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Notas sobre Patentes e Biotecnologia – cont.

Por Eduardo Assumpção

III. Proteção à Biotecnologia no Brasil

Ao contrário da argumentação proposta pelo USPTO, apresentada na Seção II.2, tem-se como relevante no Brasil a distinção conceitual entre descoberta e invenção. A depuração, na realidade, resulta de um longo processo de construção cristalizado em sucessivas legislações de propriedade industrial. De fato, a primeira lei de patentes do Brasil independente, promulgada por D. Pedro I em 1830 e que vigorou por 52 anos, tratou de forma indistinta os conceitos de invenção e descoberta. Em seus 12 artigos, os termos relacionados a descoberta são citados 16 vezes, o mesmo número de vezes das palavras associadas a invenção[1][1].

A lei seguinte, 3.129, de 1882, reduz a três as referências a descoberta. Estão elas contidas no título da lei ("Regula a concessão de patentes aos autores de invenção ou descoberta industrial"), e duas menções no caput e no parágrafo primeiro do artigo primeiro, sendo de se notar a definição primacial do parágrafo: "Constituem invenção ou descoberta para os efeitos desta lei". A mesma definição encontra-se contida em legislação seguinte, o Decreto 16.264, de 1923, em seu artigo 33: "Constitue invenção ou descoberta suscetível de utilidade industrial", sendo essa, contudo, a única menção aí feita ao termo descoberta.

O Decreto-Lei 7.903, de 1945, que durante mais de 20 anos codificou a proteção à propriedade industrial no Brasil não faz referência alguma às descobertas, fixando-se no conceito de invenção. E no Código da Propriedade Industrial, Lei 5.772, de 1971, que por um quarto de século regeu a matéria, não apenas foi suprimido emprego do conceito de descoberta na definição do que constitui matéria patenteável, como ainda deixou-se claro que descobertas não são patenteáveis, ainda que a redação, algo elíptica, estabeleça a vedação a "usos ou empregos relacionados com descobertas..." (Lei 5.772/71, artigo 9º, alínea f).

A lei de propriedade industrial em vigor, de número 9.279/96, estabeleceu o marco divisório com clareza e sem qualificativos, em seu artigo 10: "Não se considera invenção nem modelo de utilidade: I - descobertas...". E, para que não pairem dúvidas, embora se possa alegar que a redundância não constitui a melhor técnica legislativa, estatuiu que os microorganismos transgênicos são passíveis de patenteamento, desde que cumpridos certos requisitos e que não sejam "mera descoberta". (Lei 9.279/96, artigo 18, inciso III).

III.1 - Extensão da Proteção à Biotecnologia no Brasil

A lei em vigor define, com a clareza possível em um texto necessariamente sintético, os limites da proteção conferida às invenções de biotecnologia. O antigo Código da Propriedade Industrial (Lei 5.772/71) enumerava em seu artigo 9º todas as exceções ao patenteamento, agrupando, sob um mesmo comando, tanto o que o País, por razões conjunturais, decidira excluir do campo de patenteabilidade (os medicamentos, por exemplo, citados na alínea c do referido artigo) quanto aquilo que de um modo universal não é considerado patenteável por se encontrar fora do alcance do sistema (concepções puramente teóricas, por exemplo, alínea i).

Embora à época da elaboração do Código - início da década de 70 - não estivesse colocada a questão da proteção à moderna biotecnologia, a técnica legislativa então empregada veio a causar controvérsia quando passaram a ser depositados no INPI pedidos de patente para proteção à matéria viva resultante de manipulação genética[2][2]. De fato, a alínea f do artigo 9º veda o patenteamento às descobertas, como já visto, e exclui - aparentemente como exemplo do que se considera descoberta - as "variedades ou espécies de microorganismos, para fim determinado". Resultou daí a dúvida sobre se todos os microorganismos estariam excluídos da possibilidade de proteção legal ou se a lei tão somente os mencionara no contexto mais genérico do que se deveria ter na condição de descoberta, devendo, portanto, ser protegidos os transgênicos.

A nova lei de propriedade industrial teve seu projeto discutido à luz de casos concretos de invenções resultantes da manipulação genética e visou endereçar esta questão de forma até enfática. Primeiro, tratou o que, dentro de princípios gerais, não é considerado invenção (artigo 10) separadamente daquelas exclusões ditadas pelo interesse nacional (artigo 18). E, considerou como não sendo invenção "o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais." (artigo 10, inciso XI).  Note-se a preocupação em explicitar a vedação, deixando claro que mesmo o material isolado da natureza não é privilegiável. Preocupação essa reforçada no inciso III do artigo 18 que repete a proibição de patenteamento do "todo ou parte dos seres vivos".

Ao mesmo tempo, a lei positiva, por meio de duas negativas encadeadas, a proteção aos microorganismos transgênicos (artigo 18, caput e inciso III). Com isso, os microorganismos transgênicos mereceram a deferência de se tornarem o único objeto para o qual explicita a lei a possibilidade de proteção. Deve-se ter claro que, em princípio, todas as invenções que atendam aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial são patenteáveis. A Lei 9.279, pelos comandos citados, estabelece um marco divisório nítido: nem plantas nem animais superiores são patenteáveis no Brasil; as tecnologias, porém, relacionadas à manipulação genética envolvendo microorganismos tornaram-se inequivocamente passíveis de patenteamento[3][3].

III.2 - Levantamento dos Depósitos "Pipeline"

A Lei 9.279/96 permitiu a abertura do mercado brasileiro para um amplo espectro de tecnologias com forte repercussão nos campos da saúde e da agricultura. Nesta seção é realizado um levantamento do perfil de empresas interessadas em proteger invenções de biotecnologia. O universo escolhido para estudo é composto pelos pedidos aos quais se convencionou chamar de "pipeline". O mecanismo foi instituído por meio dos artigos 230 e 231 da lei acima referida e consistiu em disposição temporária por meio da qual foram aceitos depósitos de patentes em campos não reconhecidos pela legislação anterior - essencialmente uma ampla área da química e da biotecnologia -, mesmo que tais pedidos já não cumprissem o requisito de novidade, sendo o período de proteção restringido ao em vigor no país de origem do depósito. Regulamentando administrativamente o dispositivo legal, impôs o INPI a considerável taxa de R$ 10.000,00, equivalente à época a aproximadamente dez mil dólares, para a efetivação do depósito do pedido.

Dois importantes filtros foram assim introduzidos: um custo elevado de depósito e um menor período de proteção. É razoável supor, portanto, que os pedidos "pipeline" representem invenções consideradas mais importantes por seus detentores e cuja proteção justifique a mais elevada relação custo-benefício requerida. Pouco mais de 1170 pedidos dessa modalidade foram depositados, dos quais cerca de 19% são relativos a invenções do campo da biotecnologia[4][4],  tendo sido considerados como relacionados à biotecnologia os que tenham ao menos uma classificação - principal ou secundária - no campo C12 da Classificação Internacional de Patentes - CIP[5][5], que abrange tanto a biotecnologia clássica como a moderna biotecnologia centrada na técnicas de DNA recombinante.

Nesse universo sobressaem-se os EUA com quase 2/3 (147 depósitos) do total de pedidos de biotecnologia. A participação somada dos outros quatro grandes países industrializados - Japão, Alemanha, R. Unido e França - é de 23% (52 depósitos). O Brasil é o sexto colocado, com oito pedidos depositados (Quadro III.1).

Como era de se esperar, as tecnologias de engenharia genética dominaram amplamente o escopo dos pedidos relacionados à biotecnologia. Classificados no grupo C12N15 "engenharia genética ou de mutação" encontram-se 181 pedidos, representando 81% do total de biotecnologia no pipeline. Duas grandes vertentes dividem o interesse na proteção às invenções de biotecnologia: aplicações medicinais e plantas modificadas. Dos pedidos depositados, cerca de 63% referem-se a medicamentos e 18% a plantas[6][6].

III.2.1 - Pedidos de Países em Desenvolvimento e de Instituições Públicas

Os pedidos provenientes de universidades e instituições públicas somam 30, ou 13,4% do total, dos quais sete de origem brasileira, sendo três da Fiocruz, dois da Embrapa, um da UFRJ e um da Universidade de Caxias do Sul. Esse último (PI1101139[7][7]) tem como escopo leveduras obtidas por manipulação genética, capazes de decompor o ácido l-málico, reduzindo, com isso, no processo de produção de vinhos, o nível de acidez do produto final. À exceção desse pedido e dos dois da Embrapa, todos os demais referem-se a invenções na área da saúde. São pedidos focados em soluções para combater doenças parasitárias, comuns em países tropicais.

A instituição brasileira com o maior número de pedidos pipeline de biotecnologia é a Fiocruz. Dos três depósitos nessa área em seu nome, dois são para o combate à doença de Chagas. O PI1100552 trata de antígenos recombinantes de Trypanosoma cruzi que permitem, de forma mais barata e segura, fornecer o diagnóstico da doença, eliminando o problema, comum em outros diagnósticos, de respostas falso negativas. O pedido PI1100553 lhe é complementar, solicitando proteção para o kit de diagnóstico. O terceiro pedido é também para antígenos, aplicáveis contra infecções helmínticas (PI1100551). Nele, é relatada uma proteína recombinante com atividade protetora contra tais infecções, permitindo tanto o diagnóstico como a criação de vacinas específicas.

Com preocupações semelhantes sobre doenças endêmicas em países tropicais, a UFRJ propõe uma composição que permite o diagnóstico e vacinação contra a leishmaniose visceral humana e canina. O pedido PI1100173 relata a extensão do problema no Brasil, agravado com o desmatamento, que tem provocado a migração do mosquito vetor de transmissão, levando a doença para área antes não atacadas. É descrito um complexo glicoprotéico - o antígeno FML, que contém frações de células de Leishmania - obtido por bio-processamento e capaz de proporcionar uma forma conveniente de combate à leishmaniose visceral. Ainda de origem brasileira, o pedido PI1100366 propõe a produção de um polifosfato específico para atuar como anti-viral, anti-neoplásico e imunoestimulante.

Dois outros pedidos de biotecnologia foram depositados por países da América Latina. O pedido PI1101040, de origem argentina, reivindica proteção para produtos lácteos biologicamente ativos, em estado líquido, concentrado ou em pó, proveniente do cultivo em simbiose de lactobacilos específicos em substrato constituído por leite. O PI1101051, do Centro de Ingenieria Genetica de Cuba, constitui uma invenção em que, por meio de engenharia genética, é obtida uma sequência de nucleotídeos que codifica para uma proteína específica, caracterizando uma vacina contra meningite de origem bacteriana.

Provenientes de instituições públicas e de ensino de países desenvolvidos, foram depositados 21 pedidos. A grande maioria (14) provém de instituições americanas, sendo de se destacar a cooperação entre as esferas pública e privada: Três pedidos, em nome do Departamento Americano de Saúde foram depositados em conjunto com a empresa farmacêutica American Home Products para composições de vacina contra vírus sincicial respiratório (PIs 1100509, 1100530 e 1100531). Três pedidos da Universidade de Iowa para vacinas que protegem porcos contra infecções virais têm como co-titular a empresa American Cyanamid (PIs 1100996, 1100997 e 1100998). A mesma empresa partilha um pedido com o Estado Holandês em uma invenção de vacina contra meningite (PI1101168).

Exemplos de cooperação universidade-empresa são encontrados também nos pedidos provenientes de outros países desenvolvidos, como no da universidade alemã Karlsruhe (PI1100650) e da australiana Univ. of Queensland (PI1100183), ambos para aplicações medicinais. O campo de medicamentos constitui a quase totalidade (18 em 23) dos pedidos em que constam o nome de instituições públicas estrangeiras. Sob esse aspecto, o perfil dos pedidos brasileiros é o mesmo dos de origem estrangeira. O que não se verificou no Brasil foi o compartilhamento de pedidos com empresas privadas, o que certamente facilitaria a comercialização dos medicamentos gerados.

III.2.2 - Pedidos de Empresas dos Países Desenvolvidos

Nos pedidos apresentados por países desenvolvidos é amplo o predomínio de empresas privadas. A Tabela III.2 traz a relação de todas as empresas que depositaram pelo menos quatro pedidos pipeline na área de biotecnologia (nenhuma universidade ou centro de pesquisa registrou esse número mínimo). O conjunto formado por catorze empresas líderes depositou pouco mais da metade (51,8%) do total de pedidos pipeline de biotecnologia, sendo a primeira colocada, com 18 pedidos, a empresa americana Amgen, voltada para engenharia genética com aplicações medicinais.

A tabela mostra, ainda, o grupo tecnológico principal, segundo a Classificação Internacional de Patentes em que cada empresa registrou maior número de depósitos e aponta os pedidos em que o objeto de proteção se refere a medicamentos ou a plantas que compreendem cerca de 81% de todos os pedidos depositados. Finalmente, foi calculada a "idade média" do portfólio de pedidos de cada empresa. A idade média do conjunto de 14 empresas líderes revelada é de dez anos. Significa esse número que os pedidos pipeline de biotecnologia do conjunto considerado referem-se a tecnologias cujo primeiro depósito deu-se, na média, no ano de 1990.[8][8].

Como regra geral, esses pedidos são protegidos por 20 anos, contados de depósito inicial, lembrando que a proteção aos pedidos pipeline no Brasil, conforme estabelecido na lei de propriedade industrial (art. 230, pár. 4º) se dá pelo período remanescente de vigência do primeiro pedido depositado no exterior. Tomando como representativa a média obtida para o conjunto de empresas líderes, tem-se que as tecnologias deverão ser protegidas no País até o ano de 2010, na média. Como a totalidade dos pedidos foi depositada entre 1996 e 1997, as patentes pipeline concedidas deverão cobrir um período de proteção de até 13 anos[9][9].

Tabela III.2 - Pedidos "Pipeline" de Biotecnologia, Maiores Depositantes

 

Empresa

País

Quant. Pedidos

Grupo CIP  principal

%

Campo de Aplicação

%

Idade Média

Amgen

US

18

C07K 14

66,7

Medic.

88,9

11,3

Monsanto

US

16

C12N 15

56,3

Plantas

75,0

11,6

A. Cyanamid

US

14

C07K 14

42,9

Medic.

100,0

10,9

Genentech

US

12

C07K 14

41,7

Medic.

91,7

10,7

Du Pont

US

10

C12N 15

70,0

Plantas

100,0

7,5

Ajinomoto

JP

9

C12P 13

44,4

Alimentos

-

6,7

Dow (chem/agro/elanco)

US

6

C12N 15

50,0

Medic.

66,7

11,8

Sanofi

FR

6

C12N 15

66,7

Medic.

83,3

11,8

Dekalb Genetics

US

5

C12N 5

40,0

Plantas

100,0

8,0

A. Home Prod.

US

4

C12N 15

100,0

Medic.

100,0

8,0

Basf

DE

4

C07K 14

75,0

Medic.

100,0

11,0

Hoechst

DE

4

C07H 21

50,0

Medic.

100,0

8,3

Hoffmann La Roche

CH

4

C07K 14

75,0

Medic.

50,0

8,8

Pierre Fabre Med.

FR

4

C07K 14

50,0

Medic.

100,0

6,8

Total

 

116

 

 

 

 

10,0

Fonte: SINPI/INPI. Listagem elaborada pelo autor. Vide Anexo II para os códigos da Classificação de Patentes.

Das empresas líderes listadas, oito, inclusive as cinco primeiras, são de origem americana. A concentração de pedidos originados dos EUA - já expressiva no total de pedidos depositados - é ainda maior no conjunto apresentado na Tabela III.2, com 73% do total. Quatro empresas tradicionais, de origem química - Basf e Hoechst, da Alemanha; Sanofi, da França e Hoffmann La Roche, da Suíça, juntamente com o laboratório francês Pierre Fabre compõem os representantes de origem européia.

Das 14 líderes, 13 estão focadas em tecnologias para medicamentos ou plantas. O grau de especialização revelado na Tabela III.2 é bastante acentuado: Das dez empresas voltadas para tecnologias de aplicação medicinal, oito têm mais de 80% de seus acervos nesse campo. Nas três empresas cuja área de concentração são plantas, o nível de concentração não é tão elevado, atingindo o máximo de 70% no caso da empresa Du Pont. Ressalta, por outro lado, a evidência de que esse importante nicho tecnológico encontra-se dominado por um número reduzido de empresas[10][10].

Nas empresas centradas em tecnologias para medicamentos, o grupo C07K 14 ("Peptídeos com mais de 20 aminoácidos; Gastrinas; Somatostatinas; Melanotropinas; seus Derivados") é objeto da classificação principal em seis delas[11][11]. Dos portfólios dessas seis empresas, pelo menos 40% dos pedidos receberam a classificação principal no grupo C07K 14. Outro grupo da classificação - C12N 15 ("Engenharia genética ou de mutação") - é o indexador principal para cinco empresas, sendo duas voltadas para plantas e três para medicamentos.

A empresa japonesa Ajinomoto constitui a única exceção quanto ao direcionamento para medicamentos ou plantas. Seus pedidos de patentes concentram-se em processos fermentativos com aplicação no campo alimentar. O portfólio de pedidos dessa empresa é o que apresenta a menor idade média do conjunto de empresas líderes (6,7 anos), indicando um período maior de proteção possível no Brasil já que os pedidos originais são bastante recentes: quatro deles apontam 1995 como o ano de prioridade internacional (Anexo III).

Na outra ponta, com mais de onze anos de idade média, estão os portfólios de quatro empresas - Amgen, Monsanto, Sanofi e o grupo Dow. São pedidos, na média, originados no final da década de 80, sendo alguns bem mais antigos: a Monsanto, por exemplo, apresentou seis pedidos cuja data de prioridade é anterior ao ano de 1986. O interesse pela proteção a invenções mais antigas pode se justificar pela abrangência da tecnologia contida no pedido ou pela possibilidade de se contar com um período de proteção adicional no país de origem.

Embora tenha permitido o surgimento de toda uma classe de novas empresas, cujos exemplos mais marcantes mostrados na Tabela III.2 são a Amgen (1º colocada) e Genentech (4º), vê-se, na mesma relação, que empresas tradicionais dominam de fato a maior parte da propriedade intelectual gerada no setor. Além de possuírem a capacidade financeira para, eventualmente, adquirir novas empresas biotecnológicas de rápido crescimento e de contarem com abrangentes infra-estruturas tecnológicas, as empresas tradicionais estão ocupando o espaço devido à natureza das técnicas pertencentes à biotecnologia moderna. As técnicas podem ser rapidamente aperfeiçoadas e difundidas para outros modelos biológicos, tendo sido criada a terminologia "ciências da vida" para caracterizar essa tendência. Desse modo, empresas tradicionais podem ampliar seu campo de operação e, conforme mostrado nos números constantes da Tabela III.2, construir acervos de propriedade intelectual em um setor de grande dinamismo tecnológico.

III.2.3 - Pedidos "Pipeline" Relacionados a Plantas

Como já apresentado, não se concede patentes para plantas no Brasil. Em sintonia com o estipulado no acordo TRIPS, foi aprovada a lei de proteção de cultivares, que veio a estabelecer a "... única forma de proteção de cultivares e de direito que poderá obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa no país." (Lei 9.456, art. 2º). Porém, como igualmente visto, 40 pedidos pipeline relacionados a tecnologias sobre plantas foram apresentados ao INPI. Poderão ser concedidas patentes para o todo ou parte das reivindicações deles constantes. A lei proíbe, na realidade o patenteamento do ser vivo em si, mas não veda a proteção aos processos ou métodos de obtenção da invenção, além de, expressamente, permitir o patenteamento quando se trata de microorganismos alterados geneticamente.

O tema é atual e de grande importância para um setor crucial da economia brasileira: a agricultura, sobretudo as culturas de semente de larga escala, como soja e milho. A manipulação genética desencadeou uma corrida de invenções em direção a plantas transgênicas, alterando significativamente o panorama do mercado internacional de plantas, principalmente as de sementes. Duas vertentes, englobando as invenções relacionadas a plantas, podem ser extraídas do conjunto de pedidos pipeline depositados no Brasil: de um lado, procura-se obter a melhoria dos nutrientes contidos na planta; por outro, busca-se a maior resistência dos vegetais a pragas e herbicidas.

São relatadas, na primeira vertente, invenções que adequam o cardápio de nutrientes de cada variedade vegetal às necessidades de mercado. As plantas mais trabalhadas são as de semente, que servem de base para a alimentação animal e humana,  milho e soja em especial. O mercado mundial de alimentação animal é da ordem de 475 milhões de toneladas métricas por ano. Só nos EUA  são consumidas 180 milhões de toneladas, das quais 67% são relativas a milho e 10% a farelo de soja (cf.. PI1101153, pg.2). O milho, porém, além de pobre em aminoácidos de enxofre - metionina e cisteína - o é também de lisina e triptofano, aminoácidos derivados de aspartato e cuja regulagem de biossíntese está interconectada. Assim, o aumento do teor de aminoácidos não só melhora a qualidade nutricional das rações como reduz a necessidade de suplemento sintético adicional, mais caro. Um dos objetivos centrais dos pedidos pipeline relacionados a essas tecnologias é o de enriquecer o conteúdo de aminoácidos presentes nas plantas. Nessa área, destaca-se a Du Pont com os pedidos PI1101153, de 1991; PI1101154, de 1993; PI1101161, de 1992 e PI1101162, de 1992[12][12] e a Dekalb Genetics com invenção para plantas enriquecidas em lisina (PI1100814, de 1988).

Outra forma visada de obter a melhoria nutricional é por meio do controle dos níveis de ácidos graxos saturados e insaturados em óleos vegetais cosmetíveis. Modificando a composição lipídica das plantas, que são, geralmente, soja, milho e girassol, as invenções chegam a plantas cujos óleos conterão menos colesterol nocivo. A empresa Du Pont apresenta quatro pedidos com técnicas relacionadas (PI1101148, de 1994; PI1101149, de 1992; PI1101156, de 1992 e PI1101159, de 1991).

Na segunda vertente - plantas mais resistentes - estão os pedidos envolvidos diretamente na polêmica sobre o uso de sementes transgênicas, particularmente a soja, associadas ao emprego de determinados herbicidas. A resistência, artificialmente construída, pode se dar tanto com relação a pragas que normalmente atacam as plantações, como frente a herbicidas que afetariam o crescimento normal do vegetal.

O recurso comumente empregado com relação às pragas nos pedidos depositados no Brasil é o da inserção de um gene que leva a planta a produzir toxinas contra as pragas que lhes atacam, como insetos por exemplo. Uma alternativa, dentro dessa linha, é fazer com que as toxinas sejam produzidas, não pelas plantas diretamente, mas sim por microorganismos que as colonizam. Genes produtores de toxinas originados do Bacillus thuringiensis (b.t.) são particularmente empregados nessas técnicas. A empresa belga Plant Genetics Systems apresentou dois pedidos para plantas alteradas de modo a expressar toxinas do b.t. (PI1100251, de 1985 e PI1100252, de 1985); a Monsanto também reivindica técnicas relacionadas (PI1100009, de 1989 e PI1101062, de 1993). A Embrapa (PI1101128, sem prioridade) propõe uma técnica em que a toxina originária do b.t. é expressa em microorganismos que colonizam o interior da planta-alvo.

Outra abordagem empregada para o aumento da resistência é fazer com que as plantas se tornem, por manipulação genética, resistentes a herbicidas que, em condições normais, lhes seriam prejudiciais. Essas invenções, na realidade, propiciam uma conjugação ideal para empresas que, em uma ponta vendem sementes resistentes alteradas geneticamente e, em outra, os herbicidas apropriados. Duas categorias de herbicidas - os baseados em sulfoniluréia e os de glifosato -, em torno dos quais se construíram plantas resistentes, são mencionadas nos pedidos depositados.

A empresa Monsanto, que comercializa um herbicida de glifosato sob a marca registrada "Roundup", depositou quatro pedidos para tecnologias relacionadas à codificação da enzima glifosato oxidoreductase (PIs1100006, de1990; PI1100007, de 1985; PI1100008, de 1990; PI1101046, de 1995). A Dekalb Genetics, apresentou dois pedidos nessa área (PI1100898, de 1990 e PI1101091, de 1997). Já plantas resistentes a herbicidas baseados em sulfoniluréia são reivindicados pela empresa Du Pont (PI1101155, de 1992; PI1101157, de 1994 e PI1101160, de 1994) e também pela Dekalb Genetics (PI1100897, de 1990).

Em diversos dos pedidos apresentados, o eixo da proteção requerida não está no campo de aplicação da invenção, mas na técnica em si, isto é, nos métodos que permitem o emprego da manipulação genética para se alcançar diferentes resultados. São descritas, assim, diversas técnicas de biobalística, consistindo de bombardeamento de microprojéteis revestidos de DNA. A empresa Delkab Genetics destaca-se nesse campo com três pedidos (PI1100897, de 1990; PI1101091, de 1997 e PI1101117, de 1995). A Embrapa (PI1101129, sem prioridade) descreve uma técnica de biobalística especialmente adaptada a plantas transgênicas de feijão em que o meristema apical da planta é atingido.


IV. Conclusões

Os números levantados na Seção III e que constituem tão somente um exemplo limitado do interesse despertado pela proteção conferida por patentes de biotecnologia mostram claramente que o mercado brasileiro é visto como estratégico por empresas que possuem um horizonte internacional para a construção de seus acervos de propriedade industrial. Embora os principais atores sejam empresas internacionais produtoras de medicamentos e de sementes agrícolas, verificou-se uma importante participação de instituições públicas nos pedidos "pipeline" depositados no Brasil, cujo foco, sejam elas estrangeiras sejam brasileiras, é o campo de medicamentos. Um traço importante dos pedidos depositados pelas instituições estrangeiras, mas não observado entre entidades brasileiras foi o compartilhamento de titularidade com empresas privadas, o que certamente facilitaria a comercialização dos produtos gerados.

Ao mesmo tempo em que abriu o mercado brasileiro para um vasto leque de invenções da biotecnologia, a Lei 9.279/96 impôs igualmente limitações que, embora legítimas e respaldadas nos tratados internacionais em vigor, constituem um contencioso em potencial com outros países. A polêmica poderá se acender à medida que invenções e descobertas relacionadas aos genomas passem a se traduzir em mercadorias valiosas, especialmente medicamentos, para cuja valorização de mercado seja necessária a proteção patentária.

Parecem ser claras, igualmente, as implicações que decisões dos EUA passaram a ter no mundo pós-guerra fria, isto é, sua incorporação automática à agenda internacional de assuntos considerados relevantes e a consequente propugnação pela projeção dos padrões incorporados internamente à seara internacional. Depois de anos em que os limites de admissibilidade à proteção pareceram ora muito estreitos ora muito elásticos, vem o USPTO acelerando o número de diretrizes administrativas que, embora de alcance geral, visam, em essência, tornar claros os parâmetros na área de biotecnologia[13][13].

 É grande, assim, a possibilidade de que a discussão sobre direitos intelectuais relacionados à engenharia genética venha a adquirir maior vulto no Brasil. Dois fatos novos deverão ser incorporados a essa discussão: Primeiro, vem sendo construída no País - basicamente em centros de pesquisa e universidades - importante capacitação técnica relacionada à biotecnologia. Surgem, assim, novos atores de origem brasileira com interesse prático na questão do patenteamento. Segundo, o horizonte de proteção relevante para as invenções biotécnológicas é claramente o internacional. De valia limitada será para o pesquisador brasileiro obter a proteção no mercado interno e deixar de lado o potencial oferecido pela proteção nos mercados dos países desenvolvidos.



[14][1] Vide Anexo I para todas as referências a descobertas nas sucessivas leis brasileiras que tratam de patentes. Os textos integrais das legislações citadas encontram-se disponíveis em www.inpi.gov.br

[15][2] Observe-se que, na lei antiga, nada obstava o patenteamento de invenções relacionadas à biotecnologia tradicional, desde que não incluídas em campos vedados ao patenteamento, como o químico-farmacêutico.

[16][3] Embora as plantas não sejam patenteáveis, diversas técnicas de vasta repercussão no campo agrícola o são. Cite-se, por exemplo, os microorganismos manipulados que ajudam a planta em determinada tarefa básica, como a fixação de nitrogênio.

[17][4] A fonte de dados utilizada é o Sistema Informatizado do INPI - SINPI. A relação completa dos pedidos pipeline de biotecnologia, com dados bibliográficos básicos, consta do Anexo III.

[18][5] Vide Anexo II para uma descrição dos códigos pertinentes da CIP.

[19][6] Como pedidos de medicamentos foram considerados os que tenham classificação - principal ou secundária - A61K. Para plantas, foram relacionados os classificados em A01H ou cujo título faça referência à aplicação na área de tecnologia vegetal (vide Anexo II, com detalhes sobre a classificação).

[20][7] Os pedidos pipeline estão aqui identificados conforme numeração que lhes é dada pelo INPI. "PI" refere-se a privilégio de invenção. Os dois primeiros números indicam a natureza pipeline e os cinco seguintes são números sequenciais.

[21][8] Para cada pedido depositado, foi levantado o diferencial entre o ano de 2000 e o ano em que foi depositado o pedido internacional em que se baseia a prioridade da invenção. A média desses períodos corresponde à "idade média" mostrada no Quadro I.

[22][9] Em nenhuma hipótese, a proteção no Brasil poderá se estender além de 20 anos contados da data do depósito nacional do pedido pipeline, mesmo que o período de proteção à patente original estenda-se além desse prazo, como ocorre, por exemplo, em legislações nacionais que permitem a extensão de proteção, como o de medicamentos, com o propósito de compensar os períodos relativamente longos de testes clínicos

[23][10] O controle de mercado torna-se ainda maior tendo em  vista que a Dekalb Genetics foi adquirida em 1998 pela Monsanto. Neste trabalho, foram consideradas as empresas depositantes, tal como se apresentaram ao INPI. Não foi feita qualquer elaboração no sentido de associar empresas eventualmente objeto de movimentos de aquisições ou fusões.

[24][11] Conforme metodologia adotada, foram relacionados todos os pedidos pipeline com alguma classificação no campo C12. A grande maioria dos pedidos possui três ou mais classificações, uma, por exemplo descrevendo a natureza química da substância (classes C07); outra indicando aplicação ou finalidade da invenção (A61K, por exemplo) e outra relacionando-a à biotecnologia (classes C12). A coluna de Classificação da Tabela III.2 mostra o grupo correspondente à classificação principal com maior número de ocorrências.

[25][12] Ao lado da numeração de cada pedido pipeline consta o ano em que foi depositado o pedido de prioridade sobre a tecnologia reivindicada. Os dados bibliográficos desses pedidos podem ser vistos no site do INPI em www.inpi.gov.br . O Instituto disponibiliza, ainda, cópias dos documentos integrais.

[26][13] Além das diretrizes sobre o requisito de utilidade, o USPTO produziu recentemente dois documentos relevantes sobre o tema: "Written Description Examination Guidelines", de janeiro de 2001 e "Patent Pools: A Solution to the Problem of Access in Biotechnology Patents?", de dezembro de 2000. Ambos documentos encontram-se disponíveis em www.uspto.gov

 

Retirado de: http://www.geocities.com/prop_industrial/bio_34.htm