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O AI-5 E A DEMOCRACIA

(Publicada no Jornal Síntese nº 22 - DEZ/98, pág. 3)

Hugo Nigro Mazzilli - O AI-5 e a Democracia

Professor de Direito


 
 


Em 13 de dezembro, o Ato Institucional nº 5 faz 30 anos.

Buscando uma "autêntica ordem democrática", um militar, que não fora eleito pelo povo, revogou o que quis da Constituição vigente. Dizia ter o propósito de assegurar a liberdade, o respeito à dignidade da pessoa, o combate à corrupção, à subversão e às ideologias contrárias às tradições do povo… Entretanto, permitiu a suspensão de direitos políticos, autorizou o confisco, limitou o habeas corpus, negou garantias constitucionais e impediu que o Judiciário apreciasse a matéria.

Anos de chumbo vieram: a corrupção não foi vencida, as liberdades públicas foram cerceadas, o País mergulhou em ditadura da qual só saiu em 1984, quando o regime militar caiu pelo desgaste e não pelas armas.

Hoje, a liberdade é ampla e o País cresceu sim, mas tanto na riqueza quanto na miséria. E continua subdesenvolvido, ou, mais adocicadamente, país em desenvolvimento ou país emergente. Mas seu maior subdesenvolvimento é o cultural, pois ainda o autoritarismo continua e ainda não se aprendeu a respeitar a ordem constitucional. O Presidente da República legisla hoje por medidas provisórias com a mesma desenvoltura com que então se expediam decretos-leis.

Hoje não temos mais um militar que rasga a Lei Maior, mas um civil que trata como privilégios o que uma Constituição democrática garante como direitos, e edita medidas provisórias para revogar direitos adquiridos.

Sem dúvida, o direito não é imutável. Nem o direito constitucional. Contudo, a ordem constitucional exige respeito ao direito adquirido. E defender a democracia não é justificativa para violar a Constituição. Aliás, esse foi o mote do AI-5…

Questionemos até que ponto nossa democracia é legítima.

Democracia é governo da maioria do povo e não a vontade do governante. O poder político e econômico está concentrado em minoria que freqüentemente defende seus próprios privilégios. Alguns parlamentares são sempre governistas, seja lá quem for o governo; outros votam de acordo com seus interesses, não raro em contrariedade com compromissos partidários e promessas eleitorais. Os interesses de grupos e corporações não raro prevalecem, e muitas vezes é hipocrisia supor que a lei corresponda ao interesse geral (Judiciário, Polícia, militares, pecuaristas, empresários, banqueiros, e até mesmo interesses estritamente individuais têm levado à criação de leis). Além disso, o efetivo acesso à Justiça não é igual para todos, especialmente para os pobres.

Ainda há outros riscos que viciam uma democracia representativa: a) as fraudes na escolha dos representantes (a demagogia; o controle do tempo da propaganda e dos meios de acesso a ela; a dificuldade de conhecer os candidatos; o processo eletivo facilmente manipulável pelos governantes e pela mídia; a influência das pesquisas de opinião pública; as reações emocionais da população); b) a deformação do equilíbrio da separação de poderes (a supremacia do Executivo, ou a invasão de atribuições de um poder pelo outro, como o Executivo a legislar por medidas provisórias, ou o Judiciário a legislar por meio de súmulas vinculantes, ou o Legislativo, no exercício do poder constituinte derivado, a suprimir garantias constitucionais dos outros poderes); c) a ruptura dos princípios de igualdade e liberdade individual, principalmente em razão da pobreza e da miséria, que viciam as bases de um Estado democrático.

Uma democracia legítima supõe longo caminho de seu efetivo exercício, com um sistema que assegure: a) a efetiva divisão do poder; b) mecanismos de freios e contrapesos na divisão do poder, que funcionem efetivamente e que não possam ser suprimidos; c) o respeito ao direito das minorias e o reconhecimento e a aceitação de que estas se podem tornar maiorias; d) o reconhecimento de garantias e direitos individuais e coletivos; e) o respeito à liberdade, igualdade e dignidade das pessoas; f) a existência de decisões tomadas direta ou indiretamente pela maioria, respeitados os direitos da minoria; g) a total liberdade na tomada de decisões fundamentais pelo povo, não conduzidas pelos governantes nem forjadas pela mídia; h) um sistema eleitoral livre e apto para recolher a vontade dos cidadãos; i) o efetivo acesso à alimentação, à saúde, à educação, ao trabalho, à Justiça e às demais condições básicas de vida por parte de todos.

A democracia representativa só funciona adequadamente se houver um sistema efetivo de partidos, com prévios programas de governo, para que a vontade dos eleitores não seja burlada. Deveriam ser mais usados o referendo e o plebiscito, sem prejuízo da possibilidade efetiva de revogação dos mandatos (recall).

Precisamos, enfim, repensar o sistema que permite que um Presidente da República possa ser eleito em primeiro turno, quando, nesse embate, tenha perdido da soma dos votos em branco, nulos e dos seus adversários.
 
 

Fonte: CD-ROM Juris Síntese: legislação e jurisprudência. n.º 15 – jan-fev/99.