Ao contrário da argumentação proposta
pelo USPTO, apresentada na Seção II.2, tem-se como relevante no Brasil a
distinção conceitual entre descoberta e invenção. A depuração, na realidade,
resulta de um longo processo de construção cristalizado em sucessivas
legislações de propriedade industrial. De fato, a primeira lei de patentes do
Brasil independente, promulgada por D. Pedro I em 1830 e que vigorou por 52
anos, tratou de forma indistinta os conceitos de invenção e descoberta. Em seus
12 artigos, os termos relacionados a descoberta são citados 16 vezes, o mesmo
número de vezes das palavras associadas a invenção[1][1].
A lei seguinte, 3.129, de 1882, reduz a
três as referências a descoberta. Estão elas contidas no título da lei
("Regula a concessão de patentes aos autores de invenção ou descoberta
industrial"), e duas menções no caput e no parágrafo primeiro do artigo
primeiro, sendo de se notar a definição primacial do parágrafo: "Constituem
invenção ou descoberta para os efeitos desta lei". A mesma definição
encontra-se contida em legislação seguinte, o Decreto 16.264, de 1923, em seu
artigo 33: "Constitue invenção ou descoberta suscetível de utilidade
industrial", sendo essa, contudo, a única menção aí feita ao termo
descoberta.
O Decreto-Lei 7.903, de 1945, que
durante mais de 20 anos codificou a proteção à propriedade industrial no Brasil
não faz referência alguma às descobertas, fixando-se no conceito de invenção. E
no Código da Propriedade Industrial, Lei 5.772, de 1971, que por um quarto de
século regeu a matéria, não apenas foi suprimido emprego do conceito de
descoberta na definição do que constitui matéria patenteável, como ainda
deixou-se claro que descobertas não são patenteáveis, ainda que a redação, algo
elíptica, estabeleça a vedação a "usos ou empregos relacionados com
descobertas..." (Lei 5.772/71, artigo 9º, alínea f).
A lei de propriedade industrial em
vigor, de número 9.279/96, estabeleceu o marco divisório com clareza e sem
qualificativos, em seu artigo 10: "Não se considera invenção nem modelo de
utilidade: I - descobertas...". E, para que não pairem dúvidas, embora se
possa alegar que a redundância não constitui a melhor técnica legislativa,
estatuiu que os microorganismos transgênicos são passíveis de patenteamento,
desde que cumpridos certos requisitos e que não sejam "mera
descoberta". (Lei 9.279/96, artigo 18, inciso III).
III.1 - Extensão da Proteção à Biotecnologia no Brasil
A lei em vigor define, com a clareza possível em um texto
necessariamente sintético, os limites da proteção conferida às invenções de
biotecnologia. O antigo Código da Propriedade Industrial (Lei 5.772/71)
enumerava em seu artigo 9º todas as exceções ao patenteamento, agrupando, sob
um mesmo comando, tanto o que o País, por razões conjunturais, decidira excluir
do campo de patenteabilidade (os medicamentos, por exemplo, citados na alínea c
do referido artigo) quanto aquilo que de um modo universal não é considerado
patenteável por se encontrar fora do alcance do sistema (concepções puramente
teóricas, por exemplo, alínea i).
Embora à época da elaboração do Código - início da década
de 70 - não estivesse colocada a questão da proteção à moderna biotecnologia, a
técnica legislativa então empregada veio a causar controvérsia quando passaram
a ser depositados no INPI pedidos de patente para proteção à matéria viva
resultante de manipulação genética[2][2]. De fato, a alínea f do artigo 9º veda o patenteamento
às descobertas, como já visto, e exclui - aparentemente como exemplo do que se
considera descoberta - as "variedades ou espécies de microorganismos, para
fim determinado". Resultou daí a dúvida sobre se todos os microorganismos
estariam excluídos da possibilidade de proteção legal ou se a lei tão somente
os mencionara no contexto mais genérico do que se deveria ter na condição de
descoberta, devendo, portanto, ser protegidos os transgênicos.
A nova lei de propriedade industrial teve seu projeto discutido
à luz de casos concretos de invenções resultantes da manipulação genética e
visou endereçar esta questão de forma até enfática. Primeiro, tratou o que,
dentro de princípios gerais, não é considerado invenção (artigo 10)
separadamente daquelas exclusões ditadas pelo interesse nacional (artigo 18).
E, considerou como não sendo invenção "o todo ou parte de seres vivos
naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela
isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os
processos biológicos naturais." (artigo 10, inciso XI). Note-se a preocupação em explicitar a
vedação, deixando claro que mesmo o material isolado da natureza não é
privilegiável. Preocupação essa reforçada no inciso III do artigo 18 que repete
a proibição de patenteamento do "todo ou parte dos seres vivos".
Ao mesmo tempo, a lei positiva, por meio de duas negativas
encadeadas, a proteção aos microorganismos transgênicos (artigo 18, caput
e inciso III). Com isso, os microorganismos transgênicos mereceram a deferência
de se tornarem o único objeto para o qual explicita a lei a possibilidade de
proteção. Deve-se ter claro que, em princípio, todas as invenções que atendam
aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial são
patenteáveis. A Lei 9.279, pelos comandos citados, estabelece um marco
divisório nítido: nem plantas nem animais superiores são patenteáveis no
Brasil; as tecnologias, porém, relacionadas à manipulação genética envolvendo
microorganismos tornaram-se inequivocamente passíveis de patenteamento[3][3].
III.2 - Levantamento dos Depósitos "Pipeline"
A Lei 9.279/96 permitiu a abertura do mercado brasileiro
para um amplo espectro de tecnologias com forte repercussão nos campos da saúde
e da agricultura. Nesta seção é realizado um levantamento do perfil de empresas
interessadas em proteger invenções de biotecnologia. O universo escolhido para
estudo é composto pelos pedidos aos quais se convencionou chamar de
"pipeline". O mecanismo foi instituído por meio dos artigos 230 e 231
da lei acima referida e consistiu em disposição temporária por meio da qual
foram aceitos depósitos de patentes em campos não reconhecidos pela legislação
anterior - essencialmente uma ampla área da química e da biotecnologia -, mesmo
que tais pedidos já não cumprissem o requisito de novidade, sendo o período de
proteção restringido ao em vigor no país de origem do depósito. Regulamentando
administrativamente o dispositivo legal, impôs o INPI a considerável taxa de R$
10.000,00, equivalente à época a aproximadamente dez mil dólares, para a
efetivação do depósito do pedido.
Dois importantes filtros foram assim introduzidos: um custo
elevado de depósito e um menor período de proteção. É razoável supor, portanto,
que os pedidos "pipeline" representem invenções consideradas mais
importantes por seus detentores e cuja proteção justifique a mais elevada
relação custo-benefício requerida. Pouco mais de 1170 pedidos dessa modalidade
foram depositados, dos quais cerca de 19% são relativos a invenções do campo da
biotecnologia[4][4], tendo sido
considerados como relacionados à biotecnologia os que tenham ao menos uma
classificação - principal ou secundária - no campo C12 da Classificação
Internacional de Patentes - CIP[5][5], que abrange tanto a biotecnologia clássica como a
moderna biotecnologia centrada na técnicas de DNA recombinante.
Nesse universo sobressaem-se os EUA com quase 2/3 (147
depósitos) do total de pedidos de biotecnologia. A participação somada dos
outros quatro grandes países industrializados - Japão, Alemanha, R. Unido e
França - é de 23% (52 depósitos). O Brasil é o sexto colocado, com oito pedidos
depositados (Quadro III.1).
Como era de se esperar, as tecnologias de engenharia
genética dominaram amplamente o escopo dos pedidos relacionados à
biotecnologia. Classificados no grupo C12N15 "engenharia genética ou de
mutação" encontram-se 181 pedidos, representando 81% do total de
biotecnologia no pipeline. Duas grandes vertentes dividem o interesse na
proteção às invenções de biotecnologia: aplicações medicinais e plantas
modificadas. Dos pedidos depositados, cerca de 63% referem-se a medicamentos e
18% a plantas[6][6].
III.2.1 - Pedidos de Países em Desenvolvimento e de
Instituições Públicas
Os pedidos provenientes de universidades e instituições
públicas somam 30, ou 13,4% do total, dos quais sete de origem brasileira,
sendo três da Fiocruz, dois da Embrapa, um da UFRJ e um da Universidade de
Caxias do Sul. Esse último (PI1101139[7][7]) tem como escopo leveduras obtidas por manipulação
genética, capazes de decompor o ácido l-málico, reduzindo, com isso, no
processo de produção de vinhos, o nível de acidez do produto final. À exceção
desse pedido e dos dois da Embrapa, todos os demais referem-se a invenções na
área da saúde. São pedidos focados em soluções para combater doenças
parasitárias, comuns em países tropicais.
A instituição brasileira com o maior número de pedidos
pipeline de biotecnologia é a Fiocruz. Dos três depósitos nessa área em seu
nome, dois são para o combate à doença de Chagas. O PI1100552 trata de
antígenos recombinantes de Trypanosoma cruzi que permitem, de forma mais
barata e segura, fornecer o diagnóstico da doença, eliminando o problema, comum
em outros diagnósticos, de respostas falso negativas. O pedido PI1100553 lhe é
complementar, solicitando proteção para o kit de diagnóstico. O terceiro pedido
é também para antígenos, aplicáveis contra infecções helmínticas (PI1100551).
Nele, é relatada uma proteína recombinante com atividade protetora contra tais
infecções, permitindo tanto o diagnóstico como a criação de vacinas
específicas.
Com preocupações semelhantes sobre doenças endêmicas em
países tropicais, a UFRJ propõe uma composição que permite o diagnóstico e
vacinação contra a leishmaniose visceral humana e canina. O pedido PI1100173
relata a extensão do problema no Brasil, agravado com o desmatamento, que tem
provocado a migração do mosquito vetor de transmissão, levando a doença para área
antes não atacadas. É descrito um complexo glicoprotéico - o antígeno FML, que
contém frações de células de Leishmania - obtido por bio-processamento e
capaz de proporcionar uma forma conveniente de combate à leishmaniose visceral.
Ainda de origem brasileira, o pedido PI1100366 propõe a produção de um
polifosfato específico para atuar como anti-viral, anti-neoplásico e
imunoestimulante.
Dois outros pedidos de biotecnologia foram depositados por
países da América Latina. O pedido PI1101040, de origem argentina, reivindica
proteção para produtos lácteos biologicamente ativos, em estado líquido,
concentrado ou em pó, proveniente do cultivo em simbiose de lactobacilos
específicos em substrato constituído por leite. O PI1101051, do Centro de
Ingenieria Genetica de Cuba, constitui uma invenção em que, por meio de
engenharia genética, é obtida uma sequência de nucleotídeos que codifica para
uma proteína específica, caracterizando uma vacina contra meningite de origem
bacteriana.
Provenientes de instituições públicas e de ensino de países
desenvolvidos, foram depositados 21 pedidos. A grande maioria (14) provém de
instituições americanas, sendo de se destacar a cooperação entre as esferas
pública e privada: Três pedidos, em nome do Departamento Americano de Saúde foram
depositados em conjunto com a empresa farmacêutica American Home Products para
composições de vacina contra vírus sincicial respiratório (PIs 1100509, 1100530
e 1100531). Três pedidos da Universidade de Iowa para vacinas que protegem
porcos contra infecções virais têm como co-titular a empresa American Cyanamid
(PIs 1100996, 1100997 e 1100998). A mesma empresa partilha um pedido com o
Estado Holandês em uma invenção de vacina contra meningite (PI1101168).
Exemplos de cooperação universidade-empresa são encontrados
também nos pedidos provenientes de outros países desenvolvidos, como no da
universidade alemã Karlsruhe (PI1100650) e da australiana Univ. of Queensland
(PI1100183), ambos para aplicações medicinais. O campo de medicamentos
constitui a quase totalidade (18 em 23) dos pedidos em que constam o nome de
instituições públicas estrangeiras. Sob esse aspecto, o perfil dos pedidos
brasileiros é o mesmo dos de origem estrangeira. O que não se verificou no
Brasil foi o compartilhamento de pedidos com empresas privadas, o que
certamente facilitaria a comercialização dos medicamentos gerados.
III.2.2 - Pedidos de Empresas dos Países Desenvolvidos
Nos pedidos apresentados por países desenvolvidos é amplo o
predomínio de empresas privadas. A Tabela III.2 traz a relação de todas as
empresas que depositaram pelo menos quatro pedidos pipeline na área de
biotecnologia (nenhuma universidade ou centro de pesquisa registrou esse número
mínimo). O conjunto formado por catorze empresas líderes depositou pouco mais
da metade (51,8%) do total de pedidos pipeline de biotecnologia, sendo a
primeira colocada, com 18 pedidos, a empresa americana Amgen, voltada para
engenharia genética com aplicações medicinais.
A tabela mostra, ainda, o grupo tecnológico principal,
segundo a Classificação Internacional de Patentes em que cada empresa registrou
maior número de depósitos e aponta os pedidos em que o objeto de proteção se
refere a medicamentos ou a plantas que compreendem cerca de 81% de todos os
pedidos depositados. Finalmente, foi calculada a "idade média" do
portfólio de pedidos de cada empresa. A idade média do conjunto de 14 empresas
líderes revelada é de dez anos. Significa esse número que os pedidos pipeline
de biotecnologia do conjunto considerado referem-se a tecnologias cujo primeiro
depósito deu-se, na média, no ano de 1990.[8][8].
Como regra geral, esses pedidos são protegidos por 20 anos,
contados de depósito inicial, lembrando que a proteção aos pedidos pipeline no
Brasil, conforme estabelecido na lei de propriedade industrial (art. 230, pár.
4º) se dá pelo período remanescente de vigência do primeiro pedido depositado
no exterior. Tomando como representativa a média obtida para o conjunto de
empresas líderes, tem-se que as tecnologias deverão ser protegidas no País até
o ano de 2010, na média. Como a totalidade dos pedidos foi depositada entre
1996 e 1997, as patentes pipeline concedidas deverão cobrir um período de
proteção de até 13 anos[9][9].
Tabela III.2 - Pedidos "Pipeline" de
Biotecnologia, Maiores Depositantes
Empresa |
País |
Quant.
Pedidos |
Grupo
CIP principal |
% |
Campo de
Aplicação |
% |
Idade Média |
Amgen |
US |
18 |
C07K 14 |
66,7 |
Medic. |
88,9 |
11,3 |
Monsanto |
US |
16 |
C12N 15 |
56,3 |
Plantas |
75,0 |
11,6 |
A. Cyanamid |
US |
14 |
C07K 14 |
42,9 |
Medic. |
100,0 |
10,9 |
Genentech |
US |
12 |
C07K 14 |
41,7 |
Medic. |
91,7 |
10,7 |
Du Pont |
US |
10 |
C12N 15 |
70,0 |
Plantas |
100,0 |
7,5 |
Ajinomoto |
JP |
9 |
C12P 13 |
44,4 |
Alimentos |
- |
6,7 |
Dow (chem/agro/elanco) |
US |
6 |
C12N 15 |
50,0 |
Medic. |
66,7 |
11,8 |
Sanofi |
FR |
6 |
C12N 15 |
66,7 |
Medic. |
83,3 |
11,8 |
Dekalb Genetics |
US |
5 |
C12N 5 |
40,0 |
Plantas |
100,0 |
8,0 |
A. Home Prod. |
US |
4 |
C12N 15 |
100,0 |
Medic. |
100,0 |
8,0 |
Basf |
DE |
4 |
C07K 14 |
75,0 |
Medic. |
100,0 |
11,0 |
Hoechst |
DE |
4 |
C07H 21 |
50,0 |
Medic. |
100,0 |
8,3 |
Hoffmann La Roche |
CH |
4 |
C07K 14 |
75,0 |
Medic. |
50,0 |
8,8 |
Pierre Fabre Med. |
FR |
4 |
C07K 14 |
50,0 |
Medic. |
100,0 |
6,8 |
Total |
|
116 |
|
|
|
|
10,0 |
Fonte: SINPI/INPI. Listagem elaborada pelo autor.
Vide Anexo II para os códigos da Classificação de Patentes.
Das empresas líderes listadas, oito, inclusive as cinco
primeiras, são de origem americana. A concentração de pedidos originados dos
EUA - já expressiva no total de pedidos depositados - é ainda maior no conjunto
apresentado na Tabela III.2, com 73% do total. Quatro empresas tradicionais, de
origem química - Basf e Hoechst, da Alemanha; Sanofi, da França e Hoffmann La
Roche, da Suíça, juntamente com o laboratório francês Pierre Fabre compõem os
representantes de origem européia.
Das 14 líderes, 13 estão focadas em tecnologias para
medicamentos ou plantas. O grau de especialização revelado na Tabela III.2 é
bastante acentuado: Das dez empresas voltadas para tecnologias de aplicação
medicinal, oito têm mais de 80% de seus acervos nesse campo. Nas três empresas
cuja área de concentração são plantas, o nível de concentração não é tão
elevado, atingindo o máximo de 70% no caso da empresa Du Pont. Ressalta, por
outro lado, a evidência de que esse importante nicho tecnológico encontra-se
dominado por um número reduzido de empresas[10][10].
Nas empresas centradas em tecnologias para medicamentos, o
grupo C07K 14 ("Peptídeos com mais de 20 aminoácidos; Gastrinas;
Somatostatinas; Melanotropinas; seus Derivados") é objeto da classificação
principal em seis delas[11][11]. Dos portfólios dessas seis empresas, pelo menos
40% dos pedidos receberam a classificação principal no grupo C07K 14. Outro
grupo da classificação - C12N 15 ("Engenharia genética ou de
mutação") - é o indexador principal para cinco empresas, sendo duas
voltadas para plantas e três para medicamentos.
A empresa japonesa Ajinomoto constitui a única exceção
quanto ao direcionamento para medicamentos ou plantas. Seus pedidos de patentes
concentram-se em processos fermentativos com aplicação no campo alimentar. O
portfólio de pedidos dessa empresa é o que apresenta a menor idade média do
conjunto de empresas líderes (6,7 anos), indicando um período maior de proteção
possível no Brasil já que os pedidos originais são bastante recentes: quatro
deles apontam 1995 como o ano de prioridade internacional (Anexo III).
Na outra ponta, com mais de onze anos de idade média, estão
os portfólios de quatro empresas - Amgen, Monsanto, Sanofi e o grupo Dow. São
pedidos, na média, originados no final da década de 80, sendo alguns bem mais
antigos: a Monsanto, por exemplo, apresentou seis pedidos cuja data de
prioridade é anterior ao ano de 1986. O interesse pela proteção a invenções
mais antigas pode se justificar pela abrangência da tecnologia contida no
pedido ou pela possibilidade de se contar com um período de proteção adicional
no país de origem.
Embora tenha permitido o surgimento de toda uma classe de
novas empresas, cujos exemplos mais marcantes mostrados na Tabela III.2 são a
Amgen (1º colocada) e Genentech (4º), vê-se, na mesma relação, que empresas
tradicionais dominam de fato a maior parte da propriedade intelectual gerada no
setor. Além de possuírem a capacidade financeira para, eventualmente, adquirir
novas empresas biotecnológicas de rápido crescimento e de contarem com
abrangentes infra-estruturas tecnológicas, as empresas tradicionais estão
ocupando o espaço devido à natureza das técnicas pertencentes à biotecnologia
moderna. As técnicas podem ser rapidamente aperfeiçoadas e difundidas para
outros modelos biológicos, tendo sido criada a terminologia "ciências da
vida" para caracterizar essa tendência. Desse modo, empresas tradicionais
podem ampliar seu campo de operação e, conforme mostrado nos números constantes
da Tabela III.2, construir acervos de propriedade intelectual em um setor de
grande dinamismo tecnológico.
III.2.3 - Pedidos "Pipeline" Relacionados a
Plantas
Como já apresentado, não se concede patentes para plantas
no Brasil. Em sintonia com o estipulado no acordo TRIPS, foi aprovada a lei de
proteção de cultivares, que veio a estabelecer a "... única forma de
proteção de cultivares e de direito que poderá obstar a livre utilização de
plantas ou de suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa no
país." (Lei 9.456, art. 2º). Porém, como igualmente visto, 40 pedidos
pipeline relacionados a tecnologias sobre plantas foram apresentados ao INPI.
Poderão ser concedidas patentes para o todo ou parte das reivindicações deles
constantes. A lei proíbe, na realidade o patenteamento do ser vivo em si, mas
não veda a proteção aos processos ou métodos de obtenção da invenção, além de,
expressamente, permitir o patenteamento quando se trata de microorganismos
alterados geneticamente.
O tema é atual e de grande importância para um setor
crucial da economia brasileira: a agricultura, sobretudo as culturas de semente
de larga escala, como soja e milho. A manipulação genética desencadeou uma
corrida de invenções em direção a plantas transgênicas, alterando
significativamente o panorama do mercado internacional de plantas,
principalmente as de sementes. Duas vertentes, englobando as invenções
relacionadas a plantas, podem ser extraídas do conjunto de pedidos pipeline
depositados no Brasil: de um lado, procura-se obter a melhoria dos nutrientes
contidos na planta; por outro, busca-se a maior resistência dos vegetais a
pragas e herbicidas.
São relatadas, na primeira vertente, invenções que adequam
o cardápio de nutrientes de cada variedade vegetal às necessidades de mercado.
As plantas mais trabalhadas são as de semente, que servem de base para a
alimentação animal e humana, milho e
soja em especial. O mercado mundial de alimentação animal é da ordem de 475
milhões de toneladas métricas por ano. Só nos EUA são consumidas 180 milhões de toneladas, das quais 67% são
relativas a milho e 10% a farelo de soja (cf.. PI1101153, pg.2). O milho, porém,
além de pobre em aminoácidos de enxofre - metionina e cisteína - o é também de
lisina e triptofano, aminoácidos derivados de aspartato e cuja regulagem de
biossíntese está interconectada. Assim, o aumento do teor de aminoácidos não só
melhora a qualidade nutricional das rações como reduz a necessidade de
suplemento sintético adicional, mais caro. Um dos objetivos centrais dos
pedidos pipeline relacionados a essas tecnologias é o de enriquecer o conteúdo
de aminoácidos presentes nas plantas. Nessa área, destaca-se a Du Pont com os
pedidos PI1101153, de 1991; PI1101154, de 1993; PI1101161, de 1992 e PI1101162,
de 1992[12][12] e a Dekalb Genetics com invenção para plantas
enriquecidas em lisina (PI1100814, de 1988).
Outra forma visada de obter a melhoria nutricional é por
meio do controle dos níveis de ácidos graxos saturados e insaturados em óleos
vegetais cosmetíveis. Modificando a composição lipídica das plantas, que são,
geralmente, soja, milho e girassol, as invenções chegam a plantas cujos óleos
conterão menos colesterol nocivo. A empresa Du Pont apresenta quatro pedidos
com técnicas relacionadas (PI1101148, de 1994; PI1101149, de 1992; PI1101156,
de 1992 e PI1101159, de 1991).
Na segunda vertente - plantas mais resistentes - estão os
pedidos envolvidos diretamente na polêmica sobre o uso de sementes
transgênicas, particularmente a soja, associadas ao emprego de determinados
herbicidas. A resistência, artificialmente construída, pode se dar tanto com
relação a pragas que normalmente atacam as plantações, como frente a herbicidas
que afetariam o crescimento normal do vegetal.
O recurso comumente empregado com relação às pragas nos
pedidos depositados no Brasil é o da inserção de um gene que leva a planta a
produzir toxinas contra as pragas que lhes atacam, como insetos por exemplo.
Uma alternativa, dentro dessa linha, é fazer com que as toxinas sejam
produzidas, não pelas plantas diretamente, mas sim por microorganismos que as
colonizam. Genes produtores de toxinas originados do Bacillus thuringiensis
(b.t.) são particularmente empregados nessas técnicas. A empresa belga Plant
Genetics Systems apresentou dois pedidos para plantas alteradas de modo a
expressar toxinas do b.t. (PI1100251, de 1985 e PI1100252, de 1985); a Monsanto
também reivindica técnicas relacionadas (PI1100009, de 1989 e PI1101062, de
1993). A Embrapa (PI1101128, sem prioridade) propõe uma técnica em que a toxina
originária do b.t. é expressa em microorganismos que colonizam o interior da
planta-alvo.
Outra abordagem empregada para o aumento da resistência é
fazer com que as plantas se tornem, por manipulação genética, resistentes a
herbicidas que, em condições normais, lhes seriam prejudiciais. Essas
invenções, na realidade, propiciam uma conjugação ideal para empresas que, em
uma ponta vendem sementes resistentes alteradas geneticamente e, em outra, os
herbicidas apropriados. Duas categorias de herbicidas - os baseados em
sulfoniluréia e os de glifosato -, em torno dos quais se construíram plantas
resistentes, são mencionadas nos pedidos depositados.
A empresa Monsanto, que comercializa um herbicida de
glifosato sob a marca registrada "Roundup", depositou quatro pedidos
para tecnologias relacionadas à codificação da enzima glifosato oxidoreductase
(PIs1100006, de1990; PI1100007, de 1985; PI1100008, de 1990; PI1101046, de
1995). A Dekalb Genetics, apresentou dois pedidos nessa área (PI1100898, de
1990 e PI1101091, de 1997). Já plantas resistentes a herbicidas baseados em
sulfoniluréia são reivindicados pela empresa Du Pont (PI1101155, de 1992; PI1101157,
de 1994 e PI1101160, de 1994) e também pela Dekalb Genetics (PI1100897, de
1990).
Em diversos dos pedidos apresentados, o eixo da proteção
requerida não está no campo de aplicação da invenção, mas na técnica em si,
isto é, nos métodos que permitem o emprego da manipulação genética para se
alcançar diferentes resultados. São descritas, assim, diversas técnicas de
biobalística, consistindo de bombardeamento de microprojéteis revestidos de
DNA. A empresa Delkab Genetics destaca-se nesse campo com três pedidos
(PI1100897, de 1990; PI1101091, de 1997 e PI1101117, de 1995). A Embrapa
(PI1101129, sem prioridade) descreve uma técnica de biobalística especialmente
adaptada a plantas transgênicas de feijão em que o meristema apical da planta é
atingido.
IV.
Conclusões
Os números levantados na Seção III e que constituem tão
somente um exemplo limitado do interesse despertado pela proteção conferida por
patentes de biotecnologia mostram claramente que o mercado brasileiro é visto
como estratégico por empresas que possuem um horizonte internacional para a
construção de seus acervos de propriedade industrial. Embora os principais
atores sejam empresas internacionais produtoras de medicamentos e de sementes
agrícolas, verificou-se uma importante participação de instituições públicas
nos pedidos "pipeline" depositados no Brasil, cujo foco, sejam elas
estrangeiras sejam brasileiras, é o campo de medicamentos. Um traço importante
dos pedidos depositados pelas instituições estrangeiras, mas não observado entre
entidades brasileiras foi o compartilhamento de titularidade com empresas
privadas, o que certamente facilitaria a comercialização dos produtos gerados.
Ao mesmo tempo em que abriu o mercado brasileiro para um
vasto leque de invenções da biotecnologia, a Lei 9.279/96 impôs igualmente
limitações que, embora legítimas e respaldadas nos tratados internacionais em
vigor, constituem um contencioso em potencial com outros países. A polêmica
poderá se acender à medida que invenções e descobertas relacionadas aos genomas
passem a se traduzir em mercadorias valiosas, especialmente medicamentos, para
cuja valorização de mercado seja necessária a proteção patentária.
Parecem ser claras, igualmente, as implicações que decisões
dos EUA passaram a ter no mundo pós-guerra fria, isto é, sua incorporação
automática à agenda internacional de assuntos considerados relevantes e a
consequente propugnação pela projeção dos padrões incorporados internamente à
seara internacional. Depois de anos em que os limites de admissibilidade à proteção
pareceram ora muito estreitos ora muito elásticos, vem o USPTO acelerando o
número de diretrizes administrativas que, embora de alcance geral, visam, em
essência, tornar claros os parâmetros na área de biotecnologia[13][13].
É grande, assim, a
possibilidade de que a discussão sobre direitos intelectuais relacionados à
engenharia genética venha a adquirir maior vulto no Brasil. Dois fatos novos
deverão ser incorporados a essa discussão: Primeiro, vem sendo construída no
País - basicamente em centros de pesquisa e universidades - importante
capacitação técnica relacionada à biotecnologia. Surgem, assim, novos atores de
origem brasileira com interesse prático na questão do patenteamento. Segundo, o
horizonte de proteção relevante para as invenções biotécnológicas é claramente
o internacional. De valia limitada será para o pesquisador brasileiro obter a
proteção no mercado interno e deixar de lado o potencial oferecido pela
proteção nos mercados dos países desenvolvidos.
[14][1] Vide Anexo I para todas as referências a
descobertas nas sucessivas leis brasileiras que tratam de patentes. Os textos
integrais das legislações citadas encontram-se disponíveis em www.inpi.gov.br
[15][2] Observe-se que, na lei antiga, nada
obstava o patenteamento de invenções relacionadas à biotecnologia tradicional,
desde que não incluídas em campos vedados ao patenteamento, como o
químico-farmacêutico.
[16][3] Embora as plantas não sejam
patenteáveis, diversas técnicas de vasta repercussão no campo agrícola o são.
Cite-se, por exemplo, os microorganismos manipulados que ajudam a planta em
determinada tarefa básica, como a fixação de nitrogênio.
[17][4] A fonte de dados utilizada é o Sistema
Informatizado do INPI - SINPI. A relação completa dos pedidos pipeline de
biotecnologia, com dados bibliográficos básicos, consta do Anexo III.
[18][5] Vide Anexo II para uma descrição dos
códigos pertinentes da CIP.
[19][6] Como pedidos de medicamentos foram
considerados os que tenham classificação - principal ou secundária - A61K. Para
plantas, foram relacionados os classificados em A01H ou cujo título faça
referência à aplicação na área de tecnologia vegetal (vide Anexo II, com detalhes
sobre a classificação).
[20][7] Os pedidos pipeline estão aqui
identificados conforme numeração que lhes é dada pelo INPI. "PI"
refere-se a privilégio de invenção. Os dois primeiros números indicam a
natureza pipeline e os cinco seguintes são números sequenciais.
[21][8] Para cada pedido depositado, foi
levantado o diferencial entre o ano de 2000 e o ano em que foi depositado o
pedido internacional em que se baseia a prioridade da invenção. A média desses
períodos corresponde à "idade média" mostrada no Quadro I.
[22][9] Em nenhuma hipótese, a proteção no
Brasil poderá se estender além de 20 anos contados da data do depósito nacional
do pedido pipeline, mesmo que o período de proteção à patente original
estenda-se além desse prazo, como ocorre, por exemplo, em legislações nacionais
que permitem a extensão de proteção, como o de medicamentos, com o propósito de
compensar os períodos relativamente longos de testes clínicos
[23][10] O controle de mercado torna-se ainda
maior tendo em vista que a Dekalb
Genetics foi adquirida em 1998 pela Monsanto. Neste trabalho, foram
consideradas as empresas depositantes, tal como se apresentaram ao INPI. Não
foi feita qualquer elaboração no sentido de associar empresas eventualmente
objeto de movimentos de aquisições ou fusões.
[24][11] Conforme metodologia adotada, foram
relacionados todos os pedidos pipeline com alguma classificação no campo C12. A
grande maioria dos pedidos possui três ou mais classificações, uma, por exemplo
descrevendo a natureza química da substância (classes C07); outra indicando
aplicação ou finalidade da invenção (A61K, por exemplo) e outra relacionando-a
à biotecnologia (classes C12). A coluna de Classificação da Tabela III.2 mostra
o grupo correspondente à classificação principal com maior número de ocorrências.
[25][12] Ao lado da numeração de cada pedido
pipeline consta o ano em que foi depositado o pedido de prioridade sobre a
tecnologia reivindicada. Os dados bibliográficos desses pedidos podem ser
vistos no site do INPI em www.inpi.gov.br . O Instituto
disponibiliza, ainda, cópias dos documentos integrais.
[26][13] Além das diretrizes sobre o requisito de
utilidade, o USPTO produziu recentemente dois documentos relevantes sobre o
tema: "Written Description Examination Guidelines", de janeiro de
2001 e "Patent Pools: A Solution to the Problem of Access in Biotechnology
Patents?", de dezembro de 2000. Ambos documentos encontram-se disponíveis
em www.uspto.gov
Retirado de: http://www.geocities.com/prop_industrial/bio_34.htm