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A disponibilidade de obras musicais no ambiente digital

 

Rodrigo Kopke Salinas

 

Advogado sócio do escritório Azevedo, Cesnik e Salinas Advogados e Professor Conferencista da ECA/USP e SENAC/SP.

 

Chama a atenção a quantidade de obras musicais que estão disponíveis para serem acessadas pelo usuários em qualquer endereço na Internet. Muitas vezes essas obras (e respectivos fonogramas) não estão reproduzidas por inteiro, mas somente em partes para demonstração. A legislação de direitos autorais, no entanto, protege tais obras musicais no ambiente digital (como em qualquer outro), estabelecendo como direito exclusivo do autor a sua utilização, parcial ou integral, ao mesmo tempo em que a colocação à disposição do usuário dessas obras, sem a observância dos preceitos legais, é geradora da obrigação de indenizar.

Em dezembro de 1996, no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, foram celebrados dois tratados complementares ao que já vinha disposto nos tratados consubstanciados na Convenção Internacional para a Proteção das Obras Literárias, Artísticas e Científicas (Convenção de Berna – conforme a última revisão de 1971) e na Convenção Internacional sobre a Proteção dos Artistas Intérpretes ou Executantes, dos Produtores de Fonograma e dos Organismos de Radiodifusão (Convenção de Roma – assinada em 1961). Os novos tratados são denominados, respectivamente, Tratado da OMPI sobre Direito de Autor e Tratado da OMPI sobre Interpretação ou Execução de Fonogramas. Ambos os instrumentos previram novos direitos aos titulares de direitos de autor e de direitos conexos destinados à proteção e à salvaguarda desses direitos quando as obras, ou prestações intelectuais e fonogramas, fossem veiculados em ambiente digital.

É tal a importância desses novos tratados internacionais para a estrutura e a proteção do direito de autor e dos direitos conexos que a Lei n. 9.610/98 os recepcionou praticamente de forma integral. Ou seja, a lei de direitos autorais em vigor está em sintonia com os recentes tratados internacionais e confere aos titulares de direitos sobre obras musicais, fonogramas, interpretações e execuções artísticas a salvaguarda necessária para a atuação e a defesa dos respectivos direitos no ambiente digital (que compreende os suportes materiais em linguagem digital, a transmissão de sinais nessa linguagem e a Internet).

Assim, o Tratado da OMPI sobre Direito de Autor instituiu novos direitos, complementares aos já estabelecidos pela Convenção de Berna, que se revestem das mesmas características dos direitos exclusivos reconhecidos na citada Convenção São eles: o “Direito de Distribuição”, pelo qual todo autor de obra protegida possui o direito de colocar à disposição do público para venda o original e os exemplares de suas obras; o “Direito de Aluguel” (ou locação), pelo qual os autores de obras musicais fixadas em fonogramas poderão promover a locação dos exemplares contendo a reprodução de suas obras fixada; e o “Direito de Comunicação ao Público”, pelo qual os autores de obras coletivas poderão colocar ao público suas obras de forma que qualquer pessoa possa acessá-las no momento e local por ela escolhido (arts. 6.º, 7.º e 8.º do referido tratado).

O Prof. José de Oliveira Ascensão, da Faculdade de Lisboa, ilustre autoralista, em extenso artigo publicado na Revista da ABPI, n. 42, intitulado “A recente lei brasileira dos direitos autorais comparada com os novos tratados da OMPI”1, analisa, à luz dos novos tratados da OMPI, a Lei n. 9.610/98 e procura identificar nesta legislação qual seria a faculdade específica atribuída ao autor, ou ao titular de direitos autorais, que lhe garante o direito de autorizar, prévia e expressamente, a colocação de obra intelectual protegida em rede de computadores, de modo que a obra possa ser acessível por mais de uma pessoa, ao mesmo tempo e de lugares diferentes.

Nesse trabalho o Prof. Ascensão passa em revista os “direitos” (ou faculdades, pois oriundas duma exclusividade) consagrados na Lei n. 9.610. Dá como exemplo o direito de reprodução, o direito de comunicação ao público e o direito de distribuição. Ao cabo da análise, detém-se o Prof. Ascensão numa nova faculdade da Lei n. 9.610/98, que é a faculdade de “armazenamento em computador”.

Com efeito, dispõe o art. 29, IX, da Lei n. 9.610/98:

“Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:

(...)

IX – a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero”.

Entende o Prof. Ascensão que essa  faculdade da lei brasileira está próxima do que dispõe o art. 8.º do Tratado da OMPI sobre Direito de Autor, e que a lei brasileira está em sintonia com as disposições desse tratado. Para o Tratado da OMPI sobre Direito de autor a faculdade de autorizar a colocação em rede de obra intelectual, de modo que essa possa ser acessada e usufruída por qualquer pessoa no tempo e local por esta eleitos, está compreendida no chamado “Direito de Comunicação ao Público. Todavia, para a lei brasileira, esse conceito de “comunicação ao público”, está restrito às hipóteses de execução pública de obra musical, conforme previsto no art. 68, §§ 1.º, 2.º e 3.º, da Lei n. 9.610/98. Preferiu a lei brasileira, em oposição ao que dispõe o tratado, reservar direito específico para a faculdade de disponibilizar a obra em rede, que é o direito de armazenamento em computador, previsto no art. 29, IX, e que não está compreendido no conceito de comunicação ao público. Uma das consequências dessa interpretação é que não incumbe ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), previsto no art. 99 da Lei n. 9.610/98, a arrecadação de direitos autorais sobre obras musicais disponibilizadas na Internet.

Nesse sentido, na esteira do raciocínio do Prof. Ascensão, podemos dizer que a veiculação de obras musicais em sites provedores de conteúdo diz respeito ao direito exclusivo de “armazenamento em computador”. O exercício deste  direito, como previsto no caput do art. 29 da Lei n. 9.610/98, está sujeito à prévia e expressa autorização do titular.

Deve-se referir, ainda, que, à luz do disposto no art. 31 da Lei n. 9.610/98, o conjunto dos direitos patrimoniais de autor consiste em tantos direitos, ou faculdades, quantas forem as modalidades de utilização da obra intelectual protegida, sendo que, como se depreende do caput do art. 29 e do seu inciso XI, o rol dessa norma não é numerus clausus. Fala-se, antes, como também já escreveu o Prof. Carlos Alberto Bittar, num feixe de direitos, dentre os quais, felizmente, a modalidade de veiculação de obra musical na Internet, para que não pairem dúvidas aos usuários, encontra definição explícita no inciso IX do art. 29.

Concluímos, pois, perfilhando os ensinamentos do ilustre professor português, a veiculação de obra musical na Internet está sujeita à prévia e expressa autorização do titular de direitos autorais, que, no exercício da exclusividade que lhe confere a lei, goza da prerrogativa do art. 29, IX, da Lei n. 9.610/98 para esse fim.



1. Artigo publicado na Revista da Associação Brasileira da Propriedade Industrial (ABPI), São Paulo, n. 42, set./out. 1999, p. 13 a 29.

 

 

Retirado de: www.saraivajur.com.br