® InfoJur.ccj.ufsc.br

O MERCOSUL E A DOCUMENTAÇÃO ELETRÔNICA.

Elcio Trujillo
Juiz de Direito da 2ª Vara Cível da Comarca de Franca (SP) e professor
 

Introdução

Recentemente, o Presidente Fernando Henrique Cardoso, regulamentando a aplicação do Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa no âmbito do MERCOSUL, assinado pelo Brasil em 27 de junho de 1992, decretou que os instrumentos públicos emanados de um Estado Parte terão no outro a mesma força probatória que seus próprios instrumentos públicos, assim como as escrituras públicas e "os documentos que certifiquem a validade, a data e a veracidade da assinatura ou a conformidade com o original" (1). Regulamentou ainda a expedição de certidões e traslados, dispensando toda legalização em cada Estado Parte que o receba em onde devam produzir todos os seus regulares efeitos.

A integração econômica e política parece ser um fato que se consolida rapidamente no contexto dos países que integram o MERCOSUL. Mas, para a sua efetiva concretização, além dos vários acordos, convênios e regulamentos celebrados pelos estados integrantes, é ingentemente necessária uma produção científica que lhe dê suporte e sustentação, discutindo os vários aspectos relacionados com a efetiva integração desse bloco regional.

A maior rapidez na concretização dos negócios demandará, como necessária contraparte, uma mesma agilidade na formalização e celebração de contratos, sem que haja qualquer redução ou perda na confiabilidade e na segurança que devem permear todas as relações jurídicas negociais.

Assim, o objetivo deste pequeno trabalho é indicar caminhos, insinuar soluções, para a celebração e formalização de atos e negócios jurídicos instrumentados eletronicamente, garantindo-se-lhes a sua validade, autenticidade, e o mesmo valor probante que desfrutam os instrumentos públicos ou notariais no contexto do MERCOSUL, em atenção ao disposto no referido Decreto.

Breve digressão a respeito dedocumento

Toda a informação contida em um suporte material que contenha a propriedade de ser comunicada é um documento. É "qualquer base de conhecimento, fixada materialmente e disposta de maneira que se possa utilizar para consulta, estudo, prova etc." como o definem os dicionários (2).

Mais do que um suporte material que recebe um assentamento gráfico com carga informativa, os documentaristas reconhecem a necessidade de um receptor no fenômeno comunicativo, sem o que não se teria propriamente um documento. Abre-se uma perspectiva subjetiva para compreensão do documento como "uma fonte aceite, fixa e permanente de informação corretamente assimilada"(3), não se ignorando, entretanto, o fato de que o conceito de documento radica essencialmente na aptidão de transmitir informações, e não propriamente na culminação desse processo.

O que nos interessa aqui, para além das minúcias documentaristas que guarnecem um elaborado conceito lato de documento, é a inserção desses elementos básicos para fundamentar um possível conceito de documento na perspectiva jurídica, ou seja, na identificação daqueles elementos que possam traduzir o fenômeno jurídico: o seu caráter probatório.

Tradicionalmente, a verificação do caráter de autenticidade de um documento se baseia na segurança da consistência original de seu conteúdo e a identificação da proveniência subjetiva — integridade e imputação subjetiva — ambas apuradas na materialidade do suporte e na assinatura.

O suporte, registra RAIMONDO ZAGAMI, "é uma substância que permite a fixação dos signos gráficos no qual é expresso o documento. O mais comum dos suportes à escrituração é a carta, mas os mais variados tipos de suporte são abstratamente concebíveis." (4) A percepção de que os mais diferentes meios materiais para a fixação dos signos gráficos são abstratamente concebíveis leva à consideração de que, além do suporte, outros signos ou elementos fundamentais de informação — que não os propriamente gráficos — podem igualmente ser abstratamente considerados. Assim, não só o suporte material para a fixação da informação pode ser o papel, ou discos magnéticos ou ópticos, como o "signo" pode ser gráfico ou mesmo constituído de elementos básicos da informação eletrônica: bits.

O que nos importa aqui é que o valor probatório do documento — seja em que base material esteja "inscrito" — está na dependência de que esse suporte material deva ser indelével, i.e., que não permita qualquer tipo de adulteração, deliqüescência ou cancelamento que de outra forma não possa ser percebido. Ademais, é necessário que haja uma imputação subjetiva segura, que permita o estabelecimento da presunção relativa da proveniência — o que tradicionalmente se verifica com a aposição da firma, uma escritura autógrafa que se presume única para cada indivíduo e que seja difícil de ser reproduzida, não seja modificável e igualmente não possa ser reutilizável quando ligada indissoluvelmente ao suporte material que a contém. É evidente a relevância jurídica da assinatura para a identificação da proveniência e paternidade do documento.

Ao modo tradicional de conceber um documento podemos distinguir os elementos constitutivos: o material (suporte e continente) e o espiritual (o conteúdo). "O primeiro é o meio através do qual é incorporada a escrituração, ou seja os signos alfabéticos que compõem o pensamento" e o segundo seria "o pensamento materializado no escrito" e finalmente a subscrição seria o "anelo de conjugação" desses dois elementos. (5)

Finalmente, verifica-se uma prevalência e mesmo proeminência dos elementos materiais do continente em face do elemento espiritual, o conteúdo — e em razão do que este último, de per si considerado, seria privado de qualquer eficácia probatória. (6)

Contudo, já se pode verificar os limites que o suporte material tradicional oferece no contexto de rapidez e agilidade no trânsito de informações. Se aponta a inadequabilidade do papel (ou materiais símiles) como suporte material para o documento quando se pensa na sua conservação e principalmente na sua transmissão, ao lado de que a falsificação de assinaturas torna extremamente complexa, onerosa e demorada a prova judicial, por um lado, e a exasperação autenticadora de outro, com o reconhecimento de firmas com vistas à prevenção de litígios.

Finalmente, o suporte material e os signos nele apostos, na forma em que se aperfeiçoou deste a idade média na chartæ (quando se considerou sinônimo de documento) mostra-se agora com evidentes limites. O aporte de recursos eletrônicos tem o condão de expandir essas circunstanciais limitações, tornando o documento mais seguro, confiável, melhor administrável no sentido de que seu armazenamento e recuperação, bem assim a sua transmissão, é muito mais eficiente e rápida, além de segura.

E, logicamente, torna confiável a prova judicial de autoria do documento, com a fixação da paternidade do documento e a clara imputação subjetiva.
 
 

Documento e assinatura eletrônicos

Já vimos os elementos básicos que compõem e informam o documento tradicional. Facilmente se verifica que podem ser aproveitados para fundamentar o conceito de um documento que seja formado sobre uma base material distinta, qual seja o meio eletrônico. Com GIANNANTONIO, pode-se conceituar o documento eletrônico, ou documento informático, como "o documento produzido pelo computador eletrônico. Distinguem-se documentos eletrônicos stricto sensu, memorizados em forma digital e não perceptíveis ao homem se não através do computador, e documentos eletrônicos lato sensu, isto é, todos os documentos formados pelo computador mediante dispositivos de saída"(7)

Muito embora se aceite que o armazenamento de dados em meio eletrônico possa constituir um documento eletrônico, contudo o mesmo não pode ser subscrito no modo tradicional, com a aposição de assinaturas para atestar a paternidade e bem assim a sua origem. Com as modernas técnicas de criptografia (8) aplicadas aos documentos eletrônicos e com a aposição de firmas digitais, atinge-se, assim, a plena eficácia probatória dos documentos, o que nos interessa de perto aqui.

Segundo ZAGAMI, uma firma digital "é um conjunto de caracteres alfanuméricos resultante de complexas operações matemáticas de criptografia efetuadas por um computador sobre um documento eletrônico (um texto, uma imagem, um som ou qualquer outro arquivo digital). (9) Para chegar à exata compreensão do que seja uma assinatura eletrônica, é necessário definir o que seja autenticação de um documento eletrônico: é um processo eletrônico por meio do qual o receptor de uma mensagem eletrônica pode se assegurar da identidade do remetente e/ou da integridade da mensagem mesma. Os protocolos de autenticação podem ser baseados em sistemas de encriptação convencional ou por chave pública (RSA). A autenticação por meio de chave pública usa assinaturas digitais.

Existem basicamente dois sistemas de encriptação de dados: (a) sistema simétrico, que se utiliza de uma mesma e única chave para criptação e decriptação da mensagem. (b) sistema assimétrico, quando se requer a aplicação de chaves diversas para a operação de criptação e decriptação da mensagem. Basta que se afirme aqui a superior garantia oferecida pelos sistemas assimétricos que adicionalmente oferecem um método de criação de assinaturas digitais. (10)

Um algoritmo de criptação simétrica funciona com pares de chaves: uma encripta a mensagem, outra decripta. Uma das chaves será tornada pública (public key) com a sua inserção em repositórios públicos de chaves, chamados de key repository – bancos de dados que podem tornar disponíveis as chaves públicas (inclusive pela internet), associando-a ao nome de um titular. A outra (private key) é de custódia secreta do titular. Uma firma digital é o resultado da aplicação de uma chave privada sobre um documento digital. Qualquer um que receba esse documento e queira verificar a sua proveniência e integridade, deverá aplicar sobre ele a chave pública correspondente, certificando-se, assim, da sua autenticidade.

Para ilustrar a formação de um documento eletrônico com a aposição de firmas digitais, vamos supor uma correspondência. O cenário clássico é o seguinte: fulano deseja enviar uma mensagem a beltrano; fulano encripta a mensagem (a qual é chamada de texto plano — plain text) com a sua chave privada de encriptação; a mensagem assim encriptada (chamada de texto cifrado — chipertext) é remetida a beltrano, que por seu turno decripta o texto cifrado aplicando-lhe a chave pública de fulano. Se a verificação é positiva, beltrano terá a certeza de que a mensagem provém de fulano (imputação) e que não sofreu qualquer tipo de adulteração devida a erro de transmissão ou pela interpolação de texto (integridade). Por fim, fulano não poderá sustentar que não enviou a mensagem (não repúdio).

Facilmente se verifica a grande vantagem que o sistema pode representar para o tráfego de documentos entre os países do MERCOSUL. Contudo, a formação desses documentos e a sua completa e segura adoção ainda necessita de ultrapassar alguns problemas técnicos e, principalmente, superar o problema da certificação na conferência, às partes e aos interessados, do par de chaves (pública e privada) necessário para o jogo da contratação eletrônica.
 
 

Validade e Autenticidade do Documento Eletrônico - Modelo teórico

Vamos verificar como um documento eletrônico poderia ser formado, com todas as garantias de autenticidade e segurança necessários para a sua plena validade nos estados que integram o MERCOSUL. Tomaremos como exemplo, dentre os vários modelos teóricos existentes, a de chave pública (RSA), por trazer o benefício da assinatura digital.

Como se pode perceber facilmente, a certeza de que um documento eletrônico não tenha sofrido qualquer alteração e de que provém daquela pessoa que remeteu não dá, por si só, a certeza da identidade real de quem enviou a mensagem (key legitimacy). Como assinala ZAGAMI, qualquer um, de fato, poderia criar um par de chaves, a ele associando o nome de qualquer pessoa, real ou imaginária (e logo pensamos nos "fantasmas" de tão funesta notoriedade no noticiário policial e político brasileiro) e eventualmente depositando a chave pública num repositório (key repository), usando um nome falso e a chave privada correspondente para gerar uma firma digital.

Para enfrentar esse problema, teoricamente se prevê um sistema de certificação (Certification Authorities) que provê o interessado do par de chaves necessário para atuação na formação de documentos eletrônicos mediante a prévia verificação da real identidade do postulante. Não por acaso, as pesquisas encaminham-se no sentido de dotar o ato de conferência das chaves aos interessados de caráter oficial e público, exercido com independência, um T.T.P. (Thrusted Third Party), um terceiro que possa gozar da confiança das partes que contratem eletronicamente e tenham necessidade de obter o par de chaves para aposição de sua assinatura digital. A figura que parece preencher, à perfeição, os pré requisitos para funcionar como autoridade que certifique e ateste a identidade das partes, além de conferir-lhes o par de chaves necessário para a contratação eletrônica é o notário, aliás o Cybernotary(11).

Não passou desapercebido aos notários europeus o extraordinário potencial de renovação e crescimento, em termos de necessidade e importância, da função notarial a nível internacional. Assim, como registra MICCOLI em interessante artigo publicado na Revista do Notariado Italiana, "o conceito de certification authority entendido como Thrusted Third Party, entreabre interessantes perspectivas para o enriquecimento notarial: não somente o notário poderá demonstrar a necessidade de sua intervenção para dar certeza às transações singulares, mas poderá validamente candidatar-se quer a nível individual, quer a nível de seus organismos nacionais e internacionais, como terceiro garantidor do sistema, definitivamente, como Certification Authority, nacional ou supranacionalmente." (12)
 
 

Conclusões

Em conclusão, podemos afirmar:

1. que a integração entre os países que formam o bloco do MERCOSUL seria enormemente favorecida se os profissionais do direito e os pesquisadores viabilizassem modelos teóricos que permitam o cumprimento dos acordos internacionais, como os que foram aqui noticiados, através de meios e recursos eletrônicos, que favorecem a agilidade, rapidez, segurança e autenticidade das operações.

2.Que os sistemas de documentação eletrônica formado por chave pública e assinatura digital representam um aperfeiçoamento em relação aos meios tradicionais de documentação pública ou privada.

3.Que as escrituras públicas de que trata o Decreto Federal 2.067/96 podem ser formalizados através de meios eletrônicos, cuja validade e autenticidade será atestada por notário.

4.Que as autoridades subscritoras dos acordos de cooperação e integração do MERCOSUL devem envidar esforços no sentido de integrar os serviços notariais e registrais de cada estado parte através de redes como a internet.
 
 

Bibliografia

BARASSI, Theodore Sedgwick. The Cybernotary: Public Key Registration and Certification and Authentication of International Legal Transactions

DIFFIE, E, HELLMAN, M.E. New Directions in Criptography. IEEE, 1976

FAHN, Paul. Answer to Frequently Asked Questions About Today's Cryptograpy. RSA Laboratories, 1993

GARCÍA GUTIÉRREZ, Antonio Luis. Lingüística Documental. Barcelona : Mitre, 1989

GIANNANTONIO, E. Manuale di Diritto dell'Informatica. Padova, 1994, p. 338 ss.

MICCOLI, Mario. Cybernotary. Consiglio Nazionale del Notariato - Forum di Informatica Giuridica

MORELLO, A. Sottoscrizione. In Nov. Dig. It. XVII, Torino, 1970.

SARAIVA, F.R. Novissimo Dccionario Latino-Portuguez, 8a. ed. Rio de Janeiro : Garnier, 1924

ZAGAMI, Raimondo. Firme 'Digitali', Crittografia e Validità del Documento Elettronico. In "Il Diritto dell'informazione e dell'informatica", 1996, fasc. 1, pp. 151.
 
 

NOTAS

1 Decreto Federal 2.067, de 12/11/96 (DOU 13/11/96), art. 24 e 25.

2 Cfr. Novo Dicionário Aurélio. O conceito etimológico se liga a documentum que se radica em docere, que significa ensinar. Portanto, documentum é, segundo nos afiança F.R. dos Santos Saraiva (Novissimo Dccionario Latino-Portuguez, 8a. ed. Rio de Janeiro : Garnier, 1924) é "ensino, lição, aviso, advertência.

3 García Gutiérrez, Antonio Luis. Lingüística Documental. Barcelona : Mitre, 1989, p. 49

4 Zagami, Raimondo. Firme 'Digitali', Crittografia e Validità del Documento Elettronico. In "Il Diritto dell'informazione e dell'informatica", 1996, fasc. 1, pp. 151.

5 Morello, A. Sottoscrizione. In Nov. Dig. It. XVII, Torino, 1970, p. 1004 ss.

6 Segundo Zagami, que seguimos nesse passo, é "em razão desse liame entre o continente e o conteúdo que deriva a exigência da intervenção de um notário ou outro oficial público (...) para garantir a integridade da cópia de um ato no momento da transferência de continente (original) ao continente (cópia), conservando-se a sua eficácia probatória" (Op. cit.)

7 Giannantonio, E. Manuale di Diritto dell'Informatica. Padova, 1994, p. 338 ss.

8 Criptografia é a arte de escrever em cifra ou em código, segundo o Novo Dicionário Aurélio. Encriptação é, por conseguinte, "a transformação de dados em uma forma ilegível por qualquer pessoa sem o concurso de uma chave secreta de decriptação. A sua finalidade é assegurar a privacidade tornando a informação oculta a qualquer a que não seja especificamente dirigida" (FAHN, Paul. Answer to Frequently Asked Questions About Today's Cryptograpy. RSA Laboratories, 1993)

9 Op.Cit. p. 152

10 Para maiores informações sobre processos criptográficos, ver o já citado Paul Fhan e especialmente Diffie, E, Hellman, M.E. New Directions in Criptography. IEEE, 1976.

11 Cfr. por todos Barassi, Theodore Sedgwick. The Cybernotary: Public Key Registration and Certification and Authentication of International Legal Transactions. In http://www.intermarket.com/ecl/cybernote.html.

12 Miccoli, Mario. Cybernotary. Consiglio Nazionale del Notariato - Forum di Informatica Giuridica. Http://www.notariato.it