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Nota sobre Patentes e Biotecnologia

Eduardo Assumpção [1]

I. Introdução

Ao longo de sua história, o sistema de propriedade intelectual recebeu desafios de novas tecnologias que rompem os limites tradicionais de proteção legal e impõem um questionamento quanto ao que pode (ou deve) ser apropriado como monopólio legal temporário. Tempo e considerável reflexão judicial são necessários antes que novos parâmetros sejam estabelecidos, permitindo acomodar as demandas apresentadas por empresas e inventores com o que se supõe ser o interesse da sociedade.

A moderna biotecnologia tem sido um campo em que se multiplicam desafios administrativos e legais para todos os envolvidos na busca de proteção legal propiciada pela propriedade intelectual. Como se sabe, uma nova biotecnologia surgiu nos anos 70, tendo por base técnicas desenvolvidas para a manipulação genética. A engenharia genética está relacionada à produção de microorganismos modificados artificialmente capazes de fornecer produtos valiosos, como insulina e interferon. Mais recentemente, novas técnicas passaram a permitir a experimentação com sucesso em animais superiores e plantas. Em seu desdobramento mais amplo, está sendo mapeada a fonte de toda a matéria viva: as sequências genéticas - inclusive humanas -, compostas por moléculas de DNA.

Ao adquirir o poder de transformar o modo como a vida se expressa, a nova biotecnologia testou os limites do sistema de patentes e dele recebeu uma resposta inicialmente negativa. [2]. Contudo, a refração inicial veio sendo substituída, nas duas últimas décadas, por um maior grau de admissibilidade em considerar matéria viva e seus elementos constitutivos como objetos patenteáveis. Não há ainda consenso sobre o quão longe os países devem caminhar nessa direção. Parece indiscutível, porém, ser os EUA o país que, no momento, possui a abordagem mais destacadamente pró-patentes de biotecnologia.

Seja pelo número das invenções ali produzidas, - e pela pressão daí decorrente por parte das empresas e inventores -, seja por uma postura tradicionalmente a favor de proteção a direitos de propriedade intelectual, as autoridades administrativas e judiciais americanas traçaram novos parâmetros que ampliaram o escopo de proteção, incluindo formas superiores de vida animal e sequências genéticas, o que dentre outras consequências renovou o interesse pelo sistema de patentes, como mostram os números da Seção II.

De outra parte, sobrepassando as fronteiras nacionais, o panorama internacional recente é marcado pelo incentivo à construção de sistemas de patentes mais fortes, resultando daí um novo quadro institucional. Tratados e mecanismos jurídicos, como o Patent Cooperation Treaty - PCT, foram aperfeiçoados tendo em vista o horizonte internacional de proteção às criações tecnológicas. Acima de tudo, um amplo processo de convergência das legislações nacionais de patentes foi obtido a partir da conclusão do acordo internacional ADPIC (TRIPS é o acrônimo em inglês: Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights), cuja aplicação encontra-se aos cuidados da Organização Mundial do Comércio. [3].

No Brasil, a Lei 9.279/96, que regula a proteção à propriedade industrial, é muito clara na demarcação de limites ao patenteamento no campo da biotecnologia. Os legisladores definiram que os microorganismos transgênicos - cumpridos determinados requisitos técnicos - são aceitos como matéria patenteável. Qualquer outra forma de vida contudo - sejam plantas, sejam animais - não podem ser patenteados (Lei 9.279/96, artigo 18, inciso III e Parágrafo único). Para a proteção às plantas, atendendo ao disposto no artigo 27, 3(b) do tratado TRIPS, foi instituída a Lei 9.456, de abril de 1997, para proteção aos cultivares, abrangendo tanto as plantas de semente como as de reprodução assexuada.

Ficou clara, dessa maneira,  a disjuntiva criada pelo diferencial entre o que Brasil, de um lado, e outros países, notadamente os EUA, de outro, consideram como patenteável no campo da biotecnologia[4], não obstante encontrar-se a limitação imposta pela legislação nacional em linha com o estipulado no acordo TRIPS (artigo 27, 3b). Nesse sentido, visa este trabalho, em um primeiro objetivo, apontar os fundamentos técnicos que permitiram a abertura do hiato apontado. Com este propósito, e estabelecendo o contraponto, buscou-se enfocar (Seção II) os argumentos que sustentam a abordagem dos EUA quanto à proteção à biotecnologia, em especial, a posição da Organização Americana de Marcas e Patentes (USPTO) sobre o patenteamento de sequências genéticas à luz dos conceitos tradicionais do sistema de patentes. A Seção II é complementada com um levantamento estatístico das principais empresas e instituições beneficiárias da prática adotada nos EUA.

O segundo objetivo deste trabalho é mostrar a posição adotada no Brasil, delineando os limites traçados pela legislação atual para a proteção da biotecnologia (Seção III). Como se verá, a Lei 9.279/96 permitiu a abertura do mercado brasileiro às patentes da moderna biotecnologia com reflexos particularmente importantes nas áreas de saúde e agricultura. Empresas, universidades e centros de pesquisa passaram a contar com um elemento de valorização econômica representado pelo poder das patentes em conferir a seu titular um monopólio legal temporário e já existem indicações positivas de instituições públicas que começaram a se utilizar da proteção disponibilizada [5]. A Seção III é complementada com um levantamento estatístico sobre o perfil dos depositantes de patentes de biotecnologia no Brasil, tomando-se como base os pedidos "pipeline" depositados no INPI.


II. O Cenário Americano

O renovado interesse pelo sistema de patentes ocorrido nos últimos anos foi até certo ponto surpreendente. Quando o número de patentes concedidas nos EUA passou a crescer aceleradamente, no final da década de 80, o panorama que se tinha poderia ser definido como de estagnação. O número de patentes concedidas nos EUA ao final da década de 60 não diferia em muito do total registrado em meados da década de 80. De fato, mais patentes foram concedidas nos EUA em 1971 do que em 1986 (Quadro II.1).

Quadro II.1 - Patentes Concedidas nos EUA, Médias Trienais

Uma série de mudanças institucionais e legais, ao lado do florescimento de novos setores da economia fortemente baseados em tecnologia ajudam a explicar o ressurgimento de interesse pelas patentes. Estaria fora dos propósitos deste trabalho descrever as mudanças por que passou o sistema de patentes americano nas últimas duas décadas. O foco aqui centra-se em apontar a evolução da cobertura jurídica dada às invenções de biotecnologia e o correspondente ajuste realizado no nível administrativo (Seções II.1 e II.2) e em mostrar os principais beneficiários desta tendência, que se concretizou em uma rápida expansão do número de patentes de biotecnologia concedidas na década de 90 (Seção II.3).

II.1 - A Evolução do Marco Legal nos EUA

A resposta inicial aos depositantes de pedidos de patente da nova biotecnologia não foi favorável por parte das autoridades administrativas encarregadas de gerenciar o sistema de patentes americano. Durante anos, a posição do USPTO foi de que os pedidos reivindicando proteção sobre matéria viva careciam de "novidade", um dos requisitos essenciais para o reconhecimento da invenção como passível de patenteamento, tendo sido necessárias extensas demandas judiciais para que a posição fosse revertida.

Duas invenções, em particular, simbolizam a profunda transformação operada pelas novas técnicas desenvolvidas e o desafio por elas imposto ao sistema de patentes: A primeira delas, e mais importante por seu alcance em criar todo um novo campo de experimentos, foi realizada pelos pesquisadores Stanley Cohen (Universidade de Stanford) e Herbert Boyer (Universidade da Califórnia) para o corte e inserção de sequências genéticas. Unindo a experiência de inserção em plasmídeos com o conhecimento de enzimas de restrição, a dupla conseguiu enxertar em um plasmídeo bacteriano um gene proveniente de um DNA estranho àquele plasmídeo. O plasmídeo foi então inserido em um organismo vivo que se tornou uma "fábrica" capaz de reproduzir o gene desejado em quantidades ilimitadas [6].

Foi uma invenção revolucionária e uma das bases constitutivas do que se convencionou chamar a nova biotecnologia. O pedido tramitou durante sete anos no USPTO até ser finalmente concedido em dezembro de 1980 (Patente US 4.237.224, "Process for producing biologically functional molecular chimeras."). Além desta, duas outras englobam a chamada tecnologia Cohen-Boyer: as patentes US 4.468.464 e US 4.740.470, ambas com o título "Biologically functional molecular chimeras". Até 1999, as invenções haviam gerado cerca de US$ 251 milhões em royalties para ambas as universidades e foram licenciadas para 467 diferentes companhias, tendo se tornado um paradigma de interação bem sucedida universidade-empresa [7].

O caso, porém, que marcou uma virada na concepção quanto ao patenteamento de formas de vida foi o da bactéria manipulada por A. Chakrabarty. O pedido de patente foi inicialmente indeferido pelo USPTO, aonde fora depositado em 1972, sob a alegação de ter como objeto um ser vivo. O processo, entretanto, prosseguiu em todas as esferas adminitrativas e jurídicas até que, em histórica e polêmica decisão, a Suprema Corte Americana [8], em 1980, determinou que microorganismos manipulados pela mão do homem deveriam ser considerados como matéria patenteável. A invenção de Chakrabarty compreendia uma bactéria do gênero Pseudomonas, manipulada geneticamente, conferindo-lhe a propriedade de degradar hidrocarbonetos poluidores, provenientes do petróleo.

Essa decisão abriu o caminho para o reconhecimento de proteção a outras formas de vida, como aponta C. Walter na seguinte análise: "...Testando a solidez da decisão sobre o caso Chakrabarty, foi apresentado, em 1987, o caso Ex parte Allen relacionado a ostras geneticamente modificadas. Embora o pedido tenha sido recusado, a decisão do Comitê de Recursos sobre Patentes deixou em aberto a possibilidade de patenteamento de animais vivos. Seguindo imediatamente esta decisão, o USPTO anunciou sua nova diretriz para o assunto: 'A Organização de Marcas e Patentes passa a considerar organismos vivos multicelulares (desde que não humanos) não presentes na natureza, passíveis de serem considerados como matéria patenteável, dentro do escopo do US Code, Título 35, Seção 101. A decisão não afeta o princípio e a prática segundo os quais produtos encontrados na natureza não são considerados matéria patenteável...'. A nova diretriz tornou inevitável que, menos de um ano depois fosse concedida a primeira patente para um animal, que veio a ser concedida em 12 de abril de 1988 para o Rato de Harvard... um animal geneticamente modificado de forma a se tornar suscetível a contrair câncer de mama..." [9].

A extensão da aplicação prática desses conceitos no sistema americano pode ser vista no polêmico caso de patenteamento de uma linhagem de células humanas, como descrito por J. Howe: "Na década de 70, John Moore passou por um tratamento para câncer no Hospital da Universidade da Califórnia de Los Angeles. Seu médico descobriu que o tecido do baço de Moore produzia uma proteína capaz de combater o câncer. Sem informar ao paciente, a UCLA criou uma linhagem de células a partir desse tecido, obteve patente dessa invenção e a vendeu...[Trata-se da patente US 4.438.032 "Linhagem Única de Linfócitos T e Produtos Derivados"] Moore veio a saber da "descoberta" da UCLA anos depois e, compreensivelmente, entrou com uma ação judicial contra a universidade. Em 1990, a Corte Suprema da Califórnia decidiu contra Moore, estabelecendo que, uma vez que a célula tinha deixado seu corpo, ele não poderia mais reivindicar qualquer propriedade sobre ela...". [10]

Sob o aspecto estritamente conceitual do sistema de patentes, pode-se entender que formas de vida, mesmo de animais complexos, como o rato de Harvard, preenchem os requisitos necessários à sua proteção. O rato de Harvard não é um animal que se encontre na natureza e a manipulação genética por que passou, pode-se argumentar, resultou em uma criação nova, provida de atividade inventiva e, sem dúvida, útil. A controvérsia, contudo, torna-se ainda mais aguda quando se trata de definir a natureza do que pode ser considerado como invenção no campo do sequenciamento genético.

Um dos pilares do sistema de patentes sempre foi a distinção entre os conceitos de invenção e descoberta, sendo o primeiro associado a criações do engenho humano e o segundo resultante da aplicação desse mesmo engenho para o entendimento do que se passa na natureza. Por exemplo, elementos químicos, antes desconhecidos, vieram a ser descobertos nos séculos XIX e XX sem ter havido a hipótese de os cientistas que mostraram ao mundo a existência do urânio e do plutônio patentearem suas descobertas. Por quê, então, seriam as sequências genéticas patenteáveis? Não são elas fenômenos naturais, como os elementos químicos ou a lei da gravidade? Embora a definição do que seja invenção não seja enunciada em momento algum no principal tratado internacional [11] que regula a proteção à propriedade industrial nem o seja nas legislações nacionais de patentes, assentou-se, com base no senso comum, que as invenções são patenteáveis, mas as descobertas não.

II.2 - Patenteando Genes: A Prática Americana

A separação normalmente feita entre descoberta e invenção é considerada irrelevante pelo USPTO. Na verdade, a organização americana recusa in limine, como o fazem suas congêneres de outros países, a proteção a tudo aquilo que seja dado como encontrável na natureza. Assim, pois, no entendimento estrito de descoberta como o conhecimento de fenômenos naturais, encontra-se o USPTO em linha com todas as demais organizações de propriedade industrial ao negar proteção a eventuais pedidos de patente dessa categoria.

Contudo, não há, da parte da organização americana, óbice algum em proteger alguma invenção que possua como ponto de partida uma descoberta. Quando lhe foram apresentadas objeções de que sequências genéticas não deveriam ser patenteadas por se tratarem de descobertas e não de invenções, o USPTO rebateu com os seguintes argumentos: "Um inventor pode patentear uma descoberta quando o pedido satisfaz os requisitos técnicos. A Constituição americana usa a palavra 'descobertas' na autorização que faz ao Congresso para promover o progresso realizado por inventores... Quando o Congresso promulgou a legislação de patentes, foi especificamente autorizada a concessão de patente para a pessoa que 'inventa ou descobre' uma composição de matéria nova e útil... A descoberta feita por um inventor de um gene pode ser a base para uma patente cobrindo a composição genética isolada de seu estado natural e processada, por meio de etapas de purificação..." [12]

Este, assim como os demais posicionamentos abaixo traduzidos, constam do documento recentemente publicado pelo USPTO, que constitui diretriz para o exame técnico dos pedidos de patente realizados na organização, explicitando a abordagem quanto a requisito de patenteabilidade, com repercussão particularmente forte sobre os pedidos que tratam de sequências genéticas. Em saudável prática democrática, a diretriz definitiva só foi expedida após um período de debates públicos em que vigorou uma orientação provisória, tendo sido recebidos e considerados comentários de 17 organizações e 35 pessoas, sendo na redação do documento definitivo dadas respostas a todos eles, elucidando a posição americana quanto ao patenteamento no campo genético.

Prosseguindo com as objeções apontadas quanto ao patenteamento de material genético, diversos comentários foram encaminhados ao USPTO afirmando que os genes, por serem encontrados na natureza, não constituem uma nova composição de matéria, ao que assim se contrapõe a organização: "Uma molécula de DNA isolada e purificada que possui a mesma sequência verificada em um gene natural é passível de ser patenteada porque (1) um gene separado pode ser protegido enquanto composição de matéria ou artigo de manufatura visto aquela molécula de DNA  não ocorrer de forma isolada na natureza, ou (2) as preparações sintéticas de DNA podem ser protegidas considerando que seu estado de pureza é diferente daquele encontrado em compostos naturais." [13]

Foram também apresentadas objeções de que as sequências naturais genéticas não estariam incorporadas ao conhecido conceito de matéria patenteável. A construção elaborada pelo USPTO foi a seguinte: "O Congresso adotou a legislação corrente definindo o que é matéria patenteável (US Code § 101) em 1952. A história legislativa indica que a intenção do Congresso foi tornar matéria passível de patenteamento 'qualquer coisa sob o sol feita pelo homem'... A Suprema Corte interpreta esse comando como cobrindo 'manufatura ou composição de matéria não ocorrida na natureza - um produto do engenho humano.'...Assim, a intenção do Congresso quanto à patenteabilidade de compostos químicos já foi determinada: compostos de DNA que possuam sequências genéticas naturais são patenteáveis quando isolados de seu estado natural e purificados e quando o pedido atende aos demais requisitos de patenteamento." [14] (USPTO, op. cit, p. 1093).

Observe-se aqui e nos exemplos abaixo, constantes do documento-diretriz, o enfoque do USPTO segundo o qual sequências de DNA são compostos químicos no que diz respeito ao cumprimento do requisito técnico do que se considera matéria sujeita a patenteamento: "Uma molécula purificada de DNA, isolada de seu ambiente natural...é um composto químico patenteável, se cumpridos todos os requisitos técnicos... A lei de patentes não fornece base alguma para tratar o DNA de modo diferente a qualquer outro composto químico, que são composições de matéria." (USPTO, op. cit, pp. 1094-1095).

Todo o posicionamento do USPTO quanto à controversa questão da proteção às sequências genéticas foi assim sumarizado pelo diretor do Departamento de Biotecnologia da organização, John Doll: "Na aplicação da lei de patentes às invenções sobre sequências de DNA, a primeira questão que surge é se tais invenções constituem matéria passível de patenteamento. As sequências de DNA, para a lei americana, são, tipicamente, composições de matéria selecionadas e purificadas ..., constituindo, portanto, matéria sujeita a patenteamento. Para que as sequências de DNA sejam distinguidas de suas contrapartes naturais, as quais não podem ser patenteadas, o pedido de patente tem de declarar que a invenção foi purificada ou isolada ou é parte de uma molécula recombinante ou parte incorporada a um vetor." [15]

Seja na condensação produzida pelo diretor do USPTO seja no documento de diretrizes, não é difícil perceber que duas palavras-chave tornaram-se os pilares para a construção técnica que permite o patenteamento de sequências genéticas: isolamento e purificação. Os dois substantivos e seus derivativos aparecem nada menos de 34 vezes no documento de diretrizes cumprindo o papel de apartar o material encontrado na natureza daquele que, se isolado ou purificado, além de cumprir os demais requisitos técnicos torna-se apto a obter a proteção conferida pelo USPTO.

II.3 - Principais Titulares das Patentes de Biotecnologia

A elasticidade do entendimento jurídico americano não se associa à existência de casos isolados de patenteamento, mas antes a uma importante tendência na fronteira tecnológico-econômica alicerçada em uma quadro muito receptivo à proteção, tanto no plano administrativo quanto no judicial. A magnitude dessa tendência pode ser visualizada nos quadros seguintes. O Quadro II.2 mostra o número crescente de patentes concedidas na Classe 435 da Classificação Americana de Patentes, aqui tomada como indicativo das patentes de biotecnologia [16].Mais de seis mil patentes foram concedidas em 1998 e 1999, num crescimento,como aponta o gráfico, acelerado na segunda metade da década de 90.

Os principais beneficiários da proteção ampliada conferida nos EUA podem ser vistos na Tabela II.3 que traz a relação dos 15 principais titulares de patentes na Classe 435 para os anos de 1998 e 1999. Observe-se que 11 empresas e instituições aparecem na liderança em ambos os anos (indicadas em negrito na tabela), indicando uma estratégia sistemática de patenteamento visando ocupar espaço em áreas de fronteira tecnológica. Registre-se, ainda, a existência de novos atores ocupando posições de destaque.

De fato, a composição da listagem de 11 empresas e instituições líderes mostra a existência de três grupos de competidores. No primeiro, encontram-se novas empresas de faturamento ainda relativamente reduzido, mas que vêm construindo extensos portfólios de patentes para alavancar sua posição de mercado e são subsidiárias ou atuam em estreita associação com empresas gigantes do setor químico e farmacêutico. Situamos neste grupo as empresas Incyte Pharmaceuticals (atua em associação com a GlaxoSmithKline), Pioneer Hi-Bred Inc. (subsidiária da Du Pont) e Chiron Corp. (associada à Novartis). As três possuem números comparáveis de patentes concedidas - 396 para a Chiron, 395 para a Incyte e 364 para a Pioneer Hi-Bred. O ponto de destaque, contudo, é a absoluta contemporaneidade desses portfólios, tendo sido todos eles construídos basicamente na segunda metade dos anos 90. Considerando as patentes concedidas de 1995 a 1999, os percentuais de cobertura sobre os respectivos portfólios totais são os seguintes: 96,7% para a Incyte, 84,3% para a Pioneer Hi-Bred e 83,8% para a Chiron [17].

Tab. II.3 - Patentes Concedidas na Classe 435, por Titular, 1998 e 1999

 

Titular

Nº Pats 1998

Titular

Nº Pats. 1999

1.

Univ. of California

125

Incyte Pharm.

222

2.

Incyte Pharm.

104

Smithkline-Beecham Corp.

132

3.

Pioneer Hi-Bred Int. Inc.

90

Univ. of California

116

4.

US H. Health Services

89

Pioneer Hi-Bred Int. Inc.

85

5.

Genentech

85

Novo Nordisk

75

6.

Novo Nordisk

78

US H. Health Services

74

7.

Chiron Corp.

73

Monsanto Corp.

63

8.

Smithkline-Beecham Corp.

62

Johns Hopkins Univ.

55

9.

Becton, Dickson & Co.

55

Isis Pharm.

54

10.

Johns Hopkins Univ.

50

Human Genome Sciences I.

54

11.

Boehringer Mannheim

49

Novartis

50

12

Novartis

46

Abbot Lab.

47

13.

Abbot Lab.

46

Institut Pasteur

45

14.

Univ. of Texas

38

General Hospital Corp.

43

15.

Institut Pasteur

38

Chiron Corp.

42

Fonte: USPTO, Patente BIB, Série Cassis, Abril de 2000. Listagem elaborada pelo autor.

O segundo grupo é representado por empresas tradicionais de grande porte. Todas possuem extensos acervos de patentes e, à exceção da Novo Nordisk cujo ramo principal de negócios é a produção de enzimas, não têm seus portfólios majoritariamente voltados para invenções da Biologia Molecular, ainda que seja este campo relevante em todos os casos. Na relação de empresas que compõem este grupo foi levantado o número de patentes a elas concedidas no período 1995-99, bem como o percentual desse total de patentes relacionadas a Microbiologia e Biologia Molecular (Classe 435 da Classificação Americana de Patentes). São elas: Novo Nordisk (534 patentes; 55,1% possuem a classificação 435), Smithkline-Beecham (631; 33,3%), Novartis (336; 33,9%) e Abbott Laboratories (849; 21,9%).

O terceiro grupo é formado por instituições vinculadas a pesquisa e ensino, e sua presença é um traço característico do que se passa no setor de biotecnologia, fortemente dependente de pesquisas acadêmicas e de recursos públicos. Nele encontram-se as seguintes instituições: Institut Pasteur, fundação de origem francesa, com um acervo de 147 patentes americanas concedidas no período 1995/99, das quais a quase totalidade (131 patentes) possuem a classificação 435; duas universidades, a da Califórnia (1602 patentes no período assinalado, das quais 26,8% classificadas em 435) e Johns Hopkins, com um acervo menor (280 patentes) e mais concentrado em Biologia (52,1% das patentes na classe 435). Destaque-se por último a participação direta do governo americano por meio do seu Serviço de Saúde, repartição que obteve 672 patentes em 1995/99, das quais 48,4% classificadas em 435.



[1][1] Economista do INPI/CEDIN. Agradeço a Alexandre Vasconcellos (INPI/DIRPA) pelos comentários e informações fornecidos. As opiniões aqui emitidas refletem exclusivamente o ponto de vista do autor.

[2][2] Técnicas da biotecnologia tradicional, como os processos fermentativos, por exemplo, são conhecidas há muito tempo e vistas como um campo corriqueiro de patenteamento, à diferença das novas técnicas que, ao modificar a vida de forma programada, colocaram em xeque os princípios básicos que regem o sistema de patentes, como se verá na Seção II.

[3][3] Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio, Anexo 1C ao Acordo de Marrakesh, que estabeleceu a Organização Mundial do Comércio, firmado em 15 de abril de 1994 e incorporado à legislação nacional por meio do Decreto 1.355, de 30 de dezembro de 1994.

[4][4] Além de todas as complexidades técnicas, o tema desperta debates nos campos religioso e da ética. O objeto desta Nota, porém, circunscreve-se aos princípios básicos que norteiam a admissibilidade de ingresso no mundo das patentes, a saber: atividade inventiva, novidade e aplicação industrial.

[5][5] Vide, por exemplo, "Universidades Brasileiras e Patentes: Utilização do Sistema nos Anos 90", INPI/CEDIN, Novembro de 2000.

[6][6] Stanford University, Top 10 Stanford Inventions, Corporate Guide, diponível em Http://corporate.stanford.edu/innovations/invent.html

[7][7] Stanford University, Office of Technology Licensing, Annual Reports, FY 1998/99; FY 1997/98.

[8][8] O caso tornou-se conhecido como Diamond x Chakrabarty. Sidney Diamond, diretor do  USPTO, representava o ponto de vista contrário ao patenteamento. Ananda Chakrabarty trabalhava para a General Electric Co., titular da patente US 4.259.444, que veio a ser finalmente expedida em março de 1981. A contenda mostrou a profunda divisão de opiniões dentro da Suprema Corte, tendo a visão pró-patente saído vitoriosa pela apertada margem de 5x4.

[9][9] Carrie F. Walter, Beyond the Harvard Mouse: Current Patent Practice and the Necessity of Clear Guidelines in Biotechnology Patent Law, Indiana Law Journal, Volume 73, Number 3, Summer 1998, disponível em www.law.indiana.edu/ilj/v73/no3/walter.html

[10][10] Jeff Howe, Copyrighting the Book of Life, Feed Mag, Abril, 2000, disponível em www.feedmag.com

[11][11] A Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, assinada em 1883, estabelece princípios ainda hoje válidos para a regulamentação de direitos sobre patentes. A Convenção passou por seis revisões, sendo a mais recente a de Estocolmo (1967) a cuja parte substantiva (artigos 1º a 12 da Convenção) o Brasil aderiu em 1992, por meio do Decreto 635, publicado em 24 de agosto daquele ano.

[12][12] USPTO, Utility Examination Guidelines, Federal Register, vol. 66, nº 4, 2001, pp.1092-1093. As diretrizes tornaram-se efetivas em 5 de janeiro de 2001. O texto integral está disponível em www.uspto.gov

[13][13] Ibid, p. 1093.

[14][14] Quatro classes de invenções são autorizadas pela legislação americana (US Code, Título 35, Seção 101): Processo; Máquina; Manufatura; e Composição de Matéria, bem como as melhorias decorrentes.

[15][15] J. J. Doll, The Patenting of DNA, Science, 280: 689-690, 1998, disponível em www.science.org

[16][16] "Biotecnologia" é um termo reconhecidamente amplo e as invenções relacionadas podem estar grupadas em diferentes locais da Classificação de Patentes Americana. No levantamento aqui realizado foram consideradas exclusivamente as patentes que possuem classificação (principal ou secundária) na classe 435 cujo título é "Biologia Molecular e Microbiologia".

[17][17] Foram consideradas as patentes concedidas até dezembro de 1999. Listagens e percentuais sobre os três agrupamentos propostos elaborados pelo autor a partir de USPTO, Patent BIB, Série Cassis, Abril de 2000.

 

Retirado de: http://www.geocities.com/prop_industrial/bio_12.htm