® BuscaLegis.ccj.ufsc.br
Nota sobre Patentes e Biotecnologia
Eduardo Assumpção [1]
Ao longo de sua história, o sistema de
propriedade intelectual recebeu desafios de novas tecnologias que rompem os
limites tradicionais de proteção legal e impõem um questionamento quanto ao que
pode (ou deve) ser apropriado como monopólio legal temporário. Tempo e
considerável reflexão judicial são necessários antes que novos parâmetros sejam
estabelecidos, permitindo acomodar as demandas apresentadas por empresas e
inventores com o que se supõe ser o interesse da sociedade.
A moderna biotecnologia tem sido um
campo em que se multiplicam desafios administrativos e legais para todos os
envolvidos na busca de proteção legal propiciada pela propriedade intelectual.
Como se sabe, uma nova biotecnologia surgiu nos anos 70, tendo por base
técnicas desenvolvidas para a manipulação genética. A engenharia genética está
relacionada à produção de microorganismos modificados artificialmente capazes
de fornecer produtos valiosos, como insulina e interferon. Mais recentemente,
novas técnicas passaram a permitir a experimentação com sucesso em animais
superiores e plantas. Em seu desdobramento mais amplo, está sendo mapeada a
fonte de toda a matéria viva: as sequências genéticas - inclusive humanas -,
compostas por moléculas de DNA.
Ao adquirir o poder de transformar o
modo como a vida se expressa, a nova biotecnologia testou os limites do sistema
de patentes e dele recebeu uma resposta inicialmente negativa. [2]. Contudo, a refração inicial veio sendo
substituída, nas duas últimas décadas, por um maior grau de admissibilidade em
considerar matéria viva e seus elementos constitutivos como objetos
patenteáveis. Não há ainda consenso sobre o quão longe os países devem caminhar
nessa direção. Parece indiscutível, porém, ser os EUA o país que, no momento,
possui a abordagem mais destacadamente pró-patentes de biotecnologia.
Seja pelo número das invenções ali
produzidas, - e pela pressão daí decorrente por parte das empresas e inventores
-, seja por uma postura tradicionalmente a favor de proteção a direitos de
propriedade intelectual, as autoridades administrativas e judiciais americanas
traçaram novos parâmetros que ampliaram o escopo de proteção, incluindo formas
superiores de vida animal e sequências genéticas, o que dentre outras
consequências renovou o interesse pelo sistema de patentes, como mostram os
números da Seção II.
De outra parte, sobrepassando as
fronteiras nacionais, o panorama internacional recente é marcado pelo incentivo
à construção de sistemas de patentes mais fortes, resultando daí um novo quadro
institucional. Tratados e mecanismos jurídicos, como o Patent Cooperation
Treaty - PCT, foram aperfeiçoados tendo em vista o horizonte internacional de
proteção às criações tecnológicas. Acima de tudo, um amplo processo de
convergência das legislações nacionais de patentes foi obtido a partir da
conclusão do acordo internacional ADPIC (TRIPS é o acrônimo em inglês: Trade
Related Aspects of Intellectual Property Rights), cuja aplicação encontra-se
aos cuidados da Organização Mundial do Comércio. [3].
No Brasil, a Lei 9.279/96, que regula a
proteção à propriedade industrial, é muito clara na demarcação de limites ao
patenteamento no campo da biotecnologia. Os legisladores definiram que os
microorganismos transgênicos - cumpridos determinados requisitos técnicos - são
aceitos como matéria patenteável. Qualquer outra forma de vida contudo - sejam
plantas, sejam animais - não podem ser patenteados (Lei 9.279/96, artigo 18,
inciso III e Parágrafo único). Para a proteção às plantas, atendendo ao
disposto no artigo 27, 3(b) do tratado TRIPS, foi instituída a Lei 9.456, de
abril de 1997, para proteção aos cultivares, abrangendo tanto as plantas de
semente como as de reprodução assexuada.
Ficou clara, dessa maneira, a disjuntiva criada pelo diferencial entre o
que Brasil, de um lado, e outros países, notadamente os EUA, de outro,
consideram como patenteável no campo da biotecnologia[4], não obstante encontrar-se a limitação imposta
pela legislação nacional em linha com o estipulado no acordo TRIPS (artigo 27,
3b). Nesse sentido, visa este trabalho, em um primeiro objetivo, apontar os
fundamentos técnicos que permitiram a abertura do hiato apontado. Com este
propósito, e estabelecendo o contraponto, buscou-se enfocar (Seção II) os
argumentos que sustentam a abordagem dos EUA quanto à proteção à biotecnologia,
em especial, a posição da Organização Americana de Marcas e Patentes (USPTO)
sobre o patenteamento de sequências genéticas à luz dos conceitos tradicionais
do sistema de patentes. A Seção II é complementada com um levantamento
estatístico das principais empresas e instituições beneficiárias da prática
adotada nos EUA.
O segundo objetivo deste trabalho é
mostrar a posição adotada no Brasil, delineando os limites traçados pela
legislação atual para a proteção da biotecnologia (Seção III). Como se verá, a
Lei 9.279/96 permitiu a abertura do mercado brasileiro às patentes da moderna
biotecnologia com reflexos particularmente importantes nas áreas de saúde e
agricultura. Empresas, universidades e centros de pesquisa passaram a contar
com um elemento de valorização econômica representado pelo poder das patentes
em conferir a seu titular um monopólio legal temporário e já existem indicações
positivas de instituições públicas que começaram a se utilizar da proteção
disponibilizada [5]. A Seção III é
complementada com um levantamento estatístico sobre o perfil dos depositantes
de patentes de biotecnologia no Brasil, tomando-se como base os pedidos "pipeline"
depositados no INPI.
II. O Cenário Americano
O renovado interesse pelo sistema de
patentes ocorrido nos últimos anos foi até certo ponto surpreendente. Quando o
número de patentes concedidas nos EUA passou a crescer aceleradamente, no final
da década de 80, o panorama que se tinha poderia ser definido como de
estagnação. O número de patentes concedidas nos EUA ao final da década de 60
não diferia em muito do total registrado em meados da década de 80. De fato,
mais patentes foram concedidas nos EUA em 1971 do que em 1986 (Quadro
II.1).
Quadro II.1 - Patentes Concedidas nos
EUA, Médias Trienais
Uma série de mudanças institucionais e
legais, ao lado do florescimento de novos setores da economia fortemente
baseados em tecnologia ajudam a explicar o ressurgimento de interesse pelas
patentes. Estaria fora dos propósitos deste trabalho descrever as mudanças por
que passou o sistema de patentes americano nas últimas duas décadas. O foco
aqui centra-se em apontar a evolução da cobertura jurídica dada às invenções de
biotecnologia e o correspondente ajuste realizado no nível administrativo
(Seções II.1 e II.2) e em mostrar os principais beneficiários desta tendência,
que se concretizou em uma rápida expansão do número de patentes de
biotecnologia concedidas na década de 90 (Seção II.3).
II.1 - A Evolução do Marco Legal nos EUA
A resposta inicial aos depositantes de pedidos
de patente da nova biotecnologia não foi favorável por parte das autoridades
administrativas encarregadas de gerenciar o sistema de patentes americano.
Durante anos, a posição do USPTO foi de que os pedidos reivindicando proteção
sobre matéria viva careciam de "novidade", um dos requisitos
essenciais para o reconhecimento da invenção como passível de patenteamento,
tendo sido necessárias extensas demandas judiciais para que a posição fosse
revertida.
Duas invenções, em particular,
simbolizam a profunda transformação operada pelas novas técnicas desenvolvidas
e o desafio por elas imposto ao sistema de patentes: A primeira delas, e mais
importante por seu alcance em criar todo um novo campo de experimentos, foi
realizada pelos pesquisadores Stanley Cohen (Universidade de Stanford) e
Herbert Boyer (Universidade da Califórnia) para o corte e inserção de
sequências genéticas. Unindo a experiência de inserção em plasmídeos com o
conhecimento de enzimas de restrição, a dupla conseguiu enxertar em um plasmídeo
bacteriano um gene proveniente de um DNA estranho àquele plasmídeo. O plasmídeo
foi então inserido em um organismo vivo que se tornou uma "fábrica"
capaz de reproduzir o gene desejado em quantidades ilimitadas [6].
Foi uma invenção revolucionária e uma das
bases constitutivas do que se convencionou chamar a nova biotecnologia. O
pedido tramitou durante sete anos no USPTO até ser finalmente concedido em
dezembro de 1980 (Patente US 4.237.224, "Process for producing
biologically functional molecular chimeras."). Além desta, duas outras
englobam a chamada tecnologia Cohen-Boyer: as patentes US 4.468.464 e US
4.740.470, ambas com o título "Biologically functional molecular
chimeras". Até 1999, as invenções haviam gerado cerca de US$ 251 milhões
em royalties para ambas as universidades e foram licenciadas para 467
diferentes companhias, tendo se tornado um paradigma de interação bem sucedida
universidade-empresa [7].
O caso, porém, que marcou uma virada na
concepção quanto ao patenteamento de formas de vida foi o da bactéria
manipulada por A. Chakrabarty. O pedido de patente foi inicialmente indeferido
pelo USPTO, aonde fora depositado em 1972, sob a alegação de ter como objeto um
ser vivo. O processo, entretanto, prosseguiu em todas as esferas adminitrativas
e jurídicas até que, em histórica e polêmica decisão, a Suprema Corte Americana [8], em 1980, determinou que microorganismos
manipulados pela mão do homem deveriam ser considerados como matéria
patenteável. A invenção de Chakrabarty compreendia uma bactéria do gênero
Pseudomonas, manipulada geneticamente, conferindo-lhe a propriedade de degradar
hidrocarbonetos poluidores, provenientes do petróleo.
Essa decisão abriu o caminho para o
reconhecimento de proteção a outras formas de vida, como aponta C. Walter na seguinte
análise: "...Testando a solidez da decisão sobre o caso Chakrabarty, foi
apresentado, em 1987, o caso Ex parte Allen relacionado a ostras
geneticamente modificadas. Embora o pedido tenha sido recusado, a decisão do
Comitê de Recursos sobre Patentes deixou em aberto a possibilidade de
patenteamento de animais vivos. Seguindo imediatamente esta decisão, o USPTO
anunciou sua nova diretriz para o assunto: 'A Organização de Marcas e Patentes
passa a considerar organismos vivos multicelulares (desde que não humanos) não
presentes na natureza, passíveis de serem considerados como matéria
patenteável, dentro do escopo do US Code, Título 35, Seção 101. A decisão não
afeta o princípio e a prática segundo os quais produtos encontrados na natureza
não são considerados matéria patenteável...'. A nova diretriz tornou inevitável
que, menos de um ano depois fosse concedida a primeira patente para um animal,
que veio a ser concedida em 12 de abril de 1988 para o Rato de Harvard... um
animal geneticamente modificado de forma a se tornar suscetível a contrair
câncer de mama..." [9].
A extensão da aplicação prática desses
conceitos no sistema americano pode ser vista no polêmico caso de patenteamento
de uma linhagem de células humanas, como descrito por J. Howe: "Na década
de 70, John Moore passou por um tratamento para câncer no Hospital da
Universidade da Califórnia de Los Angeles. Seu médico descobriu que o tecido do
baço de Moore produzia uma proteína capaz de combater o câncer. Sem informar ao
paciente, a UCLA criou uma linhagem de células a partir desse tecido, obteve
patente dessa invenção e a vendeu...[Trata-se da patente US 4.438.032
"Linhagem Única de Linfócitos T e Produtos Derivados"] Moore veio a
saber da "descoberta" da UCLA anos depois e, compreensivelmente,
entrou com uma ação judicial contra a universidade. Em 1990, a Corte Suprema da
Califórnia decidiu contra Moore, estabelecendo que, uma vez que a célula tinha
deixado seu corpo, ele não poderia mais reivindicar qualquer propriedade sobre
ela...". [10]
Sob o aspecto estritamente conceitual
do sistema de patentes, pode-se entender que formas de vida, mesmo de animais
complexos, como o rato de Harvard, preenchem os requisitos necessários à sua
proteção. O rato de Harvard não é um animal que se encontre na natureza e a
manipulação genética por que passou, pode-se argumentar, resultou em uma
criação nova, provida de atividade inventiva e, sem dúvida, útil. A
controvérsia, contudo, torna-se ainda mais aguda quando se trata de definir a
natureza do que pode ser considerado como invenção no campo do sequenciamento
genético.
Um dos pilares do sistema de patentes
sempre foi a distinção entre os conceitos de invenção e descoberta, sendo o
primeiro associado a criações do engenho humano e o segundo resultante da
aplicação desse mesmo engenho para o entendimento do que se passa na natureza.
Por exemplo, elementos químicos, antes desconhecidos, vieram a ser descobertos
nos séculos XIX e XX sem ter havido a hipótese de os cientistas que mostraram
ao mundo a existência do urânio e do plutônio patentearem suas descobertas. Por
quê, então, seriam as sequências genéticas patenteáveis? Não são elas fenômenos
naturais, como os elementos químicos ou a lei da gravidade? Embora a definição
do que seja invenção não seja enunciada em momento algum no principal tratado
internacional [11] que regula a proteção
à propriedade industrial nem o seja nas legislações nacionais de patentes,
assentou-se, com base no senso comum, que as invenções são patenteáveis, mas as
descobertas não.
II.2 - Patenteando Genes: A Prática
Americana
A separação normalmente feita entre
descoberta e invenção é considerada irrelevante pelo USPTO. Na verdade, a
organização americana recusa in limine, como o fazem suas
congêneres de outros países, a proteção a tudo aquilo que seja dado como
encontrável na natureza. Assim, pois, no entendimento estrito de descoberta
como o conhecimento de fenômenos naturais, encontra-se o USPTO em linha com
todas as demais organizações de propriedade industrial ao negar proteção a eventuais
pedidos de patente dessa categoria.
Contudo, não há, da parte da
organização americana, óbice algum em proteger alguma invenção que possua como
ponto de partida uma descoberta. Quando lhe foram apresentadas objeções de que
sequências genéticas não deveriam ser patenteadas por se tratarem de
descobertas e não de invenções, o USPTO rebateu com os seguintes argumentos:
"Um inventor pode patentear uma descoberta quando o pedido satisfaz os
requisitos técnicos. A Constituição americana usa a palavra 'descobertas' na
autorização que faz ao Congresso para promover o progresso realizado por
inventores... Quando o Congresso promulgou a legislação de patentes, foi
especificamente autorizada a concessão de patente para a pessoa que 'inventa ou
descobre' uma composição de matéria nova e útil... A descoberta feita por um
inventor de um gene pode ser a base para uma patente cobrindo a composição
genética isolada de seu estado natural e processada, por meio de etapas de
purificação..." [12]
Este, assim como os demais posicionamentos
abaixo traduzidos, constam do documento recentemente publicado pelo USPTO, que
constitui diretriz para o exame técnico dos pedidos de patente realizados na
organização, explicitando a abordagem quanto a requisito de patenteabilidade,
com repercussão particularmente forte sobre os pedidos que tratam de sequências
genéticas. Em saudável prática democrática, a diretriz definitiva só foi
expedida após um período de debates públicos em que vigorou uma orientação
provisória, tendo sido recebidos e considerados comentários de 17 organizações
e 35 pessoas, sendo na redação do documento definitivo dadas respostas a todos
eles, elucidando a posição americana quanto ao patenteamento no campo genético.
Prosseguindo com as objeções apontadas
quanto ao patenteamento de material genético, diversos comentários foram
encaminhados ao USPTO afirmando que os genes, por serem encontrados na
natureza, não constituem uma nova composição de matéria, ao que assim se
contrapõe a organização: "Uma molécula de DNA isolada e purificada que
possui a mesma sequência verificada em um gene natural é passível de ser
patenteada porque (1) um gene separado pode ser protegido enquanto composição
de matéria ou artigo de manufatura visto aquela molécula de DNA não ocorrer de forma isolada na natureza, ou
(2) as preparações sintéticas de DNA podem ser protegidas considerando que seu
estado de pureza é diferente daquele encontrado em compostos naturais." [13]
Foram também apresentadas objeções de
que as sequências naturais genéticas não estariam incorporadas ao conhecido
conceito de matéria patenteável. A construção elaborada pelo USPTO foi a
seguinte: "O Congresso adotou a legislação corrente definindo o que é
matéria patenteável (US Code § 101) em 1952. A história legislativa indica que
a intenção do Congresso foi tornar matéria passível de patenteamento 'qualquer
coisa sob o sol feita pelo homem'... A Suprema Corte interpreta esse comando
como cobrindo 'manufatura ou composição de matéria não ocorrida na natureza -
um produto do engenho humano.'...Assim, a intenção do Congresso quanto à
patenteabilidade de compostos químicos já foi determinada: compostos de DNA que
possuam sequências genéticas naturais são patenteáveis quando isolados de seu
estado natural e purificados e quando o pedido atende aos demais requisitos de
patenteamento." [14] (USPTO, op.
cit, p. 1093).
Observe-se aqui e nos exemplos abaixo,
constantes do documento-diretriz, o enfoque do USPTO segundo o qual sequências
de DNA são compostos químicos no que diz respeito ao cumprimento do requisito
técnico do que se considera matéria sujeita a patenteamento: "Uma molécula
purificada de DNA, isolada de seu ambiente natural...é um composto químico patenteável,
se cumpridos todos os requisitos técnicos... A lei de patentes não fornece base
alguma para tratar o DNA de modo diferente a qualquer outro composto químico,
que são composições de matéria." (USPTO, op. cit, pp. 1094-1095).
Todo o posicionamento do USPTO quanto à
controversa questão da proteção às sequências genéticas foi assim sumarizado
pelo diretor do Departamento de Biotecnologia da organização, John Doll:
"Na aplicação da lei de patentes às invenções sobre sequências de DNA, a
primeira questão que surge é se tais invenções constituem matéria passível de
patenteamento. As sequências de DNA, para a lei americana, são, tipicamente,
composições de matéria selecionadas e purificadas ..., constituindo, portanto,
matéria sujeita a patenteamento. Para que as sequências de DNA sejam
distinguidas de suas contrapartes naturais, as quais não podem ser patenteadas,
o pedido de patente tem de declarar que a invenção foi purificada ou isolada ou
é parte de uma molécula recombinante ou parte incorporada a um vetor." [15]
Seja na condensação produzida pelo
diretor do USPTO seja no documento de diretrizes, não é difícil perceber que
duas palavras-chave tornaram-se os pilares para a construção técnica que
permite o patenteamento de sequências genéticas: isolamento e purificação. Os
dois substantivos e seus derivativos aparecem nada menos de 34 vezes no
documento de diretrizes cumprindo o papel de apartar o material encontrado na
natureza daquele que, se isolado ou purificado, além de cumprir os demais
requisitos técnicos torna-se apto a obter a proteção conferida pelo USPTO.
II.3 - Principais Titulares das
Patentes de Biotecnologia
A elasticidade
do entendimento jurídico americano não se associa à existência de casos
isolados de patenteamento, mas antes a uma importante tendência na fronteira
tecnológico-econômica alicerçada em uma quadro muito receptivo à proteção,
tanto no plano administrativo quanto no judicial. A magnitude dessa tendência
pode ser visualizada nos quadros seguintes. O Quadro II.2 mostra o número crescente
de patentes concedidas na Classe 435 da Classificação Americana de Patentes,
aqui tomada como indicativo das patentes de biotecnologia [16].Mais de seis mil patentes foram concedidas em
1998 e 1999, num crescimento,como aponta o gráfico, acelerado na segunda metade
da década de 90.
Os principais beneficiários da proteção ampliada conferida
nos EUA podem ser vistos na Tabela II.3 que traz a relação dos 15 principais
titulares de patentes na Classe 435 para os anos de 1998 e 1999. Observe-se que
11 empresas e instituições aparecem na liderança em ambos os anos (indicadas em
negrito na tabela), indicando uma estratégia sistemática de patenteamento
visando ocupar espaço em áreas de fronteira tecnológica. Registre-se, ainda, a
existência de novos atores ocupando posições de destaque.
De fato, a composição da listagem de 11 empresas e
instituições líderes mostra a existência de três grupos de competidores. No
primeiro, encontram-se novas empresas de faturamento ainda relativamente
reduzido, mas que vêm construindo extensos portfólios de patentes para
alavancar sua posição de mercado e são subsidiárias ou atuam em estreita
associação com empresas gigantes do setor químico e farmacêutico. Situamos
neste grupo as empresas Incyte Pharmaceuticals (atua em associação com a
GlaxoSmithKline), Pioneer Hi-Bred Inc. (subsidiária da Du Pont) e Chiron Corp.
(associada à Novartis). As três possuem números comparáveis de patentes concedidas
- 396 para a Chiron, 395 para a Incyte e 364 para a Pioneer Hi-Bred. O ponto de
destaque, contudo, é a absoluta contemporaneidade desses portfólios, tendo sido
todos eles construídos basicamente na segunda metade dos anos 90. Considerando
as patentes concedidas de 1995 a 1999, os percentuais de cobertura sobre os
respectivos portfólios totais são os seguintes: 96,7% para a Incyte, 84,3% para
a Pioneer Hi-Bred e 83,8% para a Chiron [17].
Tab. II.3 - Patentes Concedidas
na Classe 435, por Titular, 1998 e 1999
|
Titular |
Nº Pats 1998 |
Titular |
Nº Pats.
1999 |
1. |
Univ. of California |
125 |
Incyte Pharm. |
222 |
2. |
Incyte Pharm. |
104 |
Smithkline-Beecham
Corp. |
132 |
3. |
Pioneer Hi-Bred
Int. Inc. |
90 |
Univ. of California |
116 |
4. |
US H. Health
Services |
89 |
Pioneer Hi-Bred
Int. Inc. |
85 |
5. |
Genentech |
85 |
Novo Nordisk |
75 |
6. |
Novo Nordisk |
78 |
US H. Health
Services |
74 |
7. |
Chiron Corp. |
73 |
Monsanto Corp. |
63 |
8. |
Smithkline-Beecham
Corp. |
62 |
Johns Hopkins Univ. |
55 |
9. |
Becton, Dickson
& Co. |
55 |
Isis Pharm. |
54 |
10. |
Johns Hopkins Univ. |
50 |
Human Genome
Sciences I. |
54 |
11. |
Boehringer Mannheim |
49 |
Novartis |
50 |
12 |
Novartis |
46 |
Abbot Lab. |
47 |
13. |
Abbot Lab. |
46 |
Institut Pasteur |
45 |
14. |
Univ. of Texas |
38 |
General Hospital
Corp. |
43 |
15. |
Institut Pasteur |
38 |
Chiron Corp. |
42 |
Fonte: USPTO, Patente BIB, Série Cassis,
Abril de 2000. Listagem elaborada pelo autor.
O segundo grupo é representado por
empresas tradicionais de grande porte. Todas possuem extensos acervos de
patentes e, à exceção da Novo Nordisk cujo ramo principal de negócios é a
produção de enzimas, não têm seus portfólios majoritariamente voltados para
invenções da Biologia Molecular, ainda que seja este campo relevante em todos
os casos. Na relação de empresas que compõem este grupo foi levantado o número
de patentes a elas concedidas no período 1995-99, bem como o percentual desse
total de patentes relacionadas a Microbiologia e Biologia Molecular (Classe 435
da Classificação Americana de Patentes). São elas: Novo Nordisk (534 patentes;
55,1% possuem a classificação 435), Smithkline-Beecham (631; 33,3%), Novartis
(336; 33,9%) e Abbott Laboratories (849; 21,9%).
O terceiro grupo é formado por
instituições vinculadas a pesquisa e ensino, e sua presença é um traço
característico do que se passa no setor de biotecnologia, fortemente dependente
de pesquisas acadêmicas e de recursos públicos. Nele encontram-se as seguintes
instituições: Institut Pasteur, fundação de origem francesa, com um acervo de
147 patentes americanas concedidas no período 1995/99, das quais a quase
totalidade (131 patentes) possuem a classificação 435; duas universidades, a da
Califórnia (1602 patentes no período assinalado, das quais 26,8% classificadas
em 435) e Johns Hopkins, com um acervo menor (280 patentes) e mais concentrado
em Biologia (52,1% das patentes na classe 435). Destaque-se por último a
participação direta do governo americano por meio do seu Serviço de Saúde,
repartição que obteve 672 patentes em 1995/99, das quais 48,4% classificadas em
435.
[1][1] Economista do INPI/CEDIN. Agradeço a
Alexandre Vasconcellos (INPI/DIRPA) pelos comentários e informações fornecidos.
As opiniões aqui emitidas refletem exclusivamente o ponto de vista do autor.
[2][2] Técnicas da biotecnologia tradicional,
como os processos fermentativos, por exemplo, são conhecidas há muito tempo e vistas
como um campo corriqueiro de patenteamento, à diferença das novas técnicas que,
ao modificar a vida de forma programada, colocaram em xeque os princípios
básicos que regem o sistema de patentes, como se verá na Seção II.
[3][3] Acordo sobre Direitos de Propriedade
Intelectual relacionados ao Comércio, Anexo 1C ao Acordo de Marrakesh, que
estabeleceu a Organização Mundial do Comércio, firmado em 15 de abril de 1994 e
incorporado à legislação nacional por meio do Decreto 1.355, de 30 de dezembro
de 1994.
[4][4] Além de todas as complexidades técnicas,
o tema desperta debates nos campos religioso e da ética. O objeto desta Nota,
porém, circunscreve-se aos princípios básicos que norteiam a admissibilidade de
ingresso no mundo das patentes, a saber: atividade inventiva, novidade e
aplicação industrial.
[5][5] Vide, por exemplo, "Universidades
Brasileiras e Patentes: Utilização do Sistema nos Anos 90", INPI/CEDIN,
Novembro de 2000.
[6][6]
Stanford University, Top 10 Stanford Inventions, Corporate Guide, diponível em
Http://corporate.stanford.edu/innovations/invent.html
[7][7]
Stanford University, Office of Technology Licensing, Annual Reports, FY
1998/99; FY 1997/98.
[8][8] O caso tornou-se conhecido como Diamond
x Chakrabarty. Sidney Diamond, diretor do
USPTO, representava o ponto de vista contrário ao patenteamento. Ananda
Chakrabarty trabalhava para a General Electric Co., titular da patente US
4.259.444, que veio a ser finalmente expedida em março de 1981. A contenda
mostrou a profunda divisão de opiniões dentro da Suprema Corte, tendo a visão
pró-patente saído vitoriosa pela apertada margem de 5x4.
[9][9]
Carrie F. Walter, Beyond the Harvard Mouse: Current Patent Practice and the
Necessity of Clear Guidelines in Biotechnology Patent Law, Indiana Law Journal,
Volume 73, Number 3, Summer 1998, disponível em www.law.indiana.edu/ilj/v73/no3/walter.html
[10][10] Jeff
Howe, Copyrighting the Book of Life, Feed Mag, Abril, 2000, disponível em www.feedmag.com
[11][11] A Convenção da União de Paris para a
Proteção da Propriedade Industrial, assinada em 1883, estabelece princípios
ainda hoje válidos para a regulamentação de direitos sobre patentes. A
Convenção passou por seis revisões, sendo a mais recente a de Estocolmo (1967)
a cuja parte substantiva (artigos 1º a 12 da Convenção) o Brasil aderiu em
1992, por meio do Decreto 635, publicado em 24 de agosto daquele ano.
[12][12]
USPTO, Utility Examination Guidelines, Federal Register, vol. 66, nº 4, 2001,
pp.1092-1093. As diretrizes
tornaram-se efetivas em 5 de janeiro de 2001. O texto integral está disponível
em www.uspto.gov
[13][13] Ibid, p. 1093.
[14][14] Quatro classes de invenções são
autorizadas pela legislação americana (US Code, Título 35, Seção 101):
Processo; Máquina; Manufatura; e Composição de Matéria, bem como as melhorias
decorrentes.
[15][15] J. J.
Doll, The Patenting of DNA, Science, 280: 689-690, 1998, disponível em www.science.org
[16][16] "Biotecnologia" é um termo
reconhecidamente amplo e as invenções relacionadas podem estar grupadas em
diferentes locais da Classificação de Patentes Americana. No levantamento aqui
realizado foram consideradas exclusivamente as patentes que possuem
classificação (principal ou secundária) na classe 435 cujo título é
"Biologia Molecular e Microbiologia".
[17][17] Foram consideradas as patentes
concedidas até dezembro de 1999. Listagens e percentuais sobre os três
agrupamentos propostos elaborados pelo autor a partir de USPTO, Patent BIB,
Série Cassis, Abril de 2000.
Retirado de: http://www.geocities.com/prop_industrial/bio_12.htm