por Nehemias Gueiros
Junior
Nos últimos sete meses o
Departamento de Justiça dos Estados Unidos conduziu uma investigação sigilosa
que produziu dados realmente alarmantes, traduzindo um verdadeiro assalto à
propriedade intelectual em todos os níveis, desde operadores individuais
amadoristicos até as grandes esferas do crime organizado, que vêm causando um
prejuízo anual da ordem de US$ 250 bilhões aos negócios americanos.
Com mais de cem páginas, o relatório final dessa
investigação recomenda medidas urgentes e imediatas, que incluem a criação de
unidades especiais do FBI em todo o país e substancial incremento do número de
promotores federais e agentes do órgão para lidar exclusivamente com os crimes
de propriedade intelectual e venda de produtos contrafeitos. Além disso, os
tentáculos dessa operação estender-se-ão às embaixadas dos EUA em Hong-Kong e
Budapest, regiões consideradas líderes na manufatura de produtos piratas no
mundo.
Esforços na extradição de pessoas envolvidas
nesses tipos de crimes também serão levados a efeito, numa clara demonstração
de que os americanos já não estão mais considerando esse assunto em segundo
plano entre as suas prioridades. Segundo um funcionário do Depto. de Justiça
estadunidense que não quis se identificar, “trata-se da mais contundente, ampla
e agressiva iniciativa de combate aos crimes contra a propriedade intelectual
da história americana”, sinalizando que os esforços desta nova força-tarefa
poderão rivalizar com as atividades de combate às drogas empreendidas pelas
autoridades americanas.
A cidade de Los Angeles, com seus amplos portos
que incluem Long Beach, foi a primeira a sentir os efeitos da operação,
resultando em que todas as importações chegando à cidade, especialmente da
Ásia, estão levando vários dias para serem desembaraçadas, causando sérios
prejuízos a comerciantes, restaurantes e outros negócios que dependem da
celeridade de entrada dos seus produtos no país. O espectro das ações vai desde
o simples comércio de bugigangas de rua, como canetas, relógios e brindes, até
a venda de medicamentos falsificados, que segundo estudos da Organização
Mundial de Saúde respondem por até 10% de mortes em todo o mundo. Baterias de
celular que explodem ou inflamam, bebidas destiladas com alto teor de metanol e
eletroeletrônicos de péssima qualidade, estão entre os produtos que fazem a
festa dos piratas no mercado americano e que agora estarão na mira dos agentes
federais.
No caso específico do Direito Autoral, a
comunidade de Hollywood vem se batendo pela aprovação, no Congresso, do chamado
Induce Act, que transformaria em ilegais todas as empresas envolvidas na troca
de arquivos via Internet, sujeitando-as às penalidades da legislação com
pesadas multas e até encerramento de suas atividades. A moção, entretanto, está
sob fogo cerrado no Senado americano, principalmente por parte do setor de
fabricantes de alta-tecnologia de informática e eletroeletrônicos, sob a
alegação de que a lei daria à indústria do entretenimento poder de veto sobre
novas tecnologias.
Mas o relatório federal não-convencido por esses
argumentos, considera a troca de arquivos vai Internet um crime federal e “uma
das mais perigosas ameaças ao Direito Autoral no mundo contemporâneo. Há outra
moção em andamento no Congresso americano, denominada Pirate Act, já aprovada
na Câmara dos Deputados e tramitando no Senado. Como sempre, seus oponentes
consideram essas leis uma violação da privacidade constitucional, alegando que
exporia os usuários a processos judiciais mesmo não tendo “baixado” nada para
os seus computadores.
O cinema é outro alvo prioritário da
mega-operação, em que fica latente a disposição dos grandes estúdios de cinema,
empresas fonográficas e fabricantes de software de não permitir sequer a cópia
única de back-up de DVDs, que é considerada por grande parte da opinião pública
como fair-use (algo como “uso razoável”).
Partindo do macrocosmo do mercado americano para
a realidade brasileira, podemos desde logo destacar a perfeita identidade entre
os prejuízos causados pela pirataria na economia do país de uma maneira geral.
Em que pesem as grandes diferenças econômicas entre o Brasil e os Estados
Unidos e as facilidades orçamentárias que os americanos possuem para formar,
equipar e desencadear uma operação dessas proporções, é forçoso admitirmos que
muito pouco tem sido feito para coibir a atividade pirata no Brasil.
Delegacias para a investigação de crimes contra a
propriedade intelectual foram criadas mas ou não têm efetivo adequado ou não
têm veículos e armamento para realizar os raids necessários, tendo muitas vezes
que depender da generosidade das empresas prejudicadas (gravadoras, fabricantes
de equipamentos ou importadores legais) para a consecução da tarefa.
Do ponto de vista cultural, outra grande barreira
precisa ser considerada: o baixo poder aquisitivo da população, somado aos
altos preços dos produtos desejados, especialmente em função do irresistível
apelo da propaganda, são responsáveis pela tendência natural do consumidor de
preferir os produtos piratas, infinitamente mais baratos. Enquanto todos esses
fatores não forem reconhecidos e ajustados em forma simultânea, dificilmente
veremos progresso no combate à contrafação no Brasil.
Sabemos que o Direito Autoral ainda está órfão de
uma maior disseminação em nível acadêmico no Brasil, com o objetivo de formar
mais advogados, juízes e especialistas para lidar com a questão da pirataria,
mas a participação equânime de todos os segmentos da sociedade é fundamental
para que o país possa crescer de forma legítima, recolhendo corretamente os
impostos sobre sua atividade produtiva, taxando a importação de produtos e
remunerando regularmente os autores, artistas e intérpretes por sua
contribuição intelectual à cultura nacional.
Enquanto a questão da propriedade intelectual não
for tratada com mais destaque pelo Governo, como acertadamente vem sugerindo o
ministro Gil, a questão da pirataria ainda estará alojada num patamar de
difícil controle por parte da sociedade constituída. Basta olharmos para os
exemplos americano e francês, que guindaram as questões culturais à ordem do
dia, por representarem uma identidade nacional, de cunho estratégico, capaz de
atrair e consolidar interesses comerciais para o país ao mesmo tempo em que
divulgam os produtos nacionais em nível internacional.
O Direito Autoral representa a pedra fundamental
na consagração de uma identidade cultural própria, que já algum tempo vem
pavimentando o caminho das “coisas do Brasil” em escala global, quer no cinema,
na música, na literatura e nas artes. Urge alimentarmos continuamente esse
esforço para honrar os verdadeiros criadores intelectuais que encantam as
nossas vidas.
Revista Consultor Jurídico, 18 de outubro de 2004
Retirado de: http://conjur.uol.com.br/textos/250177/