Qual
Reforma Política?
Os gregos inventaram a democracia,
os ingleses instituíram a representação parlamentar,
os americanos criaram o presidencialismo e o sistema de checks and balances
e os alemães inovaram com o sistema proporcional personalizado.
Nós, brasileiros, adeptos que somos do ecletismo, resolvemos misturar
tudo isto numa verdadeira salada institucional. Como a versão tupiniquim
do modelo alemão prescreve que o cálculo proporcional para
a distribuição das cadeiras aos partidos seja feito por unidade
federativa, deixando intocadas as distorções na representação
advindas da atual distribuição de cadeiras por estados, poderemos,
num futuro próximo, estar proclamando a seguinte máxima:
cada cabeça, dois votos e o voto de cada um não tem o mesmo
valor que o voto de qualquer outro.
Se é verdade que o sistema proporcional,
tal como praticado no Brasil, está repleto de distorções
que violam a vontade do eleitor e desrespeitam o princípio de igualdade
política, interessa indagar se a adoção do sistema
distrital misto contribuirá para aperfeiçoar ou, pelo contrário,
para deteriorar a ordem democrática. A resposta a esta questão
deverá ser buscada não apenas nas virtudes ou nos defeitos
do arranjo institucional proposto, mas na sua compatibilidade com as condições
vigentes na sociedade brasileira e com as demais instituições
políticas, especialmente as relações entre os poderes,
o sistema partidário e o modelo de organização legislativa
praticado na Câmara dos Deputados. Em outras palavras, trata-se de
perguntar sobre as políticas e os resultados esperados de um sistema
político operando concomitantemente com voto distrital misto, presidencialismo
e pluripartidarismo, ademais trata-se de considerar as regras que informam
a organização legislativa e que são responsáveis,
como ensina Krehbiel, pela alocação de recursos e pela atribuição
de direitos parlamentares a legisladores individuais ou a grupos de legisladores.
Segundo Dahl, não há
uma democracia, mas várias. A partir de um piso mínimo de
poliarquização, garantido pelo respeito aos direitos primários
de todos os cidadãos, descortina-se um campo fértil de inventividade
institucional, desde que seja assegurada a adequação do desenho
institucional proposto às condições socioeconômicas
e culturais vigentes em cada sociedade. Instituições não
existem em um vazio sociológico e seu desempenho depende do contexto
no qual elas operam. Quando se trata de reformar as instituições
políticas brasileiras, creio ser prudente atentar para esta questão.
A reforma terá tanto maiores chances de ser bem sucedida quanto
mais ela for precedida de um diagnóstico acurado das condições
sociais nas quais as novas instituições deverão inserir-se.
O movimento ora em curso está
inserido no ímpeto reformista que tem como principal objeto a Constituição
brasileira de 1988. E, no que se refere às instituições
políticas, as propostas mudancistas sempre vêm fundamentadas
na busca de conciliação entre o princípio da representação
democrática e aquele referido à eficiência governativa
, a qual pressuporia, como assinala Fábio Wanderley Reis, a necessidade
de "produção de maiorias sólidas e máquinas
decisórias coesas e hábeis".
O primeiro ponto a ser explorado neste
texto refere-se exatamente ao desafio contido em toda e qualquer ordem
democrática: ser capaz de construir o consenso e de processar institucionalmente
o conflito e a diferença. A legitimidade e a estabilidade democrática
estão, ambas, relacionadas à capacidade institucional do
sistema político de produzir consenso sem anular a possibilidade
da expressão política do dissenso. Tal desafio pode, em certas
condições, significar ter que governar com coalizões
de minorias ao invés de sucumbir à tentação
de formar maiorias artificiais. Não necessariamente um governo estável
e eficiente precisa estar assentado em maiorias sólidas. Nas sociedades
heterogêneas, atravessadas por clivagens profundas, a governança
está relacionada à possibilidade de formação
de coalizões partidárias amplas. Não é preciso
abrir mão da representatividade em nome da eficácia governativa
e da estabilidade; pelo contrário, como afirma Lijphart, há
contextos em que a heterogeneidade da sociedade informa a necessidade de
adoção do modelo consensual, para permitir a expressão
política das minorias portadoras de identidades inegociáveis
e de preferências intensas.
Portanto, antes de resolver experimentar
este ou aquele formato institucional, seria de bom alvitre perguntar sobre
sua adequação às condições vigentes
na sociedade brasileira e, do ponto de vista prospectivo, indagar sobre
sua capacidade de agir positivamente na direção da correção
do sistema de desigualdades cumulativas prevalecente no país.
Trata-se, afinal, de decidir como o
princípio de autoridade democrática será exercido:
dependendo dos procedimentos adotados para formar o corpo legislativo,
o poder de agenda dos diferentes atores e as chances de controle público
sobre os representantes podem aumentar ou diminuir. Como é sabido,
as instituições afetam os resultados da competição
política. As relações entre demandas sociais, políticas
e resultados que informam os graus de responsiveness e accountability da
ordem política são bastante sensíveis ao método
de constituição do órgão decisório.
Em segundo lugar, a adoção
do sistema distrital misto ou, na versão de alguns, do proporcional
personalizado implica constituir um único e mesmo corpo representativo
a partir de dois diferentes princípios. Ora, considerando-se que
representação não é a execução
de um mandato imperativo e predeterminado, mas, sim, um processo que envolve
deliberação política, vale indagar sobre os comportamentos
presumíveis e sobre as interações esperadas entre
representantes constituídos a partir de procedimentos e de valores
distintos.
É de se esperar que a convivência
dos representantes "distritais" com os representantes "proporcionais"(partidários)
produza dois diferentes padrões de ação em um mesmo
corpo deliberativo, ponto já abordado por Jairo Nicolau na edição
de abril deste boletim. Os representantes distritais devem prestar contas
a seus eleitores, os quais têm nome e endereço bem definidos,
e certamente estarão fazendo demandas por políticas distributivistas,
com benefícios concentrados e custos dispersos, o que implica ênfase
na representação territorial e pouco espaço para considerações
de caráter mais universalista e atinentes a interesses mais gerais.
Já os representantes proporcionais,
eleitos por listas partidárias fechadas, certamente estarão
menos vinculados a constituencies específicas, portadoras de reivindicações
particularistas. Se o problema do controle público de suas ações
parece, à primeira vista, colocar-se de forma mais aguda, dada a
dispersão territorial de seu eleitorado, esses representantes, no
entanto, certamente estarão mais comprometidos com o processamento
de questões de interesse mais amplo, relacionadas a problemas e
temas de abrangência e repercussão nacionais. E, conseqüentemente,
o eventual vínculo tematicamente orientado com os seus eleitores
poderá oferecer mecanismos de accountability distintos daqueles
em operação no plano da proximidade geográfica.
Vale, então, perguntar se as
regras e os procedimentos que informam as relações - e a
competição - entre os deputados favorecerão mais este
ou aquele padrão de ação. Se o modelo de organização
legislativa prevalecente for o distributivista, pode-se apostar na predominância
dos representantes distritais, na ênfase nas práticas de logrolling
e na busca de ganhos de troca.
O caráter distrital do voto
somado ao modelo distributivista redundará, certamente, em uma produção
legislativa majoritariamente constituída por políticas alocativas
com benefícios concentrados e custos dispersos. Inversamente, se
o modelo prevalecente for o informacional ou o partidário, as tentativas
de disseminação de práticas distributivistas poderão
ser obstaculizadas pelas regras que dão maiores incentivos seja
à produção de ganhos de especialização,
seja à produção de políticas partidariamente
orientadas. Exceto naquelas circunstâncias em que a estratégia
adotada pelos partidos seja exatamente a de aumentar as chances de vitória
das agremiações nos distritos, quando os objetivos buscados
via modelo partidário poderão coincidir com aqueles perseguidos
através da adoção do modelo distributivista.
O terceiro e último ponto que
gostaria de abordar neste artigo refere-se às prováveis repercussões
da adoção do distrital misto nas estratégias de campanha
política de partidos e candidatos à Câmara dos Deputados,
tendo em vista o objetivo de maximização de seus resultados
eleitorais. O sistema proposto prevê que cada eleitor terá
dois votos: um para a eleição do representante de seu distrito
e o outro, proporcional, para a definição do número
de cadeiras a serem ocupadas por cada partido na Casa Legislativa. Ademais,
o número de distritos a serem organizados no país corresponde
à metade do número de cadeiras na Câmara dos Deputados.
Assim, a suposição é a de que metade das vagas serão
ocupadas por candidatos eleitos nos distritos e a outra metade será
preenchida por candidatos extraídos das listas partidárias,
na votação proporcional.
Está contemplada, no entanto,
a possibilidade de partidos conquistarem um número suplementar de
cadeiras, caso eles vençam em número de distritos superior
ao número de cadeiras que obtiveram segundo o cálculo proporcional.
Se verificada esta hipótese, podem-se esperar três importantes
conseqüências. A primeira, e mais óbvia, é a distorção
da proporcionalidade na Câmara.
A segunda refere-se ao comportamento
do candidato: a ser mantida esta regra, parece que a estratégia
de concentrar sua campanha no distrito é a mais racional. Ao invés
de ficar disputando um lugar na lista partidária que, mesmo se bem
posicionado, pode redundar em fracasso eleitoral - basta que todas as vagas
a que o partido se habilite sejam preenchidas pelo voto distrital - o candidato
tenderá a apostar suas fichas na disputa distrital já que,
independentemente do quociente obtido pelo partido via voto proporcional,
basta ganhar no distrito para ter sua cadeira assegurada.
A última conseqüência
refere-se ao comportamento partidário. Carlos Ranulfo, no CONJUNTURA
POLÍTICA de abril, chamou a atenção para a possibilidade,
ou mesmo a probabilidade, do segundo voto (o proporcional) ser contaminado
pelo primeiro (o distrital). Caso esta hipótese seja verificada,
parece correto esperar dos partidos comportamento semelhante ao dos candidatos,
seja porque as cadeiras conquistadas via voto distrital estarão
asseguradas independentemente do cálculo proporcional e às
custas da proporcionalidade, seja porque o voto distrital tenderá
a orientar o voto proporcional. No longo prazo, se confirmada como mais
bem sucedida a estratégica de investir no distrito, pode-se esperar
o aumento da ênfase na pessoa do candidato, o enfraquecimento dos
partidos e a paroquialização da política. Pode-se
esperar, ademais, o reforço das práticas distributivistas
na Câmara dos Deputados. E, sobretudo, o abandono, na prática,
do que o sistema eleitoral tinha de proporcional.
Para finalizar, resta dizer que também
a mim instiga o terceiro mistério apontado por Jairo Nicolau no
artigo já mencionado: por que a discussão acadêmica
sobre as imperfeições do sistema proporcional brasileiro
e as reiteradas prescrições de seu aperfeiçoamento
pouco, ou nada, repercutem na agenda política? Talvez o contexto
de discussão da reforma política seja o mais apropriado para
recolocar em pauta este tema. Afinal, se se trata de escolher instituições,
é bom ter distintas alternativas disponíveis e avaliar suas
possíveis conseqüências, consideradas as condições
nas quais elas deverão operar.
* Professora do Departamento
de Ciência Política da UFMG
Fonte: Conjuntura Política:http://cevep.ufmg.br/bacp/index.html
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