O desenvolvimento da Internet e da
tecnologia digital possibilitou um importante avanço no processo de criação de
obras intelectuais. Com base em um modelo em que o usuário se comunica
diretamente com outro usuário sem um controle central, a Internet permite um
maior aproveitamento de obras previamente criadas, que podem ou não estar em
domínio público.
Considerando as particularidades da
tecnologia digital, não podemos pensar na aplicação dos tradicionais conceitos
do direito de autor sem uma adaptação à nova realidade. Também seria
inadmissível ao jurista discutir qualquer forma de proteção autoral na
tecnologia digital sem levar em conta as discussões sociológicas e econômicas
sobre redes de informação e novos conceitos de criação em arte digital.
O direito de autor surgiu como um
privilégio inicialmente concedido aos editores para garantir um monopólio na
comercialização de obras literárias. O aparecimento da imprensa foi fundamental
para a construção do conceito de direito às criações literárias e artísticas.
Com a Revolução Francesa, o privilégio anteriormente concedido ao editor passa
a ser de titularidade do criador da obra. Em outras palavras, o autor é erigido
à condição de cidadão e, em virtude disso, tem os seus direitos reconhecidos
por lei. Tais direitos têm como pressuposto a necessidade de identificação do
autor em sua obra intelectual, que passa a ser considerada uma extensão de sua
personalidade. A preocupação com a proteção internacional desses direitos
resultou na assinatura da Convenção de Berna de 1886 e em diversos tratados
internacionais sobre a matéria no transcorrer do século XX.
Para Michel Foucault, o conceito de autoria
não é algo imutável na história. Houve um tempo em que a determinação da
autoria era irrelevante ao processo de circulação do saber. Na Idade Média, por
exemplo, o autor era reconhecido às avessas, isto é: sofria uma punição por ter
manifestado livremente o seu pensamento. Muito se evoluiu com relação a essa
época e, hoje, tanto o direito à liberdade de manifestação do pensamento como o
direito a ser identificado como autor são assegurados constitucionalmente.
O reconhecimento da autoria é, sem dúvida,
um direito inerente ao criador da obra intelectual. Na obra digital, porém, a
autoria pode se apresentar de forma diluída, pelo fato de ser aberta à
interatividade e se transformar nas mãos de diversas pessoas. Por essa razão,
muitas vezes fica difícil identificar o verdadeiro autor da obra digital. Isso
resta evidente se considerarmos as diversas "recombinações" feitas
por artistas multimídia sobre obras de terceiros protegidas por direitos
autorais, criando sempre uma obra nova, completamente diferente das obras
utilizadas na sua composição.
A grande questão que se coloca ao direito
de autor diz respeito aos novos valores relativos ao processo de criação da
obra digital. A sociedade deverá decidir entre permitir determinadas formas de
utilização e transformação de obras criadas por terceiros com base nos
princípios estabelecidos pela própria tecnologia digital ou proibir todas essas
novas formas de criação sem a autorização dos respectivos autores.
Os tratados internacionais e a legislação
interna sobre direito de autor dos diversos países não oferecem resposta às
principais questões envolvendo a tecnologia digital. Apesar de a nossa Lei nº
9.610 de 19 de fevereiro de 1998 ("Lei de Direitos Autorais") ser
recente, ela não trata a obra digital e a sua utilização na Internet de maneira
adequada. Na verdade, a Lei de Direitos Autorais procurou apenas transportar
para as obras digitais os mesmos conceitos de direito de autor tradicionalmente
aplicados às obras analógicas, quando, na verdade, o funcionamento do direito
autoral analógico se contrapõe à ética criada pela própria tecnologia digital.
No âmbito da Internet, o direito ainda
não encontrou o justo balanceamento entre o interesse do indivíduo criador da
obra e o do público que deseja dela fruir ou utilizá-la na composição de outras
obras. É preciso, pois, trazer a questão da função social do direito de autor
ao debate. Uma maior proteção significa um menor grau de acesso a obras
intelectuais que, dependendo do caso, deveriam ser de uso livre.
A Lei de Direitos Autorais não deve criar
obstáculos à interatividade propiciada pela Internet, sob o risco de contribuir
ainda mais para o aumento da exclusão digital, que não diz respeito apenas à
limitação de acesso às redes de informação, mas também ao exercício da
inteligência coletiva propiciada pela tecnologia digital. De fato, a
interatividade permite uma maior democratização do uso de obras intelectuais,
além de incentivar a criação de formas mais dinâmicas de produção intelectual.
De acordo com Lawrence Lessig, o grande
perigo de uma ampliação do campo de proteção do direito de autor na Internet
está no fato de que, no meio digital, esse controle aparece de modo muito mais
forte do que no meio analógico. Ao mesmo tempo em que a Internet facilita o uso
indevido e a reprodução não autorizada de uma obra, os mecanismos de controle
digital e rastreamento de informações são muito mais eficientes do que nos
meios analógicos. Assim, uma legislação de direito de autor muito rígida
poderia desestimular as diversas possibilidades criativas proporcionadas pela
Internet.
Alguns exageros na proteção do autor em
detrimento do interesse público podem ser observados na Lei de Direitos
Autorais. Um bom exemplo está na proibição da cópia integral de uma obra, ainda
que para uso privado sem finalidade lucrativa. Nesse caso, o ato é inclusive
tipificado como crime, sem que haja o estabelecimento de qualquer limite quanto
ao uso justificado da reprodução, o que poderia ser alegado, por exemplo, por
um estudante que efetua a cópia integral de um livro pelo fato de sua edição
estar esgotada.
É importante lembrar que nem sempre o
aumento da proteção autoral à obra intelectual e da restrição ao seu uso livre
representam um benefício ao indivíduo criador da obra. Muitas vezes, a defesa
de uma maior proteção e restrição ao uso livre de obras intelectuais é uma
bandeira da própria indústria cultural em defesa de seus interesses. É certo
que o Brasil é um dos países com maiores índices de pirataria e que a mesma
deve ser coibida. Mas também é certo que as políticas públicas deveriam
aumentar as limitações ao direito de autor em determinadas circunstâncias,
principalmente no âmbito da Internet, visando o interesse social à livre
utilização de obras intelectuais protegidas e a inclusão digital como uma das
formas de defesa da cidadania.
A sociedade tem interesse na manutenção
de um mecanismo de estímulo ao autor para que continue criando e para que lhe
seja reconhecido o direito a uma remuneração pelas suas criações. Porém, não se
pode admitir que, sob o argumento de uma alegada defesa do direito moral do
criador, o direito de autor passe a funcionar não mais como um mecanismo de
estímulo, mas como um entrave às novas formas de criação possibilitadas pela
tecnologia digital.
Revista Consultor Jurídico, 20 de
julho de 2002
Retirado de: http://conjur.uol.com.br/textos/11914/