PARTIDOS POLÍTICOS
na constituição de 1988
"Na verdade,
há, hoje, um número de partidos muitíssimo maior do
que em 1963. Há cerca de trinta partidos devidamente registrados
no TSE, e mais uma meia-dúzia ainda provisórios."
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO
Consiste um
lugar comum o registro da ambivalência dos partidos políticos.
Estes, com efeito, por um lado,são indispensáveis à
democracia representativa, à medida que organizam as correntes políticas
para a competição eleitoral e coordenam a participação
dessas correntes no processo governamental. Mas, por outro lado, podem
corromper ou perturbar tanto o processo eleitoral quanto o governamental,
seja em razão de seu enfeudamento a grupos ou interesses egoísticos
ou personalistas, seja por dominados por oligarquias ou indivíduos,
seja por recorrerem a meios ilegítimos, como a fraude ou a violência,
seja até em decorrência de seu número excessivo, que
esfarinha a vontade manifestada nas urnas.
2. É
levando em conta esses dois aspectos que o constitucionalismo contemporâneo
a partir da Lei Fundamental de Bonn, de 1949 (art. 21), nalguns pontos
antecipada pela Constituição Brasileira de 1946 (art. 141,
13) tem inscrito nas Leis Magnas completos estatutos constitucionais
dos partidos políticos. Tais estatutos os reconhecem como entes
paraestatais necessários, mas cuidam de impor-lhes princípios
de organização, de atuação, de financiamento,
etc., para atenuar, se não for possível impedir, os malefícios
apontados. Tal é o caso brasileiro, pois, se a referida Constituição
de 1946 já cuidava de proscrever o partido antidemocrático,
a Carta de 1967, com a Emenda nº 1/69 (art. 152), já editou
um verdadeiro estatuto, o qual, na verdade, se inspirava na Lei Orgânica
dos Partidos de 1965. Igualmente, a Constituição em vigor
possui um estatuto, definido no art. 17.
3. Para compreender
o estatuto vigente, é imprescindível analisar o quadro constitucional
anterior e sua evolução. De fato, como alguém já
observou, o estatuto de 1988 foi elaborado "olhando pelo retrovisor", quer
dizer, mais em reação ao fixado e praticado no período
militar, do que em função de uma perspectiva de futuro. Mas,
para compreender o quadro anterior, é preciso remontar aos anos
sessenta, portanto, ao período que precede o movimento de 1964.
4. No início
dos anos sessenta, era generalizada a denúncia da crise da democracia
brasileira. Segundo o juízo de muitos, funcionava ela mal, e isto
por muitas razões, duas das quais concernem ao tema em estudo: a
proliferação de partidos (cerca de doze ou treze em 1965),
com sua "pequenização", e o sistema eleitoral de representação
proporcional. Propugnava-se, então, a redução do número
de partidos, por meio de exigências de representatividade mínima
(apoio eleitoral e representação parlamentar mínimos),
para o que também colaboraria a substituição da representação
proporcional pura por um sistema misto, à alemã, que envolvesse
eleições distritais majoritárias. Estas idéias
estão nítidas na Lei Orgânica de 1965, a qual, embora
promulgada após a Revolução, foi elaborada pelas lideranças
mais expressivas da política brasileira.
5. Entretanto,
a precipitação do processo sucessório no seio das
Forças Armadas trouxe, ainda em 1965, o Ato Institucional nº
2. Este intrometeu-se na questão partidária e extinguiu de
chofre todos os partidos, determinando que outros se organizassem com base
na Lei Orgânica recém-promulgada.
Logo depois,
todavia, um Ato Complementar permitiu a criação de partidos
provisórios, por adesão parlamentar, do que surgirão
dois que iriam durar cerca de três lustros... Isto, na verdade,
forçava um bipartidarismo de fato. Mas, pouco mais tarde, a necessidade
de enquadrar em dois grupos os participantes dos treze partidos extintos,
exigiu o "jeitinho", a instituição da sublegenda. Três
sublegendas foram permitidas em cada partido, e, na prática, em
cada circunscrição eleitoral, o que tornou os mencionados
dois partidos em meras siglas, sem ideologia, coerência, ou disciplina.
Em reação contra isto, a Emenda nº 1/69 adotou outro
"jeitinho", este de aroma autoritário: a fidelidade partidária,
que prenderia o parlamentar ao partido pelo qual se tinha elegido, a seu
programa e às diretrizes de sua direção, sob pena
de perda do mandato, a ser decretada em processo contraditório pela
Justiça Eleitoral (o que jamais chegou a ocorrer).
Nos anos oitenta,
a "abertura" não se fez sem que tivessem ocorrido inúmeras
manipulações quanto às regras do jogo político,
especialmente eleitoral. Não vale a pena relatá-las. Cabe,
porém, registrar um afrouxamento nas normas concernentes à
criação de partidos que levou à quebra do bipartidarismo.
Continuaram, porém, a existir sérias restrições
para o surgimento de novos partidos.
6. Como se
apontou, a Constituinte virou às costas para o modelo anterior.
O estatuto de 1988 facilita a criação de partidos são
quanto a isso equiparados a meras associações (art. 17, §
2º) reduz-se quanto a eles o controle do Tribunal Superior Eleitoral,
desenfatiza-se o aspecto programático, abole-se a fidelidade (e
a disciplina) partidária, mantém-se a representação
proporcional, aceita-se ampla atuação por parte dos partidos
"provisórios", para não se falar no insolúvel problema
do financiamento eleitoral.
7. Oito anos
de vigência dessas regras trouxeram-nos a um quadro muito semelhante
ao do início dos anos sessenta. Aos partidos é imputada responsabilidade
por uma crise de governabilidade de que sofre o País, discute-se
a reforma do estatuto partidário, bem como a do sistema eleitoral.
Na verdade,
há, hoje, um número de partidos muitíssimo maior do
que em 1963. Há cerca de trinta partidos devidamente registrados
no TSE, e mais uma meia-dúzia ainda "provisórios". Nas eleições
de 1964, para a Câmara Federal, dezenove partidos obtiveram mandato.
O maior partido alcançou 20,9% da representatividade, oito mais
de 5%, dos lugares. Está aí, de novo a "pequenização"
(todos os partidos são pequenos...). A indisciplina campeia, a mudança
de partido fica ao sabor das conveniências do parlamentar, e quantos
em dois anos já mudaram várias vezes de partido?... Será
que, em face de tal situação, vale a pena falar de partidos?
Essa situação
não contribui para o aprimoramento da democracia, porque reduz o
processo eleitoral a uma disputa entre indivíduos. De fato, que
significa, para o candidato e para o eleitor, a vinculação
sempre precária, "provisória" a um partido cujo programa
ninguém conhece e cujos eleitos não obedecerão? E
dificulta enormemente o processo governamental. Cumpre não esquecer
que as deliberações parlamentares, necessárias para
a aprovação de leis, de emendas constitucionais, etc., exigem
maioria (e não raro maioria qualificada). Ora, a dificuldade de
"costurar" uma maioria é imensa, quando por não importarem
os partidos, é preciso arregimentar, voto a voto, o apoio de parlamentares.
8. Impõe-se,
por tudo isso, uma reformulação das normas constitucionais
referentes ao sistema partidário. O Tribunal Superior Eleitoral,
então sob a presidência esclarecida do Ministro Carlos Mário
Veloso, ousou enfrentar o problema. Promoveu, para tanto, a constituição
de uma Comissão de que fui o relator a qual, ao final, formulou
as seguintes sugestões:
1. O partido
deve ter um núcleo programático mínimo;
2. Só
devem ser admitidos nas Casas legislativas partidos de caráter nacional;
3. Deve ser
evitada a multiplicação de partidos;
4. Deve ser
exigido um mínimo de representatividade para que o partido tenha
direito a integrar as Casas políticas, mínimo esse estimado
em 5% do eleitorado votante;
5. Em conseqüência
disto, deve perder a condição de partido aquele que não
lograr esse mínimo de votos, ou não demonstrar caráter
nacional;
6. Na criação
de partidos também deve ser exigido um apoiamento mínimo,
bem como o caráter nacional;
7. A criação
de partidos deverá ser controlada pelo TSE;
8. A coesão
partidária deve ser garantida, punindo-se a indisciplina partidária
grave com a perda do mandato, em processo perante a Justiça Eleitoral;
9. O abandono
do partido pelo qual se elegeu, deve ser causa de perda automática
do mandato, relativamente aos membros do Legislativo;
10. O partido
deve ter uma organização estável, aberta, com dirigentes
democraticamente escolhidos;
11. Deve observar
a transparência no seu financiamento e nas suas contas; e
12. Não
terá acesso aos programas gratuitos de rádio e televisão
senão o partido com registro definitivo no TSE.
Tais propostas,
se adotadas, certamente corrigiriam, senão todos, pelo menos a maioria
dos males apontados.
"Os partidos
políticos são indispensáveis à democracia representativa,
à medida que organizam as correntes políticas para a competição
eleitoral e coordenam a participação dessas correntes no
processo governamental."
TRIBUNAL
SUPERIOR ELEITORAL: enquanto a reforma partidária não
vem, reforma-se o prédio.
"Entretanto,
a precipitação do processo sucessório no seio das
Forças Armadas trouxe, ainda em 1965, o Ato Institucional nº
2. Este intrometeu-se na questão partidária e extinguiu de
chofre todos os partidos, determinando que outros se organizassem com base
na Lei Orgânica recém-promulgada."
MANOEL GONÇALVES
FERREIRA FILHO é Professor Titular de Direito Constitucional
da Faculdade de Direito da USP; Doutor em Direito pela Universidade de
Paris; Professor Visitante da Universidade de Aix-en-Provence (França),
membro da Comissão Executiva da Associação Internacional
de Direito Constitucional e Presidente do Instituto Pimenta Bueno Associação
Brasileira dos Constitucionalistas.
Fonte: http://campus.fortunecity.com/clemson/493/jus/m03-015.htm