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A escolha pública pelo software livre

(The public choice for the open software)


- Miguel Reale Júnior e Simone Tatsch


Nos últimos meses, observamos a promulgação de leis estaduais que obrigam a Administração Pública a dar preferência ao chamado software livre ou não proprietário. É o caso da Lei n° 7.411/02, do Espírito Santo, e da Lei n° 11.871/02, do Rio Grande do Sul. Encontram-se ainda tramitando projetos de leis idênticas no Paraná e no Mato Grosso do Sul. Assim, é de se questionar a razão dessas escolhas e se elas representam a proteção do interesse público.


Existe no mercado o que podemos chamar de software comercial e software livre. No primeiro tipo, identificamos os softwares que desde a sua criação são destinados ao comércio, sobre eles incidindo uma forte proteção autoral, ou seja, as suas licenças de uso são onerosas, o código-fonte não é aberto - embora, em alguns casos, ele possa vir a ser - e a sua distribuição e reprodução dependem de autorização expressa do titular dos direitos autorais.

 
Esse tipo de licenciamento visa à própria manutenção do aspecto comercial da criação de programas de computador, ou seja, essas limitações autorais têm por fim permitir justa e devida remuneração dos responsáveis pelo desenvolvimento do software. De fato, representam a base para a manutenção da indústria destinada ao desenvolvimento da informática no país.

 
O software livre teve origem nos campos universitários, sendo originariamente destinado à pesquisa científica, motivo pelo qual o tipo de licenciamento sobre ele criado é bastante flexível, sendo o código-fonte aberto, sua distribuição e reprodução livres, o que gera, normalmente, a gratuidade da licença de uso, embora essa não seja uma característica necessária desses programas. Por essas razões, eles são chamados de software livre. Pretendia-se, quando da sua idealização, que, criado um software, fosse o mesmo disponibilizado para evoluir com acréscimos, tornando-se uma obra coletiva em contínuo aprimoramento, com marcado caráter solidário.

 
Embora o caráter solidário dos softwares livres e os baixos custos de aquisição sejam elementos que os tornam, aparentemente, mais atrativos do que os softwares comerciais, antes que o setor público faça uma escolha por meio de lei, é necessária maior reflexão, tanto do ponto de vista fático quanto jurídico.


Previamente a uma tomada de posição, deve ser ressaltado que os softwares comerciais são criados para o consumidor. Assim, há pesquisa das demandas do usuário final, o que torna esses programas, normalmente, mais fáceis de usar e compatíveis com uma infinidade de outros. Além disso, quando se adquire uma licença de uso, há uma empresa responsável pela garantia e suporte. Com isso, os custos da aquisição inicial do software tendem a ser mais altos, mas as despesas com manutenção e treinamento tendem a ser baixas.


Por outro lado, o software livre tem um viés acadêmico, ou seja, a preocupação de seus desenvolvedores não é, necessariamente, com a facilidade de uso ou com as necessidades do usuário final, mas sim com a excelência tecnológica. Tendo em vista a diversidade permitida pela alteração do código-fonte, a compatibilidade com outros programas tende a ser reduzida. Ademais, sendo o software livre uma obra, praticamente, coletiva, com a alteração do código-fonte, a responsabilidade e a garantia pelo produto restam afastadas. Por isso, embora os custos de aquisição sejam baixos ou quase inexistentes, são altos os custos com treinamento e manutenção.

 
Percebe-se que ambos tipos de software apresentam vantagens e desvantagens, as quais, em cada caso concreto, deverão ser analisadas, permitindo uma melhor escolha, inclusive financeira.

 
Do ponto de vista jurídico também merecem críticas as leis mencionadas. É preciso chamar a atenção para a necessidade de os Estados observarem o que dispõe a Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), que é lei nacional e geral, em especial o que dispõe o seu artigo 3º, segundo o qual a licitação visa garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública. Além do mais, fazer uma escolha prévia, por um ou outro tipo de software, sem considerar as peculiaridades de cada caso concreto de compra a ser feita, representa afronta ao princípio constitucional da impessoalidade. É mister ressaltar ainda que as leis que tratam desse tipo de matéria, tendo em vista o princípio da separação dos poderes, são de iniciativa dos governadores, e não das Assembléias Legislativas, como no Rio Grande do Sul e no Espírito Santo.


Portanto, estabelecer alguma preferência ou escolha por uma ou outra forma de software por meio de lei, de forma genérica e para todos os casos, representa sério risco de danos à Administração Pública, além de constituir afronta ao princípio da impessoalidade. Considerando que já há uma lei nacional que trata das licitações e que determina a observância do que for mais vantajoso à Administração Pública, percebe-se que essas iniciativas legislativas baseiam-se mais em decisões emocionais. As escolhas públicas não devem ser emocionais ou ideológicas, mas sim racionais e prudentes.


Miguel Reale Júnior e Simone Tatsch são, respectivamente, ex-ministro da Justiça e sócio do Reale Advogados Associados e doutoranda em direito econômico pela Universidade de São Paulo (USP) e sócia do Martins-Costa e Tatsch Advocacia.

 

Retirado de: cbeji