Recentemente um grande jornal do Rio de
Janeiro publicou uma matéria acerca da atividade dos DJ’s. Embora dela lembre
apenas alguns detalhes, permaneceu em minha mente uma questão ali abordada:
podem os DJ’s ser considerados músicos?
A matéria, aparentemente, foi motivada
pela criação no prestigiado Berklee College of Music de um curso de
“turntablismo”, onde são ensinadas técnicas envolvendo todos os elementos de
manipulação e performance de um DJ: scratch, beat-matching e beat
juggling, crossfader, cuing etc. (todos estes termos e sua explicação
técnica foram retirados de matéria publicada no The Boston Globe,
www.bostonglobe.com).
No Brasil já existem cursos de formação
de DJ’s; sites especializados -- além de sites dos próprios DJ`s -- comércio de
equipamentos e discos vinyl, publicações e programas de rádio e tv voltados
para o setor, e uma associação de classe, caracterizando uma atividade intensa
na área, com um também intenso intercâmbio internacional, além da proliferação
de grandes eventos envolvendo a categoria.
Segundo o glossário que acompanha a
matéria do The Boston Globe, turntablism significa a arte de utilizar um
toca-discos como um instrumento musical. Este modo de utilização não é novo:
John Cage já o fizera há décadas, em fins dos anos de 1930, e desde então tem
sido utilizado do mesmo modo em diversas manifestações musicais. Atribui-se,
entretanto, ao DJ Babu ter cunhado o termo turntablism, em 1995,
definindo o turntablist como a pessoa que usa o toca-discos, não para
reproduzir músicas, mas para “manipular sons e criar música”. Há, ainda, a
elaboração de um conceito: o de que o DJ apenas executa músicas e o turntablista
cria músicas.
A International Turntablist Federation
define o turntablista como alguém que usa o toca-discos como um meio para
executar, mixar, criar e orquestrar novas e originais composições musicais,
concluindo que, ao usar as mãos para mover o disco para frente e para trás,
manipulando ritmicamente os sons, atua como um violinista, um guitarrista ou um
pianista. Ressalte-se que uns dos objetivos da ITF é o reconhecimento
internacional do turntablist como um músico, e do turntable como
um instrumento musical.
A conjunção desses elementos de definição
do que seja um turntablista, na verdade, do que seja um DJ -- já que a
expressão turntablista inexiste entre nós -- resulta em dois aspectos a que se
visa analisar, a saber: i) o DJ como intérprete musical; e ii) o DJ como autor
musical.
Ressalto, antes, que a questão não
deveria passar por preconceitos de qualquer tipo, assim como aspectos de
natureza estética devam ser afastados, uma vez que o objetivo é a avaliação
fática e a tentativa de caracterização jurídica do fenômeno.
O DJ como intérprete musical
À parte o fato de ser o ou a DJ uma
personalidade inserida no mundo artístico musical, basicamente da música
popular, a questão é se a sua atividade pode ser interpretada como uma
atividade de artista, em termos estritamente legais, e que tipo de artista é. A
Lei nº 6.533/78 define o artista como todo o profissional que cria, interpreta
ou executa obra de caráter cultural de qualquer natureza, através dos
meios de comunicação de massa ou em locais onde se realizem espetáculos de
diversão pública.
A Convenção de Roma (1961) da qual o
Brasil é signatário, já estabelecera que se entende por artistas intérpretes ou
executantes, entre outros, os músicos que interpretem ou executem obras
literárias ou artísticas, entre estas últimas, as obras musicais. A Lei nº
9.610/98 (Lei autoral) absorveu o conceito da Convenção para a definição de
artistas intérpretes ou executantes. A Lei n.º 3.857/60, que disciplina o
exercício da profissão de músico não o define, apenas estabelece uma
classificação de músicos, na qual encontram-se os compositores, os
instrumentistas e arranjadores.
Independentemente do fato de estar o DJ
enquadrado em qualquer das categorias acima, entendo que -- parafraseando
Walter Moraes (in “Artistas, Intérpretes e Executantes”, Ed. RT, São
Paulo, 1976) o músico é um “agente da arte musical” -- seja ele um compositor,
um intérprete ou um arranjador, ou um DJ, completo. Como um agente dessa arte,
sobre ela exerce algum tipo de intervenção. No caso específico do
músico-intérprete ou executante, esta intervenção é mediada por um instrumento
musical qualquer, sejam cordas, percussão, metais, madeiras ou a própria voz.
O objeto de minha dúvida, então,
divide-se em dois: i) se um toca-discos e todo o conjunto de aparatos utilizado
por um DJ (CD player, mixer, sampler, processadores de efeitos,
computadores etc.) constitui um instrumento e; ii) em sendo um instrumento,
qual a natureza da intervenção exercida pelo DJ.
É possível responder às indagações com
base em meras observações: se existe uma obra pré-gravada, executada por meios
eletro-mecânicos pelo toca-discos, e sobre cuja execução o DJ exerce uma
intervenção, manipulando e ainda alterando a gravação original, de modo a
produzir um novo som, certamente o toca-discos transforma-se em um instrumento
musical e o seu manipulador em um intérprete (ou executante) musical.
Exemplos de manipulação por um indivíduo,
de sons pré-gravados, justificam esta consideração, especialmente na chamada
música concreta, que desde a década de 1940, com compositores como Pierre
Schaeffer (França), desenvolveram o conceito de música concreta como o
resultado de sons pré-gravados por instrumentos convencionais ou sons naturais
e que depois são manipulados e montados para sua apresentação. O mesmo acontece
com a música eletrônica, com a diferença de os sons pré-gravados, nesse caso,
serem produzidos por instrumentos eletrônicos, como o sintetizador (Fonte:
Dicionário de Música ZAHAR, 1982: verbetes música concreta e música eletrônica).
Ainda que possa causar espécie a alguns,
o fato é que qualquer objeto, desde um pedaço de pau até o mais sofisticado
aparelho que, de qualquer forma, produza sons que possam ser caracterizados
como música, é um instrumento musical. Neste particular, nunca é demais lembrar
certos músicos internacionalmente reconhecidos, como Hermeto Paschoal, Nana
Vasconcelos, Uakti -- citando apenas alguns brasileiros -, que produzem música
a partir dos mais inusitados objetos, como ossadas, utensílios domésticos, vasos
de cerâmica, tubos plásticos etc.
É bem verdade que, ainda, muitos músicos
bem formados rejeitam a atividade do DJ como sendo igual a de um músico --
apesar de muitos DJ’s possuírem sólida formação musical -- assim como, durante
muito tempo, certa categoria de músicos, como os percussionistas, foi encarada
por muitos de seus pares como “menor”, como o “pessoal da cozinha”. Poder-se-ia
também dizer que o DJ sem formação musical não poderia ser considerado um
músico, nem o toca-discos um instrumento, já que aquele seria incapaz de fazer
música por qualquer meio se o seu aparelho fosse desligado da tomada.
Em contraposição -- como noticiou a
imprensa especializada no assunto -- a França foi o primeiro país a reconhecer
oficialmente a atividade, através de seu sistema governamental de comunicações
e radiodifusão e, em 1999, a Comissão Canadense de Rádio-Televisão e
Telecomunicações determinou que o turntablismo constitui um “gênero musical
distinto”, na medida em que a música tenha sido resultado de uma criação realmente
nova, a partir de uma significante alteração da gravação originalmente havida
em suporte vinyl.
Ainda é digno de nota a realização do
“Concerto For Turntable” (www.concertoforturntable.com ) obra dos DJ’s Radar e
Raul Yanez, composto para turntable e orquestra sinfônica., com três
movimentos, e apresentado ao público em março de 2001 pelo DJ Radar e seu turntable,
com regência do maestro Joel Brown à frente da orquestra sinfônica da
Universidade do Estado do Arizona, EUA. Hoje em dia é comum a presença de DJ’s
como músicos acompanhantes, componentes de inúmeras bandas e artistas em
atividade.
O toca-discos, em sua função passiva de
mero reprodutor de sons, é apenas um aparelho. Quando é manipulado pelo DJ e
com isto produzindo novos sons, resultado da alteração dos sons originalmente
gravados, torna-se um instrumento. É dessa forma que se torna possível ver o DJ
como um músico, logo como um intérprete ou executante musical, com todos os
direitos ínsitos a esta categoria, previstos em lei, especialmente o direito de
receber pela execução pública de suas interpretações, onde couber, nos termos
da Lei n° 9.610/98 -- se e quando tais interpretações não firam os direitos de
intérpretes (e produtores fonográficos) e eventualmente de autores, de fixações
fonográficas manipuladas pelo DJ.
O DJ como autor musical
Para a consideração de um DJ poder ser
tido como um autor, em sentido estrito, existe uma regra ainda em discussão: a
de que a manipulação de uma gravação pré-existente resulte em que esta se torne
totalmente irreconhecível da obra original sobre a qual se processou a sua
intervenção. Esta regra, quase uma premissa, está na base da própria aceitação
da obra resultante como uma criação original. Caso contrário, estaremos diante
de um claro aproveitamento de obra anterior, identificável, sobre a qual o DJ
terá exercido uma atividade de modificação, relacionada com o direito moral de
seu autor e do intérprete (artigos 24 e 92 da LDA), e uma atividade de
transformação da obra, relacionada com o direito patrimonial de
autor/intérprete e do próprio produtor fonográfico (artigos 29, 89 e 93 da
LDA).
As intervenções do DJ afetam a gravação e
a própria obra gravada. A manipulação de uma fixação fonográfica -- em outras
palavras, sobre a interpretação original de um outro artista -- pode ocorrer
sobre a harmonia e a melodia da obra musical, que, por sua vez, têm como
tributários o ritmo, o timbre, o estilo, o diapasão, o volume, enfim, todas as
partes que constituem a gravação sonora. A fragmentação dos sons de uma gravação,
o seu re-arranjo etc., operado pela manipulação por um DJ em seu processo de
composição pode, ou não, permitir que a obra e a gravação original sejam
identificáveis.
A exemplo do que ocorre com o
sampleamento sonoro, grosso modo, estamos falando de uma replicação de sons
previamente armazenados. Esse armazenamento prévio de sons permitem a recriação
de escalas baseada em notas ou escalas de uma gravação original – considerada a
“matriz genética” da obra resultante (C.P. Spurgeon, “Sampleamento Digital’,
CISAC, 1992).
A intervenção do DJ, do mesmo modo, pode
ser resultado de uma replicação. Resta saber se esse tipo de aproveitamento,
assim como no sampleamento sonoro puro e simples, pode ser considerado ilícito
quando se observa apenas partes da obra, já quase inidentificáveis, às vezes
algumas notas musicais ou algumas palavras. Isto remete-nos, segundo o
articulista citado, à necessidade de identificação de uma “semelhança
substancial”, verificável através de critérios quantitativos e critérios qualitativos,
na verdade, matéria de prova.
Conclusão
Os aspectos acima abordados, de modo
superficial, o foram como uma tentativa de situar o fenômeno no campo jurídico.
Estamos ainda diante de uma questão em aberto. A atividade do DJ e sua
caracterização como intérprete e/ou como autor musical, está a merecer um
aprofundamento, exigindo-se a sua confrontação com o próprio sentido de autoria
e interpretação (ou execução), bem como com o princípio do fair use.
Disse o diretor da Scratch DJ Academy,
Rob Príncipe, que é hora dessa nova forma de arte ter o mesmo tipo de respeito
e legitimação que o jazz e o rock conseguiram. Esta é uma
afirmação que, com a presença e a importância concomitantes dos DJ’s na música
popular, constitui algo que não pode ser ignorado, e que deve ser tratado como
um novo objeto de estudos para o Direito autoral.
Revista Consultor Jurídico, 23 de
julho de 2004
Retirado de: http://conjur.uol.com.br/textos/248072/