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Fábio Túlio Correia Ribeiro*
ÍNDICE :
I – Apresentação
II - A Participação Popular na Grécia
Antiga
III - As expressões Positiva e Negativa da Liberdade
IV - As Dimensões da Democracia
V - O Voto e a sua Evolução no Constitucionalismo Brasileiro
VI - O Voto no Direito Comparado
VII - A Natureza do Voto
VIII - O Voto Obrigatório e o Mito da Legitimidade
IX - Os Inconvenientes de Ordem Pragmática do Voto Obrigatório
X – Conclusão
XI – Bibliografia
I -
APRESENTAÇÃO:
A democracia é um
valor que se vem afirmando dia a dia, assim o demonstra a História. O seu
conceito, no entanto, sofreu e anda a sofrer as mais diversas transformações,
ora movidas pelo passar dos tempos, ora pela visão do povo que a pratica.
Como forma de
governo, a democracia - ainda sob os auspícios da teoria aristotélica -
pressupõe o governo de muitos. Nesse diapasão, opõe-se à monarquia, governo de
um, e à aristocracia, governo de poucos. Seria, portanto, a melhor das formas
de governo, por contemplar os interesses do maior número possível de cidadãos
da pólis.
Na antigüidade clássica, a
participação democrática dava-se sem a interseção de interlocutores que
tivessem a incumbência de veicular outros interesses que não os seus próprios:
a dita democracia direta. Nos dias correntes, todavia - dadas as dimensões
geográficas e demográficas das cidades e graças, também, à complexidade dos
assuntos a gerenciar, aliada a um progressivo redimensionamento axiológico da
vida privada e à superação do modelo de produção escravocrata e servil - nos
dias correntes a regra geral é a democracia indireta, procedimento através do
qual o cidadão escolhe representantes, através do voto, para administrar a
coisa pública.
A democracia representativa - ou
indireta - não é incompatível com a democracia direta. Por essa, se complementa
aquela. Países há, como a Suíça, por exemplo, que praticam fortemente a
democracia direta em seus Cantões. No Brasil mesmo a ordem jurídico-constitucional
admite a participação direta do cidadão na formação da vontade estatal, art.
114, inciso I, in verbis:
“A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e
pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e nos termos da lei,
mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular.” |
O regime será tanto mais democrático
quanto maior participação direta do cidadão possa existir. Ou, em outros
termos, o poder estatal será exercido tanto mais democraticamente quanto mais
intensa seja a atuação direta do cidadão na gerência do Estado.
O voto é o instrumento por excelência da democracia representativa. Para uns,
um direito; para outros, um dever; para muitos, ao mesmo tempo que um direito
de participação política, um dever cívico. Ele já foi restrito, censitário, já
contemplou discriminações dos mais diversos matizes: de sexo, posição social,
grau de instrução, etnia etc. Nos Estados Unidos da América, verbi gratia, o
direito de voto só foi reconhecido às diversas categorias étnicas em 1870
(Emenda XV); às mulheres, em 1920 (Emenda XIX). Apenas em 1964, com a Emenda
XXIV, proibiu-se a estipulação de pagamento de imposto eleitoral ou qualquer
outro imposto como pressuposto do direito de voto, e em 1971 (Emenda XXVI) proibiu-se
a discriminação aos menores de dezoito anos. A redação da referida última
emenda é emblemática, verbo ad verbum:
“O
direito de voto dos cidadãos dos Estados Unidos, de dezoito anos de idade ou
mais, não será negado ou cerceado pelos Estados Unidos ou por qualquer dos
Estados, por motivo de idade.” |
As emendas à Constituição americana
bem historiam a concepção do direito de voto, que sempre caminhou numa direção
de universalização. É princípio lógico: se a democracia caracteriza-se pelo
governo da maioria, é preciso que o maior número de pessoas da comunidade seja
chamada a deliberar os destinos do Estado, o que só se perfaz mediante, entre
outras garantias, a universalização do voto, que deve ser igual para todos,
secreto e periódico. Igual para todos como decorrência do respeito ao princípio
da isonomia, que veda as discriminações não calcadas em razão suficiente, não
se tendo em tal conta aquelas firmadas com base no sexo, no grau de instrução,
no patrimônio, na raça, no credo, na idade. Secreto, como penhor de
espontaneidade na manifestação do eleitor, com vistas a evitarem-se as pressões
da força. Periódico, porque apenas o exercício da soberania é delegado com o
voto, não ela em si mesma. Desse modo, o cidadão deve estar sempre - a prazo razoável
- voltando a manifestar-se e, com isso, renovando o poder.
Algumas perguntas se impõem a essa quadra: além de universal, igual, secreto e
periódico, o voto também deve ser obrigatório? O voto obrigatório é compatível
com princípio do governo democrático? A obrigatoriedade do voto traz alguma
contribuição para o aperfeiçoamento da democracia?
São questões sumamente polêmicas.
No Brasil, particularmente, as duas
correntes que se formaram em torno do tema desfiam os mais variegados
argumentos, de ordem pragmática e principiológica, em defesa ora do voto
obrigatório, ora do voto facultativo.
Os corifeus do voto obrigatório
sustentam que o reconhecimento legal do direito de abstenção traz como
resultado a menor representatividade do eleito, o desestímulo ao exercício da
cidadania, fazendo com que o cidadão se alheie dos assuntos relativos à pública
administração, o esvaziamento do processo eleitoral, tornando-o mais vulnerável
às ingerências de pequenos grupos mais politizados e com maior poder de interferência,
a preponderância dos interesses das minorias organizadas em detrimento dos
interesses da imensa maioria, desorganizada. Afirma-se - com um certo tom
escatológico - que candidatos a cargos majoritários, como o são os do executivo
(Presidente da República, Governadores de Estado e Prefeitos Municipais),
poderiam ser eleitos com uma parcela ínfima dos eleitores inscritos, a terça ou
quarta parte deles. Nessa perspectiva, o fim do voto obrigatório representaria
um retrocesso das instituições políticas, uma vez que a sociedade estaria
abrindo mão de conquistas alcançadas a duras penas.
Do outro lado e em franca
divergência, os adeptos da facultatividade do voto opõem o argumento da
consciência: a participação política, pelo voto, dá-se por imposição de consciência,
jamais por obrigação. A obrigação, aí, seria incompatível. Vota-se por
espontânea e soberana decisão de votar, sem qualquer interferência ou pressão,
porque outro qualquer motivo implica ofensa à liberdade individual e à livre
disposição da razão. Ademais, diz-se amiúde, o direito de abstenção reduziria
significativamente ou até eliminaria os votos brancos e nulos, conhecidos pela
alcunha genérica de voto de protesto. (Pateticamente famoso é o caso, no Estado
do Rio de Janeiro, nas eleições de 1982, em que dezenas de milhares de
eleitores compareceram às urnas e sufragaram o nome do Macaco Tião, numa
expressiva votação que lhe teria - se válida fosse - garantido uma cadeira no
parlamento). A legitimidade dos eleitos seria tanto maior nesse sistema, haja
vista que legitimidade é um conceito não apenas quantitativo, mas qualitativo
igualmente. Se a participação democrática do indivíduo é algo tão vital para os
destinos da nação, que se a deixe à mercê dos que votam responsavelmente, após
detida e refletida ponderação das opções. Disso resultaria uma melhor qualidade
do processo eleitoral, que não teria espaço para o voto dos irresponsáveis ou
para o voto de deboche, uma vez que dificilmente pessoas se disporiam a
comparecer às urnas com esse intuito.
É preciso superar os
sofismas.
Penso que muito mais do que um
problema pragmático, essa é uma discussão de princípio. A resposta à indagação
(o voto deve ou não ser obrigatório?) passa pela concepção que se tenha do
Estado e de sua inserção na vida do cidadão e, por outra, perpassa também pela
idéia que se tenha da participação que deva assumir o cidadão na modelagem das
feições estatais.
Ponha-se em novos termos a questão:
o cidadão deve ser obrigado a participar dos embates eleitorais, ou deve ser incentivado
a isso, através de uma prática democrática educativa, tida, no seio da
sociedade, por valor impostergável? É equivocada a tendência de responder a
essa pergunta com uma sempre retomada postura de relativização dos conceitos.
Numa sociedade democrática é claro que pagar imposto deve ser uma obrigação;
mas não parece tão óbvio que, numa sociedade democrática, o voto, tal qual o
tributo, deva ser uma contingência inarredável. Essa, parece-me, é uma visão
reducionista. A participação política não se exaure no voto, embora seja ele de
alta relevância.
No caso brasileiro, a preferência do
legislador constituinte sempre foi pelo voto compulsório. Interessante notar
que tanto as Cartas Republicanas Democráticas de 1934 (art. 109), 1946 (art.
133), 1988 (art. 14, § 1º), quanto as Constituições oriundas dos regimes de
exceção (1937, 1967 e Emenda Constitucional n. 1, de 1969), seguiram a mesma
linha e referendaram a obrigatoriedade do voto.
Não se deve descurar o fato - de
resto evidente - que os períodos de exceção por que passou a sociedade
brasileira constituíram-se em fator de empeço para a benéfica atuação dos
reflexos pedagógicos da luta política, forjada nos debates públicos, no livre
câmbio das idéias, na pluralidade de ideologias, no voto. Se essa é uma
inferência necessária, não se pode, no mesmo diapasão, olvidar que o voto
obrigatório - uma constante na nossa ordem jurídica, como se viu - jamais foi
veículo de estabilidade das instituições democráticas, da mantença de um
cenário político desanuviado, nem, tampouco, pode ser apontado como viga de
sustentação dos direitos políticos, dos direitos civis e da institucionalização
dos direitos sociais.
Resta, portanto, adentrando a teoria
democrática do exercício do poder, perquirir, ante os seus postulados, se se
justifica ou não a permanência da obrigatoriedade do voto.
II - A PARTICIPAÇÃO
POPULAR NA GRÉCIA ANTIGA:
A democracia grega
sempre funcionou como paradigma e “menina dos olhos” dos estudiosos do Estado e
de suas formas de governo, filiados à visão democrática. Não são poucos os
autores, de todos os tempos, que decantaram as excelências da sociedade
clássica, com os seus princípios democráticos fortemente arraigados.
Para os gregos - no
que estavam em desacordo com Sócrates - a natureza da comunidade humana, ou
pólis, não seria outra senão a de cidade livre, onde os cidadãos eram senhores
dos destinos do Estado. Para aquele filósofo, entretanto, a comunidade humana
não passava de um rebanho, que precisava ser conduzido rumo ao seu destino. Se a
comunidade humana é um rebanho, necessita de um pastor; se uma pólis, deve ser
governada pelos seus próprios cidadãos. A diferença de perspectiva é funda.
Nessa linha, enquanto a concepção
grega que deixou raízes emprestava dignidade ao homem comum, a de Sócrates o
inferiorizava.
Não foi sem razão que os gregos
inventaram quatro palavras-chave para a democracia. A primeira delas, isotes -
para designar a igualdade. A segunda, isonomia - que é a isonomia mesma, ou
seja, a igualdade de todos perante as leis do país, não se admitindo
discriminações não escoradas em razão suficiente. As terceira e quarta,
respectivamente, isegoria e isologia - ambas significantes da livre expressão
do pensamento.
Precisamente por causa da isegoria e
da isologia todo cidadão grego tinha o direito de comparecer à Ágora e ali
manifestar as suas idéias e posições.
Todo cidadão, assim, tinha o direito de participar da administração da coisa
pública. A bem ver, mais que um direito, isso era considerado um dever moral,
tanto que aquele que se recusasse a participar da vida pública, para Péricles e
seus concidadãos, era considerado um inútil.
Lembre-se, porém, que a antigüidade
clássica grega era uma sociedade escravocrata. A participação admitida era
apenas a dos cidadãos, assim entendida pequena parcela da população que vivia
ancorada no trabalho escravo. E mais: é fato histórico indiscutível que a
democracia grega era meramente interna, tanto que se nutria do imperialismo em
suas relações externas, como bem aponta Arnaldo Vasconcelos (In Direito,
Humanismo e Democracia, Malheiros Editores, S. Paulo, 1998).
Se é verdade que, para os gregos,
participar dos debates da assembléia era um dever moral - tanto que aquele que
dela se abstivesse era tido na conta de inútil - não se tem notícia de que haja
sido institucionalizada a obrigação de participar. Nem os historiadores nem os
cientistas políticos mencionam a possibilidade de punição para o cidadão que se
abstivesse dos debates.
Glotz, citado por Bobbio (In O Futuro da Democracia - Uma defesa das regras do
jogo, Paz e Terra, 6ª edição, 1997), dá-nos conta de que no lugar estabelecido
para as assembléias atenienses raramente viam-se mais de duas ou três mil
pessoas, ainda quando o ambiente comportasse vinte e cinco mil pessoas em pé e
dezoito mil pessoas sentadas. Ou seja, aproximadamente 4,65% dos cidadãos que
poderiam comparecer à assembléia (e nem todos eram cidadãos, mas a minoria)
faziam a vontade do Estado na democracia mais autêntica do mundo clássico!
Ir à assembléia, debater,
argumentar, era exclusividade do cidadão ateniense (homem livre) e, portanto,
uma clara afirmação de status. Através desse comportamento - a integração na
vida da cidade - o cidadão se diferenciava do servo, de todos aqueles situados
em patamares inferiores da hierarquia social.
Constate-se pelas palavras do já citado Arnaldo Vasconcelos:
“O adestramento do ateniense na arte de argumentar era
necessidade imposta pelo exercício das liberdades públicas que se definia essencialmente
por sua integração na vida da pólis. Ser cidadão era cuidar dos negócios da
cidade, participando dos debates públicos nas diversas assembléias e
conselhos e nas sessões dos muitos tribunais, discutindo, persuadindo e
decidindo. Se a ‘a linguagem se tornara... a mais poderosa das armas nas
grandes lutas políticas’ (Cassirer, A, 182), foi exatamente porque a
democracia quase direta a transformara no mais eficiente instrumento de
formação da vontade popular”. (Op. cit., p. 64/65). |
Vontade popular, aí entendida, por
certo, de forma restritiva, uma vez que a vontade popular se confundia com a do
cidadão (homem livre), enquanto grande parcela da população era composta de
escravos. Também as mulheres e os estrangeiros eram excluídos da política, com
o que se revelam igualmente o traço patriarcal e xenófobo da sociedade grega de
antanho.
Para os gregos, em última análise, a participação política do cidadão era de
fato muito importante, mas não compulsória. O cidadão ele mesmo é que queria
afirmar-se como tal, distinguindo-se, assim, dos demais e inferiores segmentos
da comunidade.
E, por outro lado, é até facilmente
explicável a atribuição do epíteto de inútil àquele que se abstivesse de
participar da administração da coisa pública: como os cidadãos não precisavam
trabalhar, já que eram sustentados pelo trabalho escravo, se eles igualmente
não se dispusessem a gerir a coisa pública, nada mais lhes restava a fazer,
senão o ócio.
Essa não é - dispensam-se
comentários - a realidade dos dias que correm.
III - AS EXPRESSÕES POSITIVA E
NEGATIVA DA LIBERDADE:
A liberdade não tem um conceito unívoco.
Entre as várias acepções da liberdade, existe aquela, predominante na tradição
liberal, como informa Norberto Bobbio (In Liberalismo e Democracia, Editora Brasiliense,
São Paulo, 1998), para a qual os termos “liberdade” e “poder” são rigorosamente
contraditórios e antitéticos, realidades incompatíveis e inconciliáveis. O
poder teria a natural propensão a invadir os espaços da liberdade, ao passo que
essa - no afã de expandir-se - teria, por seu turno, a vocação de desafiar o
poder. Nesse sentido, nas relações interpessoais, à medida que cresce o poder
de uma pessoa, diminui a liberdade negativa da outra, e, à proporção que
aumenta a liberdade negativa da segunda, decresce, quanto a ela, o poder da
primeira.
Para a tradição liberal, portanto, a
liberdade tem um caráter negativo, no sentido de que consiste ela na ausência
de determinação. O cidadão tem o natural direito de autodeterminar-se em tudo
aquilo que convenha aos seus fins enquanto pessoa. Segundo essa visão, a
liberdade é em relação ao Estado. Curiosa a passagem citada por Bobbio,
lembrando Thomas Paine:
“A sociedade é produzida por nossas carências e o governo por
nossa perversidade; a primeira promove a nossa felicidade positivamente
mantendo juntos os nossos afetos, o segundo negativamente mantendo sob freios
os nossos vícios. Uma encoraja as relações, o outro cria as distinções. A
primeira protege, o segundo pune. A sociedade é sob qualquer condição uma
bênção; o governo, inclusive na sua melhor forma, nada mais é do que um mal
necessário, e na sua pior forma é insuportável”. (Op. cit. p. 21, destaques
no original). |
O trecho transcrito - que denota uma
maniqueísta perspectiva do problema da liberdade - bem poderia ser utilizado
como carta de princípio dos liberais.
A liberdade, todavia, não o é apenas contra o poder. Ela também pode ser
vislumbrada como liberdade de participar do poder. É precisamente a liberdade em
sua acepção positiva, para a qual fecharam os olhos os arautos do liberalismo
político.
A liberdade - enquanto componente da
democracia - não pode ser pensada de forma simplista, unicamente como a
limitação das ingerências do Estado na vida do homem.
Evitem-se os excessos dos liberais e
dos utilitaristas. A liberdade - uma das dimensões, mas não a única, da
democracia - é tanto a garantia de o cidadão não ser molestado em seu espaço
privado, como o é a de integrar a vontade do Estado com a própria. Só assim o
cidadão será livre.
A dificuldade para responder à
indagação inicial - se o voto obrigatório se compadece com o princípio
democrático - perdura. Distinguir as esferas positiva e negativa da liberdade,
se por um lado me pareceu necessário, não é suficiente. Porque o grande
imbróglio é identificar os limites da esfera privada do cidadão. Sem isso,
patina-se no vazio.
Afirmar que o voto obrigatório é
antidemocrático porque viola a liberdade negativa - como se toda imposição do
Estado implicasse extravasamento de poder - é por demais insatisfatório. Seria
antidemocrática a prática do Estado que constrangesse o cidadão, sob ameaça de
sanção, a matricular os seus filhos menores em escola de ensino básico?
Evidentemente que não.
Aquilo que concorre para a
sobrevivência mesma do Estado é sempre colocado imperativamente, sem margem
para opção. O imposto, de que já falei, é exemplo recorrente. Não se vai dizer,
com possibilidade de êxito, que a cobrança compulsória de tributos viola a
liberdade do cidadão. Seria absurdo.
A princípio, a compulsoriedade do
voto, se entendido esse como primordial à sobrevivência da organização
política, seria plenamente defensável. Do tema, sem arriscar um posicionamento
pessoal, tratou Hans Kelsen, ipsis litteris:
“O fato de o sufrágio ser uma função pública por meio da qual se
criam órgãos essenciais do Estado não é incompatível com a sua organização
como direito no sentido técnico do termo; no entanto, pode surgir a questão
de saber se é apropriado deixar o exercício dessa função vital ao
livre-arbítrio do cidadão, que é a questão de saber se o sufrágio é um
direito. Se a função eleitoral for considerada como sendo uma condição
essencial na vida do Estado, é apenas coerente que se faça do sufrágio um
dever do cidadão, um dever jurídico, e não simplesmente moral, e isso
significa instituir uma sanção a ser executada contra o cidadão que não
exerce a função de votar tal como prescrita pela lei. (In Teoria do Direito e
do Estado, Martins Fontes, São Paulo, 1992, p. 286/287). |
Combater o voto compulsório sob o
exclusivo pálio argumentativo da ofensa à liberdade é procedimento improfícuo,
que não conduz a resultados satisfatórios.
Resta indagar, no entanto, se a essencialidade da função eleitoral, de que fala
Kelsen, pode ser atribuída ao voto em si, quer dizer, ao ato de o cidadão
comparecer à sessão eleitoral e depositar o seu voto, ou se, por outra, mais
importante para a vida do Estado, e portanto essencial, é a participação
consciente do cidadão, forjada numa educação cívica democrática.
A mim me parece que a teoria da
representação não se compadece com a manifestação do cidadão desprovida de
intencionalidade, de volitividade.
Se por representante deve-se
entender aquele que atua em nome do representado, na salvaguarda dos interesses
gerais da coletividade, não há como admitir uma representação que fuja à íntima
e soberana discrição do representado, inclusive quanto à sua oportunidade. Não
estou discutindo aqui se o mandato deve ser imperativo ou não. Não é esse o
ponto. A doutrina prevalecente enxerga no representante não um delegado, mas um
fiduciário.
Argumentar que os eleitos também
representam os que se abstêm, razão pela qual a objeção improcederia, não me
impressiona. Ora, o alheamento também pode ser considerado uma atitude
política. A omissão, de igual forma. Pode-se ou não concordar com eles, mas o
que caracteriza a democracia não é precisamente a pluralidade, a convivência
dos contrários? A tolerância não é uma viga mestra da teoria democrática?
É saber: será que a soberania
popular, idéia chave no conceito democrático, não se reflete na madura e
desejada participação omissiva no ato de votar?
Se a tolerância é conceito ínsito ao
de democracia, não se admite a intolerância senão com o intolerante. Logo,
deve-se tolerar o comportamento do cidadão que, numa postura política
consciente, resolva-se por não participar do processo eletivo.
E mais: o que se abstém de votar
concorre para que o resultado da votação seja aquele verificado e não outro. É,
sem dúvida alguma, uma opção. Negativa. Mas não necessariamente niilista. Às
vezes, densamente ideológica.
A representação, seguindo tais
escólios, pode dar-se pela opção negativa diante do processo eleitoral, sem que
com isso reste maculada - por ofensa à lógica - a sua construção teórica. Tal
já não acontece quando há prévia e compulsória determinação de opção positiva,
em que o eleitor está constrangido a indicar representante, ainda quando não o
deseje.
Se se afirmar, todavia, que não
existe a opção positiva, considerando que o cidadão não está, a bem da verdade,
na iminência de escolher entre os vários candidatos, então só se pode pensar
que o voto obrigatório é uma falácia, porque nunca existiu. O que sempre houve
foi o comparecimento compulsório. E até nem isso.
Nessa última hipótese, então, se se
entender que o voto é essencial à sobrevivência do Estado (e, portanto, de
exercício compulsório, porque, diga-se mais, dele depende a superestrutura
estatal), ter-se-á que concluir, em necessário paralelismo, que não seria
possível e a lei deveria instituir meios de proibir e evitar os votos brancos e
nulos, porque atentatórios à permanência do Estado.
Não me parece haja meios-termos: ou
o voto é essencial, por si, à sobrevivência do Estado, e, pois, de exercício
compulsório, ou, por outra, em si não é essencial, sendo essencial ao regime
democrático apenas a garantia do exercício do voto para todo aquele que o
queira exercer livre e conscientemente. Se se defende a primeira hipótese,
fica-se em dificuldade de sustentar que o ordenamento admita e possibilite os
votos branco e nulo.
Se se abraça a segunda corrente, explica-se com facilidade o fenômeno.
Há que fazer uma mais ponderação.
Não cabe falar em essencialidade do voto para a sobrevivência do Estado porque
sempre, em todas as épocas, houve e há, ainda hoje, Estados onde não prevalece
a soberania popular. Só se pode falar em essencialidade do voto, quando muito,
para a manutenção dos Estados democráticos.
A questão é, pois, de liberdade e
também é de lógica.
IV - AS DIMENSÕES DA DEMOCRACIA:
A democracia não se define apenas pela participação popular na formação da
vontade do Estado. Ela - como sustenta Alain Touraine (O que é a Democracia,
Editora Vozes, Petrópolis, 2ª edição, 1996) - não prescinde de princípios que a
resguardem do arbítrio no exercício do poder.
Um governo amplamente apoiado pelas massas populares pode ser um governo
despótico e antidemocrático. A História dá-nos exemplos: a Alemanha nazista; a
Itália fascista. Não se pode negar que os governos que ali se instalaram,
resultado da má cicatrização das feridas do primeiro pós-guerra, contaram, a
princípio, com o amplo consentimento da população.
Nem por isso, no entanto, foram governos democráticos. Isso prova que a
participação popular no poder é essencial, mas não suficiente à causa
democrática.
A democracia é mais do que a simples
participação popular no poder.
Alain Touraine, no livro já citado,
aponta três dimensões para a democracia - a limitação do poder do Estado, a
cidadania e a representatividade dos dirigentes. A interdependência delas é que
constituiria, para o mencionado autor, a democracia. Arriscar-me-ia a apontar
uma quarta dimensão: a tolerância. Se para Touraine não há possibilidade de democracia
sem a limitação do poder do Estado, sem uma cidadania conquistada e reafirmada
a cada dia e sem a representatividade dos dirigentes, parece-me que descabe, de
igual sorte, cogitar de regime democrático quando não há espaço para a
tolerância, em todos os seus matizes, inclusive e sobretudo o
político-ideológico.
Numa época como a nossa - que Bobbio
definiu como de politeísmo de valores - o único templo aberto, segundo o mesmo
autor, deveria ser o Panteão, onde cada qual pudesse adorar o seu próprio deus.
Desde que - impõe apressar-se a completar - todos consentissem em jogar o jogo
democrático, tanto os que participam ativa como os que participam passivamente
do processo social (o eleitoral, inclusive) e até aqueles que dele se negam -
por motivos diversos que descabe considerar aqui - a participar.
A democracia não é o resultado da
adição dos princípios elencados por Touraine. Tampouco qualquer dos anteditos
princípios (limitação do poder do Estado, representatividade dos dirigentes
políticos e cidadania) deve sobrepujar-se ao outro, mas conviver em justa e
equilibrada harmonia.
Parece-me de bom alvitre superar,
por isso, o fetiche da cidadania, ou seja, aquela postura que o próprio
Touraine chamou de “obsessão da identidade comunitária” (Op. cit., p. 102). Não
se reduza o homem ao cidadão. Aquele é anterior a esse. Em simetria, não se
reduza a sociedade civil ao Estado, porque aquela é anterior e superior a esse.
Tanto é assim que se falou em limitação dos poderes do Estado. Em nome de quê?
Em nome dos direitos fundamentais.
Diz-se, amiúde, que o homem é ator
social. A metáfora não me agrada muito.
Se por ator se entender aquele que desempenha um papel previamente escrito,
cujas falas e atos lhe são ensinados prematuramente e de cujo script não pode
fugir, recuso-me a admitir a propriedade da expressão. O homem, mais do que
ator, é autor social, porque é ele quem deve escrever o seu próprio papel,
compor o seu próprio personagem, construir o seu próprio enredo. Cada homem e
cada povo é co-autor e ator de sua própria história.
O maior sustentáculo da democracia e
aquilo que lhe empresta mais viril fulgor, portanto, é a vontade do cidadão de
participar, responsavelmente, da coisa pública. Essa é a conclusão de Touraine,
com a qual estou em linha de convergência.
V - O VOTO E A SUA EVOLUÇÃO NO
CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO:
Como se disse em linhas transatas, a tradição constitucional brasileira sempre
foi pelo voto compulsório.
A Constituição do Império cuidava dos direitos políticos - sufrágio e elegibilidade
- em seus capítulos 90 a 97, nos quais estabelecia os requisitos indispensáveis
para o exercício do voto pelos cidadãos. Ei-los:
“Art. 90. As nomeações dos deputados e senadores para a Assembléia Geral,
e dos membros dos Conselhos Gerais das Províncias, serão feitas por eleições
indiretas, elegendo a massa dos cidadãos ativos em Assembléias Paroquiais os
eleitores de Província, e estes os Representantes da Nação, e Província. |
A transcrição bem demonstra que o
voto no Brasil imperial era censitário, estando muito longe do princípio da
universalização. Uma mais acurada análise mostrará que não só para o exercício
do voto era necessária a posse de bens, como isso era exigido também dos
candidatos aos cargos eletivos - condição de elegibilidade - conforme inciso I,
art. 95.
As restrições impostas pela Carta de 1824 ao direito de sufrágio eram tantas
que a massa eleitoral brasileira, à época, era extremamente pequena. Para
ter-se uma idéia, basta dizer que em 1881, quando a população brasileira era de
doze milhões de habitantes, o número de eleitores inscritos alcançava o
inexpressivo número de cento e cinqüenta mil pessoas, como informa o Professor
Octaciano Nogueira, citando Afonso Arinos (In A Constituição de 1824. Centro de
Ensino à Distância, UnB, Brasília, 1987). É dizer: 1,25% da população decidia
como viveria a inteira nação.
Não se deve, todavia, atribuir as
restrições impostas à universalidade do sufrágio a uma infeliz característica
da legislação brasileira. De efeito, o princípio da universalização do voto só
tomou corpo bem recentemente, já neste século XX.
Perceba-se que o constituinte da
Carta Imperial não separava nitidamente as questões temporais e espirituais,
tanto que negava capacidade eleitoral passiva aos que não professassem a
religião do Estado (inciso III, art. 95).
Diferentemente do que acontece hoje,
o número de parlamentares deputados à Câmara era matéria de lei ordinária,
portanto, infraconstitucional (art. 97 supra).
Advirta-se que já em sua primeira
Constituição o Brasil adotou - para não mais largar - o bicameralismo.
Proclamada a República, sobrevém a
primeira Constituição republicana, de 1881, que, por sua vez, tratava dos
direitos políticos no Título IV, “Dos Cidadãos Brasileiros”. Prescrevia o seu
artigo 70:
“São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem
na forma da lei. |
Um primeiro avanço que se verifica
na Carta de 1881 é o abaixamento da idade mínima para o exercício do voto,
postura essa que agregou um contingente de eleitores significativo ao corpo
eleitoral do país, predominantemente uma nação de jovens àquela época e por
muito tempo.
Não há referências expressas igualmente à renda anual como condição da
capacidade eleitoral ativa, embora o direito ao sufrágio fosse excetuado aos
mendigos e analfabetos. Com isso, continuava-se por excluir da vida política os
menos abastados, com o que se pode dizer predominava o voto censitário.
Persistia-se na atitude de negar ao
militar e ao religioso o direito ao sufrágio, como se a farda e o hábito
ofuscassem a condição de cidadão.
Desnecessário dizer como se
processavam as eleições brasileiras sob a vigência da sua primeira Constituição
Republicana: corrupção, fraude, eleições simuladas, predomínio dos coronéis. As
atas eleitorais eram falsificadas e sequer o eleitorado comparecia às urnas.
Os coronéis - di-lo a história dos
bons autores nacionais - eram os donos dos votos e dos eleitores.
A Carta de 1934 é a primeira a
referir-se, expressamente, à obrigatoriedade do voto. A capacidade eleitoral
ativa era tratada no artigo 108, que dizia:
“São eleitores os brasileiros de um ou de outro sexo, maiores de
18 anos, que se alistarem na forma da lei” |
Conquanto a Carta de 34 aludisse,
pela vez primeira, ao direito de sufrágio da mulher, esse direito, na verdade,
já houvera sido reconhecido desde o Código Eleitoral de 1932. Em boa parte da
Europa e nos Estados Unidos da América a conquista se fez antes.
Interessante notar, a esse propósito, que no berço da democracia moderna - a
Inglaterra - o direito ao sufrágio feminino só surgiu em 1928, quando, na
antiga colônia inglesa na América, ele já perdurava desde 1919.
A segunda Constituição Republicana
prosseguiu com a tendência de abaixar a idade mínima para o exercício do voto,
de vinte e um para dezoito anos. Merece aplausos por isso.
Rezava o artigo 109, que inaugurou a
nossa tradição de expressa referência à obrigatoriedade do voto:
“O alistamento e o voto são obrigatórios para os homens, e para
as mulheres, quando estas exerçam função pública remunerada, sob as sanções e
salvas as exceções que a lei determinar”. |
Enquanto o alistamento e o voto eram
obrigatórios para os homens, sem outras condições senão aquelas gerais
previstas (art. 108), no caso das mulheres o voto só era compulsório para
aquelas que exercessem função pública remunerada, como se vê textualmente no
dispositivo transcrito.
A diferença de tratamento era, como é, de difícil compreensão. Na verdade,
traduzia o sistema patriarcal e machista em que vivíamos: a mulher precisava de
algo mais para ser considerada cidadã. Se se entender que o voto é função
pública impostergável e título de cidadania, não se o pode cassar por motivo de
sexo. O tratamento dado à mulher era indiscutivelmente inferiorizante.
Não estou a afirmar que a
institucionalização da obrigação do voto é título de cidadania - bem longe
estou disso. O que afirmo é que, se se pensa que o voto é dever cívico
irrecusável, não se podem erigir condições para o seu exercício diferentes para
homens e mulheres.
Conquanto a Carta de 1934 houvesse
abraçado o sufrágio universal, direto e igual (art. 23), a realidade histórica
foi um pouco diferente. Com efeito, o Presidente da República foi eleito pela
Assembléia Constituinte, assim como os Governadores foram eleitos pelas
respectivas Assembléias Constituintes de seus Estados, tudo por força do que
dispunha o artigo 3º das Disposições Constitucionais Transitórias.
O artigo 117 da Constituição de 1937
- Constituição do Estado Novo - reproduzia o artigo 108 da Carta de 1934 e
suscitou muitos debates acerca da maioridade civil. Questionava-se, desde 34,
se o abaixamento da idade para a aquisição da capacidade política implicava a
revogação do Código Civil, no que concernia à capacidade civil. Posicionou-se a
doutrina, de forma acertada, pela solução negativa.
O parágrafo único do artigo 117 da
Carta de 37 dispunha sobre aqueles que não podiam alistar-se eleitores. Eram
eles: os analfabetos; os militares em serviço ativo; os mendigos e os que
estivessem privados, temporária ou definitivamente, dos direitos políticos.
Como se vê, nenhuma particular inovação em relação a tudo quanto já dispunham
as ordens constitucionais pretéritas, no que diz respeito à capacidade
eleitoral ativa.
Uma evolução significativa, porém, é
que não se exigia nenhuma condição especial de elegibilidade para os candidatos
à Câmara dos Deputados. Bastava-lhes ser eleitor.
A Carta de 1937 foi - no geral -
omissa quanto ao sistema eleitoral, instituído com o Código de 32 e aprimorado
com a Carta de 34, o que representou um enorme retrocesso para as instituições
democráticas do país. De efeito, o sistema eleitoral precedente criara uma
Justiça Eleitoral a quem fora atribuído o alistamento dos eleitores, o exame
das argüições de inelegibilidade e incompatibilidade, a apuração dos votos, a
proclamação dos eleitos (art. 83). Tudo isso - o que não é de causar espécie,
visto tratar-se de um período de exceção, autoritário - sequer foi mencionado
pela Carta de 37.
A Constituição de 1946 - baluarte da
redemocratização do país - representou a retomada da garantias dos direitos
políticos da sociedade brasileira.
Trouxe ela significativos avanços para o sistema eleitoral, entre eles a
garantia do voto secreto (já referendado pelo Código Eleitoral de 32),
indispensável à livre escolha de representantes pelo corpo eleitoral.
Dizia o seu artigo 134:
“O sufrágio é universal e direto; o voto é secreto; e fica
assegurada a representação proporcional dos partidos políticos nacionais, na
forma que a lei estabelecer”. |
Não obstante o seu caráter
libertário - natural após um regime ditatorial - a Constituição de 46 manteve a
proibição do voto dos analfabetos (art. 132), aos quais era defeso o
alistamento, muito embora o artigo 133 prescrevesse que “o alistamento e o voto
são obrigatórios para os brasileiros de ambos os sexos, salvo as exceções
previstas em lei”.
Com a insistência na negativa de atribuir-se capacidade eleitoral ativa ao
analfabeto, o princípio da universalização do voto era por demais mitigado e
não chegou, a bem da verdade, a ser aplicado em toda a sua inteireza. Ora,
historicamente o índice de analfabetismo no Brasil nunca esteve abaixo da casa
dos 20%, o que representa um contingente humano muito superior a populações
inteiras de diversos países latino-americanos, por exemplo. E como, então,
falar-se em democracia representativa diante de tal cenário? Como falar-se,
pois, no voto como função e essencial à sobrevivência do Estado? Não seria um
contra-senso instituir-se a obrigatoriedade do voto para, ao depois,
estabelecerem-se discriminações fundadas no grau de instrução? As respostas que
busco devem ser encontradas no campo principiológico, não meramente no
pragmático.
Com o golpe militar de 1964 - que
alguns historiadores pouco sérios insistem em cognominar, num eufemismo
ridículo, de Revolução - são cassados os direitos da cidadania brasileira. A
Constituição Formal era exemplar, palreando um rosário de “direitos políticos”
(arts. 147 a 151), enquanto a Constituição Material era bem diversa, pela prática
de arbitrariedades contra a vontade popular e os direitos fundamentais.
Suprimiram-se a liberdade de
imprensa, o livre curso do pensamento, o livre trânsito da manifestação
artística e científica. Tudo passou a ser tratado pela ótica míope da ideologia
dos generais. Mas, contraditoriamente, o voto continuou a ser obrigatório.
Foram inúmeros os casuísmos e farta
a legislação espúria, cujo único propósito era anular a soberania popular.
Vejam-se os exemplos: Código Eleitoral (Lei n.º 4.737, de 15.07.65 e suas
alterações); Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar n.º 5, de 29.04.70 e
suas alterações); Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei n.º 5.682, de
21.08.74 e suas alterações); Lei de Transporte e Alimentação (Lei n.º 6.091, de
15.08.74).
Apesar disso, o voto continuava
sendo compulsório, a pretexto de integrar a população na vida democrática. Vida
democrática de um país que só podia ter dois partidos políticos (Arena e MDB);
cujas manifestações artísticas sofriam com a intolerância da censura; cujos
intelectuais foram mandados embora; cujas universidades foram esvaziadas e
perderam referência como centro de saber; cuja literatura passou a ser pouco
mais do que um panfleto do poder dominante; cujas escolas primárias (e eu tive
essa experiência) ensinavam aos incautos garotos que “esse é um país que vai
para a frente, de um povo unido, de grande valor, um país que canta, trabalha e
se agiganta, um país do nosso amor”, numa espécie de patriotismo pueril e
gasto, tão estéril quanto a senilidade... Mas o voto ainda era obrigatório.
O voto era obrigatório, mas as
consciências não eram livres.
Votava-se compulsoriamente, mas nem
sempre se sabia em quem se votava e por que se votava.
Na vigência da Constituição de 1967,
com a Emenda Constitucional n.º 1, de 69, foram banidas as eleições diretas
para Presidente, Governador e Prefeito.
E o voto era compulsório. Talvez
para fingir à comunidade internacional que nós tínhamos uma “autêntica”
democracia. Talvez para iludir o público interno de que nós vivíamos efetivamente
uma democracia, “num país que trabalha e se agiganta”.
O período de exceção pós-64
representou a ausência do Estado de Direito.
Quem quer que aspirasse aos princípios democráticos era tido na conta de
“subversivo” e contrário aos ideais libertários do regime de força que se
instalara. Nunca, em nossa história republicana - nem mesmo na era Vargas - o
presidente teve tanto poder quanto os presidentes-generais. Citem-se dois
exemplos, apenas: o poder de restrição a emendas nos projetos de sua iniciativa;
o famigerado decreto-lei (esse com uma nova roupagem nos dias que correm: a
medida provisória, uma boa idéia que vem tendo manejo autoritário).
Com a Constituição Federal de 1988,
redemocratizou-se a sociedade brasileira. Sobreveio a liberdade de expressão do
pensamento, de criação e atuação dos partidos políticos. Sepultou-se a censura.
Respirou-se.
Mas não conseguimos superar o mito
do voto obrigatório.
Diz o § 1º, do art. 14, da Lex Legum
em vigor:
“O alistamento eleitoral e o voto são: |
A nova Carta Política representou,
sem dúvida alguma, um avanço expressivo para a construção da nossa democracia.
Facultou o voto para os analfabetos, assim como para os maiores de setenta anos
e maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Poderia ter ido mais longe.
Poderia ter instituído o voto facultativo como regra. Não o fez, porém.
A atual ordem constitucional
permitiu - quebrando uma tradição brasileira de há muito estabelecida - o voto
dos militares. Manteve, todavia, a proibição de alistamento eleitoral aos
conscritos, ou seja, aqueles recrutados anualmente para o treinamento
obrigatório nas Forças Armadas. Não vejo nenhuma razão para a restrição, que de
maneira alguma se justifica. Os conscritos são cidadãos e não perdem essa
condição por estarem a serviço obrigatório da pátria. O exercício do voto de
modo algum se incompatibiliza com a prestação do serviço militar. Portanto, os
conscritos devem ter direito ao sufrágio.
A nossa história republicana -
marcada, é bem verdade, por longos períodos de exceção - demonstra cabalmente
que a instituição do voto obrigatório não oferece contribuição significativa
para a construção de uma democracia plena. Precisa ser repensada.
VI - O VOTO NO DIREITO COMPARADO:
Hoje, a grande maioria dos países do mundo pratica o voto facultativo e não há
notícias de que vivam, por isso, em crise institucional ou de legitimidade do
poder.
O argumento de que o voto facultativo transformar-se-ia em fator
desestabilizador da sociedade, à medida que promoveria o desinteresse pela
cidadania e pelas questões do Estado, não encontra respaldo, portanto, na
prática de centenas de países que não adotam o voto obrigatório e que -
coincidência ou não - são exemplos de democracia em todo o mundo. Citem-se,
para ficar em dois, os Estados Unidos da América e a Suíça.
Caminhando por outras searas, se o
voto compulsório fosse garantia de estabilidade das instituições democráticas
não teria havido golpe militar no Brasil nem na maior parte dos países ao sul
do Equador. O que se tem é, portanto, uma tese que se contrapõe ao fenômeno e,
não satisfeita com o desmentido categórico e reiterado dos seus postulados,
tenta provar que o fenômeno é que está errado...
Nos dias presentes, o voto continua
sendo obrigatório em aproximadamente trinta países do mundo, metade dos quais
está na América Latina. Isso não quer dizer que países desenvolvidos, como a
França, verbi gratia, não pratiquem o voto obrigatório.
A pesquisa que empreendi permitiu-me
traçar um esboço demonstrativo de como as legislações estrangeiras tratam a
matéria. A seguir, elenco alguns países, primeiro onde o voto é compulsório,
depois onde o voto é facultativo, indicando, para cada um deles, o dispositivo
constitucional que versa sobre o assunto.
O voto é obrigatório nos seguintes
países:
1 - Nação Argentina - art. 37. “Esta Constitución garantiza el pleno
ejercicio de los derechos políticos, com arreglo ao principio de la soberanía
popular y de las leys que se dicten em consecuencia. El sufragio es universal,
igual, secreto y obligatorio”.
2 - República do Chile - art. 15. “En las votaciones populares, el
sufragio será personal, igualitario y secreto. Para los cuidadanos será,
además, obligatorio.”
3 - República Popular de Angola -
art. 20. “Todos os cidadãos maiores de 18 anos, com exceção dos legalmente
privados dos direitos políticos, têm o direito e o dever de participar
ativamente na vida pública, votando e sendo eleitos ou nomeados para qualquer
órgão do Estado e desempenhando os seus mandatos com inteira devoção à causa da
Pátria e do Povo Angolano.”
É interessante notar que
Angola constitui-se num Estado socialista, onde o poder é exercido pelo MPLA -
Partido do Trabalho, de inspiração marxista-leninista, conforme expressamente
vai dito no artigo 2º de sua Carta Fundamental. Pois bem. O paradoxo é inevitável:
o voto é obrigatório onde o partido é único e o cidadão nem tem opção. Para
que, então, o voto?
4 - Estados Unidos Mexicanos - art.
35. “São prerrogativas do cidadão: I - votar nas eleições populares”. Art. 36.
“São deveres do cidadão da República: III - votar nas eleições populares, no
respectivo distrito.”
Curioso verificar que, apesar dos
termos imperativos do dispositivo acima transcrito, não se vem aplicando sanção
alguma àquele que deixar de votar. Leiam-se as palavras de José Woldenberg,
expressas no artigo “El Voto”, in verbis
“Los derechos y las
prerrogativas de los ciudadanos se suspendem por falta de cumplimiento, sin
causa justificada, de cualquiera de las obligaciones que impone el artículo
36. |
Dicha
suspensión - según el dictado Constitucional - ‘durará un año y se impondrá
además de las otras penas que por el mismo hecho señalare la ley’. No obstante,
como todos sabemos, si uno no vota o deja de registrarse en el padrón no se le
impone ningún castigo. De tal suerte que en nuestro pais el derecho a votar es
eso, una prerrogativa que si no se ejerce no acarrea pena legal alguna.” (In
Serie Derechos Políticos, Academia Maxicana de Derechos Humanos, Filosofia y
Letras, n.º. 88, Copilco Universidad, México-DF, 1997).
5 - República Portuguesa - art. 49. 1. “Têm direito de sufrágio
todos os cidadãos maiores de dezoito anos, ressalvadas as incapacidades
previstas na lei geral. 2. O exercício do direito de sufrágio é pessoal e
constitui um dever cívico.”
6 - República da Venezuela - art. 110. “O voto é um direito e uma função
pública. O seu exercício será obrigatório, nos limites e condições que a lei
estabelecer.”
7 - República Popular de Moçambique
- art. 27. “Na República Popular de Moçambique todos os cidadãos têm o direito
e o dever de, no quadro da Constituição, participar no processo de criação e
consolidação da democracia, em todos os níveis da sociedade e do Estado.” Art.
28. “Todos os cidadãos da República Popular de Moçambique maiores de 18 anos
têm o direito de votar e ser eleitos, com exceção dos legalmente privados deste
direito.”
Assim como Angola, Moçambique é um
Estado socialista, onde o poder é exercido pelo FRELIMO, partido único, de
orientação marxista-leninista. É o que prescreve em claras linhas o artigo 3º
da Constituição Federal.
8. Itália - art. 48. “São eleitores
todos os cidadãos, homens e mulheres, que tenham atingido a maioridade. O voto
é pessoal e igual, livre e secreto. O seu exercício constitui dever cívico. O
direito de voto não pode ser limitado senão por incapacidade civil ou por
efeito de sentença penal irrevogável ou nos casos de indignidade moral
cominados na lei.”
9. França - art. 3º. “A soberania
nacional pertence ao povo, que a exerce através dos seus representantes e
através de referendos.
Nenhuma secção do povo e nenhum indivíduo se podem arrogar o seu exercício.
O sufrágio pode ser direto ou
indireto nos termos previstos pela Constituição. É sempre universal, igual e
secreto.
São eleitores, nas condições determinadas
pela lei, todos os nacionais franceses, maiores, de ambos os sexos, no gozo dos
direitos civis e políticos.”
Em França, são eleitos por votação
direta o Presidente e os Deputados (arts. 6º e 24, 1, CF). O senado, por sua
vez, é eleito por votação indireta (art. 24, 2).
10.
República Oriental do Uruguai - art. 77: “Todo ciudadano es miembro de la
soberanía de la Nación; como tal es elector y elegible en los casos y formas
que se designarán.
El
sufragio se ejercerá en la forma que determine la Ley, pero sobre las bases
siguientes:
1º.
Inscripción obligatoria en el Registro Cívico;
2º.
Voto secreto y obligatorio. La ley, por mayoria absoluta del total de
componentes de cada Cámara, reglamentará el cumplimiento de esta obligación.”
Eis algumas ordens constitucionais
onde o voto é facultativo:
11 - República Federal da Alemanha -
art. 38. “Os deputados ao Parlamento Federal Alemão são eleitos por sufrágio
universal, direto, livre, igual e secreto. São representantes de todo o povo, independentes
de mandato imperativo e instruções e subordinados unicamente à sua consciência.
12 - Confederação Suíça - art. 43.
“Todo o cidadão de um cantão é cidadão suíço. 2. A esse título, pode
participar, no lugar onde tiver o seu domicílio, em todas as eleições e
votações federais, desde que justifique devidamente a qualidade de eleitor.”
13 - Estados Unidos da América - XV
Emenda (1870): 1. “O direito de voto dos cidadãos dos Estados Unidos não poderá
ser negado ou cerceado pelos Estados Unidos, nem por qualquer Estado, por
motivo de raça, cor ou de prévio estado de servidão.” XIX Emenda (1920): “O
direito de voto dos cidadãos dos Estados Unidos não será negado ou cerceado em
nenhum Estado em razão do sexo.” XXIV Emenda (1964): “Não pode ser negado ou
cerceado pelos Estados Unidos ou qualquer dos Estados o direito dos cidadãos
dos Estados Unidos de votar em qualquer eleição primária para Presidente ou
Vice-Presidente, para eleitores do colégio eleitoral do Presidente ou
Vice-Presidente, ou para Senador ou Representante do Congresso, em razão de não
haver pago qualquer imposto eleitoral, ou algum outro imposto.” XXVI Emenda
(1971): “O direito de voto dos cidadãos dos Estados Unidos, de dezoito anos de
idade ou mais, não será negado ou cerceado pelos Estados Unidos ou por qualquer
dos Estados, por motivo de idade.”
14 - Espanha - art. 69. “O Senado é
a Câmara de representação territorial.
2. Em cada província serão eleitos quatro Senadores por sufrágio universal,
livre, igual, direto e secreto pelos eleitos nela inscritos, nos termos a fixar
por lei orgânica.”
A Espanha é um Estado social e
democrático, de monarquia parlamentar (arts. 1º c/c 56 e 66 CF).
15 - Japão - art. 15. “O povo possui
o direito inalienável de escolher os titulares de cargos públicos e de os
demitir. Os titulares de cargos públicos são servidores de toda a comunidade e
não de qualquer grupo. É garantido o sufrágio universal dos adultos. O voto é
secreto. Ninguém será obrigado a responder pela escolha que fizer.”
16 - Cabo Verde - art. 48. “Os
deputados são eleitos pelos círculos eleitorais por sufrágio livre, universal,
igual, direto e secreto. São eleitores todos os cidadãos nacionais maiores de
18 anos, ressalvadas as incapacidades estabelecidas na lei.”
Observação: Estado onde o poder é
exercido pelo PAICV (Partido Africano de Independência de Cabo Verde), de
inspiração marxista-leninista, art. 4º c/c 10, CF.
17 - Argélia - art. 58. “Todo o
cidadão que preencha as condições legais é eleitor e elegível.” Art. 80. “Todo
o cidadão é obrigado a dar provas de disciplina cívica e a respeitar os
direitos, as liberdades e a dignidade dos outros.” Art. 105. “O Presidente da
República é eleito por sufrágio universal, direto e secreto da maioria absoluta
dos eleitores inscritos.” Art. 128. “Os membros da Assembléia Popular Nacional
são eleitos por sufrágio universal, direto e secreto, sob proposta da direção
do Partido.”
A nação argelina é um Estado
socialista (art. 10, CF), teocrático (art. 2º, CF), sendo o islã a religião
oficial. É, também, um estado de partido único.
Mesmo em países governados por
ditaduras proletárias, como se viu da breve pesquisa esboçada, admite-se a
facultatividade do voto. Estão eles, os ditos países, sendo menos hipócritas do
que aqueloutros que, não obstante vivam sob a ditadura do partido único,
instituem o voto obrigatório, certamente na tentativa de legitimar o poder pelo
consentimento popular, esboçado numa artificiosa participação popular no
processo eleitoral. Mero engodo.
A experiência dos países que adotaram
o voto facultativo joga uma pá de cal nos argumentos fundamentalistas daqueles
que - valendo-se do discurso embasado no catastrofismo, tão ao gosto nos dias
de hoje, proclamam que o fim do voto obrigatório implicaria a perda de
soberania do povo e o predomínio de aristocracias organizadas. Tudo isso não
passa de terrorismo de opinião. Países extremamente desenvolvidos como os
Estados Unidos, a Suíça, a Alemanha, o Japão e até países pobres, como ficou
visto, desmentem categoricamente essa falácia.
Poder-se-ia objetar: ora, o voto
pode ser facultativo nesses países porque o seu povo é educado e o nível de
vida da população dá-lhe a oportunidade de informar-se e esse não é o caso do
Brasil.
Essa linha de raciocínio prova,
apenas, quanto o seu mentor está dissociado de uma visão ampla da democracia.
Essa construção teórica eqüivaleria àquela de dizer que a democracia só poderia
ser praticada nos países desenvolvidos, sem grandes diferenças sociais, não
assim quando se tratasse de nação pobre, com forte concentração de renda.
Esquecem os apologistas de tais “verdades” que a democracia é fator
indispensável de progresso econômico e social. Nesse sentido, os termos da
equação devem ser invertidos. Antes eram: desenvolva-se um país e depois
dê-se-lhe democracia. Agora deve ser: dê democracia ao país para que ele possa
desenvolver-se de forma sustentada e equânime.
É claro que as decisões são
mais difíceis num regime democrático, mas tendem a produzir melhores frutos.
Não se nega que, num primeiro
momento, possa haver, por parte de setores descrentes da população, um
sentimento de alívio por não ter mais de votar.
Mas isso seria logo superado, pela percepção de que a integração no jogo
democrático é decisiva para o progresso nacional e a cristalização dos interesses
em âmbito mais dilatado. De qualquer sorte, esses setores já demonstram a sua
descrença hoje, votando em branco, anulando o seu voto, ou mesmo se abstendo de
votar. A obrigatoriedade não tem o condão de cooptá-los; a persuasão racional,
talvez.
O voto deixaria de ser “o fardo da
cidadania” para ser a consciente e estudada expressão da vontade.
Mas não se romantize: a democracia
não é fácil.
VII - A NATUREZA DO VOTO:
José Afonso da Silva (In Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editores,
12ª Edição, São Paulo, 1996), ao tratar a matéria, formula uma distinção
pertinente, que às vezes passa despercebida a alguns. Diz o mencionado autor
que a Constituição Federal distingue os conceitos de sufrágio, voto e
escrutínio. Conquanto os três termos refiram-se ao processo de participação do
povo no governo, o primeiro termo expressa, na verdade, o direito (sufrágio); o
segundo termo expressa o exercício do aludido direito, ou seja, o voto seria o
exercício do direito de sufrágio; já o escrutínio expressa o modo por que se
exerce o voto. Sem dúvida, válida a lição.
Num primeiro lance de vista, percebe-se que é totalmente descabido falar-se em
dever de sufrágio, na legislação brasileira. Até porque, como se disse a passos
já dados, o cidadão não está na iminência de votar em qualquer nome, sendo-lhe
possível, já que o escrutínio é secreto, votar em branco ou mesmo votar nulo.
Esqueça-se, porque imprópria, qualquer alusão à obrigatoriedade do sufrágio.
Ele é um direito público subjetivo democrático.
Posição essa defendida não só pelo autor de que se vem de falar como também
pelo consenso razoável da doutrina brasileira.
Mas cabe já agora perguntar: e o
voto, qual a sua natureza?
Dê-se a palavra a José Afonso da
Silva:
“Daí se conclui que o voto é um direito público subjetivo, uma
função (função da soberania popular na democracia representativa) e um dever,
ao mesmo tempo. Dever jurídico ou dever social. Não resta dúvida de que é um
dever social, dever político, pois, ‘sendo necessário que haja governantes
designados pelo voto dos cidadãos, como é da essência do regime
representativo, o indivíduo tem o dever de manifestar sua vontade pelo voto’.
Esse dever sócio-político do voto independe de sua obrigatoriedade jurídica. Ocorre
também onde o voto seja facultativo. Mas, como simples dever social e
político, seu descumprimento não gera sanção jurídica, evidentemente.” (Op.
cit., p. 342 - destaques no original). |
Como reconhece o próprio autor
epigrafado, da circunstância - de resto plenamente aceitável no campo teórico -
de que, num regime representativo, é necessário que haja governantes indicados
pelos cidadãos, razão por que o voto constituiria um dever político, não se
segue que seja igualmente o voto um dever jurídico. Quem quer que defenda o
contrário está, a bem dizer, fazendo uma clara opção axiológica. A premissa
maior (num regime representativo os governantes devem ser indicados pelos
cidadãos) associada à premissa menor (o voto é um dever político) não permite a
conclusão de que seja compulsório o voto. Não é, pois, como pretendem alguns,
um mero exercício de raciocínio lógico-dedutivo. É uma clara opção feita a
partir de uma pauta valorativa.
Ora, é lícito inferir que o voto não é obrigatório, apenas o comparecimento do
eleitor à seção eleitoral o é. Mas, sendo assim, aquele cidadão que comparece à
seção eleitoral e vota em branco ou nulo terá cumprido o seu dever jurídico,
mas não terá, com certeza, cumprido o seu dever social e político. E então?
Então nada, porque o dever social e político é de índole moral, sem sanção
externa organizada. Apenas o não comparecimento injustificado à seção eleitoral
é que é legalmente sancionável.
Percebe-se, do que ficou exposto,
que o mais - o cumprimento do dever social e político - está na soberana
discrição do eleitor; enquanto o menos - o comparecimento à seção eleitoral no
dia da votação - é imposto pela lei com todas as pompas e circunstâncias. Causa
espécie!
Aqueles que afirmam que o voto deve
ser obrigatório uma vez que essencial à sobrevivência do Estado deveriam, por
imposição de coerência, esposar a tese de que o cidadão está na contingência de
escolher um nome. O voto válido é que seria a obrigação do eleitor. O não-voto
- o voto branco ou nulo - seria, portanto, a expressão de violação do dever de
votar, jamais uma opção política, consciente ou não, consentida pela lei.
Difícil encontrar tese mais fascista
ou alguém que se sinta em boa sombra para ventilá-la.
Se se entender, como imagino que
deva ser, que o ato de votar não significa o simples depósito da cédula
eleitoral na urna de votação e a assinatura da respectiva ata, mas a efetiva
escolha de um representante, dentre os candidatos registrados, penso que o
exercício do direito de sufrágio (o voto), se obrigatório, é incompatível com o
escrutínio secreto.
O voto é sim um dever, mas um dever
social e político. E ponto. No nosso meio, historicamente, o comparecimento do
eleitor à sessão eleitoral no dia da votação, esse sim, sempre foi um dever
jurídico.
É de perguntar: a que serve o
dever jurídico de comparecimento à seção eleitoral, o depósito da cédula e a
subscrição da ata de votação?
VIII - O VOTO OBRIGATÓRIO E O MITO
DA LEGITIMIDADE:
Afirmarei sem rodeios: é falsa a idéia de que o voto compulsório empresta maior
legitimidade ao poder constituído.
Aliás, a minha percepção do processo eleitoral diz-me exatamente o contrário,
ou seja, que o governante terá tanto maior legitimidade quanto mais espontâneo
houver sido o processo de sua escolha.
Pense-se em duas eleições. Na
primeira, em que o voto é obrigatório, 80% dos eleitores comparecem e votam,
sendo válidos 62% dos votos proferidos. Na segunda, em que o voto é
facultativo, 50% dos eleitores comparecem e votam, sendo desprezível o número
de votos inválidos. Onde estaria a maior legitimidade do poder, no primeiro ou
no segundo caso?
Não tenho dúvidas em responder que
no segundo caso. E por quê? Porque a legitimidade do poder democrático é mais
do que quantidade, é qualidade também. É inegável que aquele cidadão que - não
tendo a obrigação legal de fazê-lo - vai à seção eleitoral e vota validamente
concorre muito mais para o aperfeiçoamento da democracia do que aquele que
comete o mesmo ato compelido apenas pelo receio da sanção e nada mais. O
primeiro debate, em casa, na escola, com a família, com os amigos, na
comunidade, as melhores opções, o rumo a seguir. O segundo reverbera contra o
sistema e amaldiçoa os infelizes que o fizeram perder um dia de praia e sol,
que bem poderia ser aproveitado num feriado ocasional.
Pode ser que se imagine de forma
diversa: que a quantidade é o único dado praticamente importante numa
democracia (visão míope, mas possível!).
Ainda assim, resta saber se a instituição do voto obrigatório traz alguma
garantia de participação popular.
Vejamos - em rápidas referências -
os números das últimas eleições brasileiras, ocorridas no final do ano
transato. Os apresentados a seguir foram colhidos na página do Tribunal
Superior Eleitoral - TSE na Internet, no seguinte endereço:
http://www.tse.gov.br/ele/divulgacao/pres-html.
Havia no Brasil, aptos a votar nas
últimas eleições, 106.101.067 (cento e seis milhões, cento e um mil e sessenta
e sete) eleitores. Desses, 21,49% (vinte e um vírgula quarenta e nove por
cento) se abstiveram na eleição presidencial, ou, em números absolutos,
22.798.922 (vinte e dois milhões, setecentos e noventa e oito mil, novecentos e
vinte e dois) eleitores não compareceram às urnas. Dos votos apurados, 8,03%
(oito vírgula zero três por cento) foram em branco, ou 6.688.610 (seis milhões,
seiscentos e oitenta e oito mil, seiscentos e dez) eleitores que compareceram
votaram em branco; e 10,67% (dez vírgula sessenta e sete por cento) foram de
votos nulos, ou 8.884.430 (oito milhões, oitocentos e oitenta e quatro mil,
quatrocentos e trinta) eleitores compareceram às urnas simplesmente para anular
o voto. O candidato vitorioso em primeiro turno, ressalve-se, obteve 53,06%
(cinqüenta e três vírgula zero seis por cento) dos votos válidos, ou 35.936.916
(trinta e cinco milhões, novecentos e trinta e seis mil, novecentos e
dezesseis) votos. Esse universo corresponde a apenas 33,8% (trinta e três
vírgula oito por cento) do eleitorado. Ou seja, o Presidente eleito, em
primeiro turno, governará escudado na aprovação de apenas um terço do
eleitorado. Não mais que isso! Mas a democracia não é o governo da maioria?!
Se os dados a serem considerados
forem regionalizados, a situação fica ainda mais dramática. Nos estados
federados menos politizados e mais atrasados econômica e culturalmente, o fosso
é mais abissal. Em Sergipe, por exemplo, onde a abstenção na eleição
presidencial foi de 21,66% (vinte e um vírgula sessenta e seis por cento), os
votos em branco alcançaram o patamar de 13,17% (treze vírgula dezessete por
cento) e os votos nulos atingiram o escore 12,74% (doze vírgula setenta e
quatro por cento), o candidato mais votado obteve 47,37% (quarenta e sete
vírgula trinta e sete por cento) dos votos válidos. Esse dado pode impressionar
num primeiro momento, mas, se olhado com mais acuidade, revelará uma outra
realidade, menos alvissareira: o candidato vitorioso teve apenas 27,5% (vinte e
sete vírgula cinco por cento) dos votos daqueles que detinham capacidade
eleitoral ativa no estado. E onde fica - uma vez mais - a regra da maioria?!
É claro que eu não ataco o
resultado da eleição, ou afirmo que o Presidente eleito não tenha legitimidade
para governar. Não é esse o ponto. Desmascaro simplesmente o argumento falso
dos que afirmam que o voto facultativo afugentaria o eleitor. Ora, acima vão
transcritos os dados das últimas eleições presidenciais; mas quem quer que se
dê ao trabalho verá que os elevados índices de abstenção, votos brancos e nulos
são uma constante na história eleitoral brasileira. E por quê? São muitos os
fatores, razão pela qual me limito a apontar dois. Primeiro, pelas deficiências
do próprio sistema: é ingênuo imaginar que num regime democrático todos
participam e votam, porquanto sempre haverá os dissidentes, de quaisquer ideologias,
de quaisquer idéias, de qualquer coisa. Depois, pela incapacidade da classe
política brasileira de empreender um discurso que persuada a sociedade, atolada
até o pescoço na descrença e na desesperança.
O fenômeno observado na eleição
presidencial repetiu-se nas eleições para governadores. Na Paraíba, minha terra
natal, o governador reeleito obteve a espantosa marca de 80,72% (oitenta
vírgula setenta e dois por cento) dos votos válidos, reelegendo-se em primeiro
turno. Esse número, no entanto, mascara outros, igualmente gigantescos: um
quarto dos eleitores não votaram, ou seja, 24,63% (vinte e quatro vírgula
sessenta e três por cento) dos eleitores não compareceram às urnas; 22,34%
(vinte e dois vírgula trinta e quatro por cento) votaram em branco e 12,76%
(doze vírgula setenta e seis por cento) votaram nulo (In
http://www.tse.gov.br/ele/divulgacao/gov-pb.html). A eleição para o governo da
Paraíba pode ser lida sob duas óticas, igualmente superlativas. Pela primeira,
o governador reeleito estaria amplamente apoiado na opinião pública, já que
obteve mais de oitenta por cento dos votos válidos. Pela segunda, o governador
só teria o beneplácito de 39,48% (trinta e nove vírgula quarenta e oito por
cento) do eleitorado e não teria, assim, consentimento popular. Mas não se
cometa o maior de todos os crimes contra a lógica: a generalização banal.
O resultado das eleições
proporcionais - deputado federal e deputado estadual - foi ainda mais
dramático.
O que isso prova? Prova que o voto
obrigatório não funciona como instrumento de legitimação do poder. Prova que a
crítica lançada ao voto facultativo pelos fautores do voto compulsório, segundo
a qual a legalização da abstenção levaria ao descaso do cidadão pela coisa
pública, é uma teoria catastrofista que esquece - ou omite propositadamente -
uma realidade palpável, que o comparecimento obrigatório não se mostrou capaz
de mudar.
Prova que, numa democracia, é inútil forçar o cidadão a tomar decisões
políticas quando ele não esteja convencido de que o deva, da sua oportunidade
ou da viabilidade das opções que lhe são oferecidas.
Mas poder-se-ia objetar: se o voto
não fosse obrigatório, a situação seria ainda pior do que aquela que ficou
descrita. Logo, melhor que se preserve o modelo. A objeção pecaria, outrossim,
por diversas razões. A uma, é conjectura pura, porquanto nunca houve
experiência no Brasil que apontasse o acerto da idéia. A duas, prefere insistir
num equívoco histórico a investir em novas concepções que revolucionem as
instituições democráticas.
A três, pela sua postura conservadora e misoneísta, que rejeita a mudança
apenas porque altera o estabelecido. A quatro, fecha os olhos para a
experiência internacional, na qual o voto facultativo vem sendo empregado com
bons resultados e sem comprometimento da ordem democrática. A cinco, esquece
que a participação popular deve ser incentivada através de uma política de
educação cívica, fortemente apoiada em princípios democráticos, de limitação do
poder do Estado, respeito aos direitos fundamentais e proteção da cidadania.
IX - OS INCONVENIENTES DE ORDEM
PRAGMÁTICA DO VOTO OBRIGATÓRIO:
Adoto o voto facultativo por princípio, na linha de tudo o quanto restou dito
atrás. Todavia, muitas são as razões de ordem prática que também socorrem essa
posição.
A representação política não ganha absolutamente nada com a instituição do voto
compulsório, mas corre sérios riscos de perda. Efetivamente, na medida que o
ato de votar deve traduzir minimamente algum interesse do cidadão em participar
dos assuntos da vida social, o que esperar daquele que - pelos mais diversos
motivos - não se sente inclinado a qualquer manifestação?
Por outro lado, não me parece
desacertada a alegação de quantos afirmam que o voto compulsório é aliado do
poder econômico no processo eleitoral. E por quê? Porque todo aquele que vota
de forma consciente e após estudada análise das opções está em condições muito
mais difíceis de ser cooptado do que aquele que não tem nenhum compromisso com
o voto que profere. O primeiro comparece às urnas espontaneamente; o segundo,
pressionado pelo receio da sanção. Aquele que vota sem qualquer interesse
verdadeiro - e só o faz porque tem medo da sanção - desde logo deixa muito
claro o seu total descompromisso com o voto, ao qual atribui pouca ou nenhuma
importância, razão por que lhe é fácil dele dispor, fazer dele objeto de
mercância, sem qualquer constrangimento.
E mais. Como verbera com acerto
Celso Antônio Bandeira de Melo (In Direito Eleitoral, Coordenadores Cármen
Lúcia Antunes Rocha e Carlos Mário da Silva Velloso, Livraria Del Rey, Belo
Horizonte, 1996, p. 43), o voto compulsório favorece a eleição de oportunistas
e demagogos, haja vista que, sem dúvida alguma, o indiferente é com muito maior
facilidade manipulável do que aquele que vota movido pela convicção. O
indiferente - aquele que se jacta de desinteressar-se da política e votar
apenas porque está a isso compelido - tenderá muito mais facilmente a sufragar
o nome de qualquer pessoa que tenha notoriedade, no campo esportivo ou
artístico, sem perquirir, superficialmente que seja, as idéias políticas que
essa pessoa professa.
Perceba-se que a participação do
cidadão no processo eleitoral é utilizada como argumento a favor da legitimação
do processo em si. Ou seja, quanto maior a participação popular, mais legítimos
o processo eleitoral e o resultado do pleito. Esquecem-se de dizer - os que
assim pensam - que o cidadão pode questionar o próprio processo eleitoral, não
o legitimando. E essa postura pode ter forte conotação política, de
engajamento. Veja-se o caso da emenda constitucional que permitiu a reeleição.
Não são poucas as pessoas que a ela ficaram contrárias, quer por motivo de
princípio, quer porque não admitem a mudança das regras do jogo para benefício
do príncipe do momento. Pois bem. Essas pessoas não tiveram o direito de
abster-se, antes foram compelidas a “legitimar” um processo eleitoral com o
qual não estavam de acordo - e tinham motivos políticos para isso. Aqui não
cabe dizer que a essas pessoas restava o caminho do voto em branco ou nulo,
porque estes, ainda que inválidos, de alguma forma legitimam o processo. O que
se pretendia era patentear a não-legitimidade do processo eleitoral em si
mesmo.
Além de tudo, o voto obrigatório é
uma ficção. O que é obrigatório mesmo é o comparecimento do eleitor à seção
eleitoral. Por outro lado, de 1947 até hoje foram vinte os projetos de anistia
dos faltosos; e de 1992 a esta data, todos os faltosos das eleições foram
anistiados. O que estamos fazendo, então?
Extremamente interessante é o
testemunho dado, em sessão realizada em 03.04.97, da Comissão Provisória do
Senado Federal pelo Senador José Fogaça, do Rio Grande do Sul, a propósito de
proposta de emenda à Constituição que visava a adotar o voto facultativo no
Brasil. Diz-nos S. Exa., com a experiência de quem vive o processo político em
todos os seus matizes, que, após longo período como adepto do voto obrigatório,
mudou de idéia radicalmente após o plebiscito que ratificou o presidencialismo
entre nós. Para o parlamentar, 95% (noventa e cinco por cento) das pessoas que
compareciam aos locais de votação não tinham clara idéia do que estavam
votando. E - ainda segundo o senador - se um cidadão não tem uma idéia muito
bem definida do que está sendo votado, ele prefere manter o conhecido, mesmo quando
isso seja ruim, a votar no desconhecido. O voto obrigatório, por essa linha de
raciocínio desenvolvida pelo ilustre parlamentar, embora ele não o diga, teria,
como tem, um forte componente conservador.
Nas pegadas do senador citado,
diria, em abono e com o propósito de ratificação, que o voto compulsório é uma
tendência ao atraso, porque teoricamente por ele se obriga o cidadão a votar
mas não se pode obrigá-lo a estudar, a deter-se sobre o assunto em pauta, a
analisar, com percuciência, matérias complexas, como é o caso do sistema de
governo.
Certas pessoas interessam-se por um ou outro assunto e terão sempre melhores
condições de se pronunciarem sobre aquilo por que têm vivo interesse.
Com a palavra S. Exa., que falará
melhor:
“Digo isso, Sr. Presidente, Sr. Relator, porque entendo que o
voto facultativo tem outra qualidade que deveria ser ressaltada: quando
houver voto facultativo, estados, municípios e o próprio país poderão fazer
com muito maior liberalidade, em número muito maior, plebiscitos e
referendos. Há países, como a Suíça, que fazem plebiscito para tudo - para
criar um imposto há plebiscito, para entrar ou não na União Econômica
Européia há plebiscito, ou seja, há plebiscito para tudo na Suíça -, mas o
voto não é obrigatório. |
Derrube-se - por fim - um dos
recorrentes mitos que cercam o voto obrigatório: ser ele foi instrumento de
educação das massas. Não existe nenhuma correlação entre a compulsoriedade do
voto e a educação política do eleitor. O voto é obrigatório no Brasil há muito
tempo e nem por isso se pode dizer que temos aqui um eleitorado
satisfatoriamente educado politicamente.
X - CONCLUSÃO:
O voto é meio de exercício da democracia, não o seu fim. É, portanto,
equivocado tomar a nuvem por Juno.
Compulse-se a história e verificar-se-á que a forma de governo dos gregos foi a
maior expressão da democracia do mundo antigo. Depois dela, o maior penhor de
democracia sobreveio após séculos, entre os XVIII e XX, nos Estados Unidos da
América. Tanto ali como aqui não havia obrigatoriedade de o cidadão participar,
quer da assembléia do povo, quer das eleições, através do voto. Poder-se-á
criticar tais democracias por isso? Não me parece.
Os filósofos gregos Heráclito e
Platão eram metafísicos, absolutistas e, por conta disso, autocráticos. Os
sofistas, por seu turno, prezavam a experiência, eram relativistas e, pois,
democráticos. Enquanto na autocracia campeia o pessimismo e a descrença no
homem, as formas democráticas prezam a liberdade e crêem no homem. É preciso
crer no homem e na democracia. O homem expande melhor as suas potencialidades
quando vive em ambiente democrático; a democracia funciona melhor onde o homem
é levado a práticas democráticas pela persuasão racional, não pela força ou
coação.
A democracia ideal existe apenas na
esfera das idéias humanas, não como realidade concreta. É claro, por isso, que
os sistemas representativos nos quais o voto é facultativo possuem
inconvenientes, que são, no entanto, amplamente superados pelos seus aspectos
positivos, se comparados àqueles em que o voto é obrigatório. Desarrazoada, nessa
perspectiva, a tese que rejeita o voto facultativo porque ele implicaria a não
integração do eleitor na decisão de gerência da coisa pública. Pensar assim é
creditar ao processo democrático o erro que seria do homem e, mais do que isso,
é descrer do homem e fechar os olhos para os exemplos da história
contemporânea.
O voto dado compulsoriamente, sem
compromisso, contribui em nada para o aperfeiçoamento democrático, já o dizia,
valendo-se de outros termos, José de Alencar. São suas palavras:
“A verdadeira democracia, o governo de todos por todos, requer,
para sua realidade, não somente uma eleição em que vote a universalidade dos
cidadãos, mas principalmente uma eleição na qual cada cidadão tenha plena
consciência do seu voto. |
Desnecessário dizer que o
aperfeiçoamento do sistema democrático no Brasil não está na dependência apenas
do voto facultativo. Com ele muitas reformas políticas precisam ser
implementadas, a partir de um amplo debate com a sociedade civil. Mas é
imperioso começar a apontar os pontos de estrangulamento. E o voto obrigatório,
do ponto de vista teórico e prático, é, ao meu sentir, um deles.
O voto é essencial à democracia. Mas a democracia não se resume ao voto. Ela é
mais. É respeito aos direitos humanos, aos direitos fundamentais. É liberdade,
negativa e positiva. É limitação do poder do Estado. É tolerância. É
representação legítima dos interesses sociais. É convivência dos contrários.
É respeito pelas minorias. É pluralidade. É a conformação da comunidade em uma
estrutura social que rejeite as desigualdades extremas, impeditivas de que
significativa parcela da população atenda as suas necessidades básicas, aquelas
que são do homem, enquanto tal. A dito projeto democrático, nada tem a oferecer
o voto obrigatório.
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Acesso em 23 de agosto de 2006.