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Computadores, Liberdade e Privacidade

Luís Filipe Penedo



 

Resumo

Esta intervenção destina-se a salientar as características tecnológicas da Informática e das Comunicações, que se definem assim como ferramentas e, como tal, podem ser bem ou mal utilizados. Como a Liberdade e a Privacidade são conceitos sociais, os Computadores tanto os podem auxiliar como criar obstáculos, dependendo de quem utiliza as ferramentas.

Salienta-se também o papel que cabe a cada cidadão na defesa dos seus próprios direitos de Liberdade e Privacidade (e Intimidade), se possível utilizando as tecnologias que os podem atingir com o mesmo nível de sofisticação.

Salienta-se também a dificuldade do legislador (e também do tecnologista) de compreender as implicações sociais de uma Nova Tecnologia quando ela é banalizada a qualquer cidadão.

Intervenção

Alguns aspectos que me parecem interessantes na área da Informática e Computadores são os seguintes :
  1. A Informática é uma TECNOLOGIA e como tal utiliza e trata a INFORMAÇÃO através de processos repetitivos , normalizados, modelos de uma realidade não existente, de uma forma que é independente de qualquer seu significado
  2. Os computadores lidam com a matéria prima do cérebro humano, a INFORMAÇÃO, que só para nós pode tomar a forma de conhecimento ou sabedoria
  3. Quaisquer ferramentas colocadas à disposição do ser humano sempre foram utilizadas de acordo com as suas próprias emoções, saber e ideias (na diversidade individual dos intervenientes)
  4. Coloca-se sempre à sociedade e aos seus responsáveis, a difícil tarefa de acompanhar a banalização de tecnologias com regras "de convivência " social adequadas para o bem geral
Quando se trata de regulamentar questões como Liberdade e Privacidade a questão tem um elevado grau de complexidade uma vez que estes conceitos são também, por sua vez, extremamente difíceis de definir, sobretudo de forma universalmente aceite. São conceitos indexados ao nível individual.

Quando, há cerca de 400 anos, um jovem casou com uma senhora oito anos mais velha e grávida de alguns meses pode haver alguma confusão sobre o que é público, privado ou íntimo. A história refere-se a William Shakespeare. Mas este caso pode ajudar a ilustrar estes conceitos, ainda que eles nunca sejam totalmente estanques.

Público é com quem, quando e onde ele casou e os registos efectuadas nessa época assim o declaram e garantem. Sabemos a data e com quem e que idade tinham, pois isso faz parte da memória social registada no local apropriado. Também público parece ser o facto da noiva estar grávida de alguns meses (não se escondeu). Temos acesso a esta informação como também temos no que respeita às suas contas com o fisco e outras particularidades e singularidades.

Privado é talvez a causa desse acontecimento se ter passado dessa maneira e não de outra. Não ficou registado nem haveria, provavelmente, razão para isso.

Íntimos serão os objectivos e as razões pelas quais cada um deles se casou nesse contexto, uma vez que nunca o terão declarado (e nessa altura convertido em público ou privado).

Parece também que a classificação apenas de público ou privado já não é suficiente para abarcar a complexidade do mundo da informação tal como o conhecemos hoje e muito especialmente das interacções estabelecidas a nível individual e social, graças às ferramentas tecnológicas existentes na área das Comunicações. Parece que precisamos de ter, pelo menos, mais um nível, que é o da Intimidade, ou o seu equivalente.

As tecnologias da informação e das comunicações colocam à disposição do cidadão em geral possibilidades nunca antes existentes de troca de informação e de organização dos dados de forma a tirar o melhor partido deles para os seus fins individuais.

Sendo o computador uma simples ferramenta, a sua utilização tem características semelhantes às de um amplificador de capacidades individuais ou colectivas. Naturalmente que a utilização eficiente do Computador (e das Comunicações) depende não apenas da tecnologia, mas da capacidade do próprio utilizador, capacidade de ordem nata ou de ordem adquirida. Daí o impacto destas ferramentas no aumento do "leque informático", ou seja da separação, cada vez maior, entre quem sabe o que fazer e quem não sabe.

O Poder utiliza os Computadores e a Informática como extensões de si próprio, como o fará qualquer outra entidade ou qualquer cidadão.

Os Bons tenderão a utilizá-lo para o Bem e os Maus tenderão a utilizá-lo para o Mal. Era bom que isto fosse tão simples... pois estes modelos são uma demasiado elementar versão da realidade. Numa tentativa de analisar o contexto fiquemos, no entanto, com esta simplicidade.

Quando uma nova ferramenta tecnológica se torna pública e conhecida, ou seja aparece disponível mesmo que para mercado seleccionado, não há, habitualmente, uma legislação apropriada pois a sociedade e o legislador raramente poderão percepcionar as implicações (consideremos as sociais apenas) que podem advir dessa ferramenta.

Mas assim que essa ferramenta de dissemina e sobretudo a partir do momento em que as situações da sua utilização se complicam, torna-se necessário legislar sobre a sua utilização. Também nessa altura a legislação vai sofrer de todas as limitações de cultura tecnológica que o legislador, normalmente, não domina.

Isto pode querer dizer porque razão, habitualmente, a legislação se encontra em atraso em relação à tecnologia.

Quando o artigo 35º da Constituição foi pela primeira vez proposto e aprovado por unanimidade, foram registadas em acta todos os pormenores das intervenções dos deputados. Não deixa de ser interessante voltar a ler essas actas à luz, por exemplo, do que hoje qualquer adolescente sabe sobre as características e particularidades do registo de dados em disco magnético.

Numa Assembleia na qual se incluíam muitos especialistas de Direito, num ambiente que se assume com a responsabilidade da regulamentação da intervenção dos cidadãos, a falta de conhecimento sobre a dimensão tecnológica do problema mais ou menos evidente nas várias intervenções pode, de certo modo, constatar-se na breve discussão estabelecida.

Estas palavras não são, no entanto uma crítica pois já quis evidenciar que a legislação vem quase sempre muito atrasada em relação à tecnologia, e não deve considerar-se uma falha dos deputados presentes nessa sessão a sua eventual limitação tecnológica quando o foco principal era, naturalmente, político.

E não faltam exemplos desta situação. Considere-se nomeadamente o que aconteceu com o Direito Marítimo, ou o Direito Espacial, a transferência de dados nas fronteiras, etc..

Em 1978 para efectuar, durante o fim de semana, um trabalho em Madrid resolvi levar os dados de teste num disco magnético, na altura um disco de 100 Mega bytes cuja dimensão era apreciável, quase do tamanho da minha mala de viagem (era um disco IBM 3330).

No aeroporto de Madrid fui interceptado pela autoridade alfandegária que, com base no facto do disco poder conter informações e dados informáticos, me confiscou o disco até sair de Espanha, na segunda feira seguinte. Valeu-me um colega de equipa que viajou por carro e que levou uma cópia (em cartões) desses mesmos dados.

A partir dessa experiência passei a levar o mesmo disco, sempre que necessário, mas com uma autorização de exportação temporária e ninguém mais me incomodou com os dados que podiam lá estar dentro (o que também não deixa de evidenciar as limitações de compreensão dos controladores sobre aquilo que queriam controlar).

No contexto actual de uma realidade que inclui a Internet, este tipo de situações deixou de ter grande significado. Mas não deixa de se notar na legislação uma tentativa de regulamentação que, em certos casos, é já despropositada face à tecnologia existente.

E aqui se pode salientar o contraste de alguma legislação com a realidade existente face a duas ferramentas tecnológicas cuja verdadeira dimensão social continua a evoluir:

Os computadores pessoais porque se tornam um extensão do indivíduo e porque, como tal, podem ser bem ou mal utilizados. Porque permitem aumentar as capacidades individuais com base no seu bom aproveitamento como ferramenta que são. Porque concedem, ao indivíduo, vantagens na organização da informação, que nunca foram possíveis anteriormente.

As comunicações porque tornam o acesso à Informação de tal modo fácil e banalizado que, ao contrário do que se passava até agora, a vantagem de estar informado deixa de ser uma prerrogativa de Poder e torna-se uma possibilidade do indivíduo.

Esta é uma modificação de fundo na sociedade que não deixa contudo de ter os seus próprios reversos: temos muita informação acessível, mas cada vez mais temos uma informação não certificada, uma informação cujo grau de veracidade é impossível ou difícil de garantir.

Numa sociedade em que a informação é lenta e o seu acesso limitado, a própria informação é filtrada, no espaço e no tempo.

Com um acesso imediato e simples à informação nenhuns filtros (incluindo os de contexto, realidade e de integridade) estão activos.

Claro que a situação real é que continuamos a ter informação razoavelmente certificada quando ela é tornada acessível por alguém com reputação adequada. Mas esse é já um limitador.

A lei pode definir os conceitos (dados pessoais, por exemplo) mas será inimaginável querer garantir que a Informática Pessoal possa ser devidamente controlada de modo a assegurar o cumprimento das leis.

Quero dizer que, sob o ponto de vista de entidades de carácter colectivo a legislação pode e deve regulamentar tudo o que puder para defesa do cidadão. Regulamentar ou tentar incluir a informática pessoal ou individual no mesmo contexto é que parece irrealista.

Se é impossível limitar o pensamento, a utilização pessoal ou privada de um computador é uma extensão desse pensamento em muitos aspectos e, portanto, não é igualmente limitável. É claro que a legislação foca os Computadores e a Informática no sentido geral, mas também deve ser entendido e claramente que a aplicação da lei é fundamentalmente a nível institucional e não a nível privado, ainda que os mesmos princípios possam ser aplicados.

É correcto estabelecer que todos os cidadãos têm direito de tomar conhecimento dos dados constantes de ficheiros e do fim a que destinam, (Artigo 35º, ponto 1), mas é irrealista pensar que podemos forçar a execução de tal directiva ao nível dos dados existentes em computadores pessoais.

Quando se refere que a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, etc. (ponto 3) fala-se, certamente, na informática institucional e não na informática pessoal ou privada.

A questão será clarificada se aceitarmos e consciencializarmos a indefinição dos termos e do seu âmbito, e não considerar apenas que é evidente o contexto.

Neste âmbito a referência a Informática em geral (incluindo a utilização de computadores pessoais) é enganadora. Prefiro a definição de Informática de acordo com a entidade e o fim a que se destinam.

Assim a Informática Institucional, seja ela de Computadores Principais ou Pessoais é a utilizada e com o grau de responsabilidade legal correspondente, pelo Estado e por pessoas colectivas. A Informática Individual, quase sempre utilizando Computadores Pessoais ou o seu equivalente trata de tudo aquilo que o seu operador quiser tratar, com a limitação de que as informações não podem ser utilizadas institucionalmente.

Não creio que possa haver grande modificação nesta área, mas, no entanto, e talvez aí possa salientar a importância de aprofundar um pouco mais o assunto, o que não pode é deixar-se ao cidadão a percepção de que ele se encontra completamente protegido pela lei em relação à utilização da tecnologia, especialmente da Informática, porque isso não é verdade. Essa percepção poderia criar uma atitude despreocupada que só conduziria a surpresas desagradáveis. Na utilização da Informática Individual estamos tão desprotegidos da Lei como o estávamos anteriormente e, provavelmente, estaremos sempre.

Não é a Lei que nos garante a nossa segurança mas somos nós que, em última análise o temos de fazer. Então se promovermos activamente o seu cumprimento através da Lei que, é certo, nos tenta proteger institucionalmente, essa zona fica o melhor possível.

Se fizermos um paralelo podemos dizer que a Liberdade e a Privacidade não são defendidas pela Lei, pelo menos de uma forma completa mas, como sempre, a Liberdade e a Privacidade ( e também o Íntimo) só podem ser defendidos por nós mesmos. Nesse sentido a Lei é apenas mais um instrumento, mais uma ferramenta, para a defesa da Liberdade e da Privacidade quando assim o expressa.

É semelhante à situação de considerar que o Consumidor se encontra bem defendido pela simples existência jurídica de uma Associação de Defesa, ainda que esse mesmo Consumidor nada faça para se defender.

A nível individual, onde a Lei tem e encontra limitações muito grandes à sua execução, a resposta à utilização contrária aos princípios sociais estabelecidos só pode ser contrariada pela aplicação do mesmo nível de tecnologia.

E isso deve ser conseguido, em actividade permanente, com a aplicação dos Computadores e da Informática, pelo menos ao mesmo nível de tecnologia que utilizam os que as querem atingir.

Os computadores, quer os institucionais quer os pessoais e as Comunicações, muito especialmente a Internet, devem ser sempre utilizados numa perspectiva de conquista e defesa da Liberdade, no âmbito do respeito pelas liberdades dos outros. Para isso devem conter incorporados o máximo de dispositivos de programação com os mecanismos adequados e realistas de garantia dessa Liberdade e de protecção da Privacidade.

Mas sem que isso nos descanse, antes pelo contrário, com a consciência plena de que a Liberdade e a Privacidade só podem ser defendidas de forma genuína e eficiente pelos próprios indivíduos.