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Problemas Éticos no Uso do Software de
Apoio à Decisão Médica

Renato M.E. Sabbatini



Desde a década dos 70, a Informática, através de um dos seus ramos, a Inteligência Artificial, vêm desenvolvendo programas
de computador capazes de elaborar decisões complexas na área de diagnóstico, prognóstico e terapia médica. Esses
programas, denominados de sistemas especialistas (ou sistemas expert, em inglês) têm capacidade de raciocínio do tipo
dedutivo, muito semelhante à que o médico utiliza em seu dia-a-dia para identificar e tratar os problemas de saúde dos seus
pacientes. Fornecendo-se ao programa os sintomas, sinais e resultados de exames médicos de um determinado caso clínico,
ele é capaz de orientar a decisão médica com grande exatidão, e até de explicar as razões e o raciocínio usado para chegar até
ela (inclusive fornecendo as referências bibliográficas relevantes !)

Os sistemas especialistas recebem este nome porque geralmente tratam de domínios muito restritos da conhecimento em
Medicina. Por exemplo, existem programas específicos para recomendar o diagnóstico e a terapia de glaucomas, de câncer de
mama, de alterações do equilíbrio ácido-básico, de anemias, de doenças reumáticas, de epilepsias, de cardiopatias congênitas,
e muitos outros. Estima-se que já existam cerca de 2.000 programas desenvolvidos de apoio à decisão em Medicina, e muitos
deles foram incorporados à equipamentos biomédicos e a programas de computador de uso rotineiro em hospitais e clínicas. É
o caso, por exemplo, dos novos aparelhos comerciais de ECG, capazes de elaborar a interpretação correta dos traçados
obtidos, ou de um sistema de registro médico computadorizado, desenvolvido na Universidade de Utah, que avalia
automaticamente os dados dos pacientes, dando sugestões e lembretes para o médico por ocasião da consulta ou da visita.

Esses programas são desenvolvidos de modo a funcionarem com um altíssimo grau de precisão e acurácia. Geralmente,
acertam 100 % dos diagnósticos de dificuldade pequena ou média, e 80 %, ou mais, dos diagnósticos difíceis. Portanto, têm
um desempenho igual a dos grandes médicos especialistas na área, e superior à maioria dos médicos não especialistas. Existe
até o caso do CASNET/GLAUCOMA, um programa especialista em glaucoma, desenvolvido na Universidade de Rutgers,
nos EUA, que foi "nomeado" como sendo um dos 20 me-lhores médicos especialistas no assunto, em um Congresso
Americano de Oftalmologia, na década dos 80 ! Existem vários trabalhos sérios, mostrando que tais programas, quando
usados de forma sistemática no contexto da assistência médica, aumentam de forma significativa a sua qualidade e grau de
acerto, e ajudam a diminuir os custos e os riscos para o paciente.
 

Novos Problemas

Evidentemente, a existência de programas desse tipo coloca problemas éticos bastante difíceis de serem solucionados,
principalmente agora que eles estão começando a ser difundidos para a população em geral, através de sistemas como
videotexto, redes de computadores pessoais, software para microcomputadores, etc. Recentemente, uma empresa anunciou,
nos EUA, um programa chamado CyberDoctor ("doutor cibernético"), que pode dar consultas médicas sobre qualquer área
da atenção primária, através de uma rede de computadores acessada por quase 2 milhões de usuários leigos...

O primeiro problema se refere à responsabilidade ética por erros de software. De quem é a responsabilidade se um erro em
um programa de diagnóstico, por exemplo, leva à morte ou prejuízo para a saúde de um paciente ? É do autor do software, de
quem o comercializou, ou do profissional de saúde que adotou a solução proposta pelo programa ?

O segundo problema, relacionado em parte ao primeiro, é o de certificação do software. Os norte-americanos e europeus tem
discutido ultimamente a necessidade ou não de estabelecer um sistema de certificação de qualidade de produtos de software
médico, da mesma maneira como acontece hoje com medicamentos e aparelhos biomédicos (de responsabilidade de órgãos
como a FDA, nos EUA). O software médico seria análogo a um livro médico, ou é mais parecido com um equipamento
biomédico ou um novo medicamento ? As soluções técnicas e legais são totalmente diferentes conforme a postura adotada. Na
analogia com um livro, por exemplo, não haveria necessidade de certificação. O responsável final pela decisão é sempre o
médico que trata do paciente: não importa se o livro (ou o software) está errado. Posteriormente o médico poder processar
judicialmente o autor. Um princípio fundamental, então, é o do identificação ou reconhecimento da autoria. Livros tem autores
conhecidos e identificados: o software deveria ter, também. O segundo princípio é o de autoridade, ou seja, a credibilidade da
informação contida no livro, ou no software, é relacionada diretamente à da autoridade reconhecida do autor. Decorre
naturalmente a exigência de competência profissional, ou seja, um software de decisão em saúde deve necessariamente contar
com autor(es) profissionais no domínio do software (médicos, por exemplo), assim como uma empresa farmacêutica deve
contar com um farmacêutico responsável em cada medicamento, e um laboratório de análises, com um biomédico ou médico
responsável perante a lei.

Já na analogia com um dispositivo médico, o software deveria ser extensamente testado e aprovado por uma equipe de
profissionais especializados, contra um banco exaustivo de possibilidades. Só depois disso sua comercialização e distribuição
deveria ser aprovada. Além disso, um software médico, por exemplo, somente poderia ser utilizado por outro médico, em
analogia com a prescrição médica de drogas. Constituiria transgressão da lei confiar um software de auxílio à decisão médica a
um leigo.
 

As Soluções Existem

Contra a primeira proposta, existem poucos argumentos desfavoráveis, a não ser que ela não resolve satisfatoriamente o
problema da responsabilidade ética. De qualquer forma, é uma abordagem perfeitamente viável. A certificação poderia ser
opcional, ou seja, algo como um selo de qualidade, conferido por uma comissão profissional (Underwood Laboratories, nos
EUA, Technische Ueberwachungsverein, na Alemanha, etc. Não temos uma estrutura semelhante no Brasil, infelizmente,
mas deveríamos tê-la), e que poderia ser constituída no seio da Sociedade Brasileira de Informática em Saúde, na AMB, na
UNIMED, etc. Isso levaria à uma seleção natural do software mais competente, pelo usuário.

Quanto à segunda proposta, agradável aos olhos dos que acham necessário regular todos os aspectos de funcionamento da
sociedade, existem muitos obstáculos. A qualidade geral de um software é relativamente fácil de determinar. A ausência de
erros, entretanto, é quase impossível, principalmente quando o software tem milhões de caminhos possíveis, e seu
comportamento não pode ser predito por nenhuma técnica atual (é o caso dos sistemas "expert"). A longa burocracia, além
disso, inviabilizaria a maioria dos produtos de software, que já tem vida muito limitada em um ambiente de acelerado progresso
tecnológico.

Acho que pouca gente duvida, entretanto, que algo deve ser feito para prevenir a proliferação de softwares de apoio à decisão
contendo erros, e que, principalmente, deve ser regulamentado qual é o tipo de software pode ser ofertado à população leiga.
Em maio deste ano, ocorrerá um seminário especial na Faculdade de Medicina de Harvard, em Boston, EUA, especificamente
para discutir questões como esta, ou seja, onde a Informática Médica tangencia o paciente diretamente, e que benefícios e
prejuízos esta tendência poderá trazer.
 

E o Brasil ?

No Brasil, evidentemente, estas preocupações ainda não chegaram ao seio das associações científicas e éticas responsáveis
pelo uso de dispositivos de auxílio ao trabalho médico. Em um projeto destinado a promover o desenvolvimento da
Informática Médica no Brasil, elaborado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia em 1988 (e que, infelizmente, ficou sepultado
em algumas gavetas burocráticas por aí), esse assunto foi examinado de perto, por uma subcomissão da qual fiz parte, e pela
qual fui responsável como relator. O parecer final fez algumas recomendações interessantíssimas sobre o software de apoio à
decisão em Medicina, que valeria a pena reexaminar. Uma delas é que esse tipo de software aplicativo, para fins de registro no
INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) ou para a aquisição por órgãos públicos ou semi-públicos, deveria ter,
entre seus autores responsáveis, um profissional de saúde especializado na sua área de domínio, bem como identificar
claramente os autores e sua localização.

Outra recomendação interessante é a de que o go-verno deveria estabelecer um sistema de certificação opcional de software
de aplicação em saúde (selo de qualidade), através de uma comissão profissional qualificada, implementada através de
Conselhos ou Sociedades profissionais, tais como Conselho Federal de Medicina, Associação Brasileira de Medicina,
Sociedade Brasileira de Informática em Saúde, etc. Uma lista do software testado e certificado seria divulgada periodicamente
através de órgãos de circulação dirigida para médicos. A Organização Mundial da Saúde e a Comunidade Econômica
Européia já estão se movimentando nesse sentido. Recentemente, fiz parte de uma comissão da OMS que está propondo a
criação de um Centro Internacional para Certificação de Software em Saúde, a ser sediado na Itália.

Ninguém está realizando, aqui no Brasil, estudos para a inclusão de normas de deontologia médica relativas à responsabilidade
de erros médicos incorridos por defeitos de software de aplicação em saúde. Essa é uma área que exige ação urgente, pois
dentro em breve, esse tipo de software estará também tendo grande difusão em nosso meio, muitos deles elaborados de forma
tecnicamente incompetente. Os médicos usuários não tem condições de avaliar individualmente a proficiência técnica desses
problemas, portanto algo precisa ser feito.

Além disso, o fato desses programas terem um desempenho superior ao da maioria dos médicos coloca uma série de
problemas sérios no campo da ética profissional. Como o juramento de Hipócrates obriga o médico a dar o melhor tratamento
possível ao paciente, como ficaria a questão da obrigatoriedade do uso desses softwares ? Um dos primeiros softwares de
apoio à decisão médica estudados com detalhe foi um desenvolvido em Manchester, Inglaterra, por um cirurgião chamado De
Dombal. Ele provou que o programa, que tinha o objetivo de diagnosticar a causa de urgências abdominais, acertava muito
mais do que um residente ou até de um médico assistente, tendo desempenho semelhante ao de uma junta médica. Seu uso
sistemático nos pronto-socorros da cidade de Manchester, comprovadamente diminuiu em mais de 20 % a necessidade de
laparotomia exploratória. O uso do programa tornou-se, então, obrigatório, em muitos hospitais. Em outro caso recente, um
software desenvolvido por meu grupo na Universidade Estadual de Campinas, é capaz de acertar 90 % dos prognósticos de
mortalidade de 12 meses de pacientes com insuficiência cardíaca congestiva do tipo dilatado. Os médicos somente acertam 78
%. Com tamanha proficiência, o software poderia ser utilizado rotineiramente para priorizar listas de candidatos à transplante,
para orientar o paciente quanto ao prognóstico de sua doença, etc.

Um fato nos chama a atenção, com relação a este tema. Nos EUA, já começaram a ocorrer os primeiros casos de pacientes
que ganham processos de imperícia médica contra hospitais ou profissionais que não usaram computadores para garantir a
melhor tecnologia de diagnóstico e terapia. Um hospital perdeu um processo, por não ter registros médicos computadorizados
em sua UTI, e a família de um paciente processou um oncologista porque ele não informou o prognóstico extremamente
conservador para um dos seus pacientes, levando-o a um sofrimento prolongado e a um tratamento muito caro, ambos
desnecessários. O acesso da população leiga a softwares sofisticados de apoio à decisão médica tem um enorme potencial
para agravar esses problemas.

Temo que se a classe médica não se mobilizar para entender melhor e propor soluções para esses dilemas, acabará sendo
ultrapassada pelos fatos criados pelo acelerado desenvolvimento tecnológico da Inteligência Artificial.

Retirado de http://www.epub.org.br