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Candidaturas
itinerantes: direito ou abuso de direito?
David Magalhães de Azevedo*
Uma detida
interpretação das disposições insculpidas no art. 14, §§ 5º e 6º, da
Constituição Federal, autoriza a candidatura em circunscrição eleitoral diversa
daquela em que determinado cidadão exerce o primeiro mandato de Prefeito ou de
Governador?
Em sendo positiva
a resposta a essa indagação, impõe-se outra: haverá em tal dispositivo uma
posição adotada pelo Poder Constituinte, implícita ou explicitamente, acerca da
existência ou não de causa de inelegibilidade relativa a terceiro mandato
subseqüente em município diverso daquele em que exercidos os dois primeiros?
É sobre esse
tormentoso tema que se dedicará o presente estudo.
Assim dispõe a
Constituição:
"Art. 14.
(...)
§ 5º O Presidente
da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver
sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subseqüente.
§ 6º - Para
concorrerem a outros cargos,
o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os
Prefeitos devem renunciar
aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito.
Fácil ver que a
CF/88 é bastante clara ao realmente estabelecer a inelegibilidade para o
exercício subseqüente de um terceiro mandato, mas restringe essa limitação ao
direito de ser votado apenas no que concerne ao mesmo cargo que foi exercido por dois mandatos consecutivos, tanto
que estende essa inelegibilidade para quem houver sucedido ou substituído os
respectivos titulares, e é certo que a sucessão ou a substituição não pode ser
operada em outro cargo, mas necessariamente no mesmo cargo.
O supratranscrito
§ 6º foi redigido com elogiável clareza. Nele há expressa autorização para que
os Prefeitos e Governadores possam concorrer a outros cargos.
A toda evidência,
parece que o âmago da controvérsia gravita em torno da exata definição do real
sentido da locação "outros
cargos".
Certamente o cargo
de Prefeito de Matriz de Camaragibe é um, o de São Luís de Quitunde é outro; da
mesma forma, o cargo de Prefeito do Município de São Paulo não pode ser
confundido com o cargo de Prefeito do Município de Belo Horizonte, pois são
cargos absolutamente distintos, tanto que para seus exercícios são necessárias
eleições distintas, eleitorado distinto e candidatos distintos, entre outras
distinções.
Também o cargo de
Governador da Bahia é um, o de Governador de Roraima, do Rio Grande do Sul, da
Paraíba etc. são outros.
Pensamos que não
existe o cargo de Prefeito, ou de Governador, enquanto vocábulo empregado isoladamente,
hipótese em que deve ser compreendido como espécie de cargo; existe, isso sim, o cargo de Prefeito do
Município de São Paulo, de Belo Horizonte etc., assim como também não existe o
cargo de Governador, mas de Governador de Rondônia, de Alagoas, de Sergipe etc.
O § 6º do art. 14
da CF/88, como visto, expressamente autoriza o deferimento dessa pretensão, e
apenas impõe uma condição: a desincompatibilização no prazo de 6 (seis) meses
antes do pleito.
Observe-se que não
estamos a discorrer sobre ausência de proibição expressa, mas, sim, de expressa permissão, razão por
que não se há de falar em abuso de direito sob quaisquer de suas abjetas
formas, notadamente porque essa mesma lei, além de não proibir, expressamente
permite a prática da conduta tida como fraudadora!
Discordamos, pois,
da doutrina do mestre alagoano Marcos Bernardes de Melo, que prega a
inelegibilidade dos denominados "prefeitos itinerantes".
Devemos investigar
qual terá sido a vontade dos membros da Assembléia Nacional Constituinte quando,
ao permitirem a eleição para outros cargos, impuseram aos titulares dos cargos
de Prefeito, Governador e Presidente a prévia desincompatibilização e, ainda,
estenderam-na para os parentes mais próximos.
Temos como certo e
indiscutível que pretenderam evitar o abuso do poder, o desequilíbrio do pleito
pela força aterradora do inescrupuloso uso da máquina pública em favor do
titular/candidato em flagrante detrimento dos demais concorrentes.
Mas essa vontade
legislativa restou sobremaneira aniquilada pelo advento da reeleição, essa sim,
para o mesmo cargo, já que dispensa a desincompatibilização, sendo lícito que
pensemos que, se o próprio titular pode candidatar-se sem se
desincompatibilizar do cargo, com muito mais razão tal medida não deveria ser necessária
para as candidaturas de seus parentes.
Enfim, se foi
criada uma presunção de que o titular/candidato não irá fazer uso indevido da
máquina pública que administra para favorecer a si mesmo, decerto também se
presume que não favorecerá seus parentes.
Vamos um pouco
além da teoria contrária e asseveramos que, se a finalidade da norma é evitar o
abuso do poder, é razoável que pensemos que, para concorrer em circunscrição
eleitoral diversa, sequer seria necessária a desincompatibilização no prazo de
6 (seis) meses antes do pleito, já que o poder decorrente da Chefia do
Executivo num Estado ou Município limita-se ao respectivo território, tanto que
a CF/88 é translúcida ao tratar da inelegibilidade dos parentes do Presidência
da República, dos Governadores de Estado ou do Distrito Federal e de Prefeitos,
quando limita-a ao território de jurisdição
do titular.
Vejamos a redação
do referido § 7º, verbis:
"Art. 14.
(...)
§ 7º - São
inelegíveis, no território de
jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou
afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de
Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem
os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já
titular de mandato eletivo e candidato à reeleição."
Dando-se o devido
desconto à equivocada utilização do vocábulo "jurisdição", atributo
próprio dos magistrados, vemos que não podem pairar dúvidas de que a efetiva
vontade do legislador foi realmente impedir que os tentáculos do poder
interfiram na lisura das eleições, e é certo que tais tentáculos não vão além
do território governado pelo titular do cargo. Nada mais!
Convém atentarmos
para o fato de que os parentes que são inelegíveis no mesmo "território de jurisdição do titular"
não o são em territórios diferentes, isto é, o Prefeito do Município de
Guarabira não precisa se desincompatibilizar do cargo para que seus parentes
concorram em município diverso.
Em Alagoas temos
um irretorquível exemplo disso, onde dois irmãos são Prefeitos dos Municípios
de Piranhas e de Olho D’Água do Casado, ambos eleitos no pleito de outubro de
2004.
Reforçando essa
intelecção, e dando efetividade ao referido comando constitucional, observamos
que foi bastante feliz o c. TSE quando editou Res.-TSE nº 22.717, de 28 de
fevereiro de 2008 que, dispondo sobre a escolha e o registro de candidatos nas
eleições de 2008, embora consista em ato normativo secundário, inegavelmente
integra a legislação vigente, e dela se depreende que é bem possível a eleição
em município diverso daquele em que o candidato tiver exercido um ou mesmo dois
mandatos consecutivos, vejamos:
"Art. 14.
(...)
Parágrafo único. O
Prefeito reeleito não poderá candidatar-se ao mesmo cargo, nem ao cargo de
vice, para mandato consecutivo no
mesmo município (Resolução nº 22.005, de 8.3.2005)."
Ora, se
expressamente impõe que não é possível a candidatura ao mesmo cargo para
mandato consecutivo no mesmo
município, logicamente está a assegurar que tal candidatura é
possível se pleiteada em município
diverso.
Ademais, as
inelegibilidades configuram exceção à regra da plena elegibilidade, isto é,
constituem restrição ao princípio constitucional da plena liberdade de
exercício do jus honorum, sendo
a interpretação extensiva dos §§ 5º e 6º do art. 14 para impedir candidaturas
um claro exemplo de interpretação ampliativa de norma restritiva de direitos,
exegese que não se admite nem por compulsivo apego ao debate.
Notamos que o
colendo Supremo Tribunal Federal já se pronunciou direta e indiretamente sobre
o tema.
Explicamos. É que
o c. TSE – que tem a questão como definitivamente resolvida, ou seja, é
jurisprudência sedimentada –, é integrado por três Ministros que representam a
Suprema Corte. Assim, se a Resolução n° 22.717/2008 é fruto de decisão unânime
daquela Corte Superior, certamente aqueles três Ministros expressaram suas
opiniões sobre o tema.
Naquela ocasião,
entretanto, só votaram os Ministros Cezar
Peluzo e Carlos Britto.
Contudo,
procedendo a uma minuciosa análise dos precedentes sobre o tema, e observando
detidamente a composição do e. TSE em cada julgamento, pudemos verificar que,
além dos Ministros supra-referidos, outros 04 (quatro) já perfilharam o
entendimento ora defendido.
São eles: 1°) Ministro Marco Aurélio (CTA n° -
Res. n° 19490; CTA n° 1015 – Res. n° 21696); 2ª) Ministra Ellen Gracie (CTA n° 879 – Res. n° 21420; CTA n° 936
– Res. n° 21487; CTA n° 946 – Res. n° 21521; CTA n° 1016 – Res. n° 21706; CTA
n° 990 – Res. n° 21876); 3°) Ministro
Gilmar Mendes (CTA n° 1015 – Res. n° 21696); e 4°) Ministro Celso de Melo (CTA n° 990 – Res. n° 21876).
Portanto, com base
nessas assertivas, é lícito compreendermos que, indiretamente, o c. STF, em sua
composição atual, representado pelos votos de seus Ministros quando em atuação
no e. TSE, já se manifestou sim sobre a questão, e 06 (seis) deles, maioria
absoluta, confirmaram a plena elegibilidade nas condições aqui tratadas.
Mas o entendimento
do c. STF não resume ao posicionamento de seus Ministros quando em atuação no
e. TSE.
Embora sob a égide
do sistema constitucional anterior, o Pretório Excelso já teve a oportunidade
de se pronunciar sobre questão bastante similar, tanto no que concerne aos
fatos quanto ao direito aplicável. Vejamos:
(...) E A
IRREELEGIBILIDADE PREVISTA NA LETRA "A", AINDA DO PAR-1. DO ART-151,
HÁ DE SER COMPREENDIDA COMO DESCABENDO A REELEIÇÃO PARA O MESMO CARGO QUE O
CANDIDATO JÁ VINHA OCUPANDO, OU SEJA, O DE PREFEITO DE CURIUVA. COM ESTE NÃO PODE SER CONFUNDIDO O CARGO DE
PREFEITO DE UM NOVO MUNICÍPIO, POIS AI, EMBORA SE TRATE DE CARGO DA MESMA NATUREZA E RESULTANTE DO
DESMEMBRAMENTO DO ANTIGO MUNICÍPIO, É
UM OUTRO CARGO. (STF. RE 100825 / PR – PARANÁ. Rel. Ministro
Francisco Rezek. DJ de 07/12/1984)
Desse precedente
extraímos a seguinte lição: os cargos de prefeito dos municípios brasileiros
possuem a mesma natureza, mas são
cargos distintos e, portanto, a eleição ou a reeleição para
exercício do cargo de prefeito em um não implica a incidência do art. 14, § 5,
da CF/88, mas, sim, do § 6° do mesmo dispositivo, o qual, ao contrário do que
afirma o eminente Relator, permite a eleição ou a reeleição de cidadão que já
fora eleito ou reeleito em município diverso, mesmo que sem solução de
continuidade, ou seja, em mandatos consecutivos, já que são cargos distintos e
a inelegibilidade se limita ao "mesmo
cargo".
Com arrimo nos
fundamentos aqui aduzidos, pensamos que, independentemente de estar cidadão no
exercício do primeiro ou do segundo mandato consecutivo, seja de Prefeito, seja
de Governador, pode ele, sim, pleitear candidatura a qualquer cargo, inclusive
da mesma espécie daquele que exerce em primeiro ou segundo mandato, desde que
preencha satisfatoriamente todas as condições de elegibilidade em seu desfavor
não pese nenhuma causa de inelegibilidade.
Em derradeiras
linhas, salientamos que a interpretação dada pelo brilhante jurista Marcos
Bernardes de Melo, citado alhures, serve como uma majestosa sugestão de medida
moralizadora a ser adotada, mediante Emenda Constitucional, por quem para tanto
recebeu a devida parcela de competência pelo Poder Constituinte: o Poder
Legislativo.
* Analista judiciário do Tribunal Regional
Eleitoral de Alagoas
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11707
Acesso em: 11 set.
2008.