORIA DA DISPUTA |
|
1982 | Governador
Senador Dep.Federal Dep.Estadual Prefeito Vereadores |
Primeira eleição da qual participaram os partidos recém criados com a Lei que reativou o multipartidarismo em 1979. Verdadeiro marco para o processo de abertura política. A oposição (PMDB e PDT) conquistou os cargos para governador em 10 dos mais importantes estados da Federação. |
1985 | Prefeitos
das
Capitais e municípios de Segurança Nacional. |
Quebra-se, através do Congresso Nacional o mecanismo que impedia eleições diretas para prefeitos das capitais. A oposição conquista 68% dos 201 municípios que realizaram eleições, sendo que 90% das capitais. |
1986 | Governador
Senador Dep.Federal Dep.Estadual |
Eleição de caráter fundamental para a transição democrática. Elege-se uma Assembléia Nacional Constituinte, cujo objetivo era reconstruir a base jurídica do país, excluir o "entulho" jurídico autoritário e preparar as fundações de uma nova nação democrática. |
1988 | Prefeitos
e
Vereadores de todos os municípios |
O mapa eleitoral se redefine de forma heterogênea. Diferentemente da quase unanimidade nacional obtida pelo PMDB em 1982, alguns setores oriundos do regime autoritário conquistam significativos espaços. Em contrapartida, o PT (partido de esquerda), conquista as prefeituras de São Paulo, Porto Alegre e Vitória. |
1989 | Presidente
da
República. |
Primeira eleição direta para Presidente da República desde 1962. É considerada como o marco definitivo que delimita o fim da transição democrática e o início do regime democrático pleno. Consolidada juridicamente com a promulgação da nova Constituição, em 1988, a nação brasileira experimenta, em clima de festa, a eleição com o maior grau de representatividade de sua história republicana. Votaram também os analfabetos e os jovens maiores de 16 anos. |
1990 | Governador
Dep. Federal Dep.Estadual |
Eleições consolidadoras do processo político nacional, com alto índice de renovação de suas lideranças no congresso. Agora, já em plena democracia, observa-se o fluxo e o refluxo na conquista dos espaços políticos por parte dos partidos mais relevantes. |
Destacam-se neste período, além das eleições de 1982, as de 1986 e 1989. As eleições de 198223 marcam o primeiro momento de impacto na devolução do poder político, subtraído pela força do golpe militar de 1964, à sociedade. Após vários governos militares indicando, de forma indireta e antidemocrática, os governadores de Estado, a população ia poder escolher pelas vias democráticas seus governadores. Mesmo com as alterações escusas na legislação eleitoral, a oposição consegue eleger os governadores dos dez mais importantes Estados da Federação.
Foi registrada pela imprensa nacional e internacional, a denúncia de fraude, supostamente articulada pelos órgãos de segurança do regime, no sistema de apuração dos votos na eleição para o governo do Rio de Janeiro. O candidato Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul antes de 1964, considerado pelos militares uma das lideranças da oposição mais "perigosas", era o alvo da fraude. Porém, denunciada a tempo, principalmente pela imprensa internacional, removeu-se o obstáculo, e Brizola elegeu-se governador do Rio de Janeiro.
Com relação às eleições de 1986, as quais tinham como objetivo eleger a Assembléia Nacional Constituinte ( passaram-se dois anos para que a nova Carta Constitucional viesse a ser promulgada), pode-se afirmar que foi o segundo e definitivo passo mais importante , após as eleições de 1982, no sentido de consolidar o regime democrático.
A mobilização expressiva dos setores organizados da sociedade civil foi a marca principal desse período. Entretanto, apesar de terem obtido alguma modernização na base jurídica federal, pode-se constatar que os interesses centrais das forças que apoiaram e se beneficiaram com o regime autoritário foram preservados. Este fato implicou na materialização de uma Constituição conservadora, impedindo que importantes e necessárias transformações na estrutura sócio-econômica viessem a ocorrer. O exemplo mais evidente foi a derrota das forças progressistas quando da votação da lei que estabelecia critérios para a reforma agrária, problema fundamental para se estancar a produção da miséria social e projetar o país no rumo de uma distribuição de renda mais equânime24.
Durante o processo de transição para a democracia, no caso brasileiro, negociada entre os setores hegemônicos do regime e as camadas moderadas da oposição, observa-se que uma das condições para que seja viabilizada a transição é a real expectativa que os setores reformistas da oposição têm de ocupar presença política na estrutura de poder. Entretanto, mesmo sob tais condições, o compromisso de uma transição deste tipo pode requerer certas garantias institucionais a fim de que se impeçam transformações na estrutura sócio-econômica, ameaçando o pleno desenvolvimento das forças capitalistas. Para que isto possa ocorrer, é necessário a existência de grupos democratas, dentro das forças do regime em extinção, que possam disputar no voto suas posições.
Tais posições convergem para o ponto fundamental do capitalismo: a propriedade privada. Isto implica outras condições, que são os perfis das instituições democráticas. Estas, emergindo da transição negociada, têm que ser desenhadas de maneira a minimizar a correspondência entre as decisões políticas e as demandas dos movimentos sociais atuantes na sociedade civil. "Assim, a democracia que emerge das negociações terá provavelmente um forte viés conservador contra as transformações econômicas e sociais." ( ADAM PRZEWORSKI in MOISÉS:p.34;1989)
O aspecto conservador da Constituição de 1988 segue exatamente este percurso. Resultado de um pacto entre as elites políticas conservadoras e moderadas existentes em ambos os lados da arena política, as forças mais progressistas foram esmagadas, como minoria que eram, na Assembléia Nacional Constituinte. O processo de transição para a democracia tinha, implicitamente, que dar garantias para se evitar a radicalização entre as forças ideologicamente antagônicas e o conseqüente clima de desestabilização do processo político.
O que se observa, entretanto, é que, mesmo tendo o SPB 79(82)/90 surgido em conseqüência de uma estratégia de distensão concebida pelos detentores do poder durante o regime autoritário, fato este que poderia inibir sua plena vitalidade funcional, o fenômeno serviu de canalizador dos desejos democráticos de amplos setores da sociedade, viabilizando-se como uma instituição vital ao processo de consolidação da democracia no país. Com as eleições presidenciais de 1989, onde se garantiu um elevado nível de representatividade, incluindo o voto do analfabeto e do jovem maior de 16 anos, a nação brasileira foi projetada para o patamar das modernas democracias ocidentais, abstraindo-se os graves e irresolutos problemas sócio-econômicos.
Serão sobre
a evolução do SPB 79(82)/90 e suas relações
com a estrutura sócio-econômica que esta pesquisa irá
investigar. Entretanto, antes de se chegar a demonstração
da hipótese, serão apresentadas no CAP.II - CONSIDERAÇÕES
SOBRE ALGUNS ESTUDOS PRECEDENTES,
as principais pesquisas sobre o SPB,
que contribuíram como estímulo para este trabalho.
O objetivo, é situar esta pesquisa dentro do universo do conhecimento acadêmico sobre os partidos políticos no Brasil.