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Marcelo Pimentel Bertasso*
1. INTRODUÇÃO
Ganhou destaque
nos meios jurídicos, nas últimas semanas, a discussão a respeito da
possibilidade de consideração, pelo Magistrado, da vida pregressa de
candidatos, utilizando os maus antecedentes ou a existência de ações de
improbidade administrativa como fundamento para o indeferimento do pedido de
registro de candidatura.
O tema tornou-se
mais tormentoso a partir das eleições de 2006, quando o Tribunal Regional
Eleitoral do Rio de Janeiro, visando garantir a moralidade do pleito, passou a
entender que candidatos com antecedentes criminais não poderiam ter seus
pedidos de candidatura concedidos.
O caso de maior
notoriedade foi o do Deputado Federal Eurico Miranda, que levou o tema até o
Tribunal Superior Eleitoral. Este, em 20 de setembro de 2006, julgando o
Recurso Ordinário nº 1.069/RJ, deferiu o pedido de registro de candidatura, por
maioria (4X3), em acórdão assim ementado:
ELEIÇÕES 2006. REGISTRO DE CANDIDATO. DEPUTADO
FEDERAL. INELEGIBILIDADE. IDONEIDADE MORAL. ART. 14, § 9º, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL.
1. O art. 14, § 9°, da Constituição não é auto-aplicável (Súmula nº 13
do Tribunal Superior Eleitoral).
2. Na ausência de lei complementar estabelecendo os casos em que a vida
pregressa do candidato implicará inelegibilidade, não pode o julgador, sem se
substituir ao legislador, defini-los.
Recurso provido para deferir o registro
Mais recentemente,
o tema voltou à tona, com o julgamento, pelo mesmo Tribunal Superior Eleitoral,
em 10 de junho de 2008, do Processo Administrativo 19.919, onde, novamente por
apertado score (4X3),
considerou-se que os candidatos que são réus em ações penais e processos por
improbidade administrativa podem concorrer a novos mandatos.
Essa decisão,
contudo, não encerrou a questão, sobretudo diante do crescente número de
decisões em sentido contrário, oriundas da magistratura de primeiro e segundo
grau. Ademais, o questionamento não foi ainda enfrentado pelo Supremo Tribunal
Federal, e deve sê-lo em breve, já que a Associação dos Magistrados Brasileiros
ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a decisão do
Tribunal Superior Eleitoral.
Assim, a discussão
se mostra relevante, sobretudo neste ano eleitoral em que a defesa da
moralidade tem sido a bandeira defendida por diversos setores da sociedade
civil organizada e pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral, que chegou a
defender a possibilidade de divulgação de listas com os nomes de candidatos que
sejam réus em processos dessa natureza.
Nesse passo, o
debate merece aprofundamentos, sobretudo porque os argumentos que orbitam em
torno dele cingem-se ao confronto entre os princípios da moralidade
administrativa e os da
legalidade (diante da inexistência de previsão legal e inelegibilidade
decorrente de maus antecedentes) e da presunção de inocência.
Data venia, parece-me que essa argumentação sequer chega a ferir o núcleo da
discussão que, segundo entendo, passaria ao largo desse embate e teria solução
mais adequada partindo de uma interpretação constitucional correta acerca da aplicabilidade
e dos efeitos da disposição inserta no § 9º do art. 14 da Constituição Federal,
que foi a gênese de toda a celeuma.
2. APLICABILIDADE DO ART. 14, § 9º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
2.1 A máxima efetividade e a força normativa da Constituição
O mencionado
dispositivo foi inserido em nosso diploma maior pela Emenda Constitucional de
Revisão nº 04, de 1994.
Eis seu teor:
§ 9º. Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e
os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a
moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do
candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do
poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na
administração direta ou indireta.
Inicialmente, o
Constituinte faz menção à existência de Lei Complementar que estabelecerá (no
futuro), aparentando tratar-se de norma de eficácia limitada, não
auto-aplicável, portanto.
Ocorre que, ao
tempo dessa modificação constitucional, já vigia uma (então) recente Lei
Complementar de Inelegibilidades, qual seja, a LC nº 64/1990, que não previa,
em seu bojo, inelegibilidade decorrente de vida pregressa desfavorável do
candidato.
Evidentemente que
o Constituinte tinha ciência disso e, se quisesse, poderia (e teria) alterado a
própria lei complementar. Preferiu, contudo, deixar explicitado, no próprio
texto constitucional, seu desejo de ver a vida pregressa de candidatos
analisada no momento de se aferir a elegibilidade.
Um dos mais
importantes princípios de hermenêutica constitucional é o da máxima efetividade
de suas normas, e assenta-se na idéia de que o Constituinte, como poder
soberano, não utiliza palavras à toa, é dizer, todas as palavras que constam do
texto constitucional devem possuir uma carga normativa própria e surtir
efeitos, ainda que mínimos, de acordo com o grau de concretude da disposição
constitucional.
Esse princípio
deve ser conjugado com o da força normativa da Constituição, segundo o qual, "entre as interpretações possíveis,
deve ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e
permanência das normas constitucionais" [01]
Segundo Sílvio
Dobrowolski [02],
(...) na interpretação constitucional, é preciso procurar o sentido que
mais eficácia confira às normas da Constituição, transladando o texto jurídico
da condição de dever ser para a de ser. O intérprete constitucional,
particularmente o juiz quando exerce essa função, é ator privilegiado, ao lado
dos demais intérpretes oficiais e de todo o povo, pois a ele toca a missão de
dizer a última palavra sobre o sentido do texto constitucional. Deve fazê-lo da
forma mais adequada, para o cumprimento do plano constituinte. Compete-lhe,
extrair toda a força contida no documento magno, observando as circunstâncias
históricas, que condicionam a eficácia jurídica dele. Os limites dessa força
normativa resultam da coordenação correlativa entre ser e dever ser, pois
embora expressão da realidade, a Constituição, "graças ao seu caráter
normativo ordena e conforma [...] [concomitantemente] a realidade social e
política."(HESSE, K. 1983,75]
Se a força normativa da Constituição depende da adaptação inteligente
às mutáveis condições sociais, não pode dispensar a vontade constante dos
implicados no processo constitucional, de realizar os seus conteúdos textuais.
Como aclara Hesse, "toda a ordem jurídica efetua sua atualização por meio
da atividade humana, [pelo] que seus destinatários precisam estar dispostos a
cumprir as condutas compatíveis ou exigidas pela mesma, assumindo as
dificuldades que isso implique" (HESSE, K.1983,71). Essa "vontade da
Constituição", como a denomina o jurista referido, há de ser sentida pelo
intérprete, para extrair a maior força normativa do texto, compatibilizando-o
com as necessidades e sentimentos predominantes no momento.
O Constituinte
Reformador, ao dar nova redação ao § 9º do art. 14 da Constituição Federal,
estabeleceu que a lei complementar disporá sobre outros casos de
inelegibilidade. Mas desde logo assentou a necessidade de se considerar a vida
pregressa do candidato como fator a se aferir sua elegibilidade.
Àquele tempo, era
o Constituinte sabedor de que a Lei Complementar nº 64/1990, já vigente, não
contemplava essa possibilidade, e se, ainda assim, inseriu-a na Carta da
República, o fez com o nítido propósito de determinar aos operadores do
jurídico a consideração, desde logo, desse fator na aferição da elegibilidade.
Entendimento
diverso levaria a ignorar a expressa vontade do legislador, tornando suas
palavras vazias de conteúdo, conseqüência que deve ser excluída para que se
possa realizar uma boa interpretação constitucional.
Agiria com
desmedida hipocrisia o Constituinte que, querendo que se levasse em conta a
análise da vida pregressa do candidato, e podendo inserir essa disposição na
lei complementar já existente para isso, prefere fazê-lo no texto
constitucional, mas condicionando os efeitos dessa disposição à edição de uma
futura e incerta nova lei complementar sobre o tema.
Assim, nesse
primeiro momento, pode-se afirmar, seguramente, que o entendimento de que a
norma do art. 14, § 9º, da Constituição Federal é desprovida de
auto-aplicabilidade ignora os princípios da máxima efetividade e da força
normativa do texto constitucional.
Não se pode deixar
de considerar, ainda, que a interpretação das normas constitucionais deve levar
em conta aspectos políticos, sociológicos e históricos que permeiam o grau de
desenvolvimento da sociedade que elaborou o texto político maior. Ensina Alexandre
de Moraes [03]:
A Constituição Federal há de sempre ser interpretada, pois somente por
meio da conjugação da letra do texto com as características históricas,
políticas, ideológicas do momento, se encontrará o melhor sentido da norma
jurídica em confronto com a realidade sociopolítico-econômica e almejando sua
plena eficácia.
É inegável que o
Brasil vem passando, ao longo dos últimos anos, em especial a partir da década
de 1990, por processo de depuração das formas de gestão da res publica, onde o apelo a uma
condução dos negócios do Estado pautada pela ética, transparência e honestidade
são a tônica, que se reflete, inclusive, na edição de importantes diplomas
normativos, como a Lei de Improbidade Administrativa e a Lei de
Responsabilidade Fiscal, afora as inúmeras reformas constitucionais que
trataram do tema.
A regra do art.
14, § 9º, da Constituição Federal se insere nessa esteira de alterações de
normas, visando inserir, no mundo do dever-ser um desejo crescente na
sociedade, ou seja, na esfera do ser, de prestígio a princípios moralizadores.
Destarte,
analisando-se o contexto histórico em que surgiu a Emenda Constitucional de
Revisão nº 04/1994, a crescente luta pela transparência, ética e moralização da
condução dos negócios do Estado, e a necessidade de se atribuir máxima eficácia
e força às palavras empregadas pelo Constituinte no texto da Carta Maior,
conclui-se que o art. 14, § 9º, da Constituição Federal, tem carga semântica
suficiente para permitir ao julgador aferir a vida pregressa do pretenso
candidato, a fim de deferir ou denegar seu pedido de registro de candidatura.
2.2 O princípio da Unidade da Constituição
Não bastassem os
argumentos expendidos no tópico anterior, suficientes para fundamentar a
conclusão da auto-aplicabilidade do art. 14, § 9º, da Constituição Federal, há
outras razões que devem ser levadas em conta pelo exegeta.
Segundo aqueles
que defendem a tese contrária, não se poderia conferir auto-executoriedade ao
dispositivo constitucional por dois motivos principais: i) o início do parágrafo faz expressa remissão a lei complementar;
ii) inexistem parâmetros que
permitam dizer o que se entende por vida pregressa do candidato e qual seria a
extensão dessa inelegibilidade.
O segundo
argumento será analisado quando tratarmos a respeito da forma de
operacionalização da aplicação do art. 14, § 9º, ou seja, quando se perquirir a
respeito de quais situações ensejam o reconhecimento da vida pregressa
desabonadora do "candidato a candidato".
No entanto, desde
logo podemos analisar o primeiro argumento.
Outro princípio
fundamental para a boa interpretação constitucional é o da unidade. O texto
constitucional deve ser interpretado levando em conta tratar-se de diploma
único, que não admite contradições entre suas normas.
Sobre o tema, valho-me,
uma vez mais dos preciosos ensinamentos de Sílvio Dobrowolski [04]:
Konrad Hesse cita os seguintes princípios de interpretação
constitucional: [1] unidade da Constituição, [2] concordância prática,
[3]correção funcional, [4] efeito integrador e [5] força normativa da
Constituição. Paulo Bonavides indica cinco princípios cardeais da Constituição
brasileira – unidade lógica, unidade axiológica, soberania popular, soberania
nacional e dignidade da pessoa humana (BONAVIDES, P. 2001,10-12). O primeiro deles
corresponde à unidade referida pelo jurista alemão. A conexão entre as partes
do texto magno exige considerar não somente as normas isoladas, mas
relacionando-as dentro do todo ao qual pertencem. ".]s normas
constitucionais devem ser interpretadas de tal modo que contradições com outras
normas constitucionais sejam evitadas." (HESSE, K. 1998,65) Este princípio
não é mais do que o tradicional critério da interpretação sistemática, que Eros
Grau sintetiza em fórmula original – "não se interpreta a Constituição em
tiras, aos pedaços" (GRAU,E.R. 1997,176). Acerca de sua importância, em
qualquer trabalho hermenêutico, Juarez Freitas pontifica – "a
interpretação jurídica é sistemática ou não é interpretação" (FREITAS, J.
1995,49).
Uma conseqüência
que pode ser extraída desse princípio é a de que o exegeta deve interpretar de
forma igual normas constitucionais que estejam em situação similar.
Diz-se isso porque
o Supremo Tribunal Federal, máximo intérprete da norma constitucional, já
decidiu que o fato da Carta da República fazer menção, em alguns artigos, à
edição de futura Lei Complementar, não retira a auto-aplicabilidade desses
mesmos artigos.
Exemplo clássico é
o do art. 93 da Constituição Federal. Eis o que diz o caput do dispositivo:
Art. 93. Lei
complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá
sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
Veja-se a
similitude que se estabelece entre as hipóteses dos arts. 93 e 14, § 9º, da
Carta Magna: ambos estabelecem princípios, mas remetem a regulamentação
específica da matéria à edição de futura lei complementar. E, em ambos os
casos, essa lei complementar já existe (no caso do art. 93, é a Lei
Complementar nº 35 de 1979).
Para evidenciar
ainda mais a semelhança entre os dispositivos, analisemos somente o conteúdo do
inciso I do art. 93, que menciona:
I - ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto,
mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos
Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito,
no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações,
à ordem de classificação;
A exigência de
três anos de atividade jurídica ao bacharel não consta da Lei Orgânica da
Magistratura Nacional. Foi inovação do Constituinte que, ao invés de alterar a
Lei Complementar específica, inseriu sua vontade, desde logo, no corpo da Carta
Magna.
A despeito disso,
a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é tranqüila em admitir que essa
exigência é auto-aplicável e independe de edição de futura lei complementar, ainda
que não exista diploma normativo estabelecendo o que pode ser considerado
"atividade jurídica". Foi assim que decidiu aquela corte no
julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.460, do Distrito
Federal, relatada pelo Min. Carlos Ayres Britto.
Tal ADIn foi
julgada improcedente por maioria, mas a divergência se deu somente quanto à
normatização do que se considera "atividade jurídica", eis que todos
os Ministros foram unânimes em proclamar a auto-aplicabilidade do inciso I do
art. 93 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional
nº 45, de 2004.
Pois bem. Temos,
então, duas normas constitucionais que se iniciam fazendo referência à futura
edição de lei complementar. Nos dois casos, ao tempo da alteração
constitucional, já existia a aludida lei complementar, que não dispunha a
respeito da matéria incluída na Carta Magna. As duas novidades constitucionais
versam sobre restrições ao acesso a cargos públicos (em sentido lato), um
exigindo experiência (art. 93) e outra exigindo vida pregressa ilibada (art.
14, § 9º). Por fim, nos dois dispositivos há certa fluidez quanto à aplicação
da norma: no caso do art. 93, não há lei dizendo o que seja "atividade
jurídica"; no caso do art. 14, § 9º, não há norma dizendo o que se
considera por "vida pregressa".
Ora, havendo
situações tão similares (quase idênticas) de dois dispositivos inseridos na
mesma Constituição, que deve ser interpretada como diploma único, como explicar
que, em um caso, a Corte Constitucional, por unanimidade, repute auto-aplicável
o dispositivo e, em outro, a Corte Eleitoral o considere (por apertado placar)
não auto-aplicável?
A disparidade das
interpretações confronta com a similitude das situações jurídicas das normas, a
evidenciar que um dos dois entendimentos se deu forma menos sintonizada com a
boa interpretação constitucional. E me parece que esse entendimento é o
atribuído pelo Tribunal Superior Eleitoral, máxime diante do que já mencionado
no tópico anterior.
Sendo assim, pelo
princípio da unidade da constituição, e considerando que o Supremo Tribunal
Federal já atribuiu auto-executoriedade a normas constitucionais em situações
análogas, há que se aplicar o mesmo raciocínio ao art. 14, § 9º, da
Constituição Federal, considerando-o, também, como norma de aplicação imediata.
2.3 Interpretação constitucional e coerência
A interpretação
constitucional não é tida como atividade de extração de conteúdo de determinada
norma, mas como procedimento através do qual, pela leitura do conteúdo escrito
da carta constitucional, erige-se o significado que aquele comando produzirá no
mundo fático, estabelecendo-se seu conteúdo normativo.
Canotilho
[05] trata da matéria com maestria. Segundo o mestre português,
(...) interpretar as normas constitucionais significa (como toda a
interpretação de normas jurídicas) compreender, investigar e mediatizar o
conteúdo semântico dos enunciados lingüísticos que formam o texto
constitucional. A interpretação jurídica constitucional reconduz-se, pois, à
atribuição de um significado a um ou vários símbolos lingüisticos escritos na
constituição.
Ocorre que os
resultados desse processo devem ser razoáveis, coerentes entre si, e não podem
levar a situações absurdas.
O cotejo entre as
interpretações das diversas normas constitucionais e as situações delas
resultantes deve demonstrar a coerência e harmonia dos produtos do processo
interpretativo. Havendo disparidades que demonstrem situações de inconfundível
incompatibilidade entre esses resultados, alguma das interpretações certamente
não se deu de acordo com a melhor exegese da norma, de modo que ela deve ser
revista, a fim de que se possa extrair outros significados, mais compatíveis
entre si.
Em outras
palavras: a interpretação da Constituição não pode conduzir a situações
absurdas ou manifestamente contrárias entre si. Se isso ocorre, é porque uma
das interpretações está equivocada.
Essa lição pode
ser aplicada como argumento crítico em relação ao entendimento do Tribunal
Superior Eleitoral. De acordo com aquele Tribunal, o art. 14, § 9º, da
Constituição Federal, não é auto-aplicável. Por sua vez, a Lei Complementar nº
64/1990 não estabelece caso expresso de inelegibilidade decorrente de vida
pregressa desabonadora. Por conseqüência, a pessoa que responda a processos
criminais e de improbidade, sem condenação com trânsito em julgado, pode
concorrer a cargos eletivos.
Ocorre que essa
situação se confronta com outras decorrentes da interpretação das normas
constitucionais. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tem jurisprudência
pacífica no sentido de que é legítimo o levantamento da vida pregressa de
candidato a cargo em concurso público. Como exemplo, cito os julgamentos dos Recursos
Especiais nº 156.400/SP e 233.303/CE. Neste último, relatado pelo Min. Menezes
Direito, e julgado recentemente (27/05/2008), o Tribunal considerou legítima a
exclusão de um candidato no concurso para Policial Militar, por conta de
sindicância para apurar sua vida pregressa, entendo-se não haver necessidade
sequer de contraditório nessa sindicância.
Diante dessa
interpretação, tem-se a seguinte situação: determinado cidadão que responda a
processos criminais não pode ser aprovado em concurso público para Policial
Militar, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal; contudo,
pode ele se candidatar e ser eleito Governador do Estado e, nessa condição,
destituir o Comandante Geral da Polícia Militar, segundo entendimento do
Tribunal Superior Eleitoral.
Essa contradição
entre resultados interpretativos é evidentemente absurda, a denotar que uma das
interpretações empregadas é equivocadas. E parece-me, por tudo que já foi dito
até aqui, que o equívoco reside, data
venia, na interpretação atribuída pelo Tribunal Superior Eleitoral à
norma.
Outra situação
interessante pode ser invocada. Teve ampla repercussão recente decisão
administrativa do Tribunal de Justiça de São Paulo que negou lista sêxtupla
elaborada pela OAB para o cargo de desembargador pelo quinto constitucional, ao
argumento de que um dos candidatos não tinha conduta ilibada, já que respondia
a processo criminal.
Magistrados são
agentes políticos, tanto quanto deputados, vereadores e prefeitos. Todos são
membros de poder e, nessa condição, submetem-se a diversas exigências para
serem alçados a seus postos.
Magistrados,
contudo, lá chegam, no mais das vezes, por conhecimento técnico [06],
ao passo que os demais políticos são investidos através da vontade popular.
Ocorre que, tanto num quanto noutro caso, há sujeição do pretendente à vaga a
exigências de índole moral, que se fazem sentir de maneira muito mais forte no
Judiciário, onde o candidato é submetido a devastadora investigação social, que
engloba, em alguns Estados, perquirição a respeito, inclusive, à existência de
dívidas protestadas e ações cíveis desabonadoras em trâmite. E tais exigências
têm sido entendidas como legítimas, diante da honorabilidade e da responsabilidade
trazidas pelo cargo.
Ocorre que os
detentores de mandato eletivo exercem cargos igualmente honoráveis e de
responsabilidade igual ou superior. Não faz sentido, portanto, excluí-los dessa
exigência de demonstração de idoneidade moral, demonstrável objetivamente,
assim como se faz em relação ao Judiciário.
Dessa forma, a
negação da aplicação imediata do art. 14, § 9º, da Constituição Federal, gera
situações fáticas tão distintas que beiram ao absurdo, negando a pessoas que
ostentem antecedentes o exercício de determinados cargos públicos de menor
escalão, mas permitindo-lhes exercer cargos políticos elevadíssimos.
Por gerar essa
conseqüência, a interpretação nesse sentido deve ser considerada equivocada,
impondo-se sua superação.
2.4 Conclusões a respeito da aplicabilidade do art. 14, § 9º, da
Constituição Federal
Diante da
argumentação tecida nos tópicos anteriores, podemos concluir, de forma
tranqüila, que o art. 14, § 9º, da Constituição Federal é dotado de aplicação
imediata.
Isso porque a
norma foi inserida após o advento da Lei Complementar nº 64/1990, tendo caráter
manifestamente aditivo a essa norma. Ademais, a Constituição é clara em afirmar
a necessidade de se considerar vida pregressa do candidato, não podendo,
eventual Lei Complementar posterior, dispor em sentido contrário.
Afora isso, a
aplicação dos princípios da máxima efetividade e da força normativa da
Constituição permite visualizar a necessidade de se emprestar efeitos à
novidade (nem tão nova assim) estabelecida pelo Constituinte Revisor de 1994.
O raciocínio que
conduz à conclusão da aplicabilidade plena do art. 14, § 9º, da Constituição
Federal, é linear, coerente e uniforme.
O entendimento
contrário, por outro lado, não se coaduna com o princípio da força normativa da
Constituição, é incompatível com interpretação dada a dispositivo
constitucional em situação quase idêntica (art. 93, inciso I), contrariando o
princípio da unidade da Constituição, e se mostra inválido porque o resultado
de sua interpretação gera situações extremamente absurdas, em que se nega o
exercício de cargos inferiores mas se permite que pessoas com antecedentes
exerçam cargos de alto escalão, dispensando-lhes da necessária demonstração de
idoneidade moral, que é exigida de candidatos ao exercício de cargo de natureza
de agentes políticos em outros Poderes.
Assentada a
auto-aplicabilidade do art. 14, § 9º, da Constituição Federal, resta afastada a
tese de que não caberia a análise dos antecedentes dos candidatos por falta de
previsão legal, eis que o procedimento decorre de imperativo constitucional.
3. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA
Outro fundamento
recorrentemente invocado pelos defensores da não auto-aplicabilidade do art.
14, § 9º, da Constituição Federal, é o de que esse entendimento confrontar-se
ia com o princípio fundamental da presunção da inocência.
Tenho que a
invocação é impertinente.
O princípio da
presunção de inocência, ou da não culpabilidade, veda que se trate alguém como
condenado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Ocorre que
esse tratamento "como culpado" refere-se apenas à imposição de
sanções aflitivas próprias do Direito Penal e as decorrentes diretamente da
condenação, como a suspensão dos direitos políticos (art. 15, inciso III, da
Constituição Federal) e não se confunde com a consideração de existência de
ações penais para aferição de idoneidade de vida pregressa.
É inegável, e
ninguém ousa dizer o contrário, que aquele que responde a diversas ações penais
tem vida pregressa muito mais maculada do que aquele que não as ostente. E essa
ilação não viola, evidentemente, o princípio da não culpabilidade, sobretudo
porque a mácula lançada advém de um juízo de probabilidade, e não de certeza.
Aliás, se fosse a
intenção do Constituinte que somente os definitivamente condenados ficassem
inelegíveis, jamais ele teria determinado a aferição da vida pregressa para
fins de inelegibilidade, porque a própria Carta da República já dispunha sobre
a suspensão dos direitos políticos (arts. 15, inciso III, e 39, § 4º).
Esvaziar-se-ia, assim, o conteúdo do art. 14, § 9º.
Demais disso, o
princípio da presunção da inocência, como qualquer outro direito fundamental,
não é absoluto e comporta temperamentos. Tanto é assim, que o art. 27, § 2º, da
Lei nº 8.038/1990, estabelece que os Recursos Especial e Extraordinário não são
dotados de efeito suspensivo, o que autoriza a execução provisória da pena
daqueles condenados em segunda instância e que se valham desses recursos
excepcionais.
E essa execução
provisória da pena, até aqui, tem sido admitida como plenamente constitucional
pelo Pretório Excelso [07], ressalva feita somente aos julgados da
Segunda Turma, em especial aqueles relatados pelo Min. Eros Grau, que, data venia, atribui um alcance
ilimitado à presunção da inocência, em entendimento plenamente incompatível com
a própria estrutura de nosso ordenamento jurídico.
Sendo assim, a
invocação do princípio da presunção de inocência em nada modifica o raciocínio
até aqui empreendido.
Há que se observar
que os direitos políticos se constituem em categoria diferenciada de direitos
individuais e coletivos, que existem não para o indivíduo, mas do indivíduo
para a coletividade. O Min. Carlos Ayres Britto, ao julgar o Recurso Ordinário
nº 1.069/RJ (caso Eurico Miranda), tratou do tema com brilhantismo, impondo-se
colacionar parte de seu voto:
14. Nessa vertente
de idéias, veja-se que o segmento dos "direitos e deveres individuais e
coletivos" (capítulo I do título II da Constituição Federal) está
centralmente direcionado para a concretização do princípio fundamental da
"dignidade da pessoa humana" (inciso III do art. 1º). A reverenciar
por modo exponencial, então, o indivíduo e seus particularizados grupamentos. A
proteger mais enfaticamente os bens de "personalidade individual" e de
"personalidade corporativa", em frontal oponibilidade à pessoa
jurídica do Estado. Tudo de acordo com o modelo político-liberal de
estruturação do Poder Público e da sociedade civil, definitivo legado do
iluminismo enciclopedista que desembocou na Revolução Francesa de 1789.
15. Já o subsistema dos
direitos sociais (arts. 6º e 7º da Magno Texto), volta-se ele para a centrada
concretização do princípio fundamental que atende pelo nome de "valores
sociais do trabalho" (inciso IV do art. 1º da CF). Especialmente o trabalho
que se passa no âmago das chamadas relações de emprego, na pré-compreensão de
que os proprietários tão-só de sua mão-de-obra carecem bem mais de tutela
jurídica do que os proprietários de terra, capital, equipamentos, tecnologia,
patentes e marcas empresariais. Pré-compreensão, essa, que corresponde ao
perene legado das doutrinas que pugnavam, desde os ano 40 do século XIX aos
anos 30 do século XX, por um Estado Social de Direito. Estado também designado
por "Estado do Bem-estar Social", "Estado-providência" ou "Welfare
State".
16. E o bloco dos
direitos políticos? Bem, esse é o que se define por um vínculo funcional mais
próximo desses dois geminados proto-princípios constitucionais: o princípio da
soberania popular e o princípio da democracia representativa ou indireta
(inciso I do art. 1º, combinadamente com o parágrafo único do art. 1º e o
"caput" do art. 14, todos da Constituição de 1988). Dois geminados
princípios que também deitam suas raízes no Estado liberal, porém com esta
marcante diferença: não são as pessoas que se servem imediatamente deles,
princípios da soberania popular e da democracia representativa, mas eles é que
são imediatamente servidos pelas pessoas. Quero dizer: os titulares dos
direitos políticos não exercem tais direitos para favorecer imediatamente a si
mesmos, diferentemente, pois, do que sucede com os titulares de direitos e
garantias individuais e os titulares dos direitos sociais. Veja-se que,
enquanto os detentores dos direitos sociais e dos direitos individuais e
coletivos são imediatamente servidos com o respectivo exercício, e só por
defluência ou arrastamento é que resultam servidos os princípios da valorização
do trabalho e da dignidade da pessoa humana, o contrário se dá com o desfrute
dos direitos políticos. Aqui, o exercício de direitos não é para servir
imediatamente a ninguém, mas para servir imediatamente a valores: os valores
que se consubstanciam, justamente, nos proto-princípios da soberania popular e
da democracia representativa.
17. Insista-se na
diferenciação para ficar bem claro que os magnos princípios constitucionais da
dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho existem para se
concretizar, imediatamente, no individualizado espaço de movimentação dos seus
titulares. Logo, os dois estruturantes princípios a servir primeiro (e só
depois a se servir, por gravidade ou arrastamento) do particularizado gozo dos
respectivos direitos subjetivos. Estes a primeiro luzir, para somente depois se
ter por concretamente imperantes aqueles dois proto-princípios constitucionais.
Ao contrário (renove-se o juízo) do que sucede com os estruturantes princípios
da soberania popular e da democracia representativa, pois, aqui, quem primeiro
resplende são valores ou princípios. O eleitor não exerce direito para
primeiramente se beneficiar. Seu primeiro dever, no instante mesmo em que
exerce o direito de votar, é para com a afirmação da soberania popular (valor
coletivo) e a autenticidade do regime representativo (também valor de índole
coletiva). O mesmo acontecendo com o candidato a cargo político-eletivo, que só
está juridicamente autorizado a disputar a preferência do eleitorado para
representar uma coletividade territorial por inteiro. Jamais para presentear
(Pontes de Miranda) ou servir a si próprio.
Por conta dessa
diferente orientação dos direitos políticos no sistema normativo, e de sua
subserviência a valores constitucionalmente estabelecidos na estruturação do
próprio Estado, que se exige daqueles que pretendem exercê-los de forma passiva
(sendo votados) o preenchimento de requisitos que o coadunem com os valores que
representarão.
Em termos mais
simples: quem exerce um cargo político representa o Estado em sua pessoa e,
nessa condição, deve ser um baluarte dos valores que inspiram o Estado em si.
E, nessa condição, a moralidade, como princípio estruturante do conceito do
Estado (art. 37 da Constituição Federal) deve ser estampada pelo pretendente ao
exercício do mandato eletivo.
Simplificando
ainda mais a idéia, cabe lembrar que, em se tratando de detentor de mandato eletivo,
que gere bens, direitos e interesses de todos, é de se aplicar o velho adágio:
"não basta ser honesto, há que
parecer honesto". E,
convenhamos, quem ostenta folha de antecedentes considerável não parece
honesto.
Nessa ordem de
idéias, cabe lembrar, como já mencionado acima, que ninguém considera ilegal ou
inconstitucional submeter candidatos em concurso público a investigações
sociais e isso não viola o princípio da presunção da inocência.
Nesse último caso,
há ainda um dado complementar: o direito ao livre exercício de trabalho, ofício
ou profissão é direito fundamental que se insere no art. 5º da Constituição e
se encerra em si mesmo, ao contrário dos direitos políticos, que se destinam a
servir ao Estado e aos administrados.
Como aplicar a
presunção de inocência em relação aos direitos políticos e negá-la em relação
ao direito fundamental de livre exercício da profissão? Evidentemente que uma
das interpretações é incorreta, e mais uma vez concluímos que é aquela que
invoca tal princípio como escudo para que candidatos com vida pregressa
maculada concorram a mandatos eletivos.
4. OPERACIONALIZAÇÃO DA ANÁLISE DA VIDA PREGRESSA DOS CANDIDATOS
Estabelecida a
conclusão no sentido da aplicabilidade da análise da vida pregressa de
candidatos para aferição de sua elegibilidade, resta uma última questão a
tratar: como fazê-lo.
Afinal, quando um
candidato terá a vida pregressa manchada de tal forma a impedir-lhe o acesso
temporário a cargos públicos?
De início, cabe
indagar: quais as ações que poderiam ensejar a inelegibilidade? A resposta vem
do próprio texto constitucional: todas aquelas cuja sanção definitiva encerre
restrição aos direitos políticos, é dizer, as ações penais (art. 15, inciso
III) e as ações de improbidade administrativa (art. 37, § 4º).
E a partir de
quando surge essa inelegibilidade? Seria da simples propositura da demanda? Do
recebimento da denúncia (art. 41 do Código de Processo Penal) ou da inicial
(art. 17, § 9º, da Lei nº 8.429/1992)?
Muitas são as
correntes a respeito.
Descarta-se, em
princípio, aquelas que consideram a simples existência de ações, sem qualquer
condenação, como fato a autorizar o indeferimento do pedido de registro de
candidatura. Trata-se de extremismo não recomendável, porque sequer há
pronunciamento judicial baseado em cognição exauriente sobre os fatos,
inexistindo indício de mácula sobre a conduta do acusado.
Por outro lado,
inicialmente fiquei tentando a aplicar a regra do art. 27, § 2º, da Lei nº
8.038/90, a fim de considerar como inelegíveis somente aqueles condenados em
segunda instância, cujos processos estejam pendentes de resolução por força de
recursos especial ou extraordinário.
Contudo, essa
solução parece-me dissociada do espírito da norma constitucional e ignora o
fato de que a condenação em primeiro grau, por si só, já autoriza a emissão de
um juízo de suspeita mais do que fundada acerca da conduta do acusado.
Com efeito, o
juízo de primeiro grau, ao proferir sentença condenatória, avalia as
circunstâncias fáticas e jurídicas envolvidas, sopesa todas as provas
produzidas e emite seu decisum
de forma imparcial. Se condenou o acusado, é porque certamente encontrou
indícios que não podem ser desconsiderados, e, assim, lançou fagulha capaz de turvar
a vida pregressa do candidato.
Os que argumentam
em sentido contrário sustentam que há a possibilidade de ter o Juiz agido de
má-fé, ou imbuído por desejos políticos. Não me parece, contudo, razoável,
presumir a má-fé do magistrado, que se submete a rígido concurso público onde
sua vida pregressa é objeto de análise, em detrimento da presunção de
veracidade e legitimidade que o próprio ato jurisdicional goza.
Aos que defendem
essa tese, parece mais fácil acreditar que o juízo sentenciante tenha agido de
má-fé do que vislumbrar que existem fortes indícios e argumentos dando conta de
que o condenado em primeira instância agiu em desacordo com a lei.
Generaliza-se, assim, a exceção, abrindo-se a porteira para que diversos
condenados em primeiro grau, com a vida pregressa já atingida, ingressem em
cargos políticos e, o que é pior, se valham da prerrogativa de foro para
atrasarem o processamento dos feitos, livrando-se das condenações muitas vezes
pela incidência nefasta da prescrição. Trata-se de raciocínio que subverte a
lógica e a ordem natural das coisas.
Postas as coisas
deste modo, afigura-se razoável concluir a inelegibilidade deve ser aferida a
partir do momento da condenação em primeiro grau do "candidato a
candidato" em processo criminal ou de improbidade administrativa (neste
último caso, desde que na sentença lhe tenha sido imposta a suspensão de
direitos políticos).
Resta definir o
termo ad quem dos efeitos da
inelegibilidade. E a resposta me parece simples. Se a sentença condenatória
restar confirmada nas infindáveis instâncias recursais a que for submetida, ela
gerará suspensão de direitos políticos e inelegibilidades (conforme o caso)
decorrentes da condenação final. Todas elas têm prazo certo de duração. Findo
esse prazo, o candidato estará reabilitado e, nesse caso, o processo que gerou
a inelegibilidade não poderá mais ser considerado para macular a vida pregressa
do candidato, sob pena não só de se dar o bis in idem, mas de perpetuação dos efeitos de condenação, em
desacordo com a lei, representando verdadeira cassação de direitos políticos.
5. A FALÁCIO DO ATIVISMO JUDICIAL
Um último
argumento utilizado pelos opositores da tese esposada neste artigo reside no
combate ao que se denomina de ativismo judicial. Diz-se que o Juiz não pode
assumir conduta pró-ativa e arvorar-se na condição de legislador positivo,
suprindo as omissões deste.
O discurso é
correto. Contudo, há que se notar que a conclusão acerca da possibilidade de
consideração dos antecedentes dos candidatos não decorre do exercício do
ativismo judicial, mas de simples e correta hermenêutica constitucional.
Ao magistrado cabe
interpretar o texto constitucional, construindo um significado normativo que se
exprimirá na resolução de uma lide concreta. Sendo assim, ele realiza um
processo de subsunção que nada mais é do que conferir concretude a preceitos constitucionais.
Ocorre que esses
preceitos, diante do peculiar local em que ocupam, no ápice da cadeia normativa
de um país, são impregnados de uma abstração muito maior que uma lei ordinária.
Ainda que tenhamos uma constituição analítica, que se volte a regular diversos
temas não materialmente constitucionais e que, em outros casos, se preste a
regulamentar de forma exaustiva determinados assuntos, usurpando a função da
lei, ainda assim se pode afirmar que a Constituição Federal se mostra muito
mais abstrata que as leis que abaixo dela se situam na hierarquia normativa.
E diante disso,
cabe ao intérprete realizar as adaptações e aparar as arestas a fim de transpor
ao caso concreto a regra abstrata constante do texto constitucional. Eis o que
diz Canotilho [08] sobre o assunto:
Situadas no vértice da pirâmide normativa, as normas constitucionais
apresentam, em geral, uma maior abertura (e, consequentemente, uma menor
densidade) que torna indispensável uma operação de concretização na qual se reconhece
às entidades aplicadoras um "espaço de conformação" ("liberdade
de conformação", discricionariedade") mais ou menos amplo.
Não se há de
confundir, pois, o preenchimento desse "espaço de conformação", por
parte do exegeta, que decorre de simples exercício interpretativo, com a adoção
do ativismo judicial como forma de agir. Ao se defender a tese exposta neste
artigo, não se exerce ativismo, mas pura e simples exegese do texto
constitucional.
6. CONCLUSÕES
Diante do que
exposto neste trabalho, conclui-se:
6.1 Deve-se atribuir máxima efetividade aos comandos constitucionais, que
gozam de força normativa própria. Assim, e considerando que o art. 14, § 9º, da
Constituição Federal surgiu no mundo jurídico após a existência da Lei
Complementar nº 64/1990, que serve para regulá-lo, há que se considerar que ele
é dotado de efeitos imediatos, por ter caráter aditivo à mencionada lei
complementar.
6.2 Sendo assim, o art. 14, § 9º, da Constituição Federal, é dotado de
carga semântica suficiente para produzir efeitos no mundo jurídico,
independentemente da edição de legislação complementar posterior.
6.3 O art. 93, inciso I, da Constituição Federal, faz expressa alusão à
edição de posterior lei complementar para tratar dos temas ali abarcados, assim
como ocorre com o art. 14, § 9º; as leis complementares referidas já existem
(LC nº 35/1979 e nº 64/1990, respectivamente) e não tratam das novas exigências
inseridas no texto constitucional (atividade jurídica por três anos e vida
pregressa); em ambos os casos, tem-se o estabelecimento de restrições ao
exercício de cargos por agentes políticos.
Diante dessa
similitude, e considerando o princípio da unidade da Constituição, que veda
interpretações díspares a dispositivos da mesma norma em situações idênticos, e
considerando que o art. 93, inciso I, é tido por auto-aplicável, igual
entendimento deve ser aplicado ao art. 14, § 9º.
6.4 A boa interpretação constitucional jamais pode conduzir a situações
absurdas. O entendimento da não auto-aplicabilidade do art. 14, § 9º, leva ao
absurdo de permitir que pessoas com antecedentes criminais não possam prestar
concursos para cargos públicos de escalões inferiores, mas possam ser eleitas
para exercícios de mandatos políticos de primeiro escalão. Por tal razão, esse
entendimento é inválido.
6.5 Não resta violado o princípio da presunção de inocência com a
consideração dos antecedentes dos candidatos, eis que se trata de análise de
valor constitucional ao qual se volta e se submete o exercício dos direitos
políticos de forma passiva.
6.6 Os processos a serem levados em consideração na análise da vida
pregressa do candidato devem ser ações penais e de improbidade administrativa
com condenação em primeiro grau de jurisdição.
6.7 A consideração da vida pregressa dos candidatos não decorre do
exercício de ativismo judicial, mas apenas da correta interpretação
constitucional, que demanda uma operação de concretização de comandos abstratos
por parte do julgador.
Notas
1.
MORAES, Alexandre, Direito Constitucional. 23ª Ed., São Paulo:Atlas, 2008, p. 16.
2.
Hermenêutica
Constitucional. In Cadernos de Direito Constitucional da Escola da Magistratura do
Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Porto Alegre, 2006, p. 37.
3.
Ob. Cit., p. 15.
4.
Ob. Cit., pp. 31-32.
5.
Direito Constitucional. Coimbra,
Almedina, 1993, pág. 210.
6.
Isso quanto aos que se submetem a concurso público,
onde se afere objetivamente esse conhecimento, ao contrário da ascensão pelo
quinto constitucional, em que a aferição do conhecimento é impregnada de
subjetivismo
7.
HABEAS CORPUS.
CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. PENDÊNCIA DE
JULGAMENTO DOS RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO. OFENSA AO PRINCÍPIO DA
PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA: NÃO-OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. 1. A
jurisprudência desta Corte é no sentido de que a pendência do recurso especial
ou extraordinário não impede a execução imediata da pena, considerando que eles
não têm efeito suspensivo, são excepcionais, sem que isso implique em ofensa ao
princípio da presunção da inocência. 2. Habeas corpus indeferido. (STF,
Primeira Turma, HC 90.645/PE, Rel. p/ acórdão Min. Menezes Direito, j.
11/09/1997)
8.
Ob. Cit.,p. 210.
* Juiz de Direito no Estado do Paraná
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11491&p=2
Acesso em: 22 ago.
2008.