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GLOBALIZAÇÃO E A TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

Pedro Braga Filho

Professor de Direito Civil da UNIFACS.

Juiz Federal. Mestre em Direito pela UFBA.

1. INTRODUÇÃO

Como ensina Orlando Gomes, a partir do liberalismo o contrato passou a ser o instrumento jurídico principal da vida econômica. [1]

Com este mesmo entendimento, Paulo Luiz Netto Lôbo esclarece que a "ordem econômica se realiza mediante contratos. A atividade econômica é um complexo de atos contratuais direcionados a fins de produção e distribuição de bens e serviços que atendem às necessidades humanas e sociais".[2]

Também o liberalismo teve fundamental importância para a formação da concepção de contrato e conseqüentemente da própria teoria geral dos contratos, vez que ao defender a liberdade da economia ou do mercado, vedando a sua organização e planejamento pelo Estado, no campo jurídico fortaleceu o princípio da autonomia da vontade e da plena liberdade contratual e consequentemente o conceito de contrato como acordo de vontades capaz de estabelecer um vínculo jurídico e normatizar condutas em interferência intersubjetiva.

A teoria geral dos contratos foi em seguida modificada pela então crescente intervenção do Estado na economia, que resultou no dirigismo contratual com extrema limitação da liberdade de contratar, ao ponto de permitir o surgimento dos chamados contratos obrigatórios e dos contratos necessários.

Os juristas passaram a tratar este fenômeno limitador da autonomia privada e da liberdade contratual como a crise do contrato. Em razão de sua existência, Orlando Gomes chegou a prever o desaparecimento do contrato: "A crise atinge o âmago mesmo da autonomia privada, de que o negócio jurídico é a expressão de maior relevo. A pouco e pouco vai murchando a esfera da liberdade individual, enquanto se dilata o pan-administrativismo.E à medida que murcha, o contrato, seu mais perfeito instrumento, vai desaparecendo melancolicamente da cena jurídica"[3]

Como o processo de globalização encontra-se sustentado nas idéias neoliberais, que exigem o funcionamento o mais livre possível do mercado mundial, retoma o contrato o caminho da autonomia da vontade, livre da intervenção estatal, o que fica bem claro com os contratos eletrônicos realizados pela Internet.

Assim, a globalização econômica tem grande impacto no mundo contratual, pelo crescente enfraquecimento do dirigismo estatal do contrato, mas a liberdade contratual continua limitada, desta vez pelos agentes econômicos, especialmente as empresas multinacionais, ao fixaram as condições ou cláusulas gerais do contrato.

É fato inegável que o crescimento da economia globalizada leva ao enfraquecimento dos estados nacionais, pelo menos nos países pobres [4], sem a contrapartida, na fase em que nos encontramos, do surgimento de instituições jurídicas de âmbito mundial.

Na economia globalizada a liberdade contratual e a igualdade das partes contratantes estão em crise, mas ainda não há nenhum órgão internacional capaz de impor limites e garantir a proteção efetiva do hipossuficiente na relação contratual.

A globalização econômica reforça e valoriza demasiadamente os contratos, que passam a ser utilizados como verdadeiras leis (condições gerais do contrato), a ponto de ser perceptível o fenômeno da contratualização do direito, ou seja, a predominância do direito contratual em face do direito estatal.

Isto fica bastante evidente com os contratos eletrônicos, assim considerados aqueles realizados pela rede de computadores (Internet), que pelas suas características afastam ou dificultam enormemente a incidência das diversas normas jurídicas vigentes nos estados nacionais.

Também os contratos eletrônicos, sendo contratos de adesão, não permitem a plena liberdade contratual, especialmente a negociação de suas cláusulas, o que demontra a existência de desigualdades reais entre as partes contratantes, aceitas sem maiores questionamentos pelos defensores do neoliberalismo e da globalização econômica.

O avanço da globalização trará cada vez mais a massificação eletrônica dos contratos e esta por sua vez fortalecerá este processo econômico com a conseqüente contratualização do direito e o deslocamento do poder normativo dos entes estatais nacionais especialmente para a parte contratante capaz de estabelecer as condições gerais do contrato e também para organismos internacionais regionais e mundiais.

Na fase atual da globalização, entretanto, é facilmente constatável a inexistência de órgão internacional capaz de normatizar com sucesso as relações contratuais ou impor limites jurídicos ao processo econômico globalizante, funcionando os mais conhecidos e poderosos órgãos existentes, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, como meros facilitadores da própria globalização econômica, inteiramente despreocupados com as desigualdades econômicas e sociais entre as partes contratantes.

No âmbito do Direito dos Contratos, esboça-se uma reação à globalização, embora tardiamente, consubstanciada na teoria da constitucionalização do Direito Civil. Paulo Luiz Netto Lôbo, um dos juristas brasileiros defensor desse movimento, chega mesmo a afirmar, que "são incompatíveis com a Constituição as políticas econômicas públicas e privadas denominadas neoliberais, pois pressupõem um Estado mínimo e total liberdade ao mercado, dispensando a regulamentação da ordem econômica, que só faz sentido por perseguir a função social e a tutela jurídica dos mais fracos e por supor a intervenção estatal permanente (legislativa, governamental e judicial)". [5]

Entretanto, é inegável que o desenvolvimento da globalização econômica, enfraquecerá esta visão constitucional dos contratos, em razão do esvaziamento do poder dos estados nacionais. É este também o pensamento de Carmen Lúcia Silveira Ramos:"Uma tentativa de avaliação das tendências para o futuro em matéria de direito positivado revela, no momento atual, que o rumo que se delineia é a transposição da descontinuidade jurídica característica da pluralidade de Estados modernos, com seus sistemas jurídicos fechados, isolados, para a realidade multinacional, para a sociedade sem fronteiras, seja em razão de intercâmbio mais intenso entre os homens, pela rapidez dos meios de comunicação e transportes, seja pela globalização econômica, aproximando os modelos políticos, econômicos e sociais. Este quadro poderá vir a caracterizar a superação da própria constitucionalização do direito privado, ou, pelo menos, poderá significar sua necessária repersonalização, no sentido de adaptar-se a este novo paradigma estrutural da sociedade. A superação da constitucionalização, em face do direito supranacional deve ser levada em conta, ao menos como uma possibilidade, na medida em que, numa sociedade sem fronteiras, a Constituição deixa de ser a norma de base, tornando-se um direito regional, sujeito à observância das regras estatuídas para toda a comunidade a respeito de determinado assunto".[6]

Afinal, com a globalização, também os Estados nacionais passam a depender enormemente do mercado econômico mundial, que exige, através de organismos internacionais, como o Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), em especial para os países pobres e dependentes do capital externo, uma crescente desregulação, deslegalização e desconstitucionalização das relações jurídicas, valorizando a autonomia da vontade e consequentemente os contratos.

2. GLOBALIZAÇÃO

Para Ancelmo César Lins de Góis e Ana Flávia Barros-Platiau, o termo globalização designa" a crescente e acelerada transnacionalização das relações econômicas, financeiras, comerciais, tecnológicas, culturais e sociais, que vem ocorrendo especialmente nos últimos vinte anos".[7]

A globalização é um processo essencialmente econômico e político, mas que produz importantes repercussões no direito. É o que ensina Paulo Luiz Netto Lôbo: "A globalização econômica procura transformar o globo terrestre em um imenso e único mercado, sem contemplação de fronteiras e diferenças nacionais e locais. Tende a uma padronização e uniformização de condutas, procedimentos e relevâncias relativamente aos objetivos de maximização econômica e de lucros, a partir dos interesses das nações centrais e empresas transnacionais que, efetivamente, controlam o poder econômico mundial, sem precedentes na história. Todo o aparato legal que se constituiu em torno do Estado social, densificando os princípios e regras constitucionais, tem sido desafiado pela globalização econômica. O desafio apresenta-se sob dois aspectos principais: o primeiro, vem em forma de pressão para remoção ou aviltamento dos direitos sociais e de redução substancial do sistema legal de intervenção e controle da ordem econômica, sob pena de retaliações difusas ou diretas, inclusive de recusa de investimentos ou saída de capitais; o segundo, pela desconsideração do direito nacional ou sua utilização, naquilo que convém. Ambos levam ao notável enfraquecimento do direito nacional, que se torna impotente para fazer face a eles".[8]

As principais características deste processo de globalização, pelo menos na fase atual, são apontadas por Ronoldo Porto Macedo Júnior, como sendo as seguintes: a) ampliação do comércio internacional e formação de um mercado global assentado numa estrutura de produção pós-industrial;b) homogeneização de padrões culturais e de consumo; c) enfraquecimento da idéia de estado nacional em benefício dos agentes econômicos do novo mercado global; d) formação de blocos comerciais.[9]

Conforme alerta Flávia Piovesan, o processo de globalização econômica pode ser melhor entendido a partir das "regras ditadas no chamado Consenso de Washington, que é fruto de um seminário realizado em 1990, reunindo o Departamento de Estado dos Estados Unidos, os Ministérios das Finanças dos demais países do Grupo dos Sete e os Presidentes dos 20 maiores bancos internacionais (como o Fundo Monetário e o Banco Mundial)".[10]

O referido Consenso de Washington que estruturou inicialmente o processo de globalização econômica, consiste em recomendações para: a) implementação de disciplina fiscal; b) priorização dos gastos públicos; c) reforma tributária; d) liberalização financeira; e) fortalecimento do regime cambial; f) liberalização comercial; g) estímulo ao investimento estrangeiro direto; h) política de privatização; j) novo regime de propriedade intelectual.[11]

Desse modo, é perceptível que a globalização encontra-se sustentada em idéias neoliberais e individualistas e fortalecida pelo pensamento da sua inevitabilidade, uma espécie de novo determinismo social, como lembrado por Calixto Salomão Filho. [12]

O processo de globalização econômica visa essencialmente à criação de um mercado aberto à nível mundial, com o conseqüente incremento dos contratos, especialmente os de consumo, realizados massivamente pela Internet.

Se com o liberalismo havia a crença de que o Estado deveria interferir o mínimo possível na vida das pessoas, o neoliberalismo e a globalização reintroduzem esta idéia e a da igualdade formal entre as partes contratantes. Como resultado, está a ocorrer o retorno das fortes desigualdades econômicas e sociais abrigadas pelos contratos, especialmente agora com os contratos eletrônicos.

3. IMPACTO DA GLOBALIZAÇÃO NA TEORIA GERAL DOS CONTRATOS

O aspecto econômico da globalização é o que tem maior repercussão no Direito Civil e especialmente na Teoria Geral dos Contratos.

A realidade econômica condiciona os contratos e altera a sua Teoria Geral.

Esta afirmação decorre da verdade inquestionável de que há uma constante e profunda interação entre Direito e Economia, como foi bem observado por Orlando Gomes, quando escreveu que "as transformações ocorridas no background econômico determinam a modificação do instituto jurídico, seja em suas normas constitutivas, seja na sua aplicação mediante processo de interpretação que procuram ajustá-lo à função social que lhe cabe desempenhar".[13]

Arnoldo Wald, reconhece a necessidade de um novo direito para a nova economia globalizada. Sua opinião é de que "a grande ruptura do terceiro milênio consiste na criação, no reconhecimento e na generalização, no mundo inteiro, da nova economia, baseada no desenvolvimento tecnológico e na competição, mas também na globalização e na desmaterialização parcial da riqueza. E esta nova concepção da economia tem reflexos em todos os aspectos as sociedade e inclusive no direito". [14]

Por sua vez, Paulo Nalin, com base na concepção ordoliberal, entende que o contrato não deve ser analisado fora do seu contexto de mercado, pois se isto ocorresse seria retirado dele os dados concretos (metajurídicos) que atualmente mais o definem.[15]

Tem sido muito grande o impacto da globalização na Teoria Geral dos Contratos, com o surgimento de novos modos de formação e estruturação dos contratos, como demonstram os chamados contratos eletrônicos e também os contratos relacionais.

A globalização escolheu o contrato como a norma jurídica mais importante, exatamente porque transfere o poder normativo dos estados nacionais para os agentes econômicos, em especial as empresas multinacionais, que pretendem no grande mercado mundial, estabelecer o predomínio do comércio eletrônico.

Pode-se afirmar que os contratos eletrônicos ou virtuais são os contratos intimamente ligados ao processo de globalização e que permitirão o seu crescente desenvolvimento.

Em relação aos contratos eletrônicos ou aqueles realizados por computador via Internet, o entendimento é que são contratos em geral de massa, cujas declarações de vontades são confirmadas por assinaturas eletrônicas e não por documento subscrito pelos contratantes.

Já os contratos relacionais são contratos de consumo contínuos, de longa duração, que estabelecem um processo de cooperação e solidariedade entre as partes contratantes e que favorecem a fidelização do consumidor.

Conforme Ronaldo Porto Macedo Júnior, com a globalização os contratos de consumo passam a ter uma dimensão cada vez mais relacional, uma vez que a necessidade de produtos competitivos exige permanente inovação através de uma produção de especialização flexível, onde são necessárias contínuas transações entre vendedores e compradores.

O referido autor mostra as características dos chamados contratos relacionais: "As principais diferenças entre os contratos descontínuos ou autônomos (por exemplo, a compra e venda de bens de consumo não duráveis) e os contratos relacionais ou contratos de longa duração podem ser resumidos da seguinte maneira. Em primeiro lugar, é impossível especificar completamente o contrato relacional em termos de preço, quantidade, qualidade e entrega, dada a sua mutabilidade constante. Em segundo lugar, dada às contínuas mudanças no produto e design,é impossível prever todas as contingências do futuro e especificar os termos dos ajustes nos contratos relacionais. Desde já, a própria possibilidade do estabelecimento de um standard objetivo e prefixado para o reajuste, tal como formalizado pela teoria neoclásica, começa a se demonstrar insuficiente em face do aumento expressivo do grau de contingencialidade e variação dos termos das relações contratuais. O contrato assume, numa dimensão maior do que a teoria neoclásica é capaz de admitir e incorporar, um caráter processual, que adquire a forma de um jogo reflexionante que produz in fieri a medida de sua razoabilidade e justiça contratual. Em terceiro lugar, em substituição às cláusulas de reajuste, os contratos relacionais incluem cláusulas estabelecendo processos institucionais pelos quais os termos de troca e ajuste serão especificados no curso da perfomance ou cumprimento contratual. Desse modo, os contratos relacionais fazem mais do que regular a troca de mercadorias e seu ajuste. Eles estabelecem o processo para cooperação interorganizacional no produto, na produção e na estruturação da forma de gerenciamento. O equilíbrio contratual nas relações de consumo passa a ser regulado juridicamente não a partir da premissa da existência de contratantes individualistas maximizadores de vantagens individuais, mas sim a partir de novos princípios como a cooperação e a solidariedade" [16]

Em razão das características do processo de globalização, a Teoria Geral dos Contratos tem sofrido modificações especialmente em relação à concepção de contrato, aos princípios contratuais e à formação dos contratos.

3.1. CONCEPÇÃO DE CONTRATO

Os agentes econômicos envolvidos no processo de globalização, em especial as empresas multinacionais, utilizam o contrato essencialmente como norma jurídica.

É o que alerta, com inteira razão, Paulo Luiz Netto Lôbo: "Sob a aparência de contrato, esconde-se um impressionante poder normativo, dificilmente revelável, que ostenta características assemelhadas às da lei A lei, no Estado moderno, ostenta características que a distanciam de qualquer ato de particulares ou de grupos. São eles: a generalidade, a abstração, a uniformidadee e a inalterabilidade. Pois bem, as condições gerais dos contratos, apresentam as mesmas características. São gerais, porque se aplicam a todos os destinatários, sem individualização. São abstratas, porque são predispostas para regerem situações futuras, e não à situação concreta e determinada. São uniformes, porque padronizadas para utilização com todos os que necessitarem dos produtos ou serviços fornecidos. São inalteráveis, porque insuscetíveis de negociação individual com cada interessado. Quem edita a lei é um ente neutro, a saber, o Estado, poder político legitimado pela coletividade. Quem edita ou predispõe as condições gerais é a parte interessada. As condições gerais são o mais eficiente instrumento do poder normativo das corporações econômicas, que dispensam ou tangenciam os direitos nacionais, pois lidam com as necessidades reais ou induzidas de produtos e serviços, que desejam ser satisfeitas. A globalização econômica potencializou este poder normativo, que ultrapassa fronteiras, pois as empresas transnacionais utilizam as mesmas condições gerais, emanadas de suas sedes, em todos os países onde fornecem produtos e serviços, apenas vertendo-as ao idioma local, quando o fazem. De modo geral, tangenciam ou desconsideram os sistemas de garantias dos direitos locais, ou pressionam fortemente para mudá-los".[17]

Orlando Gomes, por sua vez, critica esta concepção do contrato como norma, exatamente pela sua capacidade de gerar dominação do mais forte economicamente, mantendo as desigualdades existentes entre as partes contratantes: "Afirma-se, ademais, que essa idéia está a serviço do capitalismo liberal, porque racionaliza a dominação dos privilegiados pelo emprego de um instrumento jurídico de inspiração liberal do crivo de princípios, como o da boa-fé e da condenação ao abuso de direito, na medida em que se objetiva tornando-se norma autônoma, isto é, desligada das partes que o adotaram, como se verifica mais agressivamente no contrato de adesão (condições gerais de contrato). [18]

3.2. PRINCÍPIOS CONTRATUAIS

Na concepção clássica, os contratos estão estruturados nos seguintes princípios fundamentais: a) autonomia da vontade; b) consensualismo; c) força obrigatória; d) boa-fé subjetiva; e) relatividade dos efeitos.

A globalização fortalece os referidos princípios, especialmente o da autonomia da vontade, que vinha sendo relegado pelo estado social intervencionista e protetor do hipossuficiente.

Entretanto, a autonomia da vontade ou autonomia privada, revalorizada em tempos de globalização econômica, deve ser remodelada pela função social do contrato, o que permite o controle do seu exercício, a ser efetuado concretamente pelo Poder Judiciário.

Como acertadamente afirmado por Paulo Nalin, baseado em Pietro Perlingieri, a autonomia da vontade dos sujeitos de direito deve ser resguardada pelo ordenamento jurídico, mas em prospectiva coletiva e não meramente individual.[19]

Além disso, os contratos contemporâneos formados em decorrência de uma economia em fase de globalização, devem observar ainda o princípio da boa-fé objetiva e outros princípios decorrentes como o da transparência e confiança.

O princípio da boa-fé objetiva exige que cada parte contratante tenha um comportamento leal, correto e honesto, conforme o entendimento vigente na sociedade, respeitando a confiança e os interesses legítimos da outra parte.

Esta boa-fé objetiva, serve assim, como princípio que impõe limites à autonomia privada, como adverte Guilherme Magalhães Martins, "na medida em que a adequação das expectativas da parte contratante repousa, ainda que de modo mediato, no respeito à dignidade humana". [20]

Do princípio da boa-fé objetiva decorrem os outros princípios da transparência e da confiança. Conforme observa Leonardo Mattieto, "com base na noção de boa-fé objetiva, cobra-se a transparência do contrato, desde a oferta, proíbe-se a publicidade enganosa ou abusiva, constrói-se o dever de informar (ao qual se ligam o dever de confidencialidade sobre as informações obtidas e o direito de acesso às informações e à sua retificação, se necessário), veda-se a abusividade de modo geral e se afirma o dever de cooperação entre as partes". [21]

O princípio da transparência, muito importante para os contratos de adesão, predominantes no processo de globalização, especialmente os realizados eletronicamente, exige que a parte capaz de estabelecer o conteúdo do contrato (condições gerais do contrato), informe corretamente à outra, agindo com lealdade.

Sobre o princípio da confiança, Paulo Nalin esclarece que objetiva salvaguardar as expectativas contratuais dos que se aproximam e realizam o negócio jurídico, podendo ser aplicado desde a fase pré-contratual até a execução do contrato. Nas suas próprias palavras: "A confiança guarda íntima relação com o princípio da boa-fé objetiva, não só porque se louva dos deveres anexos de cuidado, informação, segurança e cooperação, construídos a partir de seus desdobramentos, como representa, ainda, um dos mecanismos de interpretação dos contratos, o qual se realiza em vista do comum significado que as partes atribuem ao conteúdo negocial. Pode-se dizer, efetivamente, que a confiança surge das diversas manifestações da boa-fé, sugerindo a doutrina a integração da confiança no conteúdo substancial da boa-fé. É evidente, assim, tratar-se de princípio que se afina, em consequências fáticas e jurídicas, com a formação da nova sistemática contratual". [22]

3.3. FORMAÇÃO DOS CONTRATOS

Os modos de formação deste negócio jurídico vêm sendo alterados a partir da massificação dos contratos.

A globalização veio apenas acentuar estas mudanças, especialmente a partir do contrato eletrônico, que constitui nova técnica de formação dos contratos.

O que caracteriza o contrato eletrônico é que as declarações convergentes de vontades são efetuadas pela Internet, seja mediante correio eletrônico (e-mail), salas de conversação ou bate-papo (chat) e páginas eletrônicas (web sites).

Assim, quanto ao modo de contratação eletrônica, utilizando a classificação de Mariza Delapieve Rossi, o contrato eletrônico pode ser: a) intersistêmico, quando o computador é utilizado como simples meio de comunicação sem interferência na formação e declaração das vontades convergentes iniciais; b) interpessoal, quando o computador além de atuar como meio de comunicação, interage na formação das vontades das partes contratantes e na instrumentalização do contrato; c) interativo, quando o aceitante ou oblato interage com um sistema aplicativo ou seja, um programa de computador que possibilita o acesso a um banco de dados e permite a aquisição de bens ou a utilização de serviços eletronicamente.[23]

Nos contratos interativos, o seu conteúdo encontra-se previamente estabelecido nas páginas eletrônicas (web sites), onde o contratante consumidor tem apenas que clicar nos ícones de comando, declarando a sua vontade (aceitação) e aderindo às condições gerais do contrato estabelecidas pela parte autora da oferta pública.

Os contratos interpessoais realizados nas salas ou ambientes de conversação (chat) são formados em tempo real (on line) e portanto, podem ser considerados celebrados entre presentes, nos termos do art. 1081, inciso I, do Código Civil, pois permitem que a aceitação seja declarada imediatamente após à proposta.

Entretanto, os contratos interpessoais realizados pelo correio eletrônico (e-mail) são considerados celebrados entre ausentes, recebendo tratamento jurídico idêntico ao dos contratos por correspondência (art. 1086, do Código Civil) no que se refere à formação, pois as mensagens eletrônicas encaminhadas ficam retidas no provedor e só passam a ser conhecidas pelo destinatário quando este executa o programa de correio eletrônico.

Em relação aos contratos interativos, realizados nas páginas eletrônicas (web sites), há maior dificuldade em saber se a sua formação ocorre entre partes presentes ou ausentes, em razão da diversidade de situações.

Quando existir uma proposta na página eletrônica (web site), o contrato será entre ausentes para o proponente, pois não sabe se a sua proposta será aceita e muito menos quando e entre presentes para o aceitante, vez que tem conhecimento imediato da proposta ao acessar o endereço eletrônico.

Havendo simples convite a fazer proposta, quando da posterior proposta e aceitação, o contrato será, em princípio, considerado entre ausentes, ante a impossibilidade de imediatidade.

As exceções existentes foram apontadas por Erica Brandini Barbagalo: a) quando o sistema puder processar imediatamente as informações do proponente e emitir automaticamente a aceitação, o contrato será considerado entre presentes; b) também será considerado entre presentes, o contrato instantâneo de execução imediata, ou seja, quando tiver por objeto a aquisição de bens ou serviços que podem ser entregues ou prestados via Internet, como ocorre na compra de programas de computador (softwares).[24]

Por fim, quanto ao lugar da formação do contrato eletrônico, será o local em que foi proposto nos termos do art. 1087, do Código Civil, ou o local em que residir o proponente, quando se tratar de contrato internacional, conforme art. 9º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº 4.657, de 04.09.42).

Além da localização geográfica, o proponente na Internet tem uma localização lógica, ou seja, onde está o seu endereço eletrônico (e-mail) ou a sua página eletrônica (web mail).

Desse modo, como adverte Erica Brandini Barbagalo, não sendo possível determinar com exatidão onde se encontra geograficamente o proponente, "por impossibilidade técnica de rastreamento da informação, deverá presumir-se a proposta como emanada no local de 'domicílio lógico' do proponente, assim considerado o lugar indicado como de origem de sua identificação lógica". [25]

4. CONCLUSÃO

A globalização é um processo econômico capitalista que ainda está na fase inicial, sendo difícil prever todas as grandes transformações jurídicas decorrentes, especialmente em relação a Teoria Geral dos Contratos.

O certo é que o crescimento maior ou menor da globalização dependerá essencialmente do desenvolvimento tecnológico relacionado à informática, às comunicações e aos transportes.

Pelo menos atualmente, a globalização encontra-se vinculada às idéias neoliberais, o que reflete consideravelmente na Teoria Geral dos Contratos, retomando com força o princípio da autonomia da vontade baseado na igualdade formal, o que permite grande desigualdade real entre os contratantes e até mesmo, em países pobres, a exclusão de potenciais contratantes do processo econômico e jurídico de consumo.

A formação eletrônica de contratos de adesão possibilita aos agentes econômicos do mercado globalizado, o afastamento ou o enfraquecimento da intervenção dos estados nacionais, que na ausência de órgãos mundiais com capacidade de regulação jurídica, exercem com exclusividade o poder normativo das relações de consumo mediante a imposição das cláusulas ou condições gerais do contrato.

Para limitar o impacto da globalização nos contratos na era da globalização, cabe a aplicação dos princípios da boa-fé objetiva, transparência e confiança e também esperar que as normas jurídicas emanadas dos estados nacionais, órgãos regionais (MERCOSUR, União Européia) e mundiais (Fundo Monetário Internacional-FMI e Banco Mundial), possam impedir o abuso contratual.

O contrato, em tempos de globalização, pelo menos na fase em que se encontra (neoliberalismo) e dentro das projeções possíveis, não será nem tão livre, fruto exclusivo da autonomia da vontade, nem tão controlado pelos estados nacionais ou órgãos internacionais.

O mercado livre exigido pela globalização pode ser alcançado sem a perda da igualdade social, sendo que no plano jurídico isto requer uma nova Teoria Geral dos Contratos que não esteja fundamentada inteiramente em idéias neoliberais e mostre a possibilidade do contrato continuar decorrendo da autonomia da vontade mas limitado pela sua função social e pelos demais princípios contratuais, especialmente o da boa-fé objetiva.

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[1] Orlando Gomes, Contratos, p. 6

[2] Paulo Luiz Netto Lôbo, Constitucionalização do Direito Civil.

[3] Orlando Gomes, Direito Econômico, p.183.

[4] Paulo Batista Nogueira Jr, mostra que este declínio do Estado não acontece nos países desenvolvidos, em A ideologia da Globalização, Princípios. Revista Teórica, Política de Informação, n.46, p.7, ago/out, 1997.

[5] Paulo Luiz Netto Lôbo, Constitucionalização do Direito Civil.

[6] Carmen Lúcia Silveira Ramos, A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteira, em Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo, p.18.

[7] Ancelmo César Lins de Góis e Ana Flávia Barros Platiau, Direito Internacional e globalização em face das questões de direitos humanos, em Revista CEF, nº 11, agosto/2000, p.89.

[8] Paulo Luiz Netto Lôbo, Direito do Estado Federado ante a Globalização Econômica.

[9] Ronaldo Porto Macedo Júnior, Globalização e Direito do Consumidor, em Direito Global, p.225.

[10] Flávia Piovesan, Direitos Humanos e Globalização, em Direito Global, p.195.

[11] Ronaldo Porto Macedo Júnior, Globalização e Direito do Consumidor, em Direito Global, p.234.

[12] Calixto Salomão Filho, "Globalização e Teoria Jurídica do Conhecimento Jurídico" em Direito Global, p.259.

[13] Orlando Gomes, Direito Econômico, Saraiva, p.15.

[14] Arnoldo Wald, Um novo Direito para a nova Economia: os Contratos Eletrônicos e o Código Civil, em Direito e Internet, p. 09.

[15] Paulo Nalin, Do Contrato: Conceito Pós-Moderno, p.121.

[16] Ronaldo Porto Macedo Júnior, Globalização e Direito do Consumidor, em Direito Global,p.233.

[17] Paulo Luiz Netto Lôbo, Direito do Estado Federado ante a Globalização Econômica.

[18] Orlando Gomes, Contratos, p.14.

[19] Paulo Nalin, Do Contrato: Conceito Pós-Moderno, pp.169/170.

[20] Guilherme Magalhães Martins, Boa fé e contratos eletrônicos via Internet, em Problemas de Direito Civil-Constitucional, p.144.

[21] Leonardo Mattieto, O Direito Civil Constitucional e a nova Teoria dos Contratos, em Problemas de Direito Civil-Constitucional, p.180.

[22] Paulo Nalin, Do Contrato: Conceito Pós-Moderno, p.154.

[23] Conforme Erica Brandini Barbagalo, Contratos Eletrônicos, pp.51/58.

[24] Erica Brandini Barbagalo, ob.cit., pp.79/80.

[25] Erica Brandini Barbagalo, ob.cit., p.66.

Retirado de: www.unifacs.br